Você está na página 1de 4

A Glorinha do DCE

Era 1967. Tava eu entrando na faculdade.


Na Escola de Engenharia da UFRJ, Ilha do Fundão.

Meio hippie, meio zonzo, desleixado parecia eu.


Usava calça Lee e camisa social branca, pra fora e com manga abotoada nos
pulsos 1.
Usava uma botina de lona que não se fabrica mais.
Moda que eu ditei, não copiei de ninguém.
E isso me importava muito, pois era minha marca.

Minha galera foi se formando, todos CDFs 2 como eu.


Emerson, Milito, Bráulio, Cid, Müller e muitos outros
Era um estudo pesado, exigindo muito raciocínio e esforço.
Quem conhecia melhor explicava pros outros.
Cálculo eu manjava bem.

Belo dia, indo pra uma aula, passei pela porta do DCE 3
E, pela primeira vez vi a Glorinha, estirada no sofá que tinha na entrada.
Linda ela, moreninha, toda certinha, quase uma índia. Acho que era de Goiás
Me chamou pra ficar do lado dela. Ficamos a tarde toda lá.
Conversamos sobre tudo, política principalmente.
Ela era bem culta. Estava dentro do movimento estudantil.

E eu passei a gostar dela, a ter muito tesão pela Glorinha do DCE.


Mas ela não queria nada comigo. Dizia que éramos amigos e só.
Seu irmão (acho que seu nome era Raimundo) torcia por mim,
Pra que ela ficasse comigo.
Muito doidinha, dizia preocupado.
Pode ser que, com você, ela saia disso e se aprume.

De temperamento forte, vivia livre como um pássaro,


Falava o que e com quem queria.
Fazia discursos-relâmpagos nas salas, convocando os estudantes contra a
ditadura.

Um dia, me disse: olha, tem a turma tal e você vai lá,


Faz uma convocação pra passeata no térreo do Bloco A.
Não me pediu, mandou.
E o panaca aqui, que nunca tinha feito aquilo, foi lá e fez a tal da convocação.
E a fiz com tanta energia e convicção que a turma toda foi na tal passeata.

Um dia, em 1968, me chamou: vai ter uma passeata no Largo da Carioca, você
vai, não?
Posso ir no seu carro, ela acrescentou?
Essa época dirigia o carro de meu pai que, de tão grande, era apelidado de
Jabiraca 4
É sim, vou sim, é claro que sim, disse eu.
No dia marcado, chegamos na Escola de Filosofia, que ficava da Av. Chile.
Discursos inflamados, ainda mais com notícias de cerco da PM.
De lá seguimos pelo Largo da Carioca em direção à Avenida Rio Branco.
Sabíamos que a polícia cercava todas as passagens, mas fomos destemidos.
Cantando músicas de protesto e palavras de ordem, seguimos em frente.
E eu só pensava na Glorinha.
De repente, estava eu com uma picareta na mão, que tirei dum canteiro de obras
próximo.
E a levantei bem alto e gritei alto e com raiva: Abaixo a ditadura!
E a galera ficou ainda mais inflamada. Afinal a picareta era o um dos símbolos do
socialismo.
E catamos pedras pra nos defender da PM.
E ela gostou muito de minha atitude.
Aí eu notei que, naquele momento, eu era muito importante pra ela.
A multidão começou a parar pra ouvir Travassos e Vladimir Palmeira,
Que começaram a discursar na esquina das ruas Alfândega e Sete de Setembro.

Todos estávamos juntos, quando uma moça que se disse jornalista, chegou a
mim dizendo:
Te cuida cara e, apontando o dedo, disse: aquele sujeito lá é do DOPS e está te
seguindo desde o Largo da Carioca.
Glorinha então pediu pra eu me afastar rápido.
E o panaca aqui, fez o contrário: fui em direção do tal sujeito e o desafiei. Aí
muitos estudantes correram pra cima dele e começou outra grande confusão.
Nisso, a cavalaria da PM entrou pra valer em cima de nós.

Nuvens de gás lacrimogêneo se espalharam.


Pela primeira vez, ouvi o som de tiros.
No empurra-empurra, fui jogado pra um canto e me perdi da Glorinha e dos
amigos.
Vi o tal sujeito chamando uns PMS e vindo na minha direção.
Entrei na Rua Buenos Aires correndo feito um louco e consegui me esconder num
prédio velho.
Eu e mais uns 5 caras, todos apavorados.
Nem me lembro, mas acho que fiquei lá umas 6 horas. Só saí à noite.
Tive sorte de ninguém ter me visto.

Aí veio o AI-5, botaram o exército na rua, ocuparam as faculdades.


A repressão invadiu o pouco espaço livre que se tinha.
E os mais radicais caíram na clandestinidade
Não vi mais a Glorinha no Fundão.

Em 1971, já no último ano da Engenharia, estava estagiando numa fábrica,


A antiga Standard Elétrica, que ficava na Praça Aquidauana, entre Bonsucesso e a
Penha.
Estava lá fazia uns quatro meses.
Meu jeito continuava o mesmo, a menos da barba que passei a cortar mais rente.
Saí pra almoçar, mas resolvi comer um sanduíche num bar próximo.
Então, ouvi um psiu, e outro, e mais outro, espaçados.
Olhei na direção do som e vi que vinha de um carro, tipo sedan,
Estava parado a uns 30 metros do bar, numa quina da praça.
Além do motorista, tinha outra pessoa ao lado.
Fui andando na sua direção e, aos poucos, fui reconhecendo quem tava dentro.

Eram a Glorinha e seu irmão. Foi muito grande a alegria ao vê-la.


Não sei se estavam fugindo ou em alguma operação. Nada perguntei sobre isso.
Mas percebi que estavam muito tensos.
Conversamos um pouco sobre nossas aventuras, a faculdade, os amigos,
Perguntei se precisavam de alguma coisa.
Não. Então pediram que eu me afastasse, pois poderiam estar sendo vigiados e
não queriam que eu me prejudicasse.
Então deram adeus e partiram rápido com o carro.
Foi a última vez que a vi.

Fiquei esse tempo todo sem saber o que aconteceu com ela.
Sentia não ter feito mais pra ajudá-la.
E só agora, em 2010, é que tive notícias dela, que está bem.
É Professora da Escola de Belas Artes da UFRJ.
Aonde vem fazendo uma bela carreira.

Sinto Saudades tuas, Glorinha.


Diógenes, o grego
15/05/2010
1
Notas:
Talvez por isso, alguns achavam que eu usava drogas e escondia o braço pra não aparecerem as agulhadas.
2
Sigla que significa Cú-de-Ferro, o mesmo que pessoa que estuda muito
3
Diretório Central dos Estudantes da EE/UFRJ
4
Um Chevrolet Brasil 2100, tipo jardineira; dava tranqüilo pra umas 12 pessoas, o apelido quem deu foi meu
pai; significava coisa feia, velha, quebrada, mas o carrão fazia um sucesso danado com as meninas.

Você também pode gostar