Aleksandr Bulatovich Letunov, russo, vinte e três anos. Tem cabelos
pretos e lisos que se espalham pelo rosto mal-tratado pelos nazistas no campo de concentração de onde havia escapado... já havia quanto tempo? Não sabe dizer. Uma semana? Um mês? A noção de tempo pode ser distorcida quando você está ocupado demais correndo pela sua vida, e Aleksandr já não sabe dizer o quanto havia prosseguido. Mas sobrevive, e não seria tão cedo que os alemães o pegariam. Só sabe que está chegando à Rússia, é isso é bom. Sim, bom. Lá pode conseguir abrigo, lá pode encontrar seus irmãos. Talvez, quando a poeira assentar-se, poderia continuar a fazer mais tarde a única coisa que sabe fazer: Matar. Com seu rifle, seu amado rifle, recuperado no campo. E servindo o seu país. Ou não. Só matar. Não faz diferença. Carrega consigo, também, o fuzil que roubara do senhor Krause no campo de concentração. E o poncho, seu melhor amigo, que recuperou antes da escapada. Está com algumas marcas de queimadura e corte no rosto, somado aos hematomas deixados pelo senhor Krause durante sua estadia no campo. Mas agora está tudo bem, está chegando a seu objetivo e arranjou uma casa naquele vilarejo abandonado. Está dentro da casa, procurando por qualquer coisa que possa ajudá-lo. Cobertas, combustível. Ótimo, pensa ao achar dois tanques de combustível. Não pode ajudá-lo em muita coisa, a não ser que ache algum tipo de veículo ou queira queimar todo aquele lugar abaixo. E é lógico que não faria isso. O jovem caçador ainda está satisfeito pela caça que capturara na noite anterior. Aquela carne poderá mantê-lo por algum tempo, pelo menos até estar organizado o suficiente para caçar novamente. Sairá da casa e caçará outro animal desavisado. Manteria uma rotina, talvez por uma semana, até estar bem alimentado novamente, com seus afazeres organizados. Vamos formar um plano, para variar, não? Senhor Krause disse que ele não sobreviveria mais do que uma semana se não tivesse um plano. Já está foragido a um mês. Com um “plano” (planos, pra que, eu me viro, senhor Krause, não vou morrer), conseguiria escapar. Retornar ao seu país mãe. Sem obstáculos, ok? Sinto muito. O jovem Aleksandr Letunov, em seus devaneios, não conta com aquele que o havia caçado pela última semana. O alemão, que se encontra no momento saindo da torre de vigia e dirigindo-se a casa, com o rifle pendurado nas costas e seu revólver de confiança em mão, está ávido por sangue. Por fogo. FOGO. Mexe distraído no revólver, carregando-o enquanto é castigado pelo vento e neve daquelas terras. Abaixa o capuz por um momento e desarruma os próprios cabelos, loiros e claros, que o incomodam. Prossegue. Os olhos verdes de Hermann Van Sinn, aquele que chamam de Wahnsinn (mas que nome engraçado! hahaha) desde o ano anterior, observam com desdém o casebre aonde se esconde o russo caçado. O alemão toma o cuidado de não fazer barulho enquanto se aproxima, o que não apresenta muita dificuldade. A neve fofa forra todo o terreno. Hermann está satisfeito. Em breve, poderá retornar para a Alemanha e contar a Karolin (Karolin, oh Karolin Krause, minha esposa, agora você pode parar de chorar e em breve poderemos ter aquele filho!) que o trabalho foi executado como maestria e que o algoz de seu cunhado já não está mais naquele mundo. Wahnsinn geralmente não pegaria uma missão como aquelas. Caçar um foragido e executá-lo antes que retornasse a sua terra de origem... não. Não faz seu tipo. Mas sua esposa insistiu. Temos que agradar a patroa de vez em quando, não, Hermann? Aquele russo dentro do casebre havia matado no mês anterior o cunhado de Hermann, cujo nome agora o alemão não se recorda. Lembra-se do sobrenome, o mesmo de solteiro da sua mulher, “Krause”, mas não está muito interessado. Não chegara a conhecer de fato a família de sua mulher, não é uma pessoa que está acostumada com socializar. Só quer dar um fim no moleque, talvez demorar um pouco. Assistir enquanto o russo implora por vida. E então, ir para casa. O revólver está pronto. Rodeia o casebre, devagar e silenciosamente. Não quer denunciar a si mesmo e entrar pela porta