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Análise de Livros Didáticos de Matemática: um Enfoque Hermenêutico.

Fábio Donizeti de Oliveira


Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica
Programa de Pós Graduação em Educação Matemática
UNESP/Rio Claro

A Análise de Livros Didáticos de Matemática é tema freqüente nos trabalhos em


Educação Matemática. Por ser o livro didático um dos importantes componentes do cotidiano
escolar em todos os níveis de ensino, acredita-se que sua análise pode contribuir para a
compreensão de uma parte do complexo sistema escolar. No caso dos livros didáticos antigos,
acredita-se que sua influência, devido à pouca disponibilidade de professores no início da
expansão do ensino e à sua limitada formação, era ainda maior fazendo com que esses textos
configurem-se como uma das raras fontes de pesquisa para a constituição de uma história da
Educação Matemática.
Reconhecida a devida importância dos Livros Didáticos de Matemática – e
conseqüentemente dos trabalhos que abordam esse tema – e conscientes de que se constituem
um dentre os diversos influenciadores do processo de educação matemática escolar, vemos a
necessidade de que as análises de livros didáticos – pela sua importância – sejam foco de uma
reflexão metodológica. Mesmo os trabalhos que, segundo nossas concepções, empreendem
uma análise adequada – ao menos segundo alguns aspectos – não fazem, ao menos a contento,
uma reflexão metodológica sobre a análise empreendida. Limitam-se a métodos empíricos e,
quando muito, vinculam-se aligeiradamente a teorias gerais de análise textual.
No nosso entender, além da explicitação dos procedimentos, uma metodologia deve
abarcar a definição de conceitos fundamentais e a reflexão e justificação da opção de um
determinado conjunto de métodos em detrimento de outros. Assim, nosso objetivo é propor
uma reflexão metodológica para a análise de livros didáticos de matemática inspirados na
Hermenêutica, principalmente a partir da obra de Paul Ricoeur. Os pressupostos da
Hermenêutica nos parecem apropriados para sustentar uma tal metodologia, segundo nossas
concepções de Educação Matemática, Educação Matemática Escolar e do próprio Livro
Didático de Matemática que, entre outras, explicitaremos brevemente a seguir.

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Entendemos, ao menos inicialmente, a Educação Matemática, como uma prática social
realizada por uma comunidade, à qual denominamos de comunidade de educadores
matemáticos. A Educação Matemática não é outra coisa senão aquilo que faz o educador
matemático nomeando seu fazer de Educação Matemática. Trata-se de um movimento de
constituição a partir de práticas que cria a consciência, ou como nos diria Larrossa (2005) a
fábula, da Educação Matemática.

(...) do mesmo modo que desde Cocteau qualquer adolescente sabe que Napoleão
era um louco que se acredita Napoleão, os politólogos deveriam saber, a partir de
Castoriadis, Claessens e Luhmann, que as sociedades são sociedades enquanto
imaginam com êxito que são sociedades. (SLOTERDIJK: 2000, p.20 Apud
LARROSA: 2005, p.82)

Antonio Miguel (2003) ilustra bem essa comunidade de educadores matemáticos como
sendo formada por
(...) professores de matemática que não pesquisam suas práticas e que não vêem
com bons olhos os pesquisadores acadêmicos em educação matemática;
pesquisadores acadêmicos em matemática e em educação que participam da
formação desses professores, mas que não gostam muito de fazer isso e, se
pudessem, não o fariam; de matemáticos que não pesquisam nem matemática e
nem educação, mas que formam a gosto ou a contragosto, professores de
matemática; pesquisadores matemáticos que gostariam de fazer educação
matemática, mas que se acham considerados impedidos de fazer o que desejariam
fazer; pedagogos e psicólogos, por alguns considerados matematicamente incultos,
mas que realizam pesquisas em educação matemática; matemáticos conteudistas de
última hora, moralizadores, arrogantes e inflexíveis, que se imaginam salvadores
da pátria e legítimos proprietários e defensores do nível e do rigor da educação
matemática da população; mas também por professores de matemática,
pesquisadores em matemática, pesquisadores em educação matemática e outros
profissionais que fazem e acreditam na educação matemática e tentam, de fato,
levar a sério o que fazem. (MIGUEL: 2003, p.23)

