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Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme.

1
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –

λεσηον
EXPRIMÍVEL

TRANSDUÇÃO COMENTADA DE:


“A TEORIA DOS INCORPORAIS NO ANTIGO ESTOICISMO”
de Émile BRÉHIER.

Alduisio M. de Souza
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 2
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –

SUMÁRIO

Preâmbulo...............................................................................................................................3
Introdução...............................................................................................................................5

CAPÍTULO PRIMEIRO
DO INCORPOREO EM GERAL

I – A crítica das idéias...........................................................................................................6


II – A noção de fato na física................................................................................................10

CAPÍTULO SEGUNDO
O INCORPÓREO NA LÒGICA E NA TEORIA DOS EXPRIMÍVEIS

I – Do exprimível em geral...................................................................................................14
II – Do exprimível na teoria do julgamento e do raciocínio.................................................19
III – A definição e a semiologia............................................................................................23
IV – A semiologia e o destino...............................................................................................25

CAPÍTULO TERCEIRO
A TEORIA DO LUGAR E DO VAZIO

I – A teoria do lugar..............................................................................................................27
II – O vazio...........................................................................................................................30
III – O espaço........................................................................................................................33

CAPÍTULO QUARTO
TEORIA DO TEMPO

Teoria do tempo...................................................................................................................37

Conclusão.............................................................................................................................40

Bibliografia...........................................................................................................................42
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 3
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
PREÂMBULO DA TRANSDUÇÃO

Estamos completando um século que este grande homem de cultura, Émile Bréhier
trouxe para a cultura na linhagem francófona o estudo dos Estóicos, um privilégio até então
dos Anglos Saxões na compilação de suas fontes: Arnim, Diels, Pohlenz, Jaeger etc. sem,
no entanto ter ali produzido em conseqüência uma renovação da filosofia, permanecendo
um trabalho essencialmente acadêmico, exceção de Heidegger, que renovou as
interrogações sobre o ser agregando-lhe a dimensão do tempo, ponto de partida de Badiou
em seu mega projeto de renovação filosófica do ―O ser e o evento‖, mas mesmo assim é
mais estudado, e gerou mais efeitos fora do que na Alemanha.

Devemos a Émile Bréhier a renovação da filosofia na França pela abrangência de


suas fontes gregas com espírito crítico e corajoso, estando dado que, como membro da
Academia o estudo da filosofia antiga se bastava em Platão e Aristóteles. E concretamente,
tal como considero, o estudo dos Estóicos permitiu uma aeração do pensamento e o
surgimento de uma ―escola francesa de filosofia‖ com Gilles Deleuze, Michel Foucault,
Alain Badiou e outros, com amplas repercussões em vários campos do saber, inclusive no
que nos concerne de perto: a Psicanálise através de Jacques Lacan.

No ensino Estóico encontramos a principal fonte filosófica de Lacan, serializada


com Leibniz, Espinosa, Pearce e Frege, não somente teórica, mas inclusive de conceitos
que se tornaram pelo fazer lacaniano em conceitos radicais de clínica como expus no
último texto que estudamos, ―Notas de leituras sobre os incorpóreos estóicos no ensino de
Lacan‖: o Significante; o Semblante; o Objeto a; o Lugar; a Posição do Analista como
Semblante do Objeto; o Significante Puro como um Acontecimento Estóico e mesmo sobre
a Transferência e a Interpretação.

Foi propriamente um dom, um bem, que Lacan soube acolher, assim como Deleuze
para sua retomada crítica e corajosa da filosofia, no enfrentamento de debate com o
hegelianismo e a dialética marxista de Althusser. No final de sua vida Deleuze diz jamais
ter abandonado o marxismo, o que ele abandonou, e soube muito bem tirar proveito foi o
sectarismo e o dogmatismo marxista que, com o surgimento do primarismo maoísta
conduziu a uma leitura pobre e mecânica da dialética e da lógica. A filosofia maoísta se
resume a dois trabalhos de Mao Tsé Tung: ―Sobre a Contradição‖, numa leitura realmente
genial da dialética marxista; e ―Da prática‖, mais um resumo do ―A propósito da dialética‖
de Lênin, e ―Materialismo histórico e materialismo dialético‖ de Stalin, texto recusado
pelos próprios marxistas por ser simplório e mecanicista.

O maoísmo foi um marxismo de circunstância e só tomou corpo pela importância


política de uma alternativa ao revisionismo soviético, não por seus méritos de uma
filosofia, pois que muito mais se resumia num grande tratado de estratégia, aí sim genial.
Mas mesmo assim desembocou num dos maiores desastres políticos com a chamada
―Revolução Cultural Proletária‖ de 1966 a 1975. Na psicanálise entrou também pelo viés
de uma alternativa à IPA e um retorno às fontes. Os marxistas da E.N.S. [École Normale
Supérieure] eram todos maoístas num sentido libertário, formados por Althusser e foram os
primeiros a reconhecer a genialidade de Lacan e lhe apoiar no âmbito do ensino. Eles lhe
abriram as portas quando tantas outras se fecharam e ao final de dois anos aderiram ao
lacanismo no lugar do maoísmo primário e anárquico na época com a liderança de Alain
Geismar e Jacques-Alain Miller, militantes e dirigentes do principal grupo maoísta Francês,
―La Cause du Peuple‖ [A Causa do Povo] que se fizeram discípulo e porta-voz autorizado.
Diz Marx, no ―18 Brumário‖, citando a Hegel que, quando da primeira vez é tragédia e da
segunda farsa. Como Riobaldo, eu preservo meu talvez!
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O texto sintético sobre ―A teoria dos incorporais (incorpóreos)‖, escrito em 1908,


por Bréhier e editado em 1927 pela VRIN, foi a base do que Foucault chamou de ―O livro
dos livros‖, ou seja, o livro ―Lógica do sentido‖ de Gilles Deleuze, mas já se encontrava
dispersa, sobretudo no trabalho magnífico de divulgação da lógica de Crísipo e inclusive de
sua leitura das modalidades de Aristóteles, insuperável até hoje.

Acostumado com a obra portentosa de Émile Bréhier, de milhares e milhares de


páginas brilhantes e abrangentes fiquei fascinado com o aspecto sintético dessa obra aqui e
resolvi traduzi-la com alguns comentários [DIGRESSÕES], que estarão sempre entre
colchetes ([ ]). Esta transdução é para uso de amigos, alunos e colegas, de modo que ela
circulará entre pequenos grupos sem nenhum interesse comercial, unicamente como um
dom para o estudo da Filosofia, sobretudo entre os psicanalistas, pois temos aí a origem do
conceito lacaniano de Significante. A transdução foi feita a partir da nona edição da
Librairie Philososopique J. VRIN de 1997. ISBN 2-7116-0088-2. Ela carece das notas de
rodapé, pois as referências muitas delas não existem em traduções e são de origem alemã e
dado o interesse restrito dessa tradução não me dispus a reproduzi-las. Só o farei a pedido
de algum estudioso ou de uma editora que se interesse pela tradução que será graciosa, sem
nenhum custo para tal. Acrescentei no final uma Pequena Bibliografia Não Pontual,
inspirada em parte pela obra de Emile Bréhier, ―História da Filosofia‖, Volume I (Da
Antiguidade à Idade Média), 5ª Edição de 1989. P.U.F.

Atenciosamente Alduisio

A TEORIA DOS INCORPÓREOS NO ANTIGO ESTOICISMO

Émile Bréhier

INTRODUÇÃO
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Um traço característico das filosofias que nasceram após a de Aristóteles, é o de ter


rejeitado para a explicação dos seres qualquer causa inteligível e incorporal. Platão e
Aristóteles buscaram o princípio das coisas nos seres intelectuais. Por este ponto de vista
suas doutrinas derivam por dedução da doutrina socrática dos conceitos e das filosofias
como as de Pitágoras e Anaxágora que teriam fundado o princípio das coisas nos elementos
tangíveis para o pensamento claro. Foi o contrário o procedimento dos Estóicos e
Epicuristas, que viam nos corpos, as únicas realidades, aquela que age e aquela que sofre a
ação. Isto é, que age e é agida pela ação, ou seja, que é afetada e que afeta. Por uma espécie
de ritmo, sua física reproduz aquela dos físicos anteriores a Sócrates e não deixam de nos
observar que na Alexandria renascia o idealismo platônico que preserva unicamente o
único modo de atividade considerado como a de um ser inteligível.
Para encontrar as razões dessa evolução do platonismo ao estoicismo seria
interessante, parece-nos, de buscar qual é o lugar no sistema que ocupa a idéia do
incorporal. Este termo designa para os Estóicos, segundo Sexto Empírico, as seguintes
coisas: ―o exprimível‖ (λεσηόν), o vazio, o lugar, o tempo. O próprio termo de incorporal
foi pouco utilizado nas doutrinas precedentes. Platão quase nunca se serviu para indicar as
Idéias. O encontramos por duas vezes quando quer opor sua teoria à de Antístenes que
também não admitia a existência dos corpos. Encontramos o termo ainda em Platão para
designar uma idéia tomada de empréstimo do pitagorismo, esta da harmonia entre os seres,
seja no Filebo, da harmonia das partes do bem, ou ainda em Fédon, esta da harmonia entre
as partes do corpo que segundo os Pitagóricos constitui a alma. Aristóteles emprega o
termo incorporal, não para designar seu Deus separado, mas para caracterizar a idéia de
lugar, em uma teoria que inclusive ele não admite. Os Alexandrinos ao contrário empregam
o termo de maneira habitual para designar os seres que ultrapassam o mundo sensível.
Parece então ter sido os Estóicos que introduziram a expressão na linguagem corrente da
filosofia, mesmo que em seguida ela serviu como elemento de combate de suas próprias
idéias. Segundo o uso que faz Platão, não é impossível que o termo venha de Antístenes,
que, antes dos Estóicos teria rejeitado os incorpóreos ao não-ser como também a noção de
lugar e de tempo.
É mesmo aí que se situa o sentido geral da teoria dos Estóicos sobre os incorpóreos.
Identificando o ser com o corpo são, no entanto forçados a admitir, mesmo como simples
existentes, pelo menos as coisas definindo o espaço e o tempo. É para estes ―nadas‖
[néants] de existência que eles criaram a categoria dos incorpóreos. As fontes que iremos
utilizar nesse estudo, para além dos copiladores ou doxógrafos (Estobeu, Diógenes Laércio,
Aécio), são, sobretudo, os contraditores dos Estóicos: os Acadêmicos, os Céticos (Cícero
nos Acadêmicos e Sexto Empírico) os comentadores de Aristóteles (Ammônios, Alexandre
de Afrodise, Simplício) e os platônicos (Plutarco, Nemésios, Proclos). Pela sua natureza, as
anotações não contêm em geral que as indicações gerais, sucintas, sobre as doutrinas e
teremos às vezes dificuldades de compreender e de completar as informações que nos são
dadas.
Émile Bréhier

CAPÍTULO PRIMEIRO
DO INCORPÓREO EM GERAL

I ─ Uma definição matemática é capaz de engendrar por si só uma multiplicidade


indefinidas de seres: todos os que seguem a lei exprimida na definição. Há entre estes seres
e seu modelo uma espécie de relação de causalidade: do caso particular com a lei e da
imitação ao seu modelo. Se for assim então que Platão se representava o laço entre a Idéia e
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as coisas sensíveis determinadas por ela, não iremos certificar aqui. É possível que ele
tenha buscado introduzir nas suas Idéias mais atividade e vida do que há numa fórmula
matemática. Mas o que é certo é que o representante o mais considerável do antigo
estoicismo, Crísipo, não se representava de maneira diferente a doutrina platônica. Temos
sobre este ponto o testemunho de Geminos, um matemático do primeiro século A.C. que
ficou por nós conhecido como Proclos. Segundo um teorema elementar, os paralelogramos
que têm uma mesma base e nos quais os lados são contidos entre as mesmas paralelas ―são
iguais‖. Podemos através desse teorema construir em limites definidos uma infinidade de
figuras iguais. Da mesma forma, as Idéias, segundo Crísipo ―compreendem
(πεπιλαμδάνοςηιν) a gênese dos seres indefinidos em limite determinados‖. A noção de
limite é então essencial para os seres: a Idéia somente indica os limites aos quais se devem
satisfazer um ser para existir sem determinar mais apuradamente a natureza deste ser: ele
pode ser o que quiser nos limites e assim não é somente um ser que é determinado, mas
uma multiplicidade sem fim de seres. Compreendemos assim o que Proclos, reprovando os
Estóicos de terem abandonado as Idéias, lhes censurava por ter rejeitado para fora da
realidade os limites dos seres.
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DIGRESSÃO I
[O teorema do paralelogramo referido, de Proclus, foi reelaborado muito mais tarde,
século XIX, por Emile Félix Edouard Justin (1871 – 1956) e ficou do ponto de vista da
história da matemática conhecido como: Axioma de Borel-Lebesgue enunciado da
seguinte maneira: “Dizemos que um espaço topológico E verifica o axioma de Boresl-
Lebesgue se todo recobrimento aberto de E podemos extrair um recobrimento finito”].
[Quando tratado como um conjunto fechado nós temos a origem do que em matemática
gerou o conceito de tribo: família de subconjuntos em que as operações de
complementação e união numerável são fechadas. In Dicionário de Matemáticas de
François Lionnais – P.U.F.].

[Podemos também enunciá-lo de forma ingênua da seguinte maneira: uma figura


geométrica assim como um raciocínio conceitual desde que guarde suas propriedades,
quando agregarmos um atributo ele conservará seus princípios iniciais que são dados
pelos predicados da natureza do objeto. Confiram o método Geométrico de Espinosa e
em Particular sua Ética. Percebamos a importância do enunciado para o trabalho com
transformações topológicas de um objeto. Confiram como exemplar a construção do toro-
trique a partir de um toro comum].
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Mas, com efeito, é a esta concepção mesma da causalidade que os Estóicos
processam e a noção de ser que daí deriva. A natureza de uma causa é determinada pela
natureza das coisas ou dos fatos que esta causa tem por missão explicar. Ora, os Estóicos
querem explicar outra coisa e se colocam num ponto de vista outro que este de Platão e
Aristóteles. Para eles, Platão e Aristóteles, o problema era de explicar nos seres o
permanente, o estável, o que poderia oferecer um ponto de apoio sólido para o pensamento
de conceitos. Também a causa, fosse ela da Idéia ou do motor imóvel, o buscado era o
permanente como uma noção geométrica.
Para o movimento, o devir, a corrupção dos seres, o que eles têm de perpetuamente
instável, devia-se não a uma causa ativa, mas a uma limitação desta causa escapando por
sua natureza a toda determinação e a todo pensamento. O que desperta a atenção num ser é
primeiramente o elemento pelo qual ele se parece com outros e que permite classificá-lo.
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Mas, outro ponto de vista consiste em considerar este ser nele mesmo em sua história e sua
evolução desde seu surgimento até seu desaparecimento. O ser então não será considerado
nele mesmo não como parte de uma unidade mais elevada, mas sendo unidade e o centro de
todas as partes que constitui sua substância e de todos os eventos que constitui sua vida. Ele
será o desdobramento no tempo e no espaço desta vida com seus movimentos contínuos.
É aí que se situa para os Estóicos o problema das causas. Eis como nos diz Sexto
Empírico de alguns fatos pelos quais eles concluíram que havia causas: a semente e o
desenvolvimento de um gérmen; o desenvolvimento de uma planta; a vida e a morte; o
governo do mundo; o devir da corrupção; a geração do semelhante pelo semelhante. Os
exemplos são quase todos concernentes ao seres vivos. Mesmo no caso contrário os outros
seres são no pensamento íntimo dos Estóicos assimilados aos vivos. A coisa sendo por
demais conhecida para com ela insistir demais: o mundo todo com sua organização e a
hierarquia de suas partes, sua evolução que vai de uma conflagração a outra é um ser vivo.
O mineral ele mesmo com a coesão de suas partes possui uma unidade análoga à do ser
vivo. Assim o dado a ser explicado é a mudança do ser é sempre análoga à evolução de um
vivente.
Qual é a natureza desta unidade do vivente, unidade sem cessar móvel, unidade de
um continente? Como as partes do ser são elas mesmas juntas de forma que persistam?
Seria como no vivente, por uma força interna que os retém, o que chamamos de έξιρ
[(consistência, solidez)] nos minerais, natureza nas plantas ou de alma para os animais. Em
todos os casos é indispensável que ela seja ligada ao ser para o qual ela constitui causa,
como a vida que só existe no vivente. Ela determina a forma exterior do ser, seus limites,
não à maneira de um escultor que faz uma estátua, mas como um gérmen que se
desenvolve suas capacidades latentes até certo ponto do espaço. A unidade da causa e do
princípio se traduz na unidade do corpo que ela produz. Este princípio é verdadeiro para
todos da qual a unidade se prova, segundo Crísipo, pela unidade de seu princípio e por
qualquer dos seres particulares. Mesmo nas matemáticas, que parecem ser o triunfo do
platonismo, as figuras são consideradas não mais como provenientes de uma definição que
permitiu lhes construir, mas como a extensão no espaço de uma força interna que se
desdobra: a reta é a linha ―estendida até uma extremidade‖. A causa então é
verdadeiramente a essência do ser, não como um modelo ideal que o ser se esforça para
imitar, mas a causa produtora que age nele, que vive nele e o faz viver, mais semelhante à
essência particularis affirmativa de Espinosa, que a Idéia platônica, segundo uma
comparação de Octave Hamelin [1856-1907].
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DIGRESSÃO II
[A filosofia de Espinosa, seu alcance e excelência pode ser medida pelo absurdo de sua
Excomunhão da Sinagoga – KHEREM, ele, homem pio, dedicado a construir algo que
pudesse significar a alegria e a felicidade do filosofar: Assim disse o chefe do rabinato da
Amsterdam: “Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos,
expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa... Maldito seja de dia e
maldito seja de noite; maldito seja quando se deita maldito seja quando se levanta;
maldito seja quando sai assim maldito seja quando regressa... Ordenamos que ninguém
mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que
ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas (+ – 400
metros), que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele”; qual foi seu crime aos 24
anos segundo a comunidade judaica de Amsterdam em 27 de junho de 1656? ─ Ter
construído uma filosofia de desmistificação não somente da crença religiosa, mas dos
princípios existenciais que a sustentava: prazer honra e riquezas”]. A essência
particularis affirmativa é aquela que admite a distinção radical entre fé e conhecimento da
verdade: a definição só é verdadeira e legítima do particular, procedendo pelo método
geométrico. A fé nós obedecemos à verdade buscamos conhecê-la. “A fé existe quando
Deus é transformado em asilo da ignorância e vestido ridiculamente com as invenções
mais delirantes dos homens. A fé não consiste em nada além de preconceitos,
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preconceitos que reduzem os homens ao estado de bestas, que cegam a razão, que
afastam o espírito de si mesmo, que parecem inventadas para apagar toda a luz do
entendimento”. [(In: Espinosa de André Scala. Estação Liberdade)]. Espinosa era um
marrano sobrevivente da Inquisição católica e foi vítima da inquisição judaica. Sua visão
política é e será sempre atual “pois é uma crítica da superstição em todas as suas formas:
religiosa, política e filosófica”[(Marilena Chauí)]. Ele dizia que: “Os homens não são
supersticiosos porque possui uma idéia confusa de Deus, eles têm uma idéia confusa de
Deus porque são supersticiosos”. E uma apreciação muito atual depois que Bento XVI
reintegrou aqueles que João Paulo II excomungou: “As religiões se reconciliam pelas
costas daqueles que uma delas baniu”, e seu nome era: Baruch = Bento. (Id.) Pobre da
coincidência nominal: “Era uma vez uma coincidência que tinha saído para dar um
passeio com um pequeno acidente. Enquanto passeavam, encontraram uma explicação,
tão velha que já estava toda encurvada e encarquilhada, que mais se parecia com uma
charada”. Lewis Carroll. Sicsicsicsic].

