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ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA PROF.

RUY ANTUNES – ESA /


FACULDADE DAMAS DA INSTRUÇÃO CRISTÃ
PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PÚBLICO E PRIVADO
DISCIPLINA: DIREITO CIVIL II

FECUNDAÇÃO ARTIFICIAL PÓSTUMA E O DIREITO SUCESSÓRIO

Ary de Albuquerque Bezerra

Introdução

Diz o artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro de 2002 que: “Presumem-se


concebidos na constância do casamento os filhos: (...) III - havidos por fecundação artificial
homóloga, mesmo que falecido o marido (...)”.

Por fecundação artificial homóloga, entenda-se aquela em que o material genético


do casal é usado na fecundação. Diferentemente, na fecundação heteróloga utiliza-se material
genético de um doador, diante da impossibilidade técnica de uso de material do marido ou da
esposa.

De outra parte, o artigo 1.798 do Código Civil Pátrio estabelece que: “Legitimam-se
a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.

Estamos, portanto, diante de um conflito de normas, vez que o citado artigo 1.597
reconhece os filhos havidos por fecundação artificial póstuma como concebidos durante o
casamento, ao passo que o artigo 1.798 diz que somente as pessoas nascidas ou já concebidas
no momento da abertura da sucessão estão legitimadas a suceder, o que, em tese, excluiria o
nascido após a morte do autor da herança, mediante fecundação artificial, sem que tenha
havido prévia concepção, à participação na sucessão.

Diante do imbróglio jurídico, questiona-se: Os filhos concebidos por inseminação


artificial post mortem possuem, ou não, direitos sucessórios?

Tentaremos, através do presente trabalho, elucidar o assunto que vem sendo objeto
de discussões acaloradas, à luz dos princípios basilares da nossa Carta Magna.

Desenvolvimento

Os avanços na medicina genética possibilitaram que o sêmen, o embrião e o óvulo


pudessem ser armazenados através de técnicas próprias de resfriamento e congelamento,
método que passou a ser denominado de criopreservação, de modo que mesmo depois da
morte da pessoa seus gametas poderiam ser utilizados na reprodução humana medicamente
assistida.

O tema em questão passou a ser discutido no ordenamento jurídico moderno, na


década de 80, quando a mídia divulgou um caso ocorrido na França que ficou mundialmente
conhecido como o “Affair Parlapaix”.
Conta-se que em 1984, uma jovem chamada Corine Richard, apaixonou-se por um
rapaz chamado Alain Parlapaix, e logo começaram a namorar. Quando, algumas semanas
depois, tiveram a triste notícia de que Alain estava com câncer nos testículos e a doença era
incurável.

Sabendo que a quimioterapia o deixaria infértil, Alain procurou um banco de sêmen


para nele depositar o seu esperma, a fim de ser usado futuramente.

Diante do avanço da doença, Corine e Alain resolveram casar-se apressadamente.


Mas, dois dias depois da cerimônia, ele faleceu.

Desejando ter um filho do seu amado, Corine procurou o banco de sêmen para se
submeter à inseminação artificial. Contudo a empresa recusou-se em atendê-la alegando falta
de amparo legal.

O caso foi parar no Tribunal de Créteil, ensejando várias discussões acerca da


titularidade do material genético coletado. E, após intenso debate jurídico, o tribunal francês
decidiu condenar a clínica a devolver o sêmen congelado a um médico designado pela viúva
do depositante, sob pena de multa.

Tendo em vista a demora na solução do litígio, a inseminação não teve sucesso, vez
que os espermatozoides já não mais estavam potencializados para a fecundação.

Esse caso ensejou vários debates em alguns países que evoluíram, se concretizando
em normas legais que tentaram, de alguma forma, acompanhar o avanço da genética.

Carlos Alberto Ferreira Pinto[1] diz que alguns países encontraram algumas
soluções, destacando que: “a) Alemanha e Suécia, vedam a inseminação post mortem. b)
França: Veda inseminação post mortem e dispõe que o consentimento externado em vida
perde o efeito. c) Espanha: Veda a inseminação post mortem, mas garante direitos ao
nascituro quando houver declaração escrita por escritura pública ou testamento. d) Inglaterra:
Permite-se a inseminação post mortem, mas não garante direitos sucessórios, a não ser que
haja documento expresso neste sentido.”

Apesar do avanço obtido com a inserção no Código Civil de 2002 de dispositivos


que tratam da fecundação artificial, há ainda várias lacunas em nossa legislação que necessita
urgentemente de normas legais específicas, diante das novas técnicas de reprodução humana
medicamente assistidas. Devido a essas lacunas no nosso direito, o assunto está fazendo
surgir diversas interpretações doutrinárias, centrando a polêmica na tentativa de definir qual a
qualificação jurídica do nascido mediante procriação artificial realizada após a morte do
doador do sêmen.

O Conselho Federal de Medicina - CFM, com o fito de regular o tema, pelo menos
entre os integrantes da classe, editou a Resolução nº 1.358/92, que aborda a questão da
reprodução humana medicamente assistida à luz dos princípios constitucionais e do
ordenamento jurídico brasileiro. Porém, esta norma representa apenas uma diretriz para a
classe médica, não tendo força de lei.