da frente. Isso seria idiota, duh. Algo mais sutil, como uma janela, deixaria o trabalho de incapacitar o foragido com mais facilidade. Ahá! Uma janela. Se um dia houvera um vidro por aquela abertura, há muito este se desfez. A abertura é limpa, e graças a isso o cômodo está forrado por um bocado de neve. Isso não incomoda o oficial, que pula em silêncio para dentro da construção. Escuro. Não consegue enxergar, mas já esperava por algo do tipo. Está frio, assim como o exterior, ao contrário do que esperava. Aparentemente o russo ainda não tomou nenhuma providência para deixar o lugar ao menos habitável. Incompetência. É de se esperar. Não gosta de frio. O frio é ruim, o frio te fere e acaba com sua vontade de viver. O fogo é infinitamente mais divertido, não? É bonito. Sim, sim, o fogo é bonito. Quer tocar no fogo? Consegue ouvir um barulho de ofegar, uma respiração pesada não muito distante. Dá um passo devagar, evitando fazer barulho. Espera que as botas acolchoadas façam o serviço, e não é desapontado. Ótimo, não denunciado, continua a andar em direção ao ruído. Seus olhos lentamente se adaptam a falta de luz, permitindo ao alemão identificar melhor as formas ao seu redor. Há um buraco de porta, pelo qual passa. Coloca a mão no bolso e sente o toque gelado de metal, o relevo em forma de um felino se faz presente e reconforta o alemão. Seu isqueiro, seu confiável isqueiro de estimação. Por tanto tempo o havia acompanhado, aquecendo-lhe, iluminando. E queimando. Queimar é seu método favorito de execução. O fogo é lindo, o fogo é atraente. Porém, aproxime-se demais do fogo, o desafie, e ele o queima, o consome. Lembra-se de si próprio, modéstia a parte. Ao queimá-los, pode ouvir os gritos, os berros de quem tem seu interior consumido pelas chamas enquanto percebe que a morte é iminente. É fascinante ouvir os condenados sentindo seus órgãos em brasa, liquefeitos pelo calor fatal. Oh, o fogo. O lindo fogo. Tira o isqueiro do bolso, na mão direita, enquanto aponta o revólver com a mão esquerda. É canhoto. O russo está por ali. Acende o isqueiro, com uma faísca indiscreta. As formas e cores de Aleksandr Letunov surgem a sua frente, sentado no canto do cômodo abraçado ao seu poncho. Nos segundos longos em que ambos se encaram, Hermann consegue identificar todas as marcas na face do russo, que variam de uma expressão de surpresa para uma de medo. Substituída por uma de dor quando Wahnsinn aperta o gatilho. Com um estrondo, consegue perceber uma parte do pé do russo que se desfaz na explosão. Sangue espirra para os arredores, sujando a perna do russo e o chão fedorento do casebre. Havia mirado para que ficasse impossibilitado de se levantar, e parece funcionar bem. Aleksandr berra de dor e surpresa ao ser atingido pelo projétil, substituído por um choramingar enquanto segura o que sobra de seu pé. Hermann está satisfeito. – Bom dia. – sorri, atirando no outro pé de Letunov. AH! Ele berra novamente, e parece incapaz de responder. Não parece estar muito são, balbuciando coisas sem nexo, perdendo os sentidos. O alemão espera pacientemente enquanto os sentidos de Aleksandr se recuperam. O pequeno fugitivo sabe que está fodido, que dali não passa. Estará bom para formar alguma frase? Murmura alguma coisa em russo. Пожалуйста, оставьте меня в покое.1 – Não falo russo. – diz Hermann, ainda sorrindo. Chega próximo a Letunov, com o isqueiro ainda em mãos, iluminando o trecho de cômodo entre ambos. – Fala alemão? – Um... pouco. P-por favor, senhor, se afaste. – recupera um tom mais firme para a voz – Não quero espalhar suas entranhas pelo chão daqui. Hermann ri. Este russo ainda acha que está em condições de ameaçá- lo. O foragido ainda segura o fuzil. Wahnsinn dá um chute entre os braços de Aleksandr, para que solte a arma. Não funciona. – O que o senhor quer? – diz o jovem, incomodado, porém com incrível compostura para quem está com os dois pés em frangalhos. – Estou aqui para acertar as contas por você ter matado o oficial... Krause, é isso? – lembra-se do nome do cunhado com dificuldade. – Ele era o irmão da minha esposa. Qual seu nome, russo?