[A filosofia de Espinosa é essencialmente alegre. A alegria é para ele a acumulação de


poder afetar e ser afetado positivamente pelo outro e pelos acontecimentos no caminho
da virtude, que implica a alegria e a busca da felicidade].
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Sabemos que Platão e Aristóteles admitiam com facilidade uma explicação
mecanicista da vida. Alfred Victor Espinas [1844-1922] mostrou nas invenções mecânicas
que se faziam na Grécia após o século VI A.C. a razão dessa representação mecânica da
vida. Torna-se ainda mais surpreendente, apesar dessas impulsões que os Estóicos tenham
retomado o dinamismo que conceberam, segundo a analogia da força vital para todas as
causas do universo.
É esta mistura íntima da causa com o corpo que a desenvolve e a manifesta que
conduz à negação de toda forma de ação incorporal e à afirmação que devemos agora
examinar: ―Tudo o que existe é corpo‖. Para compreender esta espécie de ―materialismo‖,
devemos nos lembrar que os Estóicos, não mais que qualquer outro antigo, não possuía a
noção de inércia da matéria, postulado fundamental do materialismo de nossa época. Por
este postulado, toda força não reside na matéria que por empréstimo, pois ela lhe vem do
exterior. Por esta razão nós temos dificuldade a não nos representar a força como algo de
imaterial já que não é da essência da matéria. Nesse sentido o estoicismo seria tão
―espiritualista‖ que o dinamismo leibniziano que ele teria inclusive influenciado. Em sua
longa carreira que ele marcou houve um momento em que o estoicismo, mesmo em sua
física apresentou um aspecto eminentemente espiritual e favorável ao surgimento do
misticismo: encontramos o meio que pelo recolhimento sobre esta força interna que
constitui o fundo de nosso ser, de se ligar à forma compreensiva do universo e sentir que
vivemos nela. Tanto que, para todos os antigos, o corpo, como tal, é ativo por essência e
nele mesmo. Da mesma forma que a afirmação que todo corpo quer dizer somente que a
causa tal como acabamos de definir é um corpo e o que sofre a ação desta causa [(ηό
πάζσον)] é também um corpo, o que não é de forma alguma a recusa de reconhecimento
que há no universo um princípio espontâneo de atividade.

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DIGRESSÃO III
[Nós houvemos por bem traduzir a representação compreensiva “phantasia katalèptiké”
de Zenão e Crísipo por com-preensiva, em nosso texto “Notas de leitura sobre os
incorpóreos estóicos no ensino de Lacan” fazendo jogar uma polifonia que induz uma
polissemia, no espírito, o que deduzi do trabalho de Émile Bréhier. O com aí tem o sentido
de estar junto, e estar junto com preensão, agarrando o objeto, estar com ele, nele,
penetrando e se deixando penetrar por sua intimidade. Esta maneira de conhecimento é a
aproximação íntima da alma e de seu objeto, com a alma e objeto daquele que lhe
apreende, por sua parte hegemônica, quer dizer, o coração no sentido estóico].
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O incorpóreo por natureza não pode afetar ou ser afetado, no sentido que os
Estóicos tomam a atividade e no sentido que falam de corpo, isto é, substituindo uma
concepção biológica da causa por uma concepção matemática, dotando o corpo então de
uma atividade interna.
Houve certamente entre os Estóicos uma crítica da atividade dos incorpóreos.
Encontramos certos princípios nas argumentações de Cleante [( – 331 a – 232 A.C.)] e de
Crísipo [( – 281 a – 205 A.C.)] para mostrar que a alma é um corpo e isso foi conservado
por Nemésios que se esforça para reabilitar contra a crítica a ação do incorpóreo. Não
temos muito a sacar para complementar os argumentos conservados em grande abundância
pelos quais os Estóicos buscava demonstrar que ―toda qualidade é um corpo‖; pois suporia
bem precisamente que o corpo é o único agente. Mas, devemos nos lembrar que, desde a
época de Platão uma vigorosa crítica da atividade, das Idéias de Antístenes, [( – 444 a –
365 A.C.)] o verdadeiro precursor dos Estóicos tanto para a moral quanto para a teoria do
conhecimento. Antístenes também afirmava escandalizando Platão que tudo era corpo, e os
Estóicos nada mais fazem que sustentar e manter o seu princípio quando desafiava Platão
que dizia: ―eles não ousarão sustentar que a prudência e as virtudes nada sejam ou que
sejam corpos‖, ao que os Estóicos respondiam que justamente que as virtudes são corpos.
Conhecemos os argumentos de Cleante contra a incorporeidade da alma:
primeiramente a criança se parece com seus pais não somente por seu corpo, mas pela
alma; ora a semelhança (o que parece) ou a dessemelhança (que não parece) pertence ao
corpo, não aos incorpóreos: a alma é então corpo. O segundo argumento é o seguinte:
―Nenhum incorpóreo é afetado como corpo nem um corpo como um
incorpóreo; ora a alma padece por ser afetada pelo corpo, quando está
doente ou é lesado, e o corpo com a alma na ruborização da vergonha ou
palidez do medo‖.
A estes dois argumentos, Crísipo acrescenta o seguinte: ―A morte é a separação da
alma e do corpo, mas nenhum incorpóreo não é separado de um corpo, pois os
incorpóreos não tocam o corpo‖. Evidentemente os três princípios destes três argumentos
ultrapassam a questão da natureza da alma: eles são destinados a mostrar que em geral o
incorpóreo não pode ser agente ou paciente em relação ao corpo.
O primeiro destes princípios é o mais obscuro: Σώμαηορ ηό όμοιον λαί ηό άνόμοιον,
ούσί δέ άζωμάηος, ou como diz Tertuliano [(Septimius Florens Tertulianus – 155 a 225
D.C.)]: ―a alma é corpo, pois ela está sujeita à semelhança e a dessemelhança‖. Crísipo
nos dá um exemplo de um incorpóreo particular, a superfície geométrica, que poderá ao
menos precisar a dificuldade: Demócrito [( – 460 a – 370 A.C.)] formulou da seguinte
maneira a questão do contínuo espacial:
Se considerarmos em um cone, secções cônicas circulares vizinhas
uma das outras, ou estas superfícies serão desiguais e então a superfície do
cone não é lisa e terá asperezas ou então, serão iguais, e a figura terá então
a propriedade de um cilindro: não será mais um cone.
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Segundo Plutarco, Crísipo resolvia a questão dizendo que os círculos não eram nem
iguais nem desiguais. É do ponto de vista de Plutarco um absurdo, pois é impossível de
conceber o que não é nem igual nem desigual. O absurdo não existiria mais (e a resposta
seria mesmo singularmente profunda) se Crísipo quisesse dizer assim que as superfícies
não existem. Ora, é uma resposta assim que deriva de todas suas outras considerações sobre
o contínuo: ele mostra então que nenhum limite existe na divisão do espaço e que não
podemos assim falar do número de partes contidas em grandezas diferentes, como o mundo
e o dedo de um homem, pois não existe o mais nem o menos no infinito. É da mesma
maneira que ele mostra o não-ser do Universo como todo [(ηό πάν: isto é, o mundo e o
vazio que o envolve)], mostrando que ele não é nem corpóreo nem incorpóreo, nem
movente nem em repouso, etc. É então provável que recusando ao incorpóreo em geral ao
mesmo tempo o predicado de semelhante e dessemelhante, Cleante queira dizer que ele não
é um ser.
Resta então buscar em que sentido ele entende esta dupla negação. Sabemos que é
introduzindo nas Ideais o semelhante e o dessemelhante, o mesmo e o outro que Platão
pensou poder resolver as dificuldades sobre a relação do sujeito e do predicado, que foi
destacado pelos filósofos de Megara*. Há na lógica estóica numerosos traços da doutrina
dos megáricos que lhes chagaram através Antístenes.
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DIGRESSÃO IV
[Os filósofos da Escola de Megara, fundada por Euclides, o Socrático, [(– 450 a 380 A.C.)]
não o Alexandrino um século mais novo, exerceu grande influência sobre os Estóicos.
Tornou-se célebre por seu argumento “dominador”, de Diodoro de Cronos que defendia a
idéia de que tudo que é possível é ou será verdadeiro, donde a necessidade do futuro. Foi
chamada de escola erística, ou seja, amantes e usuários da controvérsia].
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Por outra parte Aristóteles deu do semelhante a seguinte definição no capítulo IX do
Livro IV da Metafísica:
―São ditos semelhantes às coisas que tem uma propriedade idêntica
[(ηαύηό πεπονθόηα)] ou que tem mais propriedades idênticas que
diferentes‖.
Ora, as propriedades [(ποιόηηηερ)] são corpos para os Estóicos; é então impossível
de pensar que uma propriedade em geral pertence aos incorpóreos e conseqüentemente
falar de sua semelhança ou de sua dessemelhança. Se em nenhum lugar encontramos tal
prova pelo menos nós temos as conseqüências no estoicismo. O único incorpóreo que
subsistente será não como em Platão a Idéia substituída pela qualidade corporal, é o vazio,
a forma dos seres privados de qualquer ação ou diferença.
A propriedade de um ser era em Platão a presença de uma Idéia no ser. Os Estóicos
se esforçaram para definir a propriedade de maneira a fazê-la surgir da qualidade
fundamental do estado, sem a intervenção exterior de uma forma. É daí que deriva em
alguns deles esta distinção que nos foi dada por Simplício [( ≈ 500 D.C.)] entre o ποιόν e a
ποιόηηρ. Há três espécies de ποιά: no primeiro sentido, a palavra indica tanto as
propriedades passageiras (correr, caminhar) quanto às propriedades estáveis. No segundo
sentido, indica simplesmente os estados (ζσέζειρ, como o prudente). Num terceiro enfim
que coincide inteiramente com aquele de ποιόηηρ, indica simplesmente as propriedades
chegadas a seu estado de perfeição e totalmente permanentes (άπαπηίξονηαρ σαί
έμμόνηοςρόνηαρ). Há totalmente outra coisa que a distinção simples de propriedades
essenciais e acidentais: é a diferença íntima de natureza entre a qualidade que é uma
realidade corpórea e ativa que não tem necessidade de outra coisa para ser explicada, mas
―que se limita a uma noção de única‖, e o ποιόν do primeiro gênero, que não é o primeiro
de seus sentidos de ter um resultado sem realidade corpórea. É através desta teoria que não
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 11
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
temos aqui de seguir aqui o desenvolvimento que eles (os Estóicos) privam a Idéia
incorpórea de toda eficácia e de toda propriedade, não encontrando aí mais que o vazio
absoluto do pensamento e do ser.
O segundo princípio é o seguinte: Ούδέν άηώμαηον ζςμπάζσει ζώμαηι ούδέ
άζωμαηω, ζώμα άλλά ζώμα ζώμαηι. Este princípio suprimindo toda ação recíproca entre o
mundo dos corpos e o inteligível, suprime a necessidade do incorpóreo. Temos assim
poucas informações diretas sobre sua demonstração com também do primeiro princípio.
Mas, sobre o terceiro princípio, o de Crísipo, esclarece um pouco mostrando em quais
condições poderíamos conceber a ação dos incorpóreos sobre o corpo. ―O incorpóreo, diz
Crísipo, não toca (ούσ έθάπηεηαι) o corpo‖. Dar-se conta que a ação da alma sobre o corpo
só tem lugar por contato, com efeito, tornar impossível a ação da alma, suposta incorpórea
por natureza. Os Estóicos parecem ter entrevisto aqui a dificuldade das relações da alma e
do corpo que constituirá um problema para as escolas cartesianas. Eles resolveram de uma
maneira simples admitindo a corporeidade da alma. Era de fato sua própria concepção de
causalidade que estava em jogo. Para que ela subsista, são necessárias duas condições que
tornam impossível toda causalidade ideal: primeiramente que as causas sejam da mesma
substância que os efeitos (όμοούζια ηοϊρ άποηελοςμένοιρ) entendendo aqui por efeito a
coisa efetuada; em seguida que haja uma concepção única da causa. A primeira condição é
necessária, pois sem ela não concebemos esta penetração íntima da força e do corpo que
constitui a causalidade biológica. A segunda não é menos: Simplício indicando aí de fato
uma crítica aos Estóicos. Ele pensa sem dúvida na análise aristotélica da causa, que teria
despedaçado esta digamos assim, em diferentes elementos que se ajuntariam para
concorrerem para a produção do efeito. Nesta teoria, a causa incorpórea, como ação da
forma poderia subsistir ao lado da causa material. Que, havendo segundo os Estóicos uma
única espécie de causa isso diz o contrário. É que para eles tratava-se de explicar a unidade
do indivíduo, tanto quanto a unidade do mundo tanto quanto a unidade de uma pedra ou de
um animal e não mais esta unidade compreensiva de vários indivíduos que é o geral. Assim
a causa deve ser uma na intimidade do indivíduo. Esta força interior não pode de maneira
alguma conciliar-se com a ação exterior de um ser imaterial.
O nominalismo dos Estóicos se acha ser menos um postulado da lógica que um
resultado da física. Se eles consideram somente o real e o ser no indivíduo, é porque é
somente nele que se encontra e o centro vital do ser. Portanto de outro ponto de vista, eles
fizeram mesmo em sua física e na teoria geral das causas um grande lugar para o
incorpóreo. Simplesmente que, no lugar de colocar o incorpóreo na causa doe seres eles os
colocam nos efeitos. É isso que iremos agora examinar.

II – Os únicos seres verdadeiros que os Estóicos reconhecem são primeiramente a causa


ativa (ηό ποιούν), e o ser sobre o qual age esta causa (ηό πάζσον). Devemos ainda
acrescentar que os elementos ativos do mundo, o fogo e o ar, dão nascimento por
transformações dos elementos passivos; os três últimos da conflagração universal são
reabsorvidos eles mesmos no fogo, se bem que o ser primordial é o fogo, a razão seminal
do mundo. Os outros seres são produzidos por uma menor tensão, uma diminuição do fogo
primordial. Eles não são nem efeito nem parte dos seres primitivos, mas antes estados de
tensões diferentes desse ser.
Entre estes seres ativos encontram-se as qualidades dos corpos; isto são os ares ou
sopros (πνεύμαηα) pelos quais a ação se mostra em seus efeitos. Há primeiramente as
qualidades que pertencem aos elementos: o quente, o frio, o seco o úmido, e as outras
qualidades sensíveis como as cores e os sons.
Devemos ter claro que a enumeração destes seres, que são todos seres da natureza,
não nos distancia das causas e dos princípios. O mundo dos Estóicos é composto de
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 12
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
princípios espontâneos, trabalhando em si mesmo a vida e atividade e nenhum deles não
pode ser dito propriamente como efeito de outro. A relação de causa e efeito entre dois
seres é totalmente ausente na doutrina Estóica. Se há relação ela é de outro gênero: estes
princípios são antes momentos ou aspectos da existência de um único e mesmo ser, o fogo
[fogo criativo ou artístico] do qual a história é a própria história do mundo.
Os seres reais podem, no entanto entrarem em relação uns com os outros e por meio
desta relação se modificar.
―Eles não são, diz Clemente de Alexandria [(Titus Flávius Clemens –
150 a 215 D. C.)] ao expor a teoria Estóica, causas uns dos outros, mas
causas de algumas coisas para outros‖.
Estas modificações são elas realidades? Substâncias ou qualidades? — Nenhuma
delas: um corpo não pode dar a outro corpo novas propriedades. Sabemos de que maneira
paradoxal os Estóicos tiveram de se representar as relações entre os corpos para evitar esta
produção de qualidades uma por outras: eles admitiam uma mistura (μίξιρ ou σπάζιρ) dos
corpos que se penetravam em suas intimidades e tomavam uma extensão comum. Quando
o fogo esquenta o ferro avermelha, por exemplo, não podemos dizer que o fogo deu ao
ferro uma nova qualidade, mas que o fogo penetrou no ferro para coexistir com ele em
todas suas partes. As modificações que falamos são bem diferentes: não são realidades
novas, nem propriedades, mas simplesmente atributos (σαηηγοπήμαηα). Assim quando o
escalpo corta a carne, o primeiro corpo produz no segundo não uma propriedade, mas um
novo atributo, este de ser cortado. O atributo propriamente falando não designa nenhuma
qualidade real; o branco e o preto, por exemplo, não são atributos, nem em geral nenhum
epíteto. O atributo é sempre ao contrário exprimido por um verbo, o que quer dizer que ele
é não um ser, mas uma maneira de ser, o que os Estóicos chamam nas suas classificações
das categorias de um πώρ έσον. Esta maneira de ser de certa forma se encontra no limite, na
superfície do ser e ela não poderá mudar sua natureza: ela não é verdadeiramente dizendo,
nem ativa nem passiva, pois a passividade suporia uma natureza corpórea que sofreria uma
ação. Ela é puramente e simplesmente um resultado, um efeito que não deve ser
classificado entre os seres.
Estes resultados da ação dos seres que os Estóicos foram talvez os primeiros a
destacarem sob esta forma é o que hoje chamaríamos de fatos ou acontecimentos: conceito
bastardo que não é nem de um ser, nem de nenhuma de suas propriedades, mas o que é dito
ou afirmado do ser. É este caráter singular do fato [ou acontecimento] que os Estóicos
trouxeram à luz dizendo que ele era incorpóreo, eles excluíam assim os seres reais, mas, no
entanto, os admitindo em certa medida no espírito. ―Todo corpo se torna causa para outro
corpo (quando age sobre ele) de alguma coisa incorpórea‖. A importância desta idéia para
ele se deixa ver pela preocupação que ele tem de exprimir seu efeito de linguagem por um
verbo. Assim não devemos dizer que a hipocondria é causa da febre, mas causa o fato que
faz com que a febre ocorra, e todos os exemplos que seguem as causas jamais são fatos,
mas sempre seres expressos por um substantivo: as pedras, o mestre, etc. e os efeitos: ser
estável, fazer progredir, são sempre expressos por verbos.
O fato incorpóreo está de certa maneira no limite das ações dos corpos. A forma de
um ser vivente é predeterminada no gérmen que se desenvolve e cresce. Mas esta forma
exterior não constitui uma parte de sua essência, ela é subordinada como um resultado da
ação interna que se estende no espaço, e esta, a ação, não é determinada pela condição de
consumar seu limite. Da mesma maneira que a ação de um corpo, sua força interna não se
esgota nos efeitos que produz: seus efeitos não são um gasto para si e não afeta em nada
seu ser. O ato de cortar não acrescenta nada à natureza e à essência do escalpo. Os Estóicos
colocam a força e em conseqüência toda realidade não nos acontecimentos, mas nos
procedimentos múltiplos e diversos que consuma o ser, na unidade que mantêm suas partes.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 13
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
Num sentido, eles estão muito longe, o mais possível de uma concepção como as de Hume
e Stuart Mill que reduzem o universo a fatos e acontecimentos. Num outro sentido então,
eles tornam possível tal concepção, separando radicalmente, o que ninguém fez antes deles,
dois planos dos seres: de uma parte um ser profundo e real, a força, e de outra parte, o
plano dos fatos, que se fazem na superfície do ser, e que constitui uma multiplicidade sem
laços e sem fim de seres incorpóreos.
Nós iremos mostrar agora que estes incorpóreos constituem a matéria de toda a
lógica Estóica, se substituindo assim numa lógica para os gêneros e para as espécies da
lógica de Aristóteles. Foi necessário de mostrar primeiramente na física as razões dessa
revolução da lógica.