A Resolução nº 1.358/92 do CFM, em seu item V.1., estabeleceu que as clínicas,


centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos e pré-embriões, além disso,
no momento da criopreservação, ou cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade,
por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de
divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou ambos, e quando desejam doá-los.

Há ainda projetos em tramitação no Congresso Nacional dispondo sobre o tema,


entretanto, nenhum deles aborda totalmente o assunto, restando ainda muito a ser discutido.

Diante da falta de regulamentação, resta-nos cotejar o assunto utilizando-nos dos


princípios fundamentais constantes da nossa Carta Magna, vez que em sendo a base
hierárquica do nosso sistema jurídico, a Constituição deverá ser observada nos casos em que
houver conflitos legais, omissões legislativas ou quando surgirem fatos novos, não previstos
em lei.

Não podemos, ainda, desprezar a analogia, os costumes e os princípios gerais de


direito, à luz do princípio insculpido no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, para
responder ao questionamento proposto.

A Constituição Federal – CF de 1988, em seu artigo 226, § 7º, fundamentada nos


princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, consagrou que “o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por
parte de instituições oficiais ou privadas”. O mencionado dispositivo constitucional, se acha
regulado pela Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que conceitua planejamento familiar
“como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de
constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (art. 2°).

Denota-se, em princípio, que qualquer iniciativa de se vedar a fecundação póstuma,


mormente quando houver um dos cônjuges expressado sua vontade - através de documento
escrito autêntico ou testamento -, esbarraria no dispositivo constitucional supra que prega a
liberdade do casal em decidir sobre sua prole.

Guilherme Calmon[2] vai mais além, citando que a liberdade de planejamento


familiar é consequência do direito à liberdade previsto no artigo 5º, caput, e inciso II, da Carta
Magna, “(...) com a observância de que o exercício da liberdade pressupõe responsabilidade e
a existência de limites imanentes, considerando o postulado basilar da convivência em grupo,
ou seja, o respeito à dignidade e aos demais valores e bens jurídicos das outras pessoas no
exercício dos seus direitos fundamentais”.

Por seu turno, o artigo 227, § 6º, da CF, estabelece o princípio da igualdade da
filiação, vedando quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Este princípio
deriva do princípio maior de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza” (art. 5º, caput, da CF).

Giselda Hironaka[3], ao tratar do princípio constitucional da igualdade entre os


filhos afirma que “a Constituição Federal não faz distinção entre os filhos, qualquer que seja
sua origem ou o tipo de relação mantida por seus genitores”.

Destarte, diante do referido princípio, não se pode aceitar como possível uma lei
infraconstitucional que restrinja o direito do filho concebido por inseminação artificial
póstuma. Se o texto constitucional não estabeleceu nenhuma exceção, não pode o legislador
ordinário, nem mesmo o intérprete, estabelecê-la.

Há ainda dois princípios fundamentais que são citados por alguns estudiosos sobre o
tema para reforçar o posicionamento favorável à reprodução humana medicamente assistida
post mortem: o princípio da legalidade e o da anterioridade. O primeiro reforça o
entendimento de que se não há proibição legal, então será permitido. O segundo dá guarida ao
entendimento de que tal procedimento não é criminoso, visto que não há lei anterior que
assim o defina.

Outro princípio também considerado é o princípio do melhor interesse da criança,


que apareceu em nosso ordenamento jurídico quando da edição do Decreto nº 99.710/90, que
atribuiu vigência à Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Segundo esse princípio,
consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, “todas as ações relativas às crianças,
levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar,
primordialmente, o interesse maior da criança”.

Não se pode olvidar ainda da redação dada ao artigo 1.799 do Código Civil, tida por
alguns autores como a solução para o caso do filho concebido post mortem ser considerando
herdeiro, havendo apenas uma exigência: a necessidade de ser contemplado em testamento.

Diz o artigo 1.799 do CC que: “Na sucessão testamentária podem ainda ser
chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador,
desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;” (destaque nosso).

Entretanto, esse dispositivo não contempla os filhos nascidos por inseminação


póstuma, caso não tenham sido indicados em testamento.

Assim, diante das contradições entre as normas do Código Civil e a Constituição


Federal, bem assim da omissão em nosso ordenamento jurídico de normas específicas
tratando sobre as técnicas de reprodução humana medicamente assistida, principalmente no
caso em discussão, deverão prevalecer as normas constitucionais, porquanto nenhuma norma
pode ser contrária à Constituição Federal, posto que, assim sendo não tem eficácia, sendo
considerada inconstitucional.

A exclusão de qualquer filho da sucessão hereditária, concebido antes ou depois da


morte do seu genitor, não é valida, com exceção dos filhos deserdados ou excluídos por
indignidade.