1 Por favor, me deixe em paz.
– Aleksandr Letunov, senhor. Por que pergunta? – Senhor. Aquele cara é estranho, de fato. A maioria de seus prisioneiros costuma cuspir aos seus pés ou insultar a sua mãe. Acha engraçada essa atitude diferenciada do moleque, mas fica de olho no fuzil descarregado. – Pergunto porque orgulho-me de anotar o nome de cada um que eu executei – responde o nazista, sorrindo. O russo não parece reagir bem a informação, olhando de um lado para o outro, agora com a certeza de que está a beira da morte. – Senhor, foi... aquilo foi um erro meu. – Um erro seu? – ri novamente – É sempre um erro, sempre culpa de outra pessoa, sempre não foi você que começou. Poupe as desculpas, guri. – Mas foi assim. Fizemos um acordo. Hermann chuta mais uma vez o russo, que dessa vez deixa o fuzil cair. Pega o fuzil para si, colocando-o fora do alcance do rapaz, para garantir a segurança enquanto cuida de seus afazeres. Ótimo. – Conte-me tudo, temos tempo. – Hermann afasta-se, colocando a mochila que carrega no chão. Abre-a, sem olhar para Aleksandr, e tira algumas facas, lâminas afiadas e finas. Brilham em rubro a luz do fogo do isqueiro de Wahnsinn. – Eu pedi que ele... me deixasse andar no campo a custo de apanhar. Éramos, hm, companheiros, de certa forma. Era um cara legal. Mas... nós brigamos. Nos desentendemos. Não gosto de apanhar. – Que pena. – Hermann sorri mais uma vez e dá um soco no rosto do russo, possivelmente quebrando seu nariz. Seu rosto agora apresenta mais hematomas do que outrora, e ele berra “Desgraçado!” enquanto estende a mão para segurar o pulso de Hermann. Um brilho prateado passa rapidamente pelos olhos de Aleksandr ao estender o braço, e logo vê um corte profundo abraço pela extensão de seu membro. A sua frente, a faca brilhante de Hermann agora goteja o sangue Letunov. Retrai a mão boa, antiga companheira de aventuras. Agora não pode mais atirar. Sente-se derrotado. Oh o senhor Krause me avisou que isso aconteceria sabia que iam me caçar iam me matar se eu tivesse matado alguém oh merda ele morreu e agora eu morrerei também desculpe ....... Vamos acabar com isso logo, que tal? – Só me mate rápido. – diz Aleksandr, tentando manter a postura. Já não sou mais o mesmo daquele campo. Eu não quero morrer.. – E qual seria a graça, aí? – sorri Hermann, desconsiderando completamente. Não. Sem graça. Rápido, esfaqueia a perna do garoto, e a retrai a vista da expressão de dor novamente. O rubro brilha a luz do isqueiro. Sangue! Quer ouvi-lo implorar. – É mais divertido fazer... devagar. – Só... só quero uma morte rápida. – fala, respirando com dificuldade. A dor é imensa, e sua perna agora apresenta um rombo. Não vai voltar a andar tão cedo. Porra. – Não quer viver? – pergunta Hermann, já não sorrindo. Ele não vai pedir pela vida? Não vai implorar? Onde está a diversão, porra? – Estou longe de casa, de meus companheiros, não posso mais atirar. Matei a única pessoa que talvez fosse meu amigo, me arrependo e não vou encontrar outro tão cedo. – Então volte para casa e crie uma família, porra! – Hermann já não se diverte mais. Se ele não quer viver, tudo vai abaixo. – Está louco? – Hermann parece confuso com a acusação – Eu... é.... não gosto de mulheres. Nem de homens. Uh. – Assexual? – ri uma risada seca que anos mais tarde seria ouvida pela sobrinha de Aleksandr Letunov – Pena. Não é divertido. Então ok, vamos acabar com isso logo. O alemão pega os galões de combustível que o russo havia recolhido. Balança o recipiente vermelho, sorrindo ao ouvir o combustível balançar, feliz, em seu interior. O fogo já surgiria, fique tranquilo. Uma expressão de satisfação surge em seu rosto ao ver os olhos do jovem se arregalando. – Senhor... por favor, n-não faça isso. – está soando nervoso. Merda merda merda merda. – O quê? – volta a sorrir o nazista – Algum problema? Só vou acabar com isso logo. Como você pediu. Wahnsinn abre o