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A epopéia da Glória: um caso de autogestão1

Domingos Manfredi Navarro


Paulo Gomes Rodrigues
Paulo Roberto Paiva de Carvalho

Este trabalho tem como objetivo relatar o processo ocorrido numa empresa de ônibus do Rio de Janeiro, Auto-
Viação Glória, na qual houve uma revolta dos empregados contra a má administração da empresa e também
constatar qual foi o regime organizacional de trabalho adotado pelos empregados.

Vale mencionar que o título “a Epopéia da Glória”, é como o episódio é conhecido entre os rodoviários, devido
à importância que teve para a classe.

1. Histórico da empresa

A Auto-Viação Glória funcionava com duas linhas: 238: Praça Quinze - Engenho de Dentro, via Rua 24 de
maio e 239: Praça Quinze – Engenho de Dentro, via Rua Barão do Bom Retiro. Seu dono era um italiano,
considerado um pequeno empresário.

Em 1969 a empresa começou a apresentar os primeiros sintomas de uma futura “falência”. A razão de as pás na
palavra falência é porque na maioria das empresas de ônibus que faliram, o que ocorreu realmente foi uma
falência forjada. Os empresários quando querem forjar uma falência, passam os bens pertencentes à empresa
para o nome de parentes e amigos para que quando a falência for decretada a empresa não tenha condições de
saldar as dívidas. Em 1969 o terreno onde funcionava a garagem da empresa foi vendido para um amigo do
empresário. A partir daí a empresa começou a atravessar crises sucessivas culminando na decretação de falência
no início de 1980.

Um dado que vale mencionar é que a Auto-Viação Glória não conseguia arrumar empréstimos do governo,
como as outras empresas. Isto porque seu dono alguns anos atrás denunciou a corrupção existente nos órgãos
que cuidam dos transportes urbanos e a partir daí passou a ser persona non grata entre os empresários de
ônibus. Com isto, por pressão dos outros empresários que estavam de olo nas linhas da empresa, o governo
negava-lhe qualquer tipo de ajuda para assim incrementar o processo falimentar.

As empresas de ônibus gozavam de um benefício muito peculiar: o único meio de registro da receita das
empresas são as guias que mostram o número de passageiros transportados. Para provarem que as firmas estão
dando prejuízo e assim pedirem um reajuste nas passagens, essas guias são adulteradas de modo que o balanço
da firma dê negativo. Segundo uma pessoa do Sindicato dos Rodoviários que acompanhou toda a “Epopéia da
Glória”, esta empresa também utilizava deste artifício: no ano passado [1982] foram feitos vários depósitos
bancários de altas quantias, em nome do empresário, que não constavam na documentação da empresa.

Outra irregularidade encontrada na empresa era a sonegação das obrigações trabalhistas (INPS, FGTS etc.) que
ultrapassava o montante de Cr$ 8 milhões.

2. O processo

No início de 1980 ocorreu um fato que foi a gota d’água para o desencadeamento de um processo de revolta
entre os empregados, que culminou numa greve. Este fato foi o atraso de salário em três semanas, com o diretor
alegando não ter condições de colocar os salários em dia pos primeiro tinha que defender os interesses da
empresa.

No dia 15 de janeiro, como a situação não se alterava, os empregados resolveram entrar em greve e recorreram
ao sindicato da classe, Sindicato dos Rodoviários, que na pessoa do seu presidente encaminhou o caso à
Delegacia Regional do Trabalho. A primeira reivindicação dos trabalhadores era que a empresa colocasse em
dia as obrigações trabalhistas que estavam totalmente irregulares (a empresa não depositava FGTS, INPS etc.).
1 Texto publicado nos Cadernos do CEAS¸ n.° 84, mar./abr. 1983.
Esta dívida somava 8 milhões de cruzeiros e a empresa alegava não ter condições de liquidá-la. Para enfatizar
mais este argumento foi citado o caso da CTC, que apesar de ser estatal é uma firma deficitária. Este argumento
é muito usado pelos donos de empresas, pois assim conseguem que as passagens sofram aumentos incríveis e
com isto aumentam o faturamento (nos últimos 12 meses as passagens aumentaram 182%).