CAPÍTULO SEGUNDO
O INCORPÓREO NA LÓGICA E A TEORIA DOS ―EXPRIMÍVEIS‖.
I – A realidade lógica, o elemento primordial da lógica aristotélica é o conceito. Este
elemento para os Estóicos é completamente outra coisa, não é nem a representação
(θανηαζία) que é a modificação da alma corpórea por um corpo exterior, nem a noção
(ένοια) que se formou na alma sob a ação de experiências semelhantes. É algo totalmente
novo que os Estóicos chamam de exprimível (λεσηόν).
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 14
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
Vejamos uma dificuldade que segundo Sexto Empírico, indica bem a teoria dos
exprimíveis e não é impossível que ela não tenha se originado justamente desta dificuldade.
Um Grego e um Bárbaro escutam a mesma palavra, eles têm a representação da coisa
designada pela palavra. O Grego, no entanto irá compreender, mas o Bárbaro não. Qual é a
outra realidade existiria então se o som e o objeto de um e outro lado? ― Nenhum. O
objeto e o som continuam o mesmo. Mas o objeto para o Grego tem, não diria uma
propriedade (pois a essência continua a mesma nos dois casos), mas um atributo que ele
não tem para o Bárbaro, ou seja, o de ser significado pela palavra. É o atributo do objeto
que os Estóicos chamam um exprimível. O objeto significado (ηό ζημαινόμενον) difere,
segundo o texto de Sexto, do objeto (ηό ηύγσανον), precisamente pelo atributo que é
afirmado sem nada mudar da natureza. O λεσηόν foi algo de tão novo que um intérprete de
Aristóteles como Ammonios [(Ammonios Saccas fim do II século começo do III D.C.,
mestre de Plotino)], teve enorme dificuldade para incluí-lo na classificação peripatética.
Para Aristóteles, a coisa significada pela palavra era, disse Ammonios, o pensamento
(νόημα), e, pelo pensamento o objeto (ππάγμα). ―Os Estóicos, acrescenta Ammonios,
concebem ainda outra coisa intermediária entre o pensamento e a coisa, que eles chamam
de exprimíveis‖. Ammonios não aprova este acréscimo, e, com efeito, a teoria de
Aristóteles basta a si mesma se o pensamento é nele mesmo o objeto designado. Mas, para
os Estóicos isto não é bem assim. Para eles o pensamento era um corpo e o som também
era um corpo. Um corpo tem sua natureza própria, independente, sua unidade. O fato de ser
significado por uma palavra deve então lhe ser acrescentado como atributo incorpóreo, que
não o muda em nada. Esta teoria então suprimia toda relação intrínseca entre a palavra e a
coisa: podemos aí sem dúvida trazer a visão de Crísipo sobre a anfibologia. Por esta, com
efeito, o laço entre a palavra e o pensamento se torna extremamente sutil de forma que um
mesmo nome pode significar várias coisas.
...................................................................................................................................................
DIGRESSÃO V
[Aqui podemos inserir uma alegoria que nos remete ao teorema do paralelogramo, e a
várias transformações topológicas, ou seja, uma figura, um conceito, um objeto teórico e
sua extensão. A anfibologia de Crísipo é a maneira de falar do equívoco seja ele por uma
polissemia (várias significações), ou polifonia (vários sons), ou ainda literal como nas
palavras conserto e concerto, cerrado, serrado etc. cujo som é o mesmo, a escrita
diferente, e a significação e o sentido completamente outro. A topologia surge com
Leibniz para dar conta de tudo isso de maneira matemática: a relação da natureza, da
propriedade e do atributo, ao nível da linguagem. A revolução lógica dos estóicos foi a de
postular o atributo como incorpóreo verbal, num tempo infinitivo paradoxal].
..................................................................................................................................................
Se a teoria dos exprimíveis não tivesse outro alcance, não compreenderíamos o
papel que ela teve na lógica. Todos os elementos que servem à lógica, os atributos, os
julgamentos, os laços entre julgamentos são todos exprimíveis (λεσηόν). É evidente numa
primeira abordagem que estes elementos não poderão ser reduzidos às coisas significadas
por uma palavra: o atributo (σαηηγόπημα), por exemplo, indica o que é afirmado de um ser
ou de uma propriedade. Não encontramos em parte alguma esta idéia à qual seria difícil de
dar um sentido plausível, pelo fato de que o fato de ser afirmado é idêntico ao fato de ser
significado, que o σαηηγόπημα é um ζημαινόμενον. De uma maneira geral, se o
―significado‖ é um ―exprimível‖, não vemos de forma alguma que todo exprimível seja um
―significado‖. Esta interpretação errônea do ―exprimível‖ é, no entanto sustentada por
Arnim [editor Alemão dos Estóicos, em 1905, obras que Bréhier consulta] na sua edição
consagrada aos antigos Estóicos intitulando os fragmentos relativos à lógica de: πεπί
Σημαινομένων ή Λεσηών.
Este erro decorre do que foi feito como uma fusão íntima entre o exprimível e a
linguagem. Segundo Sexto todo exprimível deve ser exprimido, isto é enunciado por um
termo significativo do pensamento. Mas, pelo fato de ser exprimido (λέγεζθαι) que é um
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 15
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
predicado de exprimível não deve de maneira alguma ser confundido com o fato de ser
significado (ηό ζημαινόμενον) que é ele mesmo, por sua vez, um exprimível e um
predicado do objeto. Concluiu-se muito rapidamente que todo exprimível deveria ser
designado por palavras, e que toda sua natureza consistia em ser designado ou significado
por palavras. Um erro inverso, mas de mesma natureza foi cometido por um critico antigo
do estoicismo, Ammonios, que consiste em identificar os exprimíveis com as palavras da
linguagem. Este erro, segundo seus termos, se apóia inclusive na exposição de Sexto ou
numa exposição muito análoga. ―Os pensamentos, diz Ammonios, podem ser proferidos
(έσθοπισά). Mas nós não proferimos as palavras, elas são [da ordem dos] exprimíveis‖.
Aqui o exprimível λεσηόν, é confundido com o exprimido e proferido (λεγόμενον, e,
έσθεπόμενον) isto é, a palavra. Temos então de pesquisar o que é realmente o exprimível.
..................................................................................................................................................
DIGRESSÃO VI
[O erro simplificador apontado por Bréhier seria grave em suas conseqüências, pois
eliminaria por completo a metáfora e reduziria a linguagem a sua acepção puramente
léxica como de um dicionário desfazendo seu caráter inventivo e criativo da polifonia e por
ela, sem nenhum referente de realidade à criação de uma polissemia, maneira análoga ao
teorema do paralelogramo, e que encontra uma feição consumada com “A Ética” de
Espinosa, e seu método geométrico. Umberto Eco faz em seu livro “SEMIÓTICA E
FILOSOFIA DA LINGUAGEM” uma série de comentários sobre os Estóicos, e em
particular concernindo sua semiótica que reproduzimos, pois atualiza o debate: “Também
os Estóicos (tanto quanto se pode reconstituir de sua articuladíssima semiótica) parecem
não unir claramente doutrina da linguagem e doutrina dos signos. Quanto à linguagem
verbal, distinguem com clareza entre ζημαίνον “expressão”, ζημαινόμενον “conteúdo” e
ηνγσάνον “referente”. Parecem reproduzir a tríade já sugerida por Platão e Aristóteles,
trabalham-na com uma figura teórica que falta até por muitos dos seus repetidores
contemporâneos. (...) Da expressão eles só aprofundam a múltipla articulação, mas
distinguem a simples voz emitida pela laringe e os músculos articulatórios, que ainda não
é som articulado, o elemento lingüístico articulado e a verdadeira palavra, que apenas
subsiste quando relacionada e relacionável com um conteúdo. O mesmo é dizer
saussurianamente que o signo lingüístico é uma entidade de duas faces: Agostinho, na
esteira estóica, chamará de dictio ao verbum vocis que não apenas foris sonat, mas é
percebido e reconhecido enquanto relacionado com um verbum mentis ou cordis. Para os
Estóicos, o risco em que incorrem os bárbaros é perceber a voz física, mas não a
reconhecer como palavra: não porque não tenham na mente uma idéia correspondente,
mas porque não conhecem a regra de correlação. Nisto os Estóicos vão muito mais longe
que seus predecessores e estabelecem a natureza “provisória”e instável da função
sígnica (o mesmo conteúdo pode fazer palavra com uma expressão de uma língua
diferente): talvez porque, como sugere Pohlenz, todos de origem fenícia, são os primeiros
intelectuais não gregos que trabalham em terra grega e são levados a pensar e falar
numa língua diferente da nativa. “São os primeiros a superar esse etnocentrismo
lingüístico que levara Aristóteles a identificar categorias lógicas universais através dos
termos de uma língua particular”. Umberto Eco]. [Cf. Diógenes de Babilônia: “A arte da
voz”, in “Les Stoïciens”, da La Pléiade].
..............................................................................................................................................................
O lugar do exprimível no sistema dos objetos representados no espírito é muito
difícil de determinar. Por um lado Sexto, confirmado por Dioclès nos diz que, o que está na
representação racional é o exprimível. Mas, a representação ordinária se produz pelo
contato de um corpo que deixa sua marca na parte hegemônica da alma, mas é ao contrário,
pois parece que existe mais espontaneidade na representação racional. É o pensamento
que a constrói, ajuntando, aumentando, diminuindo os objetos sensíveis que lhe são dados
no imediato, os objetos não sendo aqui causa ativa, mas a razão. Dioclès enumera assim os
diferentes procedimentos pelos quais ele age: a semelhança, a analogia, o deslocamento, a
contradição, a transição, a privação. Podemos dizer com Sexto que no caso da alma tem
uma representação a propósito dos objetos e não por eles. O λεσηόν seria então idêntico
segundo a este primeiro testemunho às noções derivadas da experiência pela razão. Mas, se
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considerarmos o conteúdo da lógica esta idéia não é fácil de ser sustentada. Com efeito, em
nenhuma parte não vemos interferir noções desse gênero, mesmo sendo o exprimível seu
elemento próprio. Mais ainda, segundo mesmo os textos de Sexto e de Dioclès contradiz a
interpretação que poderíamos, perece-nos, sacar legitimamente: ―Nos exprimíveis, dizem
eles, uns são incompletos e outros completos‖. Os exprimíveis incompletos são os atributos
dos julgamentos, enunciados pelos verbos sem sujeito: ―escrever, falar‖. Os incompletos,
considerando os mais simples são os verbos acompanhados de seus sujeitos. Que sejam
todos exprimíveis, não temos porque duvidar, será em vão que buscaremos aí objetos de
representação racionais, noções que acabamos de definir. Os exprimíveis se limitam aos
atributos às vezes sem sujeito ou às vezes acompanhados de sujeito. Diríamos que as
noções se encontram precisamente no sujeito dos julgamentos? Não vemos isso já que os
Estóicos admitiram na sua lógica os mesmo elementos da lógica hoje chamada de moderna
que são os chamados singulares para os quais o sujeito é um indivíduo. Na classificação
dos julgamentos, julgamentos simples de Sexto, entre as três espécies de julgamentos, os
julgamentos definidos tem por sujeitos um indivíduo que nós indicamos e os indefinidos
um ser que não indicamos (um homem), mas que continua a ser um indivíduo.
Verdadeiramente por outras fontes, os exprimíveis são citados não como idênticos à
representação racional, mas como uma espécie dentre elas. O primeiro texto é a
classificação das noções de Dioclès que já citamos, no qual os exprimíveis são citados
como lugar, como um exemplo de noções obtidas ―seguindo uma transição‖ (σαηά
μεηάδαζιν). Esta ―transição‖ implica que o objeto da representação é composto e que o
pensamento vai de uma parte à outra. Se interrogarmos em quais exprimíveis este caráter é
aplicável veremos que não corresponde a todos os casos. Nem nos exprimíveis
incompletos, nem nos julgamentos simples nós os encontraremos. Ao contrário, nós os
encontramos nos julgamentos hipotéticos e raciocínios na passagem de princípio à
conseqüências que unicamente elas podem explicar a palavra ―metabase‖. Então no
exemplo que nos dá Dioclès ele não quer falar de todos os exprimíveis, nem de enfiá-los
nesta categoria. Em outro texto de Sexto que opõe o ―representado‖ (θανηαζηόν) sensível
ao ―representado‖ racional, ficamos em dúvida se os exprimíveis incorpóreos que cita
numa segunda definição são dados com simples exemplos entre outros ou como o conjunto
de todos estes representados. Mas, a oposição dos corpos, presente que são certamente em
todos os representados sensíveis aos incorpóreos, nos faria pender para a segunda
alternativa.
Apesar destas dificuldades, há razões sérias para não confundir o exprimível com
qualquer outro objeto da razão. Dioclès classificando as representações em sensíveis e não
sensíveis distingue nos segundos que ocorrem ―pelo pensamento‖ esta dos ―incorpóreos e
das outras coisas percebidas pela razão‖. Como os exprimíveis devem seguramente ser
postos entre os incorpóreos, há ainda outros objetos da razão que não são incorpóreos: e
com efeito as noções racionais não são de forma alguma incorpóreos. Elas se originam e
são compostas dos traços reais que os corpos sensíveis deixam na parte hegemônica da
alma. Há aí uma fisiologia da noção que os Estóicos não distinguem em nada da psicologia.
Quando Zenão diz que as noções não são nem substâncias nem qualidades, parece que ele
recusa que haja um corpo, já que os corpos se encontram somente nas categorias de
substâncias e qualidades. Mas podemos observar na seqüência do texto que deixa entrever
que ele se preocupa menos com a substância nela mesma que sua relação com o objeto que
ela representa: é nesse sentido que elas são como substâncias e como qualidades, ou seja,
semelhantes aos corpos que deixaram aí sua marca o que não impede que não sejam em si
mesmas de natureza corpórea: como, sem isso, então poderíamos dizer que a ciência que
contêm tais objetos de representação é um corpo? A arte e a ciência se sustentam sempre
sobre a conservação de marcas na memória.
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Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
Compreenderemos assim a distinção que se deve fazer entre o exprimível que é
incorpóreo e os outros objetos da razão que são corpóreos. Vemos também que Sexto ao
qualificar de exprimível o objeto da representação racional em geral, tomou a espécie pelo
gênero. Isto é muito bem explicável, já que, na passagem da questão, há a intensão de falar
somente dos objetos da lógica e que estes objetos se reduzem aos exprimíveis.
Devemos então primeiramente indicar estas falsas concepções de exprimível,
possíveis graças à carência e à obscuridade dos textos, para estabelecer o verdadeiro. Fora
as substâncias e as propriedades que, todas duas, são corpos, não existe nada na natureza.
Mas, nós vimos que sua força interna se manifesta na superfície e estes aspectos exteriores
não são nem corpos, nem partes de corpos, mas atributos (σαηηγοήμαηα) incorpóreos. O
primeiro gênero de exprimíveis que nós encontramos o exprimível incompleto é idêntico a
este atributo do corpo. Deve-se para bem compreendê-los se desfazer dessa idéia de que o
atributo de uma coisa é algo existente fisicamente (o que existe é a coisa mesma), e da
outra idéia de que o atributo sob seu aspecto lógico, como membro de uma proposição é
alguma coisa existente no pensamento. Com esta condição poderemos conceber que o
atributo lógico e o atributo real que, na verdade, são todos dois incorpóreos e inexistentes
coincidem inteiramente.
Os atributos dos seres são exprimidos não por epítetos que indicam as propriedades,
mas por verbos que indicam os atos (ένεπγήμαηα).
Se considerarmos agora a natureza da proposição (άξίωμα) na dialética,
encontraremos uma solução do problema da atribuição que faz coincidir inteiramente o
atributo lógico da proposição com o atributo tal como acabamos de definir. Este problema
teria sido um das maiores preocupações das escolas que teriam seguido Sócrates, chegou-se
a dizer que foi pra resolver as dificuldades que Platão inventou a teoria das idéias. Se, em
uma proposição, o sujeito e o predicado são considerados como conceitos de mesma
natureza e particularmente de conceitos indicando classes de objetos, teremos grande
dificuldade em compreender a natureza do laço indicado pela cópula. Se forem de classes
diferentes, cada um existe separado, fora do outro e não podem se ligar. Se elas são
idênticas seremos reduzidos a julgamentos de identidade. A ligação [laço] que Platão
encontrou e esta da inclusão que Aristóteles utilizava preferencialmente era uma solução
possível para estas dificuldades. Mas, tais soluções, que, para os modernos, só concernem
os pensamentos, teriam, para os antigos um alcance metafísico, que não podíamos
desmembrar. Os termos do julgamento designam, com efeito, não somente pensamentos,
mas seres reais. Ora se a realidade se concentra como nos Estóicos no indivíduo, tal teoria é
inadmissível. A partir daí sabemos que cada indivíduo não somente possui, mas também é
uma idéia particular (ίδίωρ ποιόν) irredutível a qualquer outra. Para que estas realidades
participem uma da outra ou que seja incluída uma na outra, seria necessário que dois
indivíduos fossem confundidos um com o outro, ou que um mesmo indivíduo pudesse ter
nele mais que uma qualidade própria, o que é absurdo. Duas realidades não podem
coincidir.
Restaria uma solução, seria de abordar de maneira diferente a natureza do
predicado. Sabemos que certos megáricos recusavam enunciar os julgamentos sob sua
forma habitual, isto é, por meios da cópula é. Não devemos dizer, pensavam eles: ―A
árvore é verde‖, mas ―A árvore verdeja‖. Como isso era uma solução de um problema de
predicação, é o que Estóicos nos apresenta. Quando negligenciamos a cópula é e
exprimimos o sujeito por um verbo onde o atributo epíteto não é posto em evidência, o
atributo, considerado inteiramente como verbo, a parece então não mais como exprimindo
um conceito (objeto ou classe de objetos), mas somente um fato ou um acontecimento. A
partir de então a proposição não exige mais a penetração recíproca de dois objetos,
impenetráveis por natureza, ela só faz exprimir certo aspecto de um objeto enquanto ele
cumpre ou sofre uma ação. Este aspecto não é de uma natureza real, um ser que penetra no
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objeto, mas o ato que é o resultado mesmo de sua atividade ou da atividade de outro objeto
sobre ele. O conteúdo da proposição, o que é significado por ela jamais será um objeto nem
uma relação de objetos.
Decorre daí que os Estóicos somente aceitarão as proposições que contenham um
verbo: no verbo se misturam (confundem) para eles o predicado e a cópula. Veremos assim
todos os julgamentos que eles excluem, todos aqueles nos quais o atributo indica uma
propriedade real do sujeito, e que indiquem uma relação entre conceitos. O que se exprime
no julgamento não será uma propriedade como, por exemplo: um corpo é quente, mas um
acontecimento como: um corpo se esquenta. Na classificação dos atributos, eles não
distinguem como Aristóteles pelo modo de ligação com o sujeito, de mais ou menos
essencial ou acidental: o que eles querem aí distinguir são as diversas maneiras pela quais o
acontecimento possa se exprimir. Assim a classificação estóica segue de perto e é mesmo
idêntica à classificação gramatical dos verbos. É distinto primeiramente os ζςμδάμαηα,
verbos pessoais indicando a ação de um sujeito (Sócrates passeia) e os παπαζςμδάμαηα,
verbos impessoais (Σωσπάηι μεηαμέλει). Por outro lado distinguimos os predicados diretos,
compostos de um verbo com um complemento que sofre a ação, os predicados passivos,
que são os verbos passivos, e com eles os predicados refletidos (verbos refletidos), enfim
aquele que não são nem diretos nem passivos (como θπονει).
Não devemos ver na substituição desta forma verbal pela cópula distinta uma
simples subtilidade. Os Estóicos querem indicar assim que eles não aceitam outras
proposições que as proposições de fato. Sem dúvida que o fato pode ser necessário ou
contingente, verdadeiro ou falso, possível ou impossível, e assim, as diferentes
modalidades são ainda admitidas. Mas é, podemos ver, num sentido bem diferente daquele
de uma lógica de conceitos onde estas modalidades repousam sobre a ligação essencial ou
acidental do sujeito com o atributo. Aqui nós não temos mais que um gênero de ligação,
uma ligação que, no sentido da lógica de Aristóteles seria acidental (e que os Estóicos
continuam inclusive a designá-la pela palavra ζύμδαμα), ou seja, a do acontecimento com
seu sujeito.
O problema da atribuição é então resolvido retirando dos predicados toda realidade
verdadeira. O predicado não é nem um indivíduo, nem um conceito, ele é incorpóreo e
somente existe no simples pensamento. Seria vã nossa busca para saber em que o predicado
lógico da proposição poderia diferir dos atributos das coisas, consideradas como resultado
de sua ação. Todos dois são designados pela mesma palavra σαηηγόπημα, e encontram sua
expressão nos verbos, todos dois são incorpóreos e irreais. Pelo lado do real, a realidade do
ato tem por assim dizer, sido atenuada em proveito do ser permanente que a produz: pelo
lado da lógica, o atributo foi privado de sua dignidade de conceito objeto de pensamento,
por não mais conter senão um fato transitório e acidental. Em sua irrealidade e por ela, o
atributo lógico e o atributo das coisas podem então coincidir.
As ciências experimentais e as filosofias céticas ou críticas, num acordo entre elas,
nos acostumaram a ter no fato ou acontecimento a verdadeira realidade objetiva e a
considerar um objeto como um resultado e uma síntese de um grande número de fatos, no
lugar de compreender como sujeito da atribuição destes fatos. O centro do real foi por
assim dizer deslocado. É esta circunstância que pode tornar a doutrina estóica bastante
difícil de conceber. Os fatos são os únicos objetos de experiência e o pensamento que busca
observá-los e a descobrir suas ligações permanece estranha a eles. Os Estóicos ao
contrário, admitindo que os fatos fossem incorpóreos e que só existiam no pensamento,
poderia assim fazer, não diremos que faria o objeto, mas a matéria de sua dialética. Com o
caráter comum no fundo, de todas as lógicas antigas são realistas: jamais os antigos
acreditaram que poderíamos ter o pensamento de alguma coisa que não existe. Os Estóicos,
apesar das aparências, permaneceram fiéis a estas tendências: se o pensamento dialético
não as acolhe mais, na proposição, as realidades, o atributo pensado não é em nada
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 19
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
diferente ao atributo objetivo (lhe é idêntico). Recusando ao pensamento a realidade tal
como a concebem, só poderiam recusá-la a seu objeto.
Os atributos não são que certa espécie de exprimíveis. São os exprimíveis
incompletos, que se transformará em proposições ou em exprimíveis completos
respondendo a seguinte questão: ―Quem é o sujeito da ação?‖. São proposições simples: os
outros exprimíveis completos serão as proposições compostas que obtemos por uma
combinação de proposições simples, que podemos ter um exemplo hoje na proposição
hipotética (a ζςνημμένον dos Estóicos). Enfim estas proposições se combinam em
raciocínios que não são nunca chamados de exprimíveis, mas que são mais uma seguida de
exprimíveis. O essencial do λεσηόν é, pois o atributo ou o acontecimento, seja com o
sujeito, seja sem sujeito. É interessante de ver que, na exposição de Porfírio, [(234 a 305
D.C.)] a proposição ele mesma é chamada de atributo (σαηηγοπούμενον). Simplesmente é
um atributo completo (ηέλειον). Toda atenção do dialético recai sobre o atributo
exprimível. Nos exemplos mais comuns para a dialética estóica: é dia πώρ έζηι, etc. as
proposições exprimem fatos sem nenhum sujeito de inerência. O exprimível não é de
qualquer espécie de representação racional, mas unicamente esta do fato ou do
acontecimento. Se forma como tal, a matéria de toda lógica. Iremos agora tentar de seguir
os efeitos desta concepção na teoria do julgamento e do raciocínio.
...................................................................................................................................................
DIGRESSÃO VII
[Retomo aqui uma DIGRESSÃO do meu texto “Notas de leitura sobre os incorpóreos
estóicos no ensino de Lacan”, pra acentuar a genialidade da teoria estóica da linguagem.
Diógenes Laércio nos dá uma aula de lingüística moderna em: “Vida e opiniões dos
filósofos”, Livro VII. Eis o que diz Crísipo citado por Cícero “Sobre o destino”: “Se existe
um movimento sem causa, toda enunciação que os dialéticos chamam de axioma, não
seria verdadeira nem falsa; pois aquilo que não tiver causa eficiente não será verdadeiro
nem falso; ora toda enunciação é verdadeira ou falsa; portanto o movimento sem causa
não existe”. (...) Diz Frédérique Ildefonse: “... os estóicos propunham paradoxalmente
uma teoria da linguagem tão sistematicamente elaborada que ela se tornou destacável de
seu lugar filosófico original: esse objetivo iria servir em pouco tempo, de maneira lateral
ao aprimoramento de uma nova gramática”. (Cf. La naissance da la grammaire dans
l´Antiquité grecque – F. Ildefonse) in OS ESTÓICOS de Fréderique Ildefonse, p. 124/125].
...................................................................................................................................................