galão rubro de gasolina e despeja pelo cômodo o líquido cheiroso, um pouco no corredor e da sala pela qual havia entrado, enquanto o russo formula uma resposta. Ele parece realmente nervoso agora. Ótimo. – E-eu não quero morrer queimado. Me mate com um tiro, por favor. Não quero que meu corpo jamais seja encontrado. Não quero morrer devagar. Não quero que enviem um carvão para meu pai na R-rússia. O oficial termina de espalhar a gasolina pelo ambiente e aproxima-se mais uma vez de Aleksandr, aproximando-se. Coloca a mão na garganta do foragido. Ótimo, vamos acabar com isso. Estrangule. A mão do alemão para na corrente que Letunov carrega no pescoço. Puxa com força, arrebentando a dogtag. Balança a peça de metal com informações na frente do russo, lendo. – “Aleksandr Letunov”, uh? Hm. Pode deixar, vão achar seu corpo com isso aqui nele. – P-por favor, não faça isso. Mate-me com um tiro. Por favor. Sorri Hermann. Pega o segundo galão de combustível e o despeja inteiramente sobre a cabeça de Aleksandr, que parece estar quase em desespero, em contraste à impassibilidade que havia demonstrado até então. Está coberto daquele líquido fedorento. Tremendo. Ao terminar, Hermann o pega pelo poncho e o arrasta até fora da casa. A dor de seus pés desfeitos é intensa e o russo não pode deixar de ganir de dor ao entrarem em contato com o vento exterior mais uma vez. – Dê uma última olhada na paisagem, Letunov – diz Wahnsinn, satisfeito. – Alguma última coisa a dizer? A paisagem está bonita. A neve já não cai. Os morros estão bonitos, cobertos de branco. Está frio. O garoto suspira, sem o que dizer, e volta a encarar o alemão. O desespero agora é visível em seus olhos. – E-eu queria não ter matado o Konrad. Teria sido melhor assim. Mas eu- não consegui evitar. Me desculpe. Hermann acena com a cabeça, sem mudar a expressão. Está na hora. Pega o isqueiro e o acende novamente. A chama parece mais insignificante no exterior, em contraste com a branca neve que para de cair. O vento vai apagá- la? – Minha mulher vai ficar sabendo disso, Aleksandr. Te vejo do outro lado. Coloca o isqueiro em contato com as vestimentas do russo, que se incendeia lentamente, e o joga com um empurrão para dentro da casa forrada de combustível. Aleksandr tenta levantar-se, mas não consegue. Seus pés estão destruídos. Está quente. Tenta tirar o poncho incendiado, mas já é tarde. O fogo espalha-se para o interior de suas roupas, e para a sua pele agora inflamável. Começa a gritar, as chamas consumindo sua pele e partindo para seus cabelos. Grita, um berro abafado, um grito quente, quando observa seu corpo começar a se desfazer em frente a seus olhos, a dor intensa que exala de cada poro de seu corpo. Observa, antes de seus olhos se liquefazerem para as chamas, o fogo de seu corpo espalhar-se para o resto da casa, o chão queimar em calor junto a si. Hermann está sentado na neve, a alguns metros da casa incandescente. Logo a construção inteira começa a incendiar-se, e os gritos do russo cessam. A estrutura se desfaz, e agora só há uma fogueira disforme que se destaca contra a noite gelada. O fogo é bom, o fogo aquece a alma e consome o corpo. O fogo é quente. Eventualmente a casa para de queimar. Wahnsinn aproxima-se dos destroços fumegantes, tomando cuidado para não se queimar no ambiente. Há um cadáver carbonizado, coberto de preto e disforme do que um dia fora Aleksandr Bulatovich Letunov. Hermann pega a dogtag que retirou de cima do garoto, com as inscrições do soldado, e a coloca em cima do corpo. Seu pai te achará agora, Letunov. Ruhe in Frieden, Aleksandr. E esta é a história que havia sido contada em partes para a doutora Gertruda Letunov no dia anterior. Hermann não havia citado nomes, não. Não quer estragar a surpresa para Gertruda, não falou que havia matado um membro de sua família, mas lembra-se com perfeição de que matara de modo “épico” um Letunov. Dividem sobrenomes, talvez