Necessário apenas que se estabeleça um prazo máximo após a morte do doador do


material genético para que seja realizada a inseminação, visto que as técnicas atuais de
criopreservação possibilitam o congelamento deste material por anos ou décadas, sendo
altamente prejudicial á ordem jurídica a espera indefinida de uma possível prole. Esse prazo
poderia ser de dois anos, tomando-se como referência o disposto no artigo 1.800, § 4º, do CC.

Conclusão

Apesar das críticas de alguns autores de que a inseminação artificial não se justifica,
devido a não mais existir a figura do casal, podendo resultar em perturbações psicológicas
graves à criança e à mãe, cremos que se tratam de argumentações puramente sentimentalistas,
vazias, distantes da realidade. Esquecem esses autores que nosso cotidiano é rico em casos de
filhos que nasceram sem que seus pais estivessem vivos, ou mesmo de mães que faleceram
após dar a luz a seus filhos, sem, contudo, impor-se, de logo, aos nascidos o estigma de que
seriam pessoas perturbadas emocionalmente ou mesmo infelizes. Ora, sendo assim, não se
encontrariam pessoas com tais problemas estando seus pais vivos.

O que determinará se o indivíduo terá perturbações psicológicas graves, ou não, será


a maneira de como será criado; se terá atenção, afeto e suas necessidades básicas supridas; se
o ambiente em que viverá será sadio, entre outras coisas, e não se terá ambos os pais vivos
para acompanhar-lhe o crescimento e o desenvolvimento. Esse papel poderá muito bem ser
desempenhado por um ou dois substitutos, parentes ou não, não importa.

O que importa saber é que mesmo que a prática da inseminação artificial póstuma
seja proibida, com a sua criminalização e penalização, como se comportará o direito e a
sociedade se acaso for utilizada, resultando na concepção e no nascimento de um ser vivo?
Que direitos terá essa criança?

Discute-se muito hodiernamente sobre a situação do concebido após a morte do seu


genitor, no que concerne a direitos de terceiros herdeiros até então existentes, ao passo que se
esquece dos direitos da criança nascida nessas circunstâncias, bem assim dos direitos de sua
genitora.

O direito ao planejamento familiar está insculpido em nossa Constituição, e não se


poderá admitir que o desejo de um casal de ter um filho, plenamente manifestado por seus
atos e circunstâncias, seja deliberadamente proibido se, por um ocaso do destino, um deles
vier a falecer. Consoante ressalta Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho[4] “o planejamento
familiar, sem dúvida, dá-se quando vivos os partícipes, mais seus efeitos podem se produzir
para após a morte”.

Porém, cotejando-se os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade


responsável, que fundamentam a plena liberdade do planejamento familiar, com os princípios
da coisa julgada e do ato jurídico perfeito, necessário se impor condições para que a
inseminação medicamente assistida após a morte de um dos doadores seja realizada, dentre
elas a existência de autorização expressa do outro cônjuge e, principalmente, que seja
estabelecido um prazo, posto que se indefinido causará extrema insegurança jurídica em nossa
sociedade.

Portanto, havendo essa parametrização, concluímos que não se cogitaria afirmar que
os princípios constitucionais da igualdade plena entre os filhos, da proibição de qualquer
forma discriminatória e do melhor interesse da criança estariam sendo desrespeitados, quando
da invocação de direitos sucessórios.

Notas

[1] Carlos Alberto Ferreira Pinto. Reprodução Assistida: Inseminação Artificial Homóloga
Post Mortem e o Direito Sucessório. Disponível em:
http://recantodasletras.uol.com.br/textosjuridicos/879805. Acesso em: 01 maio, 2010.
[2] Citado por Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho. Fecundação Artificial Post Mortem
e o Direito Sucessório. Disponível em: http://www.esmape.com.br/esmape/index2.php?
option=com_docman&task=doc_view&gid=78&Itemid=99999999. Acesso em: 01 maio,
2010.
[3] Idem ibidem.
[4] Idem ibidem.

Bibliografia

FILHO, Carlos Cavalcanti de Albuquerque. Fecundação Artificial Post Mortem e o


Direito Sucessório. Disponível em: http://www.esmape.com.br/esmape/index2.php?
option=com_docman&task=doc_view&gid=78&Itemid=99999999. Acesso em: 01 maio,
2010.

FREITAS, Douglas Philips. Reprodução assistida após a morte e o direito de


herança. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=423. Acesso em: 01
maio, 2010.

PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução Assistida: Inseminação Artificial


Homóloga Post Mortem e o Direito Sucessório. Disponível em:
http://recantodasletras.uol.com.br/textosjuridicos/879805. Acesso em: 01 maio, 2010.

RIGO, Gabriella Bresciani. O Status de Filho Concebido Post Mortem Perante o


Direito Sucessório na Legislação Vigente. Disponível em:
http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/obras/monografias/3849-o-status-de-filho-
concebido-post-mortem-perante-o-direito-sucessorio-na-legislacao-vigente.html. Acesso em
02 maio, 2010.

VALENTE, Cláudia Maria dos Santos. Inseminação póstuma: Complicações


jurídicas. Disponível em: http://www.r2learning.com.br/_site/artigos/artigo_default.asp?
ID=389. Acesso em 01 maio, 2010.

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