II – Nós não temos aqui de recomeçar a exposição sobre a lógica estóica, analisada com os
desenvolvimentos convenientes nos trabalhos de Brochard e de Hamelin. [(Autores que
escreveram com excelência respectivamente: “A lógica dos Estóicos” em 1902; “Sobre a
lógica dos Estóicos”, também em 1902)].

Talvez pudéssemos a partir de então, tomando como guia esta concepção do


exprimível incorpóreo, esclarecer alguns pontos desta lógica.
Possidônio dá da dialética a seguinte definição: ―É a ciência das coisas verdadeiras
e falsas e daquelas que não são nem uma nem outra‖. Esta definição, na medida em que ela
difere desta de Crísipo: ―É a ciência que concerne às coisas significantes e significadas‖,
tem por objeto somente de distanciar da dialética a primeira parte, o estudo da linguagem, e
de tornar preciso, mas diminuindo a extensão, o segundo objeto. Pois o ζημαινόμενον
designando tudo o que é significado por uma palavra é mais extensa que a verdade e a
falsidade que somente são aplicáveis num julgamento. Mas a dialética assim limitada por
Possidônio corresponderia em Crísipo uma única parte, a teoria do julgamento e do
raciocínio.
A dialética como virtude e como ciência, é uma realidade, quer dizer, um corpo, ela
parece ser idêntica à verdade que é definida quase nos mesmos termos que ela: ―a ciência
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 20
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
indicadora de todas as coisas verdadeiras‖. Mas, seus objetos, isto é, o verdadeiro e o falso
não são de forma alguma realidades. O julgamento só ele, com efeito, é verdadeiro: ora o
julgamento é um exprimível, e o exprimível é incorpóreo. Estamos então desde o início no
não-ser. As coisas verdadeiras e por analogia, as falsas, isto é nos julgamentos simples ou
composto ―não são nada‖. Diríamos que os julgamentos exprimem qualquer coisa, uma
realidade, e esta realidade é, por seu intermediário, o objeto da dialética? Isto seria
desconhecer completamente o pensamento dos Estóicos. A lógica não vai mais longe que o
verdadeiro e o falso. Diríamos então, se a proposição não significa uma realidade ela se
reduz às palavras. De forma alguma; as palavras são inclusive algo de corpóreo e não a
proposição. Seria necessário que, o ―não-ser‖ estudado pela lógica não seja nem as
palavras nem as coisas. Este ―não-ser‖ é o atributo das coisas designadas pelo exprimível, e
que só ele pode ser verdadeiro ou falso: verdadeiro se pertence à coisa, falso se não
pertence.
Esta definição da dialética toma seu sentido por sua oposição a Aristóteles. Ele
tinha dado por objetivo da ciência não o verdadeiro, mas o geral e o necessário. Uma
proposição pode ser verdadeira, teria ele dito, e podemos sacar como tal ao conhecê-la
cientificamente, isto é, por uma demonstração. Os Estóicos tiraram sarro desta observação
ao mostrar como não é necessário de ser sábio para conhecer o verdadeiro, pois este
conhecimento não é necessariamente a ciência. Mas, por outro lado eles não podiam
substituir ao verdadeiro o necessário no sentido peripatético, isto é, fundado sobre uma
inclusão de conceitos, pois um fato como tal, somente pode ser verdadeiro ou falso sem
nunca ter uma necessidade análoga à necessidade matemática. Assim eles definem o
necessário como uma espécie de verdadeiro, o que é sempre verdadeiro (ηό άεί άληθέρ). O
necessário é então a universalidade de um fato, ou como diziam eles, de uma atribuição que
permanece presente todo tempo. Mas o verdadeiro não alcança a permanência, e muitas
vezes muda por causa da mudança perpétua dos acontecimentos. É esta natureza da
proposição que segundo Alexandre de Afrodísio [(começo do II século ao começo do III –
Chamado de ―o segundo Aristóteles‖ pela excelência de seus comentários)] permitia aos
Estóicos conciliar a contingência dos acontecimentos com a ordem do destino. Vejamos um
argumento que nos parece muito especial, a proposição: ―Haverá amanhã uma batalha
naval‖ é verdadeiro se tal acontecimento é determinado pelo destino. Mas, ele não é
necessário: pois ele cessará de ser verdadeiro depois de amanhã, por exemplo. A razão
profunda desta subtilidade, é que o necessário é concebido somente como um fato ou um
acontecimento permanente, ao passo que o verdadeiro é muitas vezes um acontecimento
passageiro e fugidio, que pode sempre se tornar falso. Alguns Estóicos pareciam
preocupados da relação da proposição com o tempo. Admitiam quedas (μεηαπηώζειρ) das
proposições verdadeiras nas falsas. Este caso particular acrescido da enumeração das
diversas modalidades de uma proposição (possível, necessária e razoável) mostra bem
claramente que a proposição é tratada e descrita como um acontecimento possível,
necessário, ou passageiro.
Assim o verdadeiro e o falso, objetos da dialética, são julgamentos simples,
idênticos não em sua forma verbal, mas em sua natureza (isto é, no que exprimem) para os
acontecimentos. Mas estes julgamentos simples são enlaçados entre eles nos julgamentos
complexos, por meio de conjunções diversas. A classificação destas proposições não segue
a análise gramatical, e parece primeiramente ter mais que um alcance lingüístico. Existem
várias forma de conjunções, a conjunção por conexão (ζςναπηισόρ), como εί; a conjunção
copulativa e (ζςμπλεσηισόρ); a conjunção disjuntiva ήηοι (διαζεσηισόρ); a conjunção que
marca a causa (διόηι) e que não tem aí nenhum nome especial, a que marca mais ou menos.
Há tantas proposições complexas quanto há de conjunções: a proposição hipotética
(ζςνημμένον), conjuntiva, causal, marcando o mais e o menos. Desde a antiguidade e sobre
esta questão, Claudio Galeno [(Klaudios Galênos – 129 a 210 D. C.)] criticou a escola de
Crísipo por ter se ligado mais à linguagem que os fatos. Em uma proposição conjuntiva,
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 21
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
por exemplo, (exemplo de Galeno), não temos nenhum meio para distinguir pela simples
forma verbal se os fatos afirmados em cada membro são ligados ou não por um laço de
conseqüência: ante de quererem distinguir duas espécies de conjuntivas, os alunos de
Crísipo os confunde (misturam) em uma única.
Se os Estóicos se expunham a esta crítica, é que, par seu ponto de partida eles foram
postos na impossibilidade de proceder de outra maneira senão pela análise gramatical. Cada
termo de uma proposição complexe exprime um fato (ou: é um exprimível). A causa de
cada um destes fatos é um corpo ou vários corpos, conhecidos pelos sentidos. Mas a
ligação entre estes fatos, ela mesma não é objeto de sensações. Ela é tão irreal quanto aos
fatos eles mesmos. Ela é também um exprimível. Quando um Estóico fala, a propósito de
acontecimentos, o conseqüente e o antecedente, as causas e efeitos, ele não busca, tanto
quanto Hume [(David, 1711 a 1776] a dar aos fatos eles mesmos, incorpóreos e inativos,
uma força interna que os ligaria um ao outro, que faria que um fosse capaz de produzir o
outro. Se pudermos empregar neste caso as expressões de conseqüências e causas são
unicamente por analogia, como já advertimos várias vezes:
―Os Estóicos, diz Clemente de Alexandria, dizem que o corpo é causa
no sentido próprio, mas incorpórea, e de uma forma metafórica e à maneira
de uma causa‖.
O incorpóreo que se trata aqui é seguramente o exprimível ou julgamento como nos
mostra o testemunho de Dioclès: na proposição dita causas (αίηιώδερ) como: já que faz dia
está claro, o primeiro termo é dito não a causa do segundo, mas ―como causa do segundo‖.
[[[Trata-se de causa ou de uma implicação?]]]. Esta espécie de causalidade irreal não
poderá encontrar seu ponto de apoio e seu objeto no mundo exterior, mas somente numa
expressão da linguagem. É unicamente a linguagem com suas conjunções que nos permite
de exprimir os diferentes modos de ligações que não respondem a nada de real, e é por isso
que não somente podemos, mas devemos nos limitar à análise da linguagem.
Segue-se que esta ligação de fatos é puramente arbitrária e que é suficiente de ligar
qualquer termo por conjunções para se obter um julgamento aceitável. É aí mesmo que para
os Estóicos que se situa a principal dificuldade: os quadros da ligação por um lado são
como categorias vazias, por outro lado, os fatos que deveriam aí entrar são sem ação
propriamente dita uns sobre os outros, em estado atômico e disperso. Trata-se, no entanto
de distinguir o julgamento complexo verdadeiro ou são (saudável) (ύγιέρ) do julgamento
falso, aquele que poderá ser aceito e aquele que não poderá. De fato, os diversos mestres do
estoicismo têm sobre este tema, o que sabemos por Cícero [(Marcus Tulius Cicero, – 106 a
43 A. C.)] numerosas dissensões. As teorias de Filon de Larisse [(– 150 a 79 A.C.)] e
Diodoro [(Diodoro de Cronos + – 296 – escola Megárica)] parecem marcar os dois limites
opostos entre os quais se encontram outras soluções. Seria possível primeiramente deixar
os fatos em seu estado de dispersão: um fato indicado numa proposição condicional pode
estar ligado a qualquer fato enunciado na principal (trata-se de um ζςνημμένον). É mais ou
menos a teoria de Filon de Larisse. Qualquer que seja o conteúdo do fato tem de considerar
simplesmente se é falso ou verdadeiro. Em um ζςνημμένον composto de duas
proposições, há somente quatro combinações possíveis, Filon só aceita três (1ª proposição
verdadeira; 2ª proposição verdadeira; 1ª proposição falsa; 2ª proposição falsa; 1ª proposição
falsa; 2ª proposição verdadeira) ele rejeita a 4ª que é somente verdadeira e falsa. A razão de
tal rejeição não é a priori evidente; ela não está conforme ao princípio de que os
exprimíveis não podem agir ou sofrer a ação uns em relação aos outros: talvez víssemos aí
uma inconseqüência dada aos ataques dos acadêmicos que teriam lhe acusado de tirar o
falso do verdadeiro. De maneira exatamente inversa de Filon, Diodoro busca introduzir
uma ligação de necessidade entre as duas proposições. Deixando de lado a teoria particular
de Diodoro, vejamos como os Estóicos poderiam evitar as conseqüências trazidas à luz por
Filon.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 22
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –

Consideremos este laço para cada um das proposições complexas. Para a proposição
hipotética e causal nós temos em primeira mão o testemunho de Dioclès [(ver Diógenes
Laércio)]. Um ζςνημμένον é verdadeiro quando ―o oposto da proposição final contradiz a
proposição do início‖. O oposto de uma proposição (e em de um termo) é segundo Sexto,
esta proposição acrescida de uma negação que a comanda inteiramente. A definição do
contraditório (ηό μασόμενον) é muito mais complicada de ser dada: ―é contraditória uma
coisa que não pode ser admitida (παπαληθθήναι) ao mesmo tempo outra‖. O oposto de: é
dia é: não é dia. O contraditório de: é dia é: é noite. Se dois termos, A e B são opostos, é
claro que não-A conterá mais que B, o não-vício mais que a virtude. O exemplo dado por
Dioclès é o seguinte: ―Se fizer dia fará claro‖. O oposto da segunda proposição: não faz
claro, contradiz: ―faz claro‖. Mas teremos aí, do ponto de vista dos Estóicos uma flagrante
dificuldade: se o contraditório tem um sentido no sistema definido de conceitos, não haverá
mais quando se tratar somente de fatos: um fato existe ou não existe. Como poderíamos
contradizer que um fato de uma natureza determinada (o dia) seja ligado a um fato de outra
natureza (a noite)? Esta dificuldade levou certos Estóicos a somente deixar no ζςνημμένα
as proposições idênticas: ―se faz dia é dia‖. Pois o oposto do segundo aqui não é mais
contraditório, mas oposto ao primeiro. Para poder ir adiante seria necessário um princípio
que permitisse reconhecer o que queremos dizer por fatos contraditórios. Sem tal princípio,
a exclusão das ligações arbitrárias de Filon, nos jogará nas proposições unicamente
idênticas. É este princípio que Crísipo se esforçou de encontrar no que chama de έμθαζιρ:
quando a segunda proposição não é idêntica à primeira, o ζςνημμένον pode ser saudável,
―se ela é contida em potência‖. A palavra πεπιέσειν se atribui ordinariamente à força que
contém e controla as partes do ser: não vemos como a palavra poderia se aplicar de outra
forma senão por metáfora confundindo esta contenção com a identidade. Os Estóicos não
tinham então no ζςνημμένον, o princípio rigoroso que lhes permitiria sacar a identidade
sem conseqüência e sem arbitrariedade.
Qual é então o princípio de ligação dos fatos na proposição causal como: ―já que faz
dia, faz claro?‖. Em aparência é bastante diferente: é uma ligação (laço) de conseqüência
(άσολοςθία). A proposição é verdadeira com a condição de que a segunda (ou o segundo
fato) siga a primeira (ou o primeiro fato), e não inversamente. Não teria aí alguma coisa de
análogo ao nosso princípio de causalidade que liga o conjunto de fatos heterogêneos? Não
temos porque acreditar: esta ―conseqüência‖ se deve no fundo à ligação idêntica que
havíamos visto no ζςνημμένον. Com efeito, numa outra passagem de Dioclès ele define
assim o sentido da conjunção se: ―ela significa que o segundo termo é a conseqüência
(άσολοςθία) do primeiro‖. Ora, nós havíamos visto precedentemente que a negação desta
conseqüência se devia uma impossibilidade lógica.
Sobre a condição da verdade da proposição conjuntiva nós não temos senão uma
observação crítica de Sexto. Os Estóicos estão errados segundo ele, de declarar verdadeira
somente a conjuntiva na qual todos os termos são verdadeiros: se um é falso, ela é falsa
somente em parte, e é verdadeira para o restante. O pensamento dos Estóicos criticado
assim, só poderia ter sentido se a conjunção indica uma ligação entre cada uma das partes
distintas. A crítica não atinge o caso onde haveria somente uma enumeração. O que nos
leva a crer que os Estóicos a tomavam em outro sentido, como de outra passagem, esta, por
sua vez de Galeno que os acusa de terem confundido a ligação conjuntiva simples com uma
ligação de conseqüência. Este texto se explica muito bem, pensando na distinção entre o
ζςνημμένον de Filon de Larisse, no qual a ligação é arbitrária e no de Crísipo no qual o
mesmo nome é aplicado. Uma segunda razão é um testemunho de Cícero no de fato que
nos ensina como Crísipo, por razões que não nos interessa aqui, transformava os
ζςνημμένα em proposições conjuntivas. Seria possível, observa Cícero, fazer a mesma
transformação em todos os casos possíveis. No caso, os termos conjugados são
seguramente de ζςνημμένον, isto é, por uma identidade lógica.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 23
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
Enfim, a proposição disjuntiva desemboca facilmente em um laço (ligação) do
mesmo gênero. Ela significa, com efeito, que se uma das proposições é verdadeira a outra é
falsa.
Assim todas as ligações remetem a uma única, a ligação de identidade, que é
exprimida claramente no ζςνημμένον. Uma proposição só pode repetir a outra
indefinidamente. Pensamos ter encontrado aqui a razão dessa espécie de inércia da lógica
estóica: ela tem por matéria os fatos, e estes fatos, exprimíveis incorpóreos, sendo o limite
do real, são por eles mesmos impotentes para engendrar qualquer coisa. Mas, com esta
hipótese nós nos encontramos em presença de duas dificuldades que devemos agora
abordar: se toda proposição exprime um fato, qual é o sentido da definição que deve
exprimir um ser? Mais ainda, se não há outras ligações lógicas senão a da identidade, qual
o sentido da semiologia estóica, segundo a qual um fato é um signo de outro fato
heterogêneo?

III – Esta definição era, em Aristóteles, a definição da essência de um ser. Nada de


parecido é possível, quando o pensamento lógico não atinge o ser, mas somente os fatos. A
definição em questão não será então de natureza absolutamente diferente de uma simples
descrição. Antipater [(Antipatros – 397 a 319 A.C.)] chama de ―um discurso enunciado
completamente seguindo uma análise‖. A palavra άπαπηιζόνηωρ quer dizer que a definição
é bastante ajustada ao definido para que a proposição seja convertível. Devemos então
tomá-la sem dúvida como uma descrição incompleta. É por isso que Galeno referindo-se à
teoria de Antipater opõe a definição à descrição (ύπογπαθή) considerada como um discurso
que introduz de uma forma genérica (ηςπωδώρ) no conhecimento da coisa indicada. Entre
estas ―descrições ou esboços‖ se encontram entre outras as das noções comuns que
podemos definir, mas somente descrever.
Crísipo, é verdade, define de forma completamente diferente a definição: ―a
definição é explicação do próprio‖ (ίδίος άπόδοζιρ). Segundo Alexandre de Afrodise, esta
definição reencontrará a esta de Antipater. Seria necessário então entender por próprio, não
a essência do ser (ίδίωρ ποιόν), mas somente os fatos característicos que resultam e que
somente eles entram na definição.
Os Estóicos inclusive, contrariamente a Aristóteles que pretende que a definição é
uma proposição categórica, a colocava sob a forma de um julgamento hipotético que
afirma, já vimos, a coexistência não de conceitos, mas de fatos. Eles dividiam em ηί ήν
είναι de Aristóteles, a palavra είναι, querendo sem dúvida indicar por ηί ήν o fato estável e
permanente. Assim a definição não era para eles senão a coleção de fatos característicos de
um ser, mas a razão intrínseca da ligação, a essência escapa à tomada do pensamento
lógico.
A teoria dos signos depende estreitamente da concepção de ζςνημμένον ύγιέρ em
Filom de Larisse. O signo não seria outra coisa senão a proposição antecedente de um
ζςνημμένον, no caso particular onde as duas proposições são verdadeiras, e onde a
primeira é capaz de revelar (έσσαλπηισόν) a segunda, como ―se uma mulher tem leite ela
teve um filho‖. Um leitor moderno seria quase levado a pensar para explicar esta teoria a
idéia de lei, no sentido da lógica de Stuart Mill. Se um fato A é signo de um fato
heterogêneo B, como a idéia de B não está contida analiticamente nessa de A, a ligação
poderá ser unicamente por meio de uma ligação exterior aos dois fatos, mas constante e
necessária, o que chamamos de lei. Se fosse esta a idéia dos Estóicos deveríamos encontrar
neles uma teoria das leis e da indução que serve para isto acontecer. Octave Hamelin nos
mostrou que, ao contrário, este problema ficou fora das preocupações dos Estóicos.
Devemos então abandonar, parece-nos, a idéia de assimilar esta semiologia à nossa lógica
indutiva. Se o primeiro fato é signo do segundo, não é por meio de uma lei, mas porque ele
porta nele mesmo, por assim dizer, o outro fato. Mas, não seria assim dar ao fato (e à
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 24
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
proposição que, enquanto exprimível lhe é idêntica) certa atividade, uma força da qual ela
não era susceptível por natureza?
Será necessário para resolver esta delicada questão, insistir sobre a natureza do
signo. Havia sobre este ponto uma controvérsia entre os Epicuristas e os Estóicos, que é
mencionada por Sexto. Para os Epicuristas o signo de um acontecimento atualmente
invisível é um objeto sensível; é então pela sensação que ele é conhecido. Para os Estóicos
é o contrário, o signo é um ―inteligível‖ (νοηηόν). Será que Sexto quer indicar assim a
ligação do signo com a coisa significada como sendo conhecida a priori, pelo menos por
uma espécie de senso comum, resíduo mental das representações empíricas? A razão que
ele nos dá é outra: ―O signo é um julgamento (άξίωμα) diz ele, e por esta razão,
inteligível‖. O signo é então inteligível somente enquanto não for um objeto de
representação sensível, mas um exprimível, um julgamento. Sexto emprega aui, como em
outros casos a palavra νοηηόν, ali onde a linguagem estóica exigiria άζώμαηον. Então o
signo é um exprimível incorpóreo. O que o faz signo é igualmente um exprimível. É o que
querem dizer os Estóicos sustentando esta idéia paradoxal: ―O signo presente deve ser
sempre ser signo de uma coisa presente‖. Em uma proposição deste gênero: ―Se há uma
cicatriz é porque houve ferimento‖, o ferimento nele mesmo é sem dúvida uma coisa
passada, mas de forma alguma ferimento, mas pelo fato de ter tido um ferimento que é
significado, se faz presente, o signo é este outro fato de ter uma cicatriz que é igualmente
presente.
Assim a relação do signo à coisa significada é entre dois termos incorpóreos, dois
exprimíveis, e não entre duas realidades. Mas, poderíamos dizer que esta relação entre os
exprimíveis supõe uma relação entre duas coisas (aqui o ferimento e a cicatriz)? Pelo
menos em sua semiologia os Estóicos não se ocupam senão da primeira relação (entre
exprimíveis) e jamais da segunda. O problema ao qual responde esta teoria é de substituir
um fato (ou exprimível) desconhecido por um fato (exprimível) conhecido. Somos levados
assim a compreender de uma forma nova a natureza dessa ligação. Aqui como no
ζςνημμένον ordinário, o segundo julgamento deve, para que o signo seja verdadeiro, ser
idêntico ao primeiro. ―Quando temos a noção de conseqüência, diz Sexto, chegamos
imediatamente a idéia do signo por meio da conseqüência‖. A conseqüência de que se
trata aqui não é seguramente a conseqüência física entre dois seres, mas do laço de
conseqüência lógica entre duas proposições: pois se trata da conseqüência que é objeto do
pensamento transitivo como nos mostra a frase anterior. Ora, nós vimos que esta
conseqüência significava somente que o oposto da proposição final de um ζςνημμένον
contradizia a proposição do começo. No caso particular do signo e de nosso exemplo ―não
ter tido ferimento‖ ou ―não ter dado à luz (parido um filho)‖ é contraditório com ―ter uma
cicatriz‖ ou ―ter leite‖.
Sobre a natureza desta contradição os Estóicos se encontram necessariamente tão
embaraçados quanto na teoria geral do ζςνημμένον. Para a lógica indutiva moderna a
contradição seria entre a negação da ligação e a ligação legal regularmente induzida pela
experiência. Mas como os Estóicos não conhecem tais ligações legais, eles encontram a
contradição entre os dois fatos neles mesmos, o antecedente e o conseqüente. Ora, a
contradição somente terá sentido claro quando se trata de opostos, isto é, de julgamentos no
quais um é a negação do outro, sem conter outros termos. É então necessário, para que a
teoria dos Estóicos tenha um sentido, que o antecedente e o conseqüente, se eles não são
idênticos, pelo menos tenham uma identidade próxima, que não sejam a mesma coisa
exprimida em termos diferentes. É o que acontece quando acontece quando os
consideramos os dois como presentes. O acontecimento presente: ter uma cicatriz, não é
diferente senão nos termos do outro acontecimento igualmente presente: ter tido um
ferimento. É inegável que a representação do ferimento não está contida na representação
da cicatriz, e que se tenha em conseqüência a experiência para ir de uma a outra. Mas,
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 25
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
ainda uma vez, a dialética não se ocupa das representações e da experiência, mas
simplesmente dos exprimíveis e das proposições. Ora, a segunda proposição diferente por
sua expressão é no fundo a mesma que a primeira. Os Estóicos viriam a se distanciarem
desta identidade, sua teoria caiu imediatamente sob as críticas que fora feita pelos céticos: a
proposição supõe que o signo seja constatado e que não seja conhecido pela coisa
significada. Os Estóicos como nos mostrou Brochard, não tem ou quase não tenha buscado
responder a esta dificuldade. Portanto esta dificuldade não chegou a se constituir numa para
os lógicos indutivos, não é aí que se situa o problema, pois é precisamente nas relações
empíricas que se fundam as ligações legais.
Nós podemos ser muito breves sobre o raciocínio, pois a demonstração, como diz
Sexto, só é uma espécie de signo. Os fatos ligados nas proposições complexas se tratam por
meio de desta ligação de substituir um fato por outro na conclusão. Trata-se sempre de tirar
a conclusão de uma ligação (ou de uma disjunção) dos fatos enunciados na dominante
(maior). A grande simplicidade do aspecto dos quadros do raciocínio é decorre de que a
lógica não tem mais a ver a realidades, mas aos exprimíveis. Ela se fez, da parte de Galeno,
o objeto de uma crítica instrutiva: ele observa que nos livros estóicos são misturadas todas
as formas de raciocínios que de hábito nós distinguimos: o raciocínio retórico, ginástico,
dialético, científico, sofístico. Teria sido uma antiga idéia platônico-aristotélica que as
diferentes espécies de seres, segundo seu valor intrínseco, comportariam raciocínios mais
ou menos precisos. Por exemplo, é porque o raciocínio científico se reporta à substância,
única estável, que ele deve ser rigoroso. Ora, é a rejeição desta idéia que faz a característica
do raciocínio estóico: não se trata de realidades diferentes, pois somente contém o irreal e o
incorpóreo.

IV – Se há um traço próprio desta lógica, é de se desenvolver fora de todo contato com o


real, e apesar de algumas aparências, fora da representação sensível. A distinção entre um
conhecimento que tem por objeto a realidade ela mesma, a representação sensível, e outro
conhecimento que se reporte aos exprimíveis é no fundo a lógica da doutrina Estóica. Ao
passo que gêneros e espécies em Aristóteles, eram em certa medida seres reais, e que o
pensamento lógico penetrava nas coisas elas mesmas, os exprimíveis nada contém em sua
natureza e em conseqüência não levaria nada da natureza real para o pensamento, do qual
são produtos e efeitos.
É sedutor entretempo de remeter a ligação dos fatos, exprimidas pela proposição
hipotética ao determinismo universal, afirmada na teoria do destino. Mas, a palavra destino
não exprime de forma alguma uma ligação entre os fatos no sentido de que seriam
encaixados em série do precedente e causa do seguinte (conseqüente). É verdade que o
destino assina a cada vez seu lugar no tempo, mas não é uma relação com outros
acontecimentos que se reportariam a ele como a condição para o condicionado. É suficiente
de se lembrar que o acontecimento é um efeito, um incorpóreo que, como tal, é somente
efeito e jamais causa e sempre inativo. Se ele é determinado é por sua relação com uma
causa que é, ela, um ser real de uma natureza totalmente diferente dele. O destino é esta
causa real, esta razão corpórea segunda a qual os acontecimentos são determinados, mas
não é de forma alguma uma lei conforme a qual eles se determinam uns sobre os outros.
Como, por outro lado, há uma multiplicidade de causas, pois a razão do universo contém a
múltiplas razões seminais de todos os seres, o destino é ainda chamado de ―a ligação das
causas‖ (είπμόν αίηιών), não das causas com os efeitos, mas das causas entre elas em sua
relação com deus único que todos contêm. Esta relação é mesmo uma relação de sucessão
entre as causas que as subordina uma as outras, pois é segundo a ordem mesma do mundo
que os seres derivam uns dos outros. Mas, trata-se ainda aqui da relação dos seres neles
mesmos e não de relação de acontecimentos.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 26
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
Já que os acontecimentos são efeitos destas causas, é certo que são em seguida
ligados entre eles. Por mais heterogêneos que eles sejam, eles dependem do destino que é
único. Mas, se o conhecimento do destino, se a participação por meio da sabedoria, pela
razão universal, pode fazer conhecer tais ligações, não vemos como na dialética poderia
intervir este conhecimento. Como, se a dialética considerasse esta ligação universal,
Crísipo poderia distinguir dos fatos simples, isto é, sem condições com outros fatos, e fatos
conexos, isto é, ligados em conjunto. Todos, com efeito, deveriam ser ligados. Ora é
precisamente o contrário que acontece: à vista do puro dialético que recolhe os
acontecimentos isolados, não há ligação possível, ou antes, não existe ligação a nãos ser
esta da identidade. A dialética permanece na superfície do ser. Certos Estóicos se
esforçaram para ultrapassar raciocínio idêntico: ―Si lucet, lucet; lucet autem; ergo lucet‖.
Mas eles não puderam jamais fazê-lo a não ser ao preço de inconseqüências ou de
arbitrário. Apesar da unidade relativa de sua doutrina do destino, jamais pode ser imposta a
eles, os Estóicos, teoria estável da ligação dialética. Sua dialética, por mais paradoxal que
pareça, é muito próxima dos fatos, para poder ser fecunda. Ela não soube sair do fato bruto
dado nem pela idéia geral que ela nega, nem pela lei que ela não conhecia ainda, e deve se
contentar de repeti-la indefinidamente.

CAPÍTULO TERCEIRO
A TEORIA DO LUGAR E DO VAZIO

O problema da natureza do espaço não se apresenta a partir de Aristóteles como


uma questão simples, mas sob a forma de duas questões consideradas como totalmente
distintas; esta do lugar e do vazio. Para Aristóteles, o espaço, enquanto que ele é ocupado
pelos corpos, tem outras propriedades que o espaço vazio. A presença de corpos no espaço
determina nele propriedades que o espaço vazio não tem: o alto, o baixo, e as outras
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 27
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
dimensões. Não existe mesmo na língua uma palavra geral para designar, por sua vez o que
seja o lugar e o vazio. Devemos distinguir igualmente no sistema estóico as duas questões.