Nesse conjunto inscrevem-se, portanto, os professores de matemática, na sua


diversidade, que ao ensinarem matemática produzem Educação Matemática e, por ser a
atividade de ensino na instituição escolar muito peculiar aos nossos interesses, a distinguirei
da pesquisa acadêmica nomeando-a Educação Matemática Escolar. E com Miguel (2005)
assumimos, então, que ao optarmos por Educação Matemática Escolar e não simplesmente
por Matemática Escolar, concebemos a prática social educativa como produtora de cultura.
Concebemos a Educação Matemática Escolar como produtora de um conhecimento específico
que se dá pela busca pelo relacionamento dos processos de ensino e de aprendizagem. Desta
forma, descartamos a idéia de que a comunidade escolar seja uma mera receptora de teorias

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acadêmicas ou políticas – governamentais ou não – de ensino. Acreditamos ainda que, mais
que o ensino de matemática, a essência da Educação Matemática Escolar deva ser a educação
através da matemática.
Além de produzir conhecimento, a Instituição Escolar é autônoma na produção ou
manutenção de cultura. Como nos diz Chervel “(...) o sistema escolar (...) forma não somente
os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a
cultura da sociedade global.” (CHERVEL: 1999, p.184).

E a Educação Matemática Escolar, enquanto disciplina escolar,

(...) comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também as grandes
finalidades que presidiram sua constituição e o fenômeno de aculturação de massa
que ela determina (...) O estudo dessas [disciplinas escolares] leva a pôr em
evidência o caráter eminentemente criativo do sistema escolar, e portanto a
classificar no estatuto dos acessórios a imagem de uma escola encerrada na
passividade, de uma escola receptáculo dos sub-produtos culturais da sociedade.”
(CHERVEL: 1990, p.184).

É por ser a Escola agente, produtora e transformadora que acreditamos, com a


Hermenêutica, que seu processo deve ser estudado, sempre que possível, com vínculos diretos
com o ambiente escolar. Também por isso concebemos a Instituição Escolar como agente
ideológico que muitas vezes serve como “aparelho de estado”, mas que também, com grande
maestria, o subverte, modificando a ordem social.
Por ideologia, entendemos com Thompson (1995) o uso do sentido para a manutenção
de relações assimétricas de poder que, ao impossibilitarem que grupos distintos se alternem
no poder, cria relações de dominação e subordinação.

Ideologia, de acordo com essa concepção, é, por natureza, hegemônica, no sentido


de que ela, necessariamente, serve para estabelecer e sustentar relações de
dominação e, com isso, serve para reproduzir a ordem social que favorece
indivíduos e grupos dominantes. (THOMPSON: 1995, p.91).

As ideologias são sistemas de crenças relativamente estáveis que, sendo crenças, não
admitem reflexão – ou não requerem justificação – e que controlam a vida de grupos de
pessoas. Esses sistemas ideológicos podem se interconectar produzindo sujeitos pertencentes
a mais que um sistema ideológico.
O sentido de algo é uma produção de um leitor específico, com sua historicidade, com
suas experiências e suas expectativas, em um momento específico. É uma experiência de
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produção de significado que se dá a partir do estímulo de um texto ou, como diria Thompson
(1995), de uma Forma Simbólica.
Concebemos, então, Forma Simbólica como todo resquício de produção – humana ou
mesmo sobrenatural – a partir do qual, ou para o qual, pode-se atribuir algum significado.
São, portanto, Formas Simbólicas, entre outras coisas, textos escritos, discursos, gestos,
pinturas, esculturas, objetos dos mais variados e, sob certas circunstâncias, os fenômenos
naturais.
As Formas Simbólicas, segundo Thompson (1995) apresentam cinco aspectos:
1) Aspecto Intencional: toda Forma Simbólica é produzida por – ou em certas
circunstâncias pode ser percebida como produzida por – um sujeito que tem uma
intenção de dizer. Embora não seja possível apreender essa intenção, ou como diz
Lins (1999) a comunicação dessa intenção apenas ocorra de forma acidental e
ainda assim imperceptível, o objetivo do processo de atribuição de significados é a
intenção do dizer.
2) Aspecto Convencional: as Formas Simbólicas possuem algumas convenções que
permitem sua transmissão entre os sujeitos como, por exemplo, as convenções da
língua, ou as regras para publicações acadêmicas.
3) Aspecto Estrutural: a produção e transmissão das Formas Simbólicas seguem uma
certa estrutura, muitas vezes convencionada por uma certa comunidade, e que
servem para a comunicação da intenção de dizer. São disposições de gráficos em
textos, sombras em pinturas, etc que realçam certos aspectos das Formas
Simbólicas.
4) Aspecto Referencial: na intenção de dizer, diz-se sobre algo, um objeto ou assunto
a que se refere a Forma Simbólica. É a partir desse referente real, e da imagem que
o leitor tem sobre esse referente que ele produzirá significado à Forma Simbólica.
5) Aspecto Contextual: todo referente, assim como todo autor e leitor, existe num
contexto que é histórico, espacial e temporal. Assim as Formas Simbólicas são
estruturadas em um determinado contexto social.
O Livro Didático em geral e o Livro Didático de Matemática em particular, se
enquadram na concepção de Formas Simbólicas de Thompson e apresentam os cinco aspectos
por ele formulados. Desta forma, são Formas Simbólicas – que podem ser ideológicas – e se
abrem à possibilidade de interpretações.