Na tarde do dia 15 de janeiro todos os 130 empregados foram ao DRT e depois de várias horas de discussões,
por iniciativa dos empregados foi tirada uma comissão provisória para administrar a empresa. A comissão era
formada por um motorista, um borracheiro e um eletricista, além de contar com a assistência do sindicato.

O DRT decretou que a empresa ficaria sob intervenção por 60 dias e reconheceu a comissão, que no dia
seguinte já começou a operar. Vale mencioar que esta comissão foi tirada em assembléia realizada na
Delegacia, com todos os empregados, e que 90% dos 130 empregados eram sindicalizados.

A primeira medida tomada pela comissão foi no sentido de recuperar os ônibus, pois a empresa tinha 38 ônibus,
dos quais só 8 estavam em condições de tráfego. Com as férias conseguidas com a circulação dos 8 ônibus,
compraram peças de reposição para os outros ônibus. Os reparos eram feitos pelos próprios motoristas e
trocadores em regime de mutirão. Por exemplo, se um trocador chegasse na garagem e não encontrasse ônibus
para trabalhar, ele se ocupava em outros afazeres tais como lavar os ônibus, pintar etc.

Para a parte administrativa o sindicato contratou um administrador e um tesoureiro. Só que esses para tomarem
uma resolução tinham que consultar a comissão, que por sua vez levava a discussão aos empregados (todos os
sábados a comissão realizava uma reunião com os empregados para traçarem as diretrizes a serem adotadas).

Os fiscais de linha perderam a sua função, pois os próprios motoristas e trocadores se auto-fiscalizavam. Com
isso alguns deles passaram a trabalhar na garagem no “Mutirão” enquanto os outros ficavam na rua ajudando os
ônibus que enguiçavam. Quanto aos enguiços dos ônibus, eram freqüentes devido ao péssimo estado de
conservação em que se encontravam. Para informar os usuários todo o processo pelo qual a empresa passava,
foram afixados cartazes nos ônibus pedindo a colaboração de todos.

Depois de algumas semanas de atuação da comissão, a empresa começou a equilibrar as finanças colocando em
dia o salário das três semanas atrasadas e ainda pagando os quatro meses atrasados de salário-família de todos
os empregados. Quando se deu o novo encontro com o Delegado Regional do Trabalho, foi proposto que os
empregados largassem a empresa, já que eles tinham conseguido saldas as dívidas, e esperassem a decisão da
justiça para receberem as obrigações trabalhistas. A comissão, porém, recusou a proposta, alegando que a
empresa não teria condições de saldar a dívida, mesmo vendendo todos os seus bens, pois o único patrimônio
valioso da empresa, que era o terreno da garagem, tinha sido vendido em 1969. Com isto os empregados
continuaram a gerir a empresa, com cada vez mais ônibus circulando.

Enquanto isso, existia um mal estar entre os empresários do setor devido ao caso da Auto-Viação Glória, pois
se ela continuasse com o sucesso financeiro que vinha apresentando, iria desmascarar todas as empresas que
alegam prejuízo e pedem para aumentar o preço das passagens. Com isso, o caso começou a assumir grandes
proporções e alcançar as altas esferas governamentais. Tanto que uma dudiência com o Secretário de
Transportes do Estado, que estava sendo pleiteada fazia meses pela comissão, foi conseguida com a maior
rapidez contando até com a presença do então prefeito Israel Klabin. Nesta audiência, que foi realizada no dia
10 de março, foi lançado um desafio ao prefeito de que se no final da intervenção dos 60 dias, não houvesse
nenhuma proposta para o desdobramento do caso, todos os empregados iri8am com os seus familiares de
ônibus para o Palácio Guanabara, como um meio de pressioná-lo.