I – Sobre a existência mesma do lugar, o que foi contestado por Zenão de Eléia [(– 490 a
485 A. C.)], os Estóicos seguiram totalmente a Aristóteles. A citação de Sexto na qual a
existência do lugar é estabelecida é em sua forma estóica, pois os argumentos são
apresentados como qualquer afecção sob a forma de silogismo hipotético, mas, ele
reproduz integralmente os argumentos do capítulo I do Livro IV da Física. Ele só
acrescente uma enorme desordem que torna a argumentação bastante obscura. Estes
argumentos visam todos a demonstrar que, se há um corpo, há um lugar. Eles chegam a
fazer do lugar a condição sem a qual nenhum corpo pode existir. Mas, ao mesmo tempo, a
natureza do lugar somente pode se determinar em sua relação com o corpo.
...................................................................................................................................................
[OS SEIS ARGUMENTOS DO CAPÍTULO I DO LIVRO IV DA FÍSICA DE ARISTÓTELES]
1- Se há alto e baixo, direita e esquerda, adiante e detrás, há um lugar.
2- Se lá onde havia uma coisa há agora outra, há um lugar.
3- Se há um corpo há um lugar.
4- Se cada corpo é posto em seu lugar próprio há um lugar.
5- Se tivermos causas material, formal e final de um corpo, é necessário para que
o corpo advenha acrescentar aí a causa do lugar (έν ώ).
6- O testemunho de Hesíodo, o primeiro se liga em Aristóteles ao quarto, pois alto
e baixo etc. dependeriam do fato que cada corpo tem um lugar próprio. O segundo é
argumento de άνηιμεηύζςζιρ (substituição de um corpo por outro) que na Física é o
primeiro. O terceiro não é em Aristóteles um argumento definido, mas o resumo dos
argumentos precedentes. O quinto argumento não tem um sentido possível, pois o lugar é
posto fora das quatro causas.
..............................................................................................................................................................
Sobre esta natureza Aristóteles emitiu quatro hipóteses possíveis:
O LUGAR É: 1- uma forma,
2- ou matéria,
3- ou o intervalo entre duas extremidades
4- ou as extremidades mesmas (ηά έζσαηα).
Sabemos que destas quatro hipóteses Aristóteles escolheu a última. Os seus
comentadores colocam sem exceção os Estóicos entre aqueles que aceitaram a terceira
hipótese, a identidade do lugar com o intervalo entre as extremidades dos corpos enquanto
que este intervalo será pleno. Há de suas partes um sensível esforço para fazer caber todas
as doutrinas do lugar na classificação do mestre, esforço que pode ter alterado a
originalidade de cada um das doutrinas, Foi assim que Temístio [(317 a 388 – Reitor da
Universidade de Constantinopla)] cita os partidários desta doutrina de ―Escola de Crísipo e
Epícuro‖. Simplício [(neo-platônico e comentador de Aristóteles, + – 500 D.C.)] acrescenta
―alguns platônicos‖ que se trata também dos Estóicos.
Nós somente temos dois textos bastante curtos e insignificantes de Estobeu e Sexto
que falam diretamente sobre a doutrina de Crísipo: o lugar, diz Estobeu, é para Crísipo:
―o que é ocupado inteiramente por um ser, ou ainda o que é capaz
de ser ocupado por um ser e que seja ocupado inteiramente seja por algum
ser, ou por vários seres‖.
A definição de Sexto só faz insistir sobre o δι όλος, dizendo que ―o lugar é igual
(έξιζαζόμενον) ao ser que ocupa (σαηέσονηι)‖. Estes textos bastam somente para mostrar
que o lugar de um corpo não tem sentido para os Estóicos senão como intervalo sempre
pleno que pode ser constituído às vezes por um corpo ou por outro. É o que quer dizer os
Estóicos dizendo que o lugar é concebido, assim como os exprimíveis, pela transição
(μεηαδάζει). O lugar é o ponto de passagem do comum de vários corpos que se sucedem
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 28
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
como um ζςνημμένον é a passagem de uma proposição a outra. É o primeiro dos
argumentos (a substituição dos objetos uns por outros) pelo qual Aristóteles provava que há
um lugar. Aristóteles para explicar esta teoria comparava o lugar com um vaso que por ser
preenchido sucessivamente por corpos diferentes, permanecendo o mesmo lugar, pois os
intervalos das extremidades dos corpos que o preenchem é o mesmo. Esta comparação se
encontra nas fontes que já citamos. O problema do lugar é assim ligado como em
Aristóteles ao problema do movimento.
Se não pudemos conhecera antes os detalhes desta teoria, pelo menos o que
conhecemos basta para ser posto o problema seguinte: os Estóicos conheciam
perfeitamente, pois eles o seguiam neste ponto as especulações de Aristóteles sobre o lugar.
Seria possível que eles que eles não levaram em conta as objeções que o autor da Física
fazia quanto à teoria do lugar-intervalo? Mais ainda, teriam eles abandonado a teoria
peripatética que considerava o lugar como o limite do corpo continente, e não tivessem
encontrado outra coisa para retomá-la?
Destas duas questões a segunda é, segundo os testos, a mais facial de ser resolvida.
Sua teoria da infinita divisão, a maneira pela qual os Estóicos a expõe é com efeito
incompatível com a noção de lugar em Aristóteles. Esta noção de lugar tinha por condição
essencial a distinção entre o contato e a continuidade. O corpo continente está em contato
com o corpo contido do qual a independência é demonstrada pelo movimento que ele pode
fazer para dele se separar. Ora, segundo os Estóicos o contato é radicalmente impossível.
Primeiramente, por causa da divisibilidade indefinida não podemos falar em corpo de
extremidades últimas: pois, existe parte ao infinito, e haverá sempre um para além daquela
que definimos como última. Se não vermos que esta argumentação foi feita especialmente
dirigida contra Aristóteles, é seguro que pelo menos que ela seja independente da que foi
dirigida contra o atomismo epicurista. Plutarco, com efeito, após ter indicado o argumento
que eles empregavam contra os átomos (isto é, que eles se tocavam e se confundiam já que
são indivisíveis) acrescenta que ele s caem também na mesma dificuldade, a propósito do
conceito de contato dos corpos, pois, diziam eles, os corpos não se tocam por suas
extremidades nem inteiramente nem por suas partes: a extremidade não é um corpo.
Se não há contato de dois corpos num ponto preciso onde um cessa e outro
começa, segue-se que eles devem se interpenetrar reciprocamente, ao menos se não são
separados pelo vazio. Ora, esta última alternativa, por razões que veremos mais tarde, não
é admitida pelos Estóicos. Eles não recuavam nem um pouco diante desta conseqüência
que é uma doutrina essencial, paradoxal e muito profunda de seu sistema. Nós somente
temos aqui de nos preocupara na medida em que pode intervir sobre a teoria do lugar. Por
ela a noção de corpos se subtiliza e se transforma na noção de ações e forças que, assim
como os átomos de Faraday [(1791 a 1867)], abarcam todo o espaço inteiramente. Do
ponto de vista da teoria do lugar, ela tem importantes conseqüências, pois segundo ela, dois
corpos poderiam ocupar o mesmo lugar. É por esta conseqüência considerada como
absurda por Plutarco que ele a combatia. ―É contra o bom senso, dizia ele, que um corpo
seja o lugar de um corpo‖. Temistios [(317 a 388, Reitor em Constantinopla)] por seu lado
expõe tal absurdo:
―Dois corpos ocupam o mesmo lugar. Se é assim que o lugar seja um
corpo, o que nele adveio como um corpo, e se os dois são iguais pelos
intervalos o corpo estaria num outro corpo que lhe é igual‖.
A mesma conseqüência mais ou menos nos mesmos termos foi deduzida por
Alexandre de Afrodisia.
Mas, estes resultados nos encaminham para uma solução da primeira das questões
que havíamos destacado. Se, com efeito, dois corpos podem estar no mesmo lugar, todas
aporias de Aristóteles concernindo o lugar-intervalo desapareceriam. A dificuldade
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 29
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
principal consistiria no que, se o lugar for intervalo de um vaso preenchido por diferentes
líquidos, podemos nos perguntar qual é o lugar deste intervalo e assim até o infinito.
Caímos assim na objeção de Zenão de Eléia contra a existência mesma do lugar. Mas esta
aporia supõe corpos impenetráveis, ela supõe o conteúdo separado por divisões do
continente. Na tese da impenetrabilidade do corpo, não podemos falar nem de continente
nem de conteúdo, ele se confundem um com o outro. O ―todo está no todo‖ de Leibniz é
representado por uma ―mistura total‖. Não se trata como sabemos de uma mistura do
passado de um corpo nos interstícios vazio de outro, no qual caso haveria sempre conteúdo
e continente, mas uma fusão íntima e em todos os pontos dos dois corpos.
Se os Estóicos recolocaram em destaque a teoria rejeitada por Aristóteles, foi por
causa da oposição profunda e íntima de suas doutrinas sobre a natureza dos corpos e da
ação corporal. A ação mecânica pelo contato é em Aristóteles a representação
predominante: é tocando nela que Deus age sobre a esfera exterior do céu, e é por uma
série de contatos que o movimento circular do céu engendra por um progresso os diversos
movimentos do mundo até nos lugares sublunares. É também por uma espécie de contato
que a alma age sobre o corpo. Ainda mais, estes movimentos vão de certa forma do
continente ao conteúdo, da circunferência ao centro. Não é de se admirar que o lugar que o
lugar dos corpos seja o continente, que de maneira ativa, pelo contato de superfície aloja de
certa forma os corpos no lugar que deveriam ocupar. Assim, numa classificação, o gênero
contém as espécies e seus limites são determinados pelo exterior. Ao contrário, para os
Estóicos, a extensão é considerada como o resultado da qualidade própria que constitui um
indivíduo corpóreo. Toda ação é concebida como um movimento de tensão. O gérmen do
corpo, sua razão seminal se estende, por sua tensão interna, do centro onde ela reside até
um limite determinado no espaço, não por uma circunstância exterior, mas por sua própria
natureza, e por um movimento inverso ela retorna das extremidades ao centro. Por este
duplo movimento ela retém juntas (ζςνέσει) as partes do corpo da qual ela forma a unidade.
O lugar do corpo é o resultado desta atividade interna. Este atributo é determinado pela
natureza mesma do corpo e não por sua relação de posição com qualquer outro.
No entanto, a teoria ficaria sujeita às objeções de Aristóteles se pudesse conceber
vários corpos exteriores uns e outros e se deslocando uns em relação aos outros. Pois este
deslocamento implica que os corpos carregam com eles seu lugar, e terá como
conseqüência que o lugar muda de lugar, e devemos então definir da mesma maneira que o
primeiro, o segundo lugar, e assim de seguida. De fato os Estóicos às vezes parecem ter
admitido estas posições relativas. Crísipo, entre as diferentes combinações de corpos, cita,
antes da mistura a justaposição (παπάθεζιρ), como esta dos grãos de trigo fechados num
saco, ele define assim ―o contato de corpos segundo suas superfícies‖. Não podemos
considerar esta passagem como uma concessão às aparências sensíveis. O contato está em
contradição tão absoluta com os princípios essenciais da física que não podemos nem
mesmo acreditar que tenham sido admitidos. Se retomarmos estes princípios se verá que
eles, num certo sentido, incompatíveis com uma divisão real dos corpos. O que faz a
unidade da cada corpo é o ―sopro‖ da razão seminal que retém as partes. Qual é a relação
desta razão com a razão seminal do mundo? Temos muita dificuldade para representar
estes germens de outra forma que como fragmentos destacados e disseminados em
diferentes lugares do gérmen primitivo e total. A prova está que os Estóicos tiveram de
lutar contra esta representação: desde que admitida, somos conduzidos a uma pluralidade
absoluta de corpos: há então entre eles ligações de exterioridade. Mas, na realidade, não se
trata de divisão e destacamento, é por um ―movimento de tensão‖ que a Razão suprema
produz outras razões. Há um ato análogo àquele que faz a alma humana nos corpos,
quando, segundo os Estóicos, ela estende como um pólipo seus prolongamentos até aos
órgãos de sentido par sentir. Desde então fica difícil falar em diversos lugares. O universo é
um corpo único que por sua tensão interna determina seu lugar e que se diversifica em
múltiplos graus de tensão, mas não em diversas posições ocupadas por suas partes.
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Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –

É uma crítica muitas vezes repetida pelos Alexandrinos contra a teoria estóica das
categorias, por não ter dado um lugar especial, como Aristóteles para o tempo e o lugar.
Parece, a partir destas críticas que os Estóicos organizaram desordenadamente em sua
terceira categoria, esta do πώρ έσον, a quantidade, o tempo e o lugar. Esta crítica se
consuma por precisar a fisionomia de sua teoria. As categorias de Aristóteles se dividem
claramente em dois grupos, o primeiro constituído somente pela primeira substância e o
segundo pelos nove outros que são os diversos acidentes da substância. É o princípio desse
agrupamento que muda nos Estóicos. O termo geral que designa o que podemos colocar
sob as categorias não é mais, como em Aristóteles, όν (esta palavra fica reservada ao real,
ao corpo), mas ηί. Este ηί designa ao mesmo tempo o corpo e os incorpóreos. Tais são os
dois grupos de categorias. O primeiro compreende os sujeitos e as qualidades (ύποσείμενα,
ποιά) que são os corpos; o segundo os modos e os modos relativos (πώρ έσονηα, ππόρ ηί
πωρ έσονηα) que são os incorpóreos. Esta distinção não corresponde mais àquela de
substância e acidentes, pois entre estes acidentes, uns, como as qualidades foram colocados
nas realidades substanciais (o ter igualmente se tornou uma qualidade), ao passo que as
outras são classificadas entre os incorpóreos. O que interessa aos Estóicos neste
agrupamento é de distinguir o que age e o que sofre, por um lado, e por outro, o que nem
age nem sofre: é o problema físico. Se considerarmos agora o segundo grupo de categorias
estóicas, esta dos incorpóreos é evidente nela mesma que deve conter o lugar, que entrará
ao mesmo título que uma quantidade inumerável de outros seres incorpóreos, e não haveria
razão para lhe dar um lugar privilegiado de uma categoria especial. Da mesma forma que
os únicos seres reais, os corpos, produzem por suas atividades todos os efeitos ou fatos
corpóreos que fazem a matéria da lógica, assim como produzem o lugar. É então legítimo
de reagrupar as duas coisas sob uma mesma categoria.
Esta aproximação do lugar e do exprimível, que se faz por meio da noção de
incorpóreo, é o traço o mais destacável da teoria estóica de lugar. Através dela o lugar não
estará mais nos princípio de corpos. Mesmo que os corpos sejam eles mesmos extensos, o
que há de essencial neles, a força, é superior a esta extensão, pois ela é que é o princípio. A
incorporeidade do lugar joga um papel análogo à idealidade do espaço no kantismo. O
lugar não afeta a natureza dos seres ele age tão pouco sobre ela assim como o espaço, em
Kant, não afeta a coisa em si. O lugar é não uma representação sensível, mas uma
representação racional que acompanha a representação dos corpos, tanto quanto faz parte.
O lugar não é objeto de pensamento a não ser pela passagem de vários corpos através de
uma mesma posição.

II – A questão do vazio foi resolvida pelos Estóicos de uma maneira igualmente original e
nova. Eles admitem o pleno nos limites do mundo, e, fora destes limites o vazio é infinito.
Nós queremos buscar os princípios dos quais dependem esta solução.
O tema dominante da filosofia de Aristóteles e de Platão era a relação do finito e do
infinito. O ser finito é o ser estável, idêntico a ele mesmo, à maneira de um ser matemático.
O infinito é o ser indeterminado que pode, entretanto receber todas as determinações
estáveis constituídas pelos seres finitos. Quer seja Platão ou Aristóteles, é sempre por uma
combinação destes dois princípios que o mundo sensível é explicado. Toda existência em si
é recusada ao ser infinito. O que constitui o fundo dos argumentos de Aristóteles contra o
vazio, está no vazio ele mesmo, não podemos chegar a descobrir alguma determinação
positiva, nem alto nem baixo, nem a velocidade de um móbil que a percorreria. O infinito
não é posto fora da realidade, mas se instala no seio mesmo da realidade sensível, como
princípio de mudança, de corrupção e morte.
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Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
A solução da questão do vazio, para os Estóicos, nos parece ser o ponto de vista
mais novo e original, como só poderíamos esperar de pensadores que haviam mudado
profundamente a noção de real e a questão das relações do finito e do infinito.