sejam parentes. Wahnsinn não sabe se é um sobrenome comum, mas quais as probabilidades. Aleksandr Letunov, tio de Gertruda Letunov por parte de pai, está morto há quarenta e um anos. Morto pelo oficial da Schutzstaffel Hermann Wahnsinn, na época Van Sinn, procurando-o para a vingança de um cunhado que mal conhecera. Já se passara uma semana desde a última consulta, e Gertruda aguarda pacientemente a vinda de Hermann a seu consultório. Em dez minutos, o alemão ex-nazista logo apareceria em seu consultório e ela lhe poderia informar que em breve ele seria realocado para um hospital psiquiátrico de alto calibre e segurança, para casos como o dele. Seria observado, tratado e devidamente medicado. E ele estaria por fim fora de suas mãos. Não mais seu problema. Apesar de um caso interessante, para Gertruda, Hermann é... um pé no saco, por assim dizer. Não colabora, talvez por não ter interesse nenhum no tratamento, talvez por não ter interesse na própria vida. Na própria saúde. Isto é um empecilho para o tratamento. Pensa em Victor. Seu marido, advogado, está em algum lugar da ala de administração cuidando de seus afazeres. Talvez pudesse buscá-lo ao terminar com Wahnsinn e ambos poderiam dar uma volta, lanchar alguma coisa antes de voltar para casa. Victor Rosenberg. Esquizofrênico. Quarenta e três anos, alemão. Lembra quando o conheceu. Ah, fora uma experiência possivelmente traumático tanto para ele quanto para ela, mas tudo está bem quando acaba bem. Confia em Victor, apesar do marido não ser muito bom socialmente. Por que é advogado? Não é como se falasse muito bem. Gosta de direito. Gosta de Gertruda. Para ela, isso é tudo. Eles se amam, eles se casaram, eles tem filhos. Filhos bons, cresceriam bons. Oh. Seus pensamentos são interrompidos por um som alto e estridente. Faz uma careta de desgosto, até identificar o ruído: Um alarme. Este começa a tocar em um volume mais baixo, para ser substituído por uma voz grave, que Gertruda reconhece como o diretor do presídio. O velho “Ozzie”. Todos os detentos, de volta para suas celas. Todos os detentos, de volta para suas celas. Qualquer detento encontrado fora de sua cela será tratado com violência. Está confusa. Uma rebelião? O que está acontecendo? Alguém provavelmente fugiu. Talvez o Wahnsinn. Isso é uma boa desculpa para mandá-lo para a cadeira elétrica. Sim. Ouve uma batida contra sua porta. Toc, toc. Quem é? Um segurança abre a porta com força, e com uma expressão assustada. Está com o lado da face cortado, possivelmente por um detento. Lembra a cicatriz de Rosenberg. – Doutora Letunov? – diz o segurança, com sua voz ligeiramente atrapalhada. Inseguro. Parece novato – Fui designado para escoltá-la até a área de segurança, os funcionários estão sendo evacuados. – Que porra está acontecendo aqui? – responde a psiquiatra, sempre impaciente. Que amor de pessoa – Alguém fugiu? – Sim, sim, doutora. Dez detentos. Aparentemente um de menor calibre conseguiu se disfarçar, passar despercebido e... não temos tempo para isso, me siga! Antes que apareça alguém! Estamos em perigo. Resmungando que todos ali são um bando de incompetentes excetuando ela mesma, a doutora se coloca a seguir com seus passos curtos o segurança alto. Todos aqueles seguranças são altos como o próprio lúcifer, onde já se viu algo do tipo? – Vocês sabem quem fugiu? – Uns cinco de baixa segurança, quatro de média e um da segurança máxima, que todos os outros tiveram de libertar juntos. Não tenho os nomes. – Incompetência... O segurança parece esboçar uma expressão de raiva, mas disfarça. Não lhe admira que ninguém goste da psiquiatra. Logo ouvem um som alto e chiado vindo dos alto-falantes, seguido por batidas. O segurança parece desconfortável, e Gertruda começa a se preocupar. Andam rápido por alguns corredores de metal. Aquele lugar realmente parece um labirinto para quem não está familiarizado com o ambiente, e Letunov