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Uns passos para abrir a janela e ligar a rádio, já sintonizada na estação correta.
Era a hora de suas músicas prediletas. Soava:
“Dona Tetê foi freira, mas não conseguiu lidar com a disciplina exigida no
monastério, não não. Sabe como é a vida, num é? Por isso, ela foi se
confessar pro padre, disse que não agüentava mais, e queria saber se a
vontade de Deus era que ela realmente seguisse esse destino. O padre disse
que a resposta estaria no coração dela, e que se fosse para ficar ou para sair,
o bendito ia apontar a direção correta. Saiu. Mas isso não impediu que seu
ciclo de rezas acabasse! Não não. Ela reza por horas. Depende também do
estado de saúde, né. Por isso a Tetê tem a mão santa!!”.
“É uma alegria o meu bairro, vizinhos maravilhosos, Tetê, Lêda, Seu Crisanto...
E é calmo demais, tem esse bar aí em frente, mas quando o futebol acaba, às
10, 11h, o movimento acaba! Aí tenho tranqüilidade pra dormir... Dormir sem
uma muriçoca me aperreando!”
- Tudo certinho, Dona Laura. Ponha seu café, a Rua lhe espera, num é?!
(Sorriu).
Banho pré-saída não existia. Oras! Pós-café não pode haver banho! Segundo
sua crença, era “pedir” um derrame. Portanto, antes de aquecer o dia com o
café santo, sempre esfriava-o com uma choveirada gélida.
Vumpt, vumpt, vumpt. Era o som do ligeiro amassar e puxar da calça acima
dos joelhos. Não era necessário o uso de cinto. Mesmo a alimentação
balanceada não impedia a barriga. Dizia na época que nunca passava dos 90.
Mas todos desconfiávamos de um número superior... Sabe, cochichos-
familiares?
Tinha apreço pelas flores, e suas camisas não negavam. É com uma destas
decidiu “resolver as coisas”.
“Mas, quando desliguei a rádio, senti uma dorzinha fiiiina, sabe?! Parecendo
uma pontadinha... Uma ponta de faca nas tuas costas?! Pois é. No meio das
costas. Pensei logo que era alguma coisa a ver com meus 3 bicos de
papagaio. Aí fui ao apartamento da Tetê.”
- ... Olha, Dona Laura, essa aqui – passou os olhos na caixa – a Bak Gel é
maravilhosa! A Tetê usa sempre que ta com dor nas costas.
- Não, minha nêga... E essa pontada, meu Deus?! Tetê, vem cá, tu que tem a
mão santa de tanto rezar... Faz uma massagem aqui, minha flor!
- Tetê, estou melhor. Mas faz assim, chama um taxi, porque acho que tive um
pico na pressão, olha aí, minhas orelhas tão até quentes...Mas não é nada
demais...
Tetê, já um pouco alterada, tomou o telefone e ligou para o número mais fácil
que poderia existir, formado somente por 2.
- ... Ah, Tetê, aproveita e depois dá uma ligadinha pros meus filhos, diz que vou
ao hospital. Explica direitinho, tá?!
“Não foi 5 minutos e o taxista chegou. Desci as escadas, sorte que eu moro no
primeiro andar, hein, filho?!”
“Também pro taxista não contei...Se eu falasse, vai que ele corresse? Era
capaz da gente se quebrar no meio do caminho.”
- Sabe, Dona, pela manhã, começo de turno, a gente não tem o dinheiro
certinho, mas espere aí...
“Quer dizer que a senhora tava infartando e não deixou o troco pra lá?
QUATRO REAIS?!”
“Meu filho, que foi que eu te disse? É só no dia a na hora. Então, sempre
pegue o troco!”
“E aí, a senhora deu uns berros dizendo que a senhora tava infartando?”
Contigo aprendi
Que existe luz na noite
Mais escura
Contigo aprendi
Que tudo existe um pouco
De ternura
Ângela Maria
Glauco 31/12/2010