Nesta época a empresa continuava a apresentar bons resultados e já tinham colocado mais 18 carros em
funcionamento e mais 4 prontos para entrar em operação. Existiam várias propostas de desdobramento, e a
principal era que a concessão das linhas deveria ficar com os empregados. Esta proposta foi negada pelo DRT,
alegando que a empresa não tinha condições materiais de operar devido aos poucos ônibus e também porque “o
Brasil é uma democracia e não um socialismo”. Diante desses argumentos foi levantada uma outra proposta de
criação de uma cooperativa composta dos empregados e do dono da empresa que, com um financiamento do
governo para aquisição de novos ônibus, passaria a gerir a empresa. Esta proposta contava com o apoio do dono
da empresa, que com isso ficaria livre das dívidas.
No dia 13 de março deste ano [1983], 3 dias antes do final da intervenção, as linhas foram suspensas. Foram
colocados policiais no ponto vinal da Praça XV, exigindo que os motoristas retornassem à garagem. Isto ocorre
às 12 horas. Os motoristas, porém, ao invés de seguirem para a garagem, foram para a sede do Sindicato e às 18
horas rumaram em caravana para o Palácio Guanabara, onde foram recebidos pelo Secretário de Transportes do
Estado. Este comunicou que a partir daquele dia a CTC iria operar as libas baseado na lei que diz que “quando
uma empresa deixa de atender às necessidades de uma linha, a CTC tem condição de passar a operar essa linha
até haver uma licitação pública”. Com isto, a comissão foi desativada e a empresa fechada. Os empregados
ainda tentaram esboçar uma reação, mas diante da força eles foram obrigados a recuar. Após alguns dias, todos
os empregados foram remanejados para outras empresas.

Atualmente está sendo feita uma mini-licitação pelo Estado para ver quem vai assumir a empresa. No momento
a reivindicação dos empregados é que a empresa que assumir a Auto-Viação Glória coloque em dia o débito das
obrigações trabalhistas.

3. Conclusão

O caso da Auto-Viação Glória representa uma tentativa de autogestão. E nisso está seu maior significado.

A autogestão caracteriza-se pela autonomia dos empregados nas decisões empresariais desde o processo de
formulação das diretrizes internas e divisão do trabalho até a distribuição de renda. Diferencia-se dos processos
de participação e de co-gestão já que, nos primeiro, a participação dos empregados resume-se ao fornecimento
de insumos para a decisão e recebimento de resultados do trabalho coletivo, e na co-gestão a divisão interna do
trabalho entre empregados e a gerência, bem como a escolha das diretrizes é anterior à definição dos critérios
de participação e de responsabilidade compartilhada.

Pelas informações colhidas, podemos afirmar que houve um processo de autogestão na Auto-Viação Glória,
pelas seguintes observações:

1.° - Não houve participação de gerência da empresa durante a gestão da comissão organizada durante o
levante;
2.° - Não houve uma escolha prévia das diretrizes a serem tomadas, e, o mais importante, não houve por parte
da empresa intenção de dar aos empregados qualquer participação nos lucros;
3.° - O controle da empresa foi tomado a pulso, através da paralisação do trabalho;
5.° - A comissão representante direta dos trabalhadores conduziu a divisão do trabalho e a distribuição da renda,
criando um processo de cooperação trabalhista, mudando assim radicalmente o processo político do trabalho.

Como conclusão podemos dizer que, através de uma nova organização do trabalho, a força operária conseguiu
não só se organizar para o problema comum, como também fazer com que a empresa se transformasse em
pouco tempo num exemplo de progresso no sentido a organização nas empresas de transportes. Por outro lado,
a classe dos rodoviários, através da experiência da Viação Glória, teve os seguintes resultados positivos:

- aguçou o senso crítico dos empregados de outras empresas que, a partir do caso Glória, começaram a
reivindicar melhores condições de trabalho;
- contrariando a afirmação da grande maioria dos empresários de ônibus quanto aos lucros das empresas,
mostrou que estas são rentáveis se bem administradas;
- permitiu que os empregados entrassem em contato com a legislação vigente e a partir daí defendessem seus
interesses com conhecimento de causa, sem serem enganados pelos empresários;
- foi um exemplo de que os operários, com os meios de produção estando em suas mãos, são capazes de dirigir
uma empresa alcançando ótimos resultados.

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