não tem certeza de para onde está indo – não costuma seguir até aquela parte do presídio. – Boa noite, senhoras e senhores – diz uma voz áspera ao microfone, sendo ouvida por todos no presídio através do sistema de som e comunicação – aqui quem lhes fala é o novo Diretor da Prisão, e eu particularmente acho que o sistema anda muito rígido. Cadê a diversão, amigos? Vamos fazer a festa! Um som alto de buzina é ouvido quando Hermann termina de falar, e um baixo ruído de metal se abrindo indica que as celas estão abertas. Os detentos estão soltos. O clima está quente, como o FOGO! – Quanto falta para chegarmos, oficial? – Gertruda está nervosa, quase entrando em desespero. Apresenta a mesma expressão impassível que seus anos como doutora lhe ajudaram a criar, entretanto. – Estamos chegando, mantenha a calma. – ele responde, rápido, mas enrolado. Esquerda, direita, em frente, abre a porta, vai pra trás, entra naquela, segue pra esquerda. Letunov pensa em seu marido, que provavelmente ainda está a serviço. Pergunta-se se a ala de administração fica próxima às acomodações dos detentos, e sinceramente espera que ele esteja bem. Ele sabe se cuidar, apesar disso. O tempo no hospício lhe mostrou que Rosenberg era bom, apesar de tudo, em se virar sozinho quando surge a necessidade. Victor não se deixaria vencer por detentos em fuga. Ele é melhor que isso. Ele é... bom. O segurança abre a porta, e Gertruda não está satisfeita. O que surge atrás das portas abertas pelo segurança é um pátio ao ar livre, e o céu indica que é noite. A lua está cheia e bate em todo o chão do pátio gramado. É bonito. No meio do local, entretanto, atado, há um corpo enforcado. A corda pende, frágil, e parece a ponto de arrebentar, em estado de carbonização. O cadáver do antigo diretor do presídio pende da corda, em chamas. Queimando no fogo. Queimando, lindo, mais bonito do que fora em vida, o velho Ozzie. Observando-o, de costas, está o idoso nazista, trajando calças de segurança e despido da cintura para cima. Agora, sem vestimenta, Gertruda percebe a extensão dos maus-tratos recebidos pelo velho em seu tempo encarcerado. Além de ferimentos próximos às costelas e nos ombros, há uma suástica marcada a faca por toda a extensão de suas costas. Ouch. Parece cicatrizada, mas ainda forma uma mancha escura, uma marca de seus crimes que leva nas costas. Simbólico, huh? Hermann coloca o colete de segurança antes de virar-se e ficar novamente de frente com sua médica. Boa noite, doutora Letunov. Seus olhos verdes brilham com uma juventude incomum, e ele parece anormalmente feliz. Seu sorriso mostra uma sinceridade não usual. Parece mais monstruoso do que seu habitual esgar cínico. Dá uns passos para trás, apenas para sentir o cano da arma contra suas costas. O segurança que a ladeara até ali tira o quepe, e a manda ir para frente. Ah, um criminoso vestido de segurança. Explica a incompetência, de fato. Não é possível que alguém seja tão estúpido, mesmo. – Doutora Letunov, bem a tempo! – Hermann abre os braços como se fosse abraçar a recém chegada – Fiz questão de que estivesse aqui para ver o espetáculo. Como minha psiquiatra, merece assistir ao show. Gertruda não sabe como reagir. Mantém uma expressão de confusão e choque, se perguntando como que um detento de segurança máxima conseguiu chegar até o diretor da prisão e queimá-lo no pátio de exercícios. Começa a mexer na caneta que guarda em seu bolso, sem reação. – Agora, você vai ter a honra de ver a cadeia queimar junto comigo e morrer no processo. Não é demais? – Ora, senhor Wahnsinn, não era necessário – sorri de um modo obviamente falso, sarcástico – Como pretende fazer isso? – Instruí meus comparsas a me ajudarem aqui... arranjamos combustível que por algum motivo guardam no depósito, um pouco de contrabando, e só vamos incendiar o prédio todo. – anda em direção às portas do pátio, diametralmente opostas as quais Gertruda