A doutrina do pleno não tem o mesmo sentido que para Aristóteles. Este estabelece
o pleno pela impossibilidade do vazio: par o argumento de seus adversários que o
movimento seria impossível sem o vazio, Aristóteles responde por uma espécie de
argumento ad hominem que diz que é justamente no vazio que o movimento é impossível,
ligando assim o pleno à existência do movimento. Nós não vemos, em nossas fontes que os
Estóicos tenham tentado uma resposta parecida. De fato ela era plenamente inútil com a
doutrina da penetrabilidade, pois o movimento de um corpo poderia se estender e se
prolongar no interior mesmo de outro corpo. A argumentação Estóica é muito mais direta:
Diógenes Laércio a resume assim:
―Não há nada de vazio no mundo, mas ele é unido (ήνώζθαι). É a
conspiração e os concursos (ζύμπνοιαν σαί ζςνηονίαν) das coisas celestes
com as coisas terrestres que forçam a esta conclusão‖.
A premissa do raciocínio é então a natureza da ação que deve se repercutir através
de todos os corpos, e que seria interrompida por intervalos vazios. Segundo Cleomede
[(Astrônomo do século I escreveu o tratado ―Sobre o movimento circular dos corpos
celestes‖ que resumia a teoria dos conhecimentos astronômicos dos Estóicos)], que detalha
um pouco as mesmas argumentações, as sensações tanto da vista quanto do ouvido seriam
impossíveis se não houvesse entre os corpos sensíveis e o órgão um contínuo dotado de
tensão, sem nenhum intervalo.
Este mundo uno e pleno é completo em si mesmo. Ele contém todas as realidades,
não no sentido de Platão segundo quem nenhuma parte material não foi deixada fora e que
serviu para sua construção, mas no sentido de que contém todas as determinações e as
razões destas determinações. Os Estóicos expulsam do mundo aquilo que para Platão e
Aristóteles era um elemento essencial, o infinito e o indeterminado. De qual potência
exterior ao mundo, com efeito, o ser, indeterminado por natureza receberia ele sua
determinação? O mundo é único e contém todos os seres. O principal elemento da
indeterminação que encontramos no mundo era o movimento, a mudança, concebidos
como a determinação progressiva de um ser ainda mal definido. Os Estóicos se dedicaram e
retirar da mudança tudo o que havia de indeterminado, de inacabado. O movimento, diziam
eles contra Aristóteles, não é a passagem da potência ao ato, mas um ato que se repete
sempre de novo. Eles encontravam nesta espécie de movimento de vai-e-vem que constitui
a atividade da razão seminal um movimento estável e completo nele mesmo. O mundo
inclusive está num movimento perpétuo que vai da conflagração à restauração do mundo, e
depois uma conflagração nova. Mas, para muito dentre eles, em cada período renova o
outro integralmente. Concebemos assim facilmente como eles puderam ser levados a esta
idéia do ―eterno retorno‖ e quais preocupações eles respondiam em seus espíritos. Toda
modificação teria suposto uma potência não passada ao ato, uma indeterminação. Mas, a
identidade nas mudanças nos mostra o mundo sempre completo e desenvolvendo sempre
todas suas potências. Esta identidade é análoga a aquela do ser vivente do qual a forma
permanece a mesma, no meio de mudanças contínuas.
Por outro lado é a unidade do mundo, tudo em ato e sempre em ato que se deduz as
determinações que há. Seus limites no espaço são devidos a extensão de sua potência
interna, não que ela encontre uma barreira em alguma força exterior, mas porque ela une
em torno de seu centro todas as partes que a compõem. Este limite não é sem dúvida que
uma noção racional, mas ela é, entretanto nada mais que uma propriedade ou pelo menos
um atributo do mundo ligado a ele um efeito para sua causa. Os argumentos que
estabelecem o limite repousam sobre a ordem que está nele e sobre o fato que ele é
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 32
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
governado como uma cidade. Ora, esta ordem só pode existir num ser finito. Esta atividade
ordenadora não é aquela de um demiurgo que introduz ordem no indeterminado e ilimitado.
Não há nada no mundo senão determinado, finito e consumado.
O finito se encontra então no corpo ele mesmo e não vem de nenhum ser exterior ao
mundo. Inversamente, fora do mundo, só há o ilimitado e o infinito: este infinito não exerce
nenhuma ação por sua parte. Todas as especulações sobre o vazio tendem a atenuar seu ser
até ao nada [néant] e assim, suprimir definitivamente o papel do ilimitado no mundo.
Primeiramente o vazio é sem limite. Nós temos sobre este ponto uma curta e um
pouco obscura demonstração de Estobeu, que concerne ao mesmo tempo o tempo e o
vazio:
―Da mesma forma que o corpóreo é limitado o incorpóreo é sem
limite. Com efeito, da mesma forma que o nada não é um limite, assim não
há limite de nada tal qual o vazio. Segundo sua natureza ele é infinito, mas
ele é limitado quando preenchido, se suprimimos o que o preenche podemos
aí conceber um limite‖.
Esta demonstração contém três momentos que podemos isolar assim: 1º o corpo não
é limitado pelo vazio; 2º inversamente o vazio não pode ser limitado senão que pelo corpo,
quando ele é preenchido por ele; 3º se supomos o corpo suprimido, não terá então mais de
limite. O primeiro ponto supõe que o limite de um corpo, e em particular este do mundo é
dado pela razão interna que o estende no espaço sem encontrar a mínima resistência, e nem
pelo espaço ele mesmo. Mas, se o limite vem assim da ação dos seres, é bem evidente que
o vazio que não é ocupado por nenhum ser não terá nenhuma razão para ser limitado num
ponto mais que em outro.
Para conceber o vazio, os Estóicos somente retiram todas as determinações de
corpos: o vazio é definido por privação, ―ausência de corpo‖ ou ―intervalo privado de
corpo‖. Foi assim que foi chamado por Cleomede, ―o pensamento o mais simples‖. Ele não
tem forma e não pode ser informado, não pode ser tocado. ―Não há nada nele, diz Crísipo,
nenhuma diferença‖, ou seja, como explica Cleomede, não há nele nem alto nem baixo,
nem as outras dimensões. Sendo indeterminado ele é sem ação sobre os corpos que há nele,
não os movimenta nem por um lado nem por outro. A posição dos corpos é assim
determinada não por qualquer propriedade do vazio no qual eles estão, mas por sua própria
natureza. O mundo, não tendo nenhuma razão de se por de um ou outro lado ficará então
imóvel no centro do vazio. Sabemos quanto esta idéia, que inclusive foi tomada por
empréstimo de Aristóteles, servia para os Estóicos para combater a doutrina epicurista
sobre a queda dos átomos no vazio.
Se o vazio for inativo e impassível, porque então os Estóicos os conservaram,
mesmo sendo fora do mundo, este abismo deserto e inútil? Quais as críticas que faziam de
Aristóteles contra o vazio exterior? Os peripatéticos não deixavam de colocarem objeções:
como, diziam eles, primeiramente, se há o vazio fora do mundo a substância não teria se
dispersado e dissipado ao infinito? Por outro lado, dizia Simplício, que chamamos de
vazio, como Crísipo, o que é capaz de conter corpos, mas que não os contém, colocamos o
vazio entre os relativos, mas se dois termos relativos, se um existe o outro deve então
existir. Como então em nosso caso se temos o que podemos ser preenchidos por um corpo
temos então de ter o que pode preenchê-lo. Ora, o vazio é infinito e não existe corpo
infinito. Para a primeira objeção já conhecemos a resposta: as partes do mundo são
religadas, não como em Aristóteles por um continente que as força a permanecer unidas,
mas por uma ligação interna, uma έξιρ tensionada de um lado ao outro do mundo, e o vazio
não tem nenhuma força para impedir esta união. Não vemos que os Estóicos tentaram
responder ao argumento de Simplício. Mas, as razões pelas quais eles admitiam o vazio o
permitiam resolver a dificuldade.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 33
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Dentre estas razões nós conhecemos duas. A primeira é comum com os Epicuristas.
Se supusermos alguém colocado na extremidade do mundo, e se ele tenta estender o braço
além desta extremidade, ou seu movimento não será contido e então temos de conceber o
vazio, ou então, ele será contido, então há algo, um corpo, que o contém: mas, se supomos
que ele estava na extremidade do corpo, a mesma questão se coloca de novo. A segunda é
própria dos Estóicos: o mundo não conserva o mesmo volume em todos os momentos de
sua história: ele se contrai na διασόζμηζιρ, e ele se dilata na conflagração universal. Esta
dilatação exige em torno dele um vazio no qual possa se estender. Os dois argumentos
partem de um princípio comum. Como a ação de um corpo poderia encontrar uma
resistência da parte do nada [néant], já que, como todos sabemos o nada não contém
nenhuma propriedade? Por outro lado, vemos facilmente como este nada por não se opor ao
movimento deveria ser representado sob a forma de um espaço vazio. Para ser um ato no
sentido aristotélico o mundo não teria necessidade do vazio, pois o ato estria na
imobilidade: todo ser tem seu lugar próprio, e o mais perfeito dos movimentos, o
movimento circular do céu não exige nenhuma mudança local do conjunto. Desde que o ato
ou a perfeição está em movimento, na expansão do ser, o ser pode agir e deve ter a sua
disposição um teatro sem limites, no qual ele determina por ele mesmo os limites.
Todas as dificuldades que foram opostas aos Estóicos na antiguidade vêm do que se
figura o vazio e o mundo existente da mesma forma, é independente do corpo.
―Os que postulam a existência do vazio nos dizem, e em particular
Alexandre de Afrodisia, admitem que haja na realidade três dimensões
separadas da matéria. Dizer que são capazes de receber corpos, é dizer que,
há um intervalo capaz de receber um intervalo‖.
]O vazio é então considerado como uma espécie de corpo atenuado até perder todas
suas propriedades, mas permanece existindo, separado dos corpos. Esta separação, com
efeito, uma grande obscuridade que a pobreza das fontes não nos permite dissipar
inteiramente. O vazio ocupa dentre todos os incorpóreos que estudamos até aqui uma
posição muito especial. Estes incorpóreos se reduzem como vimos, por exprimíveis e o
lugar, em atributos dos corpos, doa efeitos, dos acontecimentos, que são seus aspectos
incorpóreos e o exterior e o interior da atividade interna dos seres. No fundo o vazio nada
mais é igualmente que um atributo dos corpos, não um atributo real, mas um atributo
possível, não o que é ocupado, mas o que é capaz de ser ocupado. Mas, este atributo, este
σαηηγόπημα, ele terá de ter uma existência fora do real. Há já aí uma contradição bastante
incompreensível, mas ela tem ainda outras conseqüências fatais para o sistema. Se
dissermos que esta realidade é necessária para que a expansão do fogo divino seja possível,
nós introduzimos no mundo a potência e a indeterminação. O vazio é a condição pela qual
o mundo fará passar ao ato suas potências, ele é como a matéria deste ato. É o que significa
a objeção de Simplício quando mostra que o vazio infinito supõe um corpo capaz de
preenchê-lo.
Se o vazio existe, o mundo nele mesmo se torna um termo relativo a este vazio. É
talvez o sentido da antítese da famosa antinomia Carneade [(215 a 129 A. C. Filósofo da
Nova Academia, especialista em Crísipo)] sobre a natureza de Deus que é aqui o Deus-
mundo. Se Deus for ilimitado, dizia ele, ele não é um ser vivo e se ele é limitado ele é então
uma parte do todo. Se Deus for o mundo, este todo não pode ser que o conjunto formado
pelo mundo e o vazio infinito. Desde que o vazio exista fora do mundo limitado, somos
forçados de representar tal relação, e como conseqüência o mundo não é mais absoluto,
mas relativo. Não poderá estar em questão de suprimir o segundo termo, o vazio, já que a
ação do mundo, tal como a representamos na conflagração seria assim enquadrada. É a
maneira mesma que Kant colocou a limitação do mundo no espaço:
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 34
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
―Se o mundo, diz ele, é finito, ele se encontra em um espaço vazio que
não é limitado. Não haveria aí em conseqüência uma relação das coisas no
espaço, mas uma relação das coisas no espaço‖.
Nós temos pistas de que os Estóicos perceberam tais dificuldades e tentam resolvê-
las. Com ele não podiam suprimir nem um nem outro dos termos (o mundo e o vazio) eles
se esforçaram para suprimir a relação mesma. É neste problema que intervém em toda sua
extensão, o axioma que encontramos no começo do estudo sobre os incorpóreos: ―Não há
nenhum sintoma comum entre os corpos e os incorpóreos‖. Eles suprimem mesmo as
palavras que indicariam uma relação de contenção, o mundo não está no vazio, o vazio não
pode conter nenhum corpo, mas ele está no exterior do mundo. Eles recusam fazer do
mundo uma parte de um todo maior que compreenderia também o vazio. O mundo é
completo em si mesmo e nada se acrescenta a ele. É assim que eles chegaram a fazer a
distinção bastante enigmática entre o universo (ηό όλον) e o todo (ηό πάν), que Plutarco
[(46/49 a 125 D. C.)] somente nos conta para destacar seu absurdo. O universo é o mundo e
o todo é o vazio do fora do mundo. Plutarco diz então, que eles afirmam que o todo não é
nem um corpo nem um incorpóreo, nem imóvel nem em movimento, nem animado nem
inanimado, nem parte nem conjunto (όλον). Qual é a razão desta cópula de negações,
quando esperávamos copular de afirmações, como: o todo é parte do corpo, parte
incorpórea (enquanto vazio) etc. Os Estóicos pretendiam assim demonstrar que o todo era
alguma coisa, que ele era um não-ser. Isto é, que o vazio não pode ser acrescentado ao
mundo para fazer um novo ser.
Mas, esta recusa de fazer uma relação entre os dois termos supõe então que não
sejam da mesma espécie. Por exemplo, pode se reportar ao corpo, como um atributo a seu
sujeito. O vazio então é reduzido ao estado de noção racional. Alguns Estóicos, estes
notadamente que reduzem o vazio a uma ―noção a mais simples‖, parecem ter entrevisto
esta tese que não deixaria de ter analogia com a tese kantiana da idealidade do espaço. Mas,
desde que este atributo incorpóreo é realizado, é impossível de não lhe reconhecer uma
relação com os corpos. Esta relação não teria sentido, diriam os Estóicos, e é precisamente
o que diz Kant em seguida do texto que citamos: o vazio não contém nenhum objeto de
intuição, ―a relação do mundo com o espaço vazio não seria uma relação com um objeto.
Uma relação deste gênero nada seria‖. O que resulta é que a limitação do mundo no vazio,
que depende desta relação não seria nada também, e que o mundo então não seria então
limitado no espaço. É bem esta a conclusão de Kant. Mas, os Estóicos admitem o princípio
(a impossibilidade da relação) para responder à objeção da relatividade do mundo,
rejeitando a conclusão (a não limitação do mundo), e eles são forçados a se representarem a
gosto ou contra gosto o mundo existente no meio do vazio existente e reintegrar a relação
que haviam suprimido. Tal é a essência da contradição que no estoicismo médio conduzirá
ao abandono [(com Panécio (180 a 110 A. C.))] ou pelo menos a restrição [(com
Possidônio (135 a 51 A. C., mestre de Cícero))] das teorias do vazio e da conflagração,
cujo destino, como nós vimos, são ligadas.
Para Platão e Aristóteles, o mundo conteria ao mesmo tempo o limitado e o
ilimitado, do matemático estável e do indeterminado. É por suas relações que as coisas se
explicam. Os Estóicos, mudando a relação e a significação mesma destes elementos,
buscaram isolá-los um do outro, não como em Platão e Aristóteles os considerando como
elementos distintos de um todo, mas lhes dando uma natureza que impeça a ação de um
sobre o outro. O finito é corpóreo, limitado, determinado, em ato, em seu movimento e
contendo nele os princípios da ação. O infinito é incorpóreo, o vazio, que nada acrescenta
ao ser e nada dele recebe, é ilimitado, permanecendo numa indiferença perfeita. Nós vimos,
no entanto, eles não poderiam conseguir suprimir esta relação. Esta teoria teve um destino
singular e terminou por demonstrar sua inconsistência. Queremos falar do que ele se tornou
em religião popular de alguns gnósticos. Os Estóicos conferem toda realidade ao mundo,
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 35
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
nenhuma ao vazio: mas, considerando este abismo infinito onde o mundo forma como um
ponto vivo, a imaginação lhe dá mais realidade que ao mundo ele mesmo: o mundo se torna
o Mythos profundo e indiferente em um ponto do qual se produz milagrosamente as
sementes do ser. Nestas religiões populares, este vazio estóico que não é nada, dará
nascimento ao Deus impassível e indiferente, infinito, que, ele também, nada é, ao qual não
podemos dar mais atributos do que o que damos ao todo (ηό πάν), mas que não é nada pois
é mais que o todo mais que a realidade. Assim ele é isolado do finito e do infinito, e é com
os Estóicos que começa esta dualidade radical não mais entre os dois princípios do mundo,
que só são separados pela análise, mas entre dois seres diferentes que dará nascimento a
uma nova filosofia.

III – Os Estóicos, tanto quanto os Epicuristas introduziram assim uma nova distinção na
teoria do espaço. Ao lado do lugar, que define o que é inteiramente ocupado por um corpo,
e do vazio, ou da ausência de corpos, eles introduzem a colocação (place) (σώπα) que
segundo Estobeu foi assim definida por Crísipo:
―Se, o que é capaz de ser ocupado por um ser, alguma parte é
ocupada e outra não o é, o conjunto não será nem vazio nem lugar, mas
outra coisa que não tem nome‖.
Ele reservava para esta coisa, como podemos sacar na seqüência do texto e mesmo em
outro texto de Sexto, o nome de σώπα que havia sido empregada por Platão e Aristóteles
como sinônimo de ηόπορ.
Quais seriam a significação e utilidade deste terceiro termo? Estobeu na seguida do
texto nos dá a seguinte alternativa:
―Será que o que capaz de ser ocupado por um ser e o que é maior que
este ser (como um vaso maior que um corpo), seria um corpo maior o que
contém (σωπούν)?‖.
Estobeu não resolve a questão. É fácil de compreender o primeiro termo da alternativa: as
dimensões interiores de um vaso sendo dadas elas são as ―as colocações‖ do líquido que aí
será contido, quando este líquido não o preencher inteiramente. A segunda é explicada por
um texto de Sexto que mostra em mesmo tempo a opinião de Crísipo. A colocação (place)
é diz ele, ―o lugar do corpo maior‖. Já que o lugar de um corpo é interior a ele mesmo,
sendo o intervalo que há entre suas extremidades, o corpo menor para o qual procuramos
colocação será contido no interior do maior. Mas, ele não será aí contido no sentido ao qual
a água é contida num vaso, o que seria indicado por πεπιέσειν e o que remeteria à primeira
alternativa, mas no sentido que ele penetra intimamente, ocupando com ele uma parte de
seu lugar: é o que significa a expressão σωπείν.
Assim, quando um corpo penetra por mistura através de outro e que ocupa somente
uma parte do lugar do segundo corpo, este segundo corpo, é chamado segundo Estobeu, de
colocação do primeiro. Vemos assim que esta noção de colocação (place) reintroduz, de
uma forma nova, é verdade, a noção fundamental da teoria aristotélica do lugar, esta do
lugar relativo. Definindo o lugar pelos limites do continente, Aristóteles o lugar de um
corpo por relação a outro corpo. Retomando a teoria do lugar intervalo, os Estóicos tiveram
de suportar todas as dificuldades desta teoria, ou senão teriam de admitir, como explicamos
a penetração recíproca e integral de todos os corpos uns nos outros e haveria então um
lugar absoluto determinado por extensão do corpo nele mesmo. Mas, o corpo, não se
penetra naturalmente em todas as suas partes. A alma do mundo, por exemplo, que penetra
todas as partes do universo só é penetrado por cada uma por suas partes. Não falamos então
do lugar destas partes, mas da colocação que elas ocupam na alma do mundo. As
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 36
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
colocações são então os lugares de cada corpo considerados em suas relações como o lugar
maior do corpo onde ele se aloja.

CAPÍTULO QUARTO

TEORIA DO TEMPO

Os Estóicos especularam sobre o tempo, como podemos ver através das


divergências que havia entre eles sobre a questão, mas nossas fontes aqui são muito pobres.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 37
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
Podemos, no entanto distinguir a tese de Zenão, a de Crísipo e esta que os Placita de Aécio
atribuem à maioria dos Estóicos [(Galla Placidia – 390 a 450 D.C. – Imperatriz Romana
que governou o Império juntamente com Aécio, general romano durante a minoridade de
seu filho Valentino III que terminará por assassinar seu protetor. Não consegui na própria
obra de Emile Bréhier situar melhor o que ele nos diz sobre os Placita de Aécio)].
A tese de Zenão é singularmente próxima da de Aristóteles. Zenão define o tempo
como ―intervalo de movimento‖, ao passo que Aristóteles o define como ―número de
movimento‖, o que remete à mesma coisa na medida em que o intervalo considerado como
―a medida da velocidade e da lentidão‖. Podemos mesmo dizer que ele abandonava assim
a teoria de Aristóteles, pois, segundo ele, Zenão, se medirmos o movimento pelo tampo, o
tempo seria igualmente medido pelo movimento. Quanto à palavra nova διάζηημα, ela
decorre simplesmente do desejo de colocar em harmonia a definição do lugar e do tempo.
Crísipo admitia esta definição, mas ele acrescenta aí outra: o tempo, dizia ele, é ―o
intervalo de movimento – ou ainda o intervalo que acompanha o movimento do mundo‖.
Porque acrescentar esta precisão? No último parágrafo dedicado ao tempo, Aristóteles se
perguntava se o tempo era o número de certo movimento determinado (ποιάρ σινήζεωρ) ou
de qualquer movimento. Crísipo é como nós vemos partidário da primeira hipótese. Por
fazer esta hipótese, Aristóteles explicava que, pela mesma maneira que cada ser é medido
por uma unidade da mesma espécie, o tempo também é medido por um tempo definido.
Este tempo definido (o que chamaríamos hoje de unidade do tempo) é medido ele mesmo
por um movimento definido. O único movimento definido que temos a nossa disposição é o
movimento circular do céu, pois já que único, ele é uniforme (όμαλήρ). É por isso, diz ele,
o tempo parece ser o movimento da esfera. Esta teoria que, numa linguagem um pouco
diferente, parece ser atribuída por Simplício a Arquitas [(430 a 348 A.C. Matemático e
astrônomo)], o pitagórico: o tempo é segundo ele, ―o intervalo da natureza de tudo‖.
Somente que não é reduzido ao movimento nele mesmo, mas ao intervalo. É bem difícil de
acreditar que a definição de Crísipo não tenha a mesma significação, tanto que Simplício
reporta esta doutrina a esta dos Estóicos que admitiam que o tempo fosse a ―esfera‖ nela
mesma.
Somos muito melhor informados sobre numerosas críticas que destacam esta
doutrina do que sobre as razões que fizeram que Crísipo a adotasse. Como ele a conciliará
primeiramente com a definição de Zenão? A seguida da citação de uma passagem de
Estobeu que citamos nos esclarecerá sobre este ponto. O tempo se toma em dois sentidos,
como se diz da terra: podemos pensar a uma parte do ser ou no todo. No segundo, o único
examinado por Estobeu, o tempo é indefinido. O termo oposto é evidentemente o tempo
limitado. Ora, este tempo limitado não é definido senão pelo movimento circular que o
mede. Aí está o segundo sentido da palavra tempo que se opõe a este de Zenão. Este tempo
está no meio do tempo infinito como o lugar do mundo está no vazio. Ora, a definição de
Zenão se ligando ao movimento em geral definiria o tempo no primeiro sentido. Por sua
nova definição, Crísipo esperaria ligando o tempo ao mundo, como uma conseqüência a
seu princípio (cf. παπασολοςθούν) atenuar a realidade e a eficácia do tempo? Tal era
provavelmente sua intenção: o tempo determinado, o único que permite uma medida é
posto como efeito da expansão do único ser real, o mundo.

