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Sempre comigo naquela mesa... Contigo aprendi.

Abriu os olhos. Cumprindo o destino dos-que-dormem-de-bruços, fitou o teto.


Piscou. Ainda deitada, remexendo a íris, olhou para baixo, enxergou a cômoda
marrom, encerada recentemente, acima, o abajur datado do século passado,
detalhes em madeira, pintura delicada: “esse calor nada vaporizou”, o primeiro
pensamento da manhã. Piscou. Ainda fazia deitada a pesquisa de campo, mas
tudo estava como mandava o figurino. Só então pôde, mesmo sem saber,
como num milagre da rosa-dos-ventos, levantar junto ao sol.

Gomando com os punhos cerrados o rosto marcado, caçou as pantufas com os


dedos dos pés. Apalpou as olheiras, esfregava-as para que ganhasse a cor da
pele. Em vão.

Uns passos para abrir a janela e ligar a rádio, já sintonizada na estação correta.
Era a hora de suas músicas prediletas. Soava:

Sempre comigo em meu coração eternamente tu viverás


Mesmo distante sempre comigo tu estarás
Mesmo que a vida de mim te separe, meu coração contigo há de ir
E eternamente tu viverás sempre comigo
Anísio Silva
“Ahhhh!” – Sorriu com o companheiro de longa data.
A porta aberta do apartamento ao lado era o primeiro convite de todos os dias.
Ela e a vizinha eram amigas de longa data, desde que se mudara para a
construção atual. Tinham amigas em comum, daí vindo a se conhecer. E
quando se depararam no mesmo corredor, se surpreenderam: eram agora
vizinhas.

Primeiros passos no corredor com gosto nasal de cafezinho recém-passado.

“Dona Tetê foi freira, mas não conseguiu lidar com a disciplina exigida no
monastério, não não. Sabe como é a vida, num é? Por isso, ela foi se
confessar pro padre, disse que não agüentava mais, e queria saber se a
vontade de Deus era que ela realmente seguisse esse destino. O padre disse
que a resposta estaria no coração dela, e que se fosse para ficar ou para sair,
o bendito ia apontar a direção correta. Saiu. Mas isso não impediu que seu
ciclo de rezas acabasse! Não não. Ela reza por horas. Depende também do
estado de saúde, né. Por isso a Tetê tem a mão santa!!”.

“Tetê” – Exclamou a vizinha já acordada – “Senti o cheiro do teu café santo,


minha preta cheirosa!”. E adentrou a sala, com a intimidade, a etiqueta fica só
para os momentos solenes...

Saudaram-se com sorrisos e forte abraço que só os amigos de longa data


entendem. A presença. O consolo. O conforto... Do ombro ou mesmo do café.

“É uma alegria o meu bairro, vizinhos maravilhosos, Tetê, Lêda, Seu Crisanto...
E é calmo demais, tem esse bar aí em frente, mas quando o futebol acaba, às
10, 11h, o movimento acaba! Aí tenho tranqüilidade pra dormir... Dormir sem
uma muriçoca me aperreando!”

- Dona Laura!!! – Projetava o som uma terceira pessoa no Apartamento santo.

- Ah, é tu, Francisca?! A Tetê dormiu bem?!

- Tudo certinho, Dona Laura. Ponha seu café, a Rua lhe espera, num é?!

(Sorriu).

O café estava na qualidade de sempre, transcendental. Acompanhava um


pãozinho da padaria predileta. Com margarina Becel. E claro, sem sal. Já
condicionava sua alimentação há tempos. Opção sensata, afinal, era
hipertensa desde os 40, e hoje já são...

Se despediram, agora, tinha um compromisso que marcara aos 20 : ir todos os


dias à Rua Grande. Dizia que só ia porque tinha de resolver problemas, pagar
contas, comprar uma coisinha aqui, outra ali... Mas a verdade é que gostava de
passear. A idade, por mais que tento escapar de usar tais palavras, pesou em
suas costas, e não lhe permite realizar tudo o que fazia. Por isso, passear no
centro se transforma em resquício de sua jovialidade.

“Ah, Glauquinho, eu vim pra cá com 11 anos de idade, sozinha. Trabalhei em


casa de família. Deus abençoe a finada Vitalina (fazendo o sinal da cruz). A
vida é trabalho, meu filho. E eu lutei muito. Sabe, vida era uma correria.
Andava o tempo inteiro. Tu acha que eu pegava ônibus? Nã. Eu ia a pé pra
Rua Osvaldo Cruz todo santo dia resolver coisa. Hoje? (sorriu) Hoje, a idade já
pesa. Eu passava pano na casa 3 vezes por dia só pra ver brilhar... Hoje,
preciso da Lili pra passar. Dormia em casa, não precisava dessa companhia o
tempo inteiro. A idade traz muitos cuidados. A vida é outra.”

Banho pré-saída não existia. Oras! Pós-café não pode haver banho! Segundo
sua crença, era “pedir” um derrame. Portanto, antes de aquecer o dia com o
café santo, sempre esfriava-o com uma choveirada gélida.

Higienizou a dentadura... Ainda não descobri se usa algum desses produtos de


fixação que aparecem na tv, nunca vi algo parecido quando abro seu armário
em busca do Salompas, ou de outro remédio.