tinha entrado. Tira um isqueiro do bolso, um isqueiro escuro e bonito. Não é o dele, mas já serve. – E os detentos que você acabou de soltar...? – Oras, nunca disse que eles podiam sair daqui. – sorri e acende o isqueiro, jogando-o para dentro da área dos detentos, que se incendeia. O fogo começa a lamber o chão, subindo para as paredes. E em breve, os gritos. – Você é um caso sem cura, senhor Wahnsinn – ela diz, permanecendo impassível. Aquilo irrita Hermann. Ela é mais doente do que ele se não consegue sentir nada naquela situação. Cadê os gritos, cadê os pedidos pela sua vida patética? – Sinto um alívio pensando que você já vai morrer. – Oras – o alemão puxa um revólver escuro, sem brilho, que aponta para a psiquiatra – Vamos juntos. – Ainda consegue segurar um revólver? Estou espantada – percebe que pode levar um tiro se continuar assim, mas não consegue evitar de responder ao alemão, como se aquilo estivesse intrincado em seus genes. Infelizmente. Hermann perde a paciência e atira em seu pé esquerdo. A doutora dá um berro e cai no chão, de joelhos. Ela, se sobreviver, vai ficar manca, manca como o alemão agora já o é há anos, com aquele tiro na perna de tempos atrás. Manco, manco da perna esquerda, ele é, ela será, e daqui a vinte anos ou mais seu neto também o será – o mesmo neto que conhecerá em seu futuro uma linda garçonete em um café parisiense, mas isso não é assunto de agora. O nazista não pensa em sua descendência. Ele ouve os berros. Sorri ao ouvir o início de berros vindos de dentro do presídio em chamas. O fogo. O fogo é lindo e consome, atraente e perigoso. – Eu não vou te dar nenhuma satisfação, Wahnsinn. O sorriso surge no rosto do alemão. – Você me lembra um outro Letunov, o que matou meu cunhado. A expressão impassível de Gertruda vacila. – C-como? – Aquele moleque que eu matei perto da Rússia. – coloca a mão no queixo, como se lembrando de algo – O nome era... Aleksandr? Aleksandr Letunov. O rosto de Gertruda está pálido. Aleksandr, irmão de seu pai. Ela pode lembrar-se de quantas vezes Mikhail Letunov lhe contava de como seu irmão havia desaparecido na guerra, capturado pelos alemães. Um exemplo a ser seguido pela família, um mártir pela causa russa. Nasceu depois da morte de seu tio, mas sempre o admira pelos discursos que seu pai já fez. Aleksandr, o bravo. Morto por aquele bastardo. Aquele velho nazista irritante que agora ri de sua situação, aquele bastardo que incendeia seu trabalho e ameaça lhe matar. Não. Deixa sua raiva transparecer, uma ira eufórica que a faz tirar a caneta na qual está mexendo no bolso e fincá-la entre os dedos da mão de Hermann, que deixa o revólver cair. O alemão berra de surpresa e faz uma careta de dor. – Então, conhece o Letunov. Botei fogo no bastardo e ele gritou como esses prisioneiros gritam agora. Em chamas. Insignificante. O fogo começa a espalhar-se para a grama do pátio, mais devagar. Gertruda arrasta-se para a área de concreto para proteger-se das chamas. O revólver jaz para trás de Hermann, e ela não consegue alcançá-lo. – Eu achei que você tivesse salvação, um mínimo de dignidade. Parece que não. – Eu avisei que não ia dar em nada, doutora. Ainda bem que acabou, uh? – Agora vai morrer! – Nunca disse que pretendo sair daqui vivo, Letunov. Vivi o suficiente, e a prisão não me interessa, o hospício não me interessa. Vou queimar junto com a minha arte, e meu nome vai ser lembrado. E vou ter o prazer de te ver queimar comigo. – pega a doutora pela gola do jaleco – Vamos pro fogo. O fogo é lindo. Uma das portas do pátio abre, ficando aberta por alguns segundos. Ambos viram-se para olhá-la, e o fogo revela a figura de um homem alto, com um terno branco chamuscado e rasgado e cabelos ruivos com as pontas tostadas. A cicatriz de Victor Rosenberg se denuncia com mais clareza contra as chamas, e seus óculos parecem estar quebrados. Ele arrasta um cadáver morto e carbonizado