As críticas que foram feitas são numerosas, e se insistimos, e porque elas parecem
que vinham, pelo menos em parte, do interior mesmo da escola. Esta definição do tempo
nos diz Simplício, com efeito, era própria de Crísipo, e ele a sustentava ―contra as
negações dos outros‖. Parece que queriam forçar Crísipo, seguindo as conseqüências desta
definição, seja que negasse a infinidade do tempo e em conseqüência a série de períodos
cósmicos até o infinito, ou seja, formular a finitude do mundo pelo tempo. Para o primeiro
ponto nós encontramos em Filon de Alexandria [(Alexandria entre 40 A.C. a 40 D.C. –
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 38
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
defensor dos direitos dos Judeus, contra a escravidão e pela liberdade da sabedoria. Foi
embaixador em Roma sob Calígula e é considerado como precursor do neo-platonismo)], a
definição do tempo, encravada de uma maneira bastante singular, numa passagem de idéias
e com um toque platônico. Em relação ao tempo ser o ―intervalo do movimento do mundo‖
ele conclui imediatamente, pois o movimento não pode estar antes do mundo, que o tempo
seja ou contemporâneo ou posterior a ele. Assim ele força Crísipo a ficar de acordo com o
autor do Timeu (Platão). Para o segundo ponto, é no tratado da ―Incorruptilité du Monde‖
[(Mundo incorruptível)] que encontramos seu ataque na limitação do mundo no tempo,
fundado sobre esta definição do tempo. Devemos admitir, diz a prova em princípio, que o
tempo é por natureza sem começo nem fim (o que vimos era numa certo sentido admitido
por Crísipo). Por outro lado define-se o tempo ―movimento de intervalo do mundo‖, o
mundo deverá então ser sem começo nem fim, pois o tempo não pode existir sem ele.
Então o mundo não pode se aniquilar no έσπύπωζιρ. Filon fala de chicanas das palavras
(εύπεζιλογών) pela qual os Estóicos poderiam buscar uma resposta. O mundo poderia eles
dizer, continua existindo após a conflagração, ao estado de pensamento (έπινοομένος) do
fogo divino. Estas chicanas provam pelo menos de uma forma decisiva que teríamos aí
numerosas dificuldades.
Foram talvez estas dificuldades que levaram os Estóicos a retomar uma antiga
definição do tempo, combatida outrora por Aristóteles: o tempo é ―o movimento ele
mesmo‖. Não devemos, no entanto, acolher sem reserva este dado de Aécio. Como poderia
ele concebê-la à maioria dos Estóicos quando encontramos num fragmento de epítome
d´Arios Dydimo, conservado por Estobeu e que relata as opiniões detalhadas de Zenão, de
Apolodoro, de Posidônio e de Crísipo sobre o tempo onde todos concordam para considerar
o tempo como movimento; mas, seria como intervalo de movimento? Poderia aqui se
produzir uma confusão com a teoria de Platão: é claro que Aécio atribui a Platão esta teoria
de que o tempo é ―o movimento do céu‖. Mas, algumas linhas antes, ele atribui também a
ele a definição estóica que o tempo é ―o intervalo de movimento do mundo‖, como se elas
fossem idênticas. Por outro lado nós vimos Filon, numa passagem, para a substância das
idéias ele remonta ao Timeu, e dar a definição estóica do tempo ―intervalo de movimento‖.
Os contraditores dos Estóicos aproximavam assim numa finalidade crítica fácil de sacar, a
definição estóica e a de Platão. Daí teria resultado a nota inclusive totalmente isolada de
Aécio.
Crísipo parece ter se servido para demonstrar a irrealidade do tempo, de seu caráter
contínuo e sua divisibilidade ao infinito. Nós conhecemos bastante bem sua teoria sobre
este ponto graças aos textos de Arios Dydimo e de Plutarco, nos quais suas próprias
palavras são citadas por duas vezes. No texto de Arios, ele quer demonstrar que não há
nenhum tempo presente (ούδείρ ένίζηαηαι σπόνορ). O tempo considerado como um
contínuo é divisível ao infinito; ―de forma que para a divisão (σαη άπαπηιζμόν) não há
nenhum tempo presente e só falamos de tempo numa certa extensão (σαηά πλάηορ)‖. Desde
o raciocínio sobre o contínuo espacial, isto quer dizer não somente que o instante não é um
tempo, que não existe. É enfim a opinião de Plutarco atribuída aos Estóicos. Não há mais
limite entre o passado e o futuro e que só há limite entre um corpo e outro e mesmo o
contato possível por superfícies. Crísipo tem para esta análise do contínuo um método que
lhe é próprio e bastante diferente do de Aristóteles. Este não admite também que o
momento seja tempo nos limites determinados, o momento é para ele este limite ―o começo
do futuro e o fim do passado‖. Crísipo ao contrário, se colocando no contínuo ele mesmo,
sem tomar uma porção limitada, não pode, por análise, aí encontrar o momento. Se ele se
coloca deste ponto de vista, é que ele considera o tempo infinito, como podemos sacar da
escrita de Arios, e não, o que primeiramente escreveu Aristóteles, a porção do tempo
limitada pelo começo e pelo fim de um movimento. Não há então instante e não podemos
falar de tempo presente.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 39
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
O texto de Arios continua assim: ―Ele (Crísipo) diz que o presente (ηόν ένεζηώηα)
só ele existe; o passado e o futuro subsistem (ύθεζηάναι), mas não existem de forma
alguma‖. O presente, o que existe, único, não pode ser evidentemente o momento
indivisível, da qual negou a realidade. Plutarco conservou a seguinte citação: ―No tempo
presente, uma parte é futura e outra passada‖. Este texto nos traz uma dificuldade: com
efeito, ele admite o tempo presente, quando segundo Arios, Crísipo diz que não há
absolutamente tempo presente. Mas, ele não admite, nós veremos senão para reduzi-lo ao
passado e ao futuro. É então que o ―tempo presente‖ distinto do passado e do futuro é
considerado uma ilusão. É o que diz formalmente Plutarco em algumas linhas acima: ―O
que acreditamos tomar pelo pensamento como presente, é em parte futuro e em parte
passado‖.
Por outro lado se o presente é reduzido ao passado e ao futuro, porque Arios atribui
a eles existência? Uma passagem de Diógenes Laércio nos explica: ―No tempo, diz ele, o
passado e o futuro são sem limites, mas o presente é limitado‖. O presente não seria mais
que uma porção limitada do passado e do futuro. Mas, quais são estes limites e quais são
suas razões de ser? Crísipo explica com a distinção das formas verbais passadas e
presentes. O presente é o tempo no qual um ser consuma um ato, exprimido por um
presente como: ―eu passeio‖. O presente não é então momentâneo, pois ele dura tanto
quanto o ato, mas ele é limitado como ato nele mesmo. O passado é o tempo no qual o ser
termina de consumar um ato. Ele é exprimido pelo perfeito como: ―eu estou sentado‖
(σάθημαι). Então o presente existe como continente dos acontecimentos que se
consumaram. Observemos enfim que é pela palavra ύθεζάναι que ele indica à maneira de
ser do futuro. Tal palavra só é compreensível se os acontecimentos futuros são
determinados de uma forma tão rigorosa como no passado. É o que se destaca como
sabemos da teoria do destino, e do princípio sobre o qual ele repousa: ―Toda enunciação é
verdadeira ou falsa‖.
Toda esta argumentação tende então a negar a realidade do tempo: ele não é jamais
atual e por conseqüência não existe. Segue-se que a série dos acontecimentos que se
desenrolam nele não é de forma alguma afetada por ele. Eles obedecem às leis do destino
pelas quais não há nem futuro nem passado, já que são sempre verdadeiros. Para
Aristóteles e Platão, a existência no tempo era de uma ordem inferior à existência
intemporal. As Idéias e Deus têm uma existência intemporal, assim como as essências
matemáticas. Não há nestes seres nenhuma modificação. O tempo então é uma verdadeira
causa, ele é particularmente para Aristóteles a causa da corrupção. Os Estóicos quiseram
conciliar a existência no tempo de todos os seres e Deus ele mesmo com a necessidade da
perfeição destes seres. Para isto eles tiraram do tempo toda espécie de existência real e em
seguida toda ação sobre os seres. ―Eles o colocaram, diz um platônico, no pensamento
vazio, e ele é neles mesmo sem consistência e perto do não-ser‖. É o que eles entendem ao
chamá-los de ―um incorpóreo‖. O tempo aparece para eles pela primeira vez como uma
forma vazia na qual os acontecimentos se seguem, mas segundo as leis nas quais ele não
tem nenhuma parte. Ainda mais, como se destaca no texto de Crísipo, os Estóicos tiveram
de fazer uma profunda observação, que, partindo da gramática, deveria ter um alcance
gramatical: é que o tempo não se aplicava diretamente a não ser nos verbos, isto é, nos
predicados que significam para eles os acontecimentos incorpóreos. O tempo não tem
então nenhum contato com o ser verdadeiro das coisas.

CONCLUSÃO
O exprimível, o vazio, o tempo e o lugar, tal são então as quatro espécies de
incorpóreos admitidos pelos Estóicos. Eles constituem ao lado dos seres reais, os corpos,
alguma coisa de inapreensível, um ―nada‖ [néant], dizem os Estóicos. Mas não é o nada
absoluto, pois estas coisas são objetos do pensamento. Como ser verdadeiro é o que age ou
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 40
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
sofre a ação de outro ser e não podemos colocá-los entre os seres, nem nos acontecimentos,
nem no tempo, nem no lugar, pois eles permanecem inativos e impassíveis.
A profunda originalidade desta teoria é por ter aproximado em um mesmo grupo
seres tão diferentes. Pois não é mostrando que o ser lógico por um lado e por outro o tempo
e o espaço sejam seres incorpóreos que os Estóicos inovaram. É a finalização da
especulação de Aristóteles: havia contradição de um lado no que a Idéia seja um ser
particular e em conseqüência um ser real. E por outro lado pelo tempo e o espaço são então
destacados do seres neles mesmos, das substâncias, para se tornarem atributos ou
categorias dos seres. E é por isso que há uma oposição radical entre o ser racional, o ato
puro, que se situa fora do tempo e do lugar e constitui a essência das coisas, e o ser móvel,
sempre imperfeitamente em ato que se encontra no tempo e no espaço: estas duas
categorias se lambuzam [se maculam] de relatividade e de imperfeição os seres aos quais
elas pertencem. Se o pensamento é a essência dos seres, segue-se que a razão, por sua
atividade própria, alcança a essência dos seres e que a representação sensível permanece ao
contrário na superfície e no acidental. É precisamente esta oposição que é recusada pelos
Estóicos: primeiramente os seres neles mesmos, as substâncias, não são objeto do
pensamento dialético, ela tem uma vida interna e por assim dizer concentrada sobre ela
mesma, longe de ser por natureza objetos de contemplação. Mas, esta vida, sem nada
perder de si mesma, se espraia na superfície em acontecimentos múltiplos, acontecimentos
que não suprimem nada da força interna do ser, que são puros efeitos sem por sua vez
serem causas, são acontecimentos com suas relações que formam o tema da dialética. Na
lógica, o pensamento não entra em contato com o ser, pois o ser é rebelde ao pensamento
que por sua vez não alcança a substância. Eis o que se tornou o primeiro termo de oposição,
o incorporal como pensamento. Ele não pode mais se opor ao segundo termo, o ser
movente no lugar e no tempo.
Para o segundo termo, ele é interpretado de maneira bem diferente do que aquela de
Aristóteles e Platão. Todos os seres estão no espaço e no tempo, e por conseqüência
mudam e se movem. Mas, o movimento não é uma imperfeição. Se considerarmos a
mudança em sua relação com a noção matemática de imutável, aparecerá como uma
indeterminação e em conseqüência como uma imperfeição. Se considerarmos ao contrário
em sua relação com a vida, ela se torna o ato mesmo da vida que só será pleno se
desenvolvendo. Para passar da essência matemática eterna ao mundo das mudanças, Platão
acrescentava aí como princípio do espaço (σώπα) e fazia criar por seu demiurgo o tempo ―a
imagem móvel da eternidade‖. O espaço e o tempo então eram imperfeições como
indeterminados acrescentados ao ser: é o que a determinação dos seres era inclusive seja
um modelo ideal para Platão, seja por seu fim para Aristóteles. Mas, a determinação do ser
vivente lhe é intrínseca, é por sua força interna que ele produz todos os atos. Também esta
circunstância que há no tempo e no espaço não acrescenta nem retira nada dele. Diríamos
que é por ser no espaço que ele tem certa grandeza? Não, porque esta grandeza é
determinada não pelo espaço, mas por ele mesmo. Diríamos que é por ser no tempo que ele
se move? Não, sua duração é igualmente produzida por razões internas e uma determinação
e não uma indeterminação. O materialismo moderno é em geral sob a impulsão da física
matemática, ele mesmo matemático, reduz os seres a grandezas calculáveis, o espaço e o
tempo se tornam os caracteres essenciais dos seres, pois servem para medi-los. A espécie
de materialismo biológico dos Estóicos está muito longe de tal idéia: o corpo encontra sua
determinação, não suas dimensões, na força ou qualidade própria que os define.
Todos os incorpóreos se dirigem assim a uma noção única esta do atributo
(σαηηγόπημα) dos corpos que ele seja o objeto do pensamento dialético, o lugar e o tempo.
Devemos tomar o atributo não no sentido de uma propriedade dos corpos como a cor, o
som, que são coisas ativas e são elas mesmas corpos, mas nos efeitos da atividade corpórea.
Os incorpóreos não são um mundo novo acrescentado ao mundo dos corpos, mas é um
limite ideal e irreal de suas ações.
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Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –

Esta dissociação do corpo e do incorpóreo teve um grande papel no estoicismo


primitivo e em seu desenvolvimento. Observemos primeiramente que a disposição de
espírito ao qual ele responde é comum aos Estóicos e a seus contraditores, os Acadêmicos e
os Céticos. Entre eles a separação do pensamento e do real desemboca na negação da
ciência. Para os Estóicos, elas desembocam a uma dialética de uma extrema pobreza e
incapaz de reproduzir as ligações reais das coisas. Somente, os Estóicos permanecem
dogmáticos: é que eles admitiam ao lado e fora da dialética, um modo de conhecimento e
de saber de uma natureza outra, a representação compreensiva. Tal representação é não
uma coisa incorpórea, como o exprimível, mas uma ação real de dois corpos um sobre o
outro, proveniente de suas tensões internas. Destes corpos um é o objeto exterior e o outro
a parte hegemônica da alma. Esta maneira de conhecimento, a aproximação íntima da alma
e de seu objeto, não tem nenhuma relação com o conhecimento dialético: esta só toca os
exprimíveis, os acontecimentos, e a outra, a dialética, alcança os objetos neles mesmos com
sua qualidade de corpo por detrás circuito de acontecimentos que aparecem no exterior. É
um conhecimento do real que é intuitivo e certo, mas que é ao mesmo tempo um
conhecimento que só encontra sua expressão na linguagem. Para que o conhecimento atinja
o real, os Estóicos são então obrigados a separar radicalmente pensamento dialético e
representação da realidade, e colocar esta última no seu único mundo real, o mundo dos
corpos. Ele não é nele mesmo senão uma ação da força vital na sua relação na ação dos
objetos exteriores.
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[DIGRESSÃO VIII - Nós traduzimos – DIGRESSÃO III – a representação compreensiva
“phantasia katalèptiké” de Zenão e Crísipo por com-preensiva, fazendo jogar uma
polifonia que induz uma polissemia, no espírito. O com aí tem o sentido de estar junto e
estar junto com preensão, agarrando o objeto, estar com ele, nele, penetrando e se
deixando penetrar por sua intimidade em sua intimidade.
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O conhecimento real, oposto à dialética, é mais próximo de uma atividade do que de
uma contemplação. Mais ainda, ele é uma tomada, uma possessão do objeto e uma espécie
de penetração íntima. A cisão completa deste modo de conhecimento e o pensamento
racional e lógico, cisão que deriva da teoria dos incorpóreos, deveria ter tido em seguida do
estoicismo uma imensa influência que temos de nos contentar de indicar para permanecer
no limite de nosso trabalho. Os sucessores dos primeiros Estóicos deixaram completamente
de lado a dialética estéril, e o raciocínio hipotético que girava indefinidamente em torno de
si mesmo, e se dedicaram a desenvolver as conseqüências do conhecimento intuitivo, único
ativo e real. Esta teoria continha em gérmen: primeiramente, se considerarmos o
conhecimento enquanto atividade, o estoicismo exclusivamente moral dos tempos
posteriores que não admitem a contemplação a não ser na medida em que possa servir à
atividade ou mesmo dela depender. Em seguida, se considerarmos o conhecimento
enquanto tomada de possessão do real, o estoicismo místico que, se combinando com o
platonismo, dará nascimento aos sistemas alexandrinos: ainda o conhecimento intuitivo e
inefável do ser, os místicos se aproximam mais da representação compreensiva dos
Estóicos que da contemplação das idéias. É o ―desprezo [abandono] dos incorpóreos‖
assinalado por Proclus [(412 a 485 D. C.)] como uma característica dos Estóicos, que
produziu em sua escola o abandono da lógica discursiva em proveito dos atrativos da
atividade moral e religiosa.

PEQUENA BIBLIOGRAFIA NÃO PONTUAL USADA NA TRANSDUÇÃO

(1) LES STÖICIENS – Pierre Máxime Schul – Bibliotèque de La Plêiade – Gallimard. NRF.
(2) DELEUZE, Gilles – A lógica do sentido – Perspectiva.
Émile Bréhier - La théorie des incorporels dans l´ancien Stoïcisme. 42
Alduisio M. de Souza – Transdução comentada: A teoria dos incorpóreos no antigo estoicismo –
(3) BRÉHIER, Émile – Histoire de la Philosophie – Volume I – P.U.F. – 1989.
(4) ARNIM, J. – Stoicorum Veterum fragmenta – 4 vol. Leipzig, 1903, 1905 e 1914.
(5) BRÉHIER, Émile – Chrysippe et l´ancien stoïcisme – 1910, 1951 – P.U.F.
(6) DAMOURETTE, Jacques & PICHON, Edouard – Essai de grammaire de la langue française –
7 volumes – D´ARTREY – 1911-1940.
(7) ROBERT, Grand – Dictionnaire Encyclopedique – 7 v. 2008.
(8) LIONNAIS, François – DICTIONNAIRE DES MATÉMATIQUES – P.U.F. – 1979.
(9) BALTRUSAITIS, Jurgis – in ANAMORPHOSES – Flammarion 1984.
(10) DELEUZE, Gilles – A Dobra – Leibniz e o Barroco – PAPIRUS – 4ª. Edição 2007.
(11) ILDEFONSE, Frédérique – Os Estóicos I – Estação Liberdade – 2006.

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