Vumpt, vumpt, vumpt. Era o som do ligeiro amassar e puxar da calça acima
dos joelhos. Não era necessário o uso de cinto. Mesmo a alimentação
balanceada não impedia a barriga. Dizia na época que nunca passava dos 90.
Mas todos desconfiávamos de um número superior... Sabe, cochichos-
familiares?

Tinha apreço pelas flores, e suas camisas não negavam. É com uma destas
decidiu “resolver as coisas”.

Calçara as sandálias de couro, o médico a aconselhara de não fazer uso das


que se sustentavam apenas nos dedos, nesta idade, deveria se prevenir das
quedas usando sandálias com alça traseira. E seguia a risca todos esses
conselhos. As dela lembravam um pouco as de cangaceiro, só que pretas.

Naquela mesa ele sentava sempre


E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Nelson Gonçalves

E sem mexer um trisco na sintonia, “amanhã eu também queria escutar.”,


desligou a rádio.

“Mas, quando desliguei a rádio, senti uma dorzinha fiiiina, sabe?! Parecendo
uma pontadinha... Uma ponta de faca nas tuas costas?! Pois é. No meio das
costas. Pensei logo que era alguma coisa a ver com meus 3 bicos de
papagaio. Aí fui ao apartamento da Tetê.”

Porta ainda aberta, entrou, e pediu, com um sorriso doído:

- Francisca, será que tu pode fazer uma massagem, minha cheirosa? Tu já


ouviu falar em bicos de papagaio? Eles tão me matando, mulhé!

- Tudo bem, Dona Laura, vô só no quarto pegar a pomada...

Tetê observava lavando as xícaras...

- ... Olha, Dona Laura, essa aqui – passou os olhos na caixa – a Bak Gel é
maravilhosa! A Tetê usa sempre que ta com dor nas costas.

Minha vó levantou a camisa, descreveu a dor e a localização, sempre


resmungando:

- “E essa pontada, meu Deus?!”

E Francisca começou a operação, massageava de cima pra baixo, da direita


pra esquerda, massageava e massageava.

- Tá melhorando?! – sempre atenciosa.

- Não, minha nêga... E essa pontada, meu Deus?! Tetê, vem cá, tu que tem a
mão santa de tanto rezar... Faz uma massagem aqui, minha flor!

Já havia acabado, a louça era pouca. Sentou na cadeira, apertou e abriu as


mãos, parecia ser uma santa profissional no aquecimento para melhorar a dor.
Duas gotas viscosas da pomada, e o movimento que batizou de ‘franciscano’.

“Mas antes da Tetê acabar, senti meus braços morrerem, um cansaço


estranho... Peraí, eu pensei. Já tinha tinha visto isso na televisão: “Dor nas
costas, cansaço nos braços...”. E agora o suor no rosto. Estou infartando,
pensei. Mas não podia dizer isso. Tetê ia ficar nervosa demais... ”

- Tetê, estou melhor. Mas faz assim, chama um taxi, porque acho que tive um
pico na pressão, olha aí, minhas orelhas tão até quentes...Mas não é nada
demais...
Tetê, já um pouco alterada, tomou o telefone e ligou para o número mais fácil
que poderia existir, formado somente por 2.

- ... Ah, Tetê, aproveita e depois dá uma ligadinha pros meus filhos, diz que vou
ao hospital. Explica direitinho, tá?!

“Não foi 5 minutos e o taxista chegou. Desci as escadas, sorte que eu moro no
primeiro andar, hein, filho?!”

Abriu o portãozinho, caminhou até a porta...

“Vó, a senhora ficou desesperada?”

“Não, em nenhum momento. Em nenhum momento pensei que ia morrer. Meu


filho, a gente só ‘vai’ no dia e na hora, e aquele dia não era o meu.”

- Bom dia...Moço, o senhor me leve pro hospital, por favor.

“Também pro taxista não contei...Se eu falasse, vai que ele corresse? Era
capaz da gente se quebrar no meio do caminho.”

Alguns minutos depois, ainda sentindo as mesmas dores, chegaram ao


hospital.

- Dona, deu 16 reais.

“Eu tinha uma nota de 20 na bolsa”

Entregou uns vinte, aguardou o taxista procurar o troco...

- Sabe, Dona, pela manhã, começo de turno, a gente não tem o dinheiro
certinho, mas espere aí...

“Quer dizer que a senhora tava infartando e não deixou o troco pra lá?
QUATRO REAIS?!”

“Meu filho, que foi que eu te disse? É só no dia a na hora. Então, sempre
pegue o troco!”

E uns dois minutos depois ele entregou o troco.

- Obrigada, meu filho!


Ela sorriu...

Mais alguns passos e a porta automática se abriu.

“E aí, a senhora deu uns berros dizendo que a senhora tava infartando?”

“Não gritei, só falei... No tom que eu tô falando contigo”

- Me acode que eu to infartando.

Contigo aprendi
Que existe luz na noite
Mais escura
Contigo aprendi
Que tudo existe um pouco
De ternura

Ângela Maria

Glauco 31/12/2010

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