contra o ombro, aparentemente sem motivo. Talvez seus devaneios o fizessem pensar que ainda desse pra salvar o homem. O larga perto das chamas e levanta o rosto para os dois. Daquele jeito, parece uma criança que tenta salvar seu boneco de ser jogado no lixo, inocente. – Gertruda? – fala em um tom baixo, mas assustado – O que- O que está acontecendo? Hermann joga o rosto para trás. Só me faltava essa. Cai a ficha de Rosenberg, que levanta os braços para o alto e começa a gritar: – FOI VOCÊ QUE BOTOU FOGO NISSO TUDO?! FILHO DA PUTA! Esse ruivo é louco, mesmo. Hermann suspira e tenta arrastar Gertruda para próxima do fogo. Incendiá-la. Seu marido, entretanto, pega o revólver que o nazista deixara cair no chão e aponta para o mesmo, pretendendo atirar. A psiquiatra gesticula para que pare. Não quer que ele morra a balas. Ele precisa sofrer. – Vai fazer o que? Atirar em mim? – desafia Hermann. – Não duvide disso. – Faça o que quiser. – O novo “Diretor da Prisão” volta a arrastar a psiquiatra para as chamas. Encerremos este drama de uma vez. Rosenberg não está satisfeito. Largando o revólver para o lado, corre na direção de Hermann, que não solta sua esposa. Continua correndo e acerta em cheio o alemão, fazendo-o soltar sua esposa e cambalear para trás, em direção ao fogo. O ruivo faz uma expressão assustada quando o nazista atinge o fogo ao cair. O fogo é lindo. É quente. Hermann olha para frente, e percebe que está sendo lambido pelas chamas. A dor começa a invadir seu corpo. Está finalmente sendo consumido pelas chamas, as chamas que ama, o fogo que alimenta. Suas mãos estão ardentes e seu cérebro queima, mas não faz barulhos. Só levanta-se e se admira enquanto vê o próprio corpo em combustão. Dá um passo para frente, cai de joelhos com a perna manca, e agora está deitado. Sua pele se desfez, e já não mais enxerga. Não consegue ver Rosenberg colocando sua esposa nos braços. Não vê que os policiais já chegam, já vão colocar tudo em ordem. Não sabe que ninguém mais saberá seu nome, não conhecerão o lunático que incendiou a prisão e morreu nas chamas. Já não sente mais dor. Só há o calor. Está quente. Quente, quente, quente, quente. Te vejo do outro lado. Hermann dá um último grito, não um grito de agonia, não um grito de felicidade. Só um grito, um grito sem motivo. Um grito quente. ========================================================== 29/06/1985
Paciente: Hermann “Wahnsinn” Van Sinn
Idade: 72 anos
Crime: Crimes contra o Estado. Agressão; tortura; homicídio
de civis e prisioneiros de guerra; destruição de propriedades sem justificativa militar ou necessidade civil; deportação de prisioneiros e civis para campos de concentração; nazismo. Crimes de guerra.
Motivo de requisição de tratamento: Homicídio brutal e
premeditado do companheiro de cela como possível consequência de mente insana.
Familiares vivos de primeiro grau: Karolin Krause Wahnsinn
(cônjuge, 60 anos), Karl Wahnsinn (filho, 25 anos)
Resultados, parecer geral e recomendações:
O paciente morreu hoje.
Na revolta dos prisioneiros, que o paciente liderou,
demonstrou grande carisma e eloquência. Demonstrou, também, que não havia perdido seu gosto por matar e ferir, seus hábitos piromaníacos permaneceram com ele até o fim. São desconhecidas quantas mortes ele provocou nesse dia, e quantos feridos, além de mim, se resultaram do episódio. Noto também que ele tinha uma incapacidade de superar ou vontade de prosseguir conflitos, levando a uma série de vinganças, mais especificamente uma vendeta. Espero que ela esteja encerrada agora.
Encerro seu arquivo com o diagnóstico de transtorno de
personalidade antissocial grave. Psicopatia. Sem cura. Desejo que esses arquivos sejam usados como prova de que indivíduos com esses transtornos devem ser observados a todo o tempo para mais mortes e, se demonstrando instabilidade, serem levados imediatamente à cadeira elétrica, forca ou fuzilamento.