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Thompson (1995), baseado nessa concepção de Formas Simbólicas (através da qual
ele define cultura como Formas Simbólicas em contextos estruturados) e na Hermenêutica da
Profundidade de Paul Ricoeur, propõe uma metodologia para o estudo da cultura, ou seja,
para o estudo das Formas Simbólicas em contextos estruturados.
Sua metodologia divide-se em três movimentos:
a) Análise Sócio-Histórica: Estudo das situações espaços-temporais e as
interações das instituições sociais dentro da estrutura social de produção e de
apropriação das Formas Simbólicas.
b) Análise Formal: Análise interna da obra principalmente de seus aspectos
estruturais e convencionais.
c) Interpretação/Re-interpretação: Buscar, à luz das informações das duas
análises anteriores, interpretar as formas de produção e apropriação e as
possibilidades de interpretação a que se abrem as Formas Simbólicas
buscando garantir uma certa plausibilidade. Cabe ressaltar que, como toda
produção é já uma interpretação, o Estudo da Cultura é sempre uma
interpretação de um campo pré-interpretado.
Nossa intenção, então, é, a partir dessa proposta metodológica de Thompson, assumir
o Livro Didático de Matemática como uma Forma Simbólica Estruturada, e propor
procedimentos metodológicos possíveis e desejáveis para a análise desses livros. Não é nossa
intenção regulamentar ou mesmo propor uma série de passos a serem seguidos por analistas
de livros didáticos de matemática, mas contribuir para a reflexão e regulação1 da metodologia
de pesquisa nessa área.
Como pretendemos contribuir para uma regulação, e como entendemos que toda
regulação se dá pela constante discussão e reflexão sobre as práticas de uma determinada
comunidade, pretendemos buscar inspiração para propor tais procedimentos metodológicos
em trabalhos já disponíveis cujos temas estão vinculados à análise de livros didáticos (em
especial de matemática) e, com o rol de procedimentos desejáveis, indicar exemplos desses
trabalhos que desenvolvem de forma satisfatória, segundo nossas concepções, alguns desses

1
Geraldo Bergamo, professor do Curso de Licenciatura em Matemática da UNESP-Bauru, em documento não publicado
enviado ao Conselho do referido Curso e citado por GARNICA (2001) define regulação como sendo “(...) um processo em
que grupos que se constituem socialmente discutem e esclarecem continuamente as finalidades que organizam sua vida em
comum, de forma que os procedimentos de convivência e realização de ações coletivas estejam em adequação com as
finalidades compromissadas coletivamente. As finalidades acordadas são a única e genuína fonte das regulações que
necessitam ser combinadas para ir organizando e dando eficácia ao desenvolvimento das ações comuns” .
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procedimentos de pesquisa. Não pretendemos, portanto, no corpo do trabalho, analisar
nenhum livro didático de matemática específico, mas olhar para a teoria que esboçamos e para
alguns trabalhos que tematizam a análise de livros didáticos, visando a discutir uma
metodologia e propor procedimentos de análise possíveis e desejáveis para o estudo de livros
didáticos de matemática.

Bibliografia

       
 
 

 

  
  

      

 
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