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Quase

NADA A VER COM A LUA


Sérgio Alcides

Quase
NADA A VER COM A LUA
Poemas, 1989-1996

Edições Quem Mandou?


São Paulo

C 2006, Sérgio Alcides.
Edição eletrônica livre.

Alguns direitos reservados.

Esta obra é publicada sob uma licença

c.
http://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.5/

2006
Edições Quem Mandou?
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CARRO ALEGÓRICO
O astronauta tropeçou na pedra lunar:

“A Lua é mais vasta que o Peloponeso” –


pensou

e a Terra toda viu, azul,


a conquista do espanto

hã?

(palavras em preto-e-branco
vistas pela TV).

7
E–

a nave pousou, pluma leve,


Luna, cotão de neve,
algodão ao vento sideral.

Mas –

a nave pousou, estrela súbita e


cadente, rumo à praia selenita
do tempo de antigos reinados.

Porém –

a nave pousou, artrópode,


aranha gigante, pernalta,
desarrumando o chão e os ecos.

8
Adeus, areia parada
(ampulheta suspensa):
vitória de humanas hélices.

O céu se abriu, gorado


(sem augúrio nem reza) –
satélite via satélite.

Foi quando –

acompanhamos a queda,
cada um com três pedidos,
para depois esquecer.

Contudo –

a nave pousou, cateto exato


que completa e justifica
a solução de um teorema –

conforme

o cálculo –

9
segundo

o horário –

lá dentro

do prazo –

tal qual

previsto –

aqui, na sala de comando.

10
Pôs o pé na lua.
Deu adeus para as câmeras.

Fez sua declaração.

Atirou faíscas.
Pesquisou ao redor.
Colheu pedras.

11
E pó:

poeira lunar para enfeitar a festa,


silicatos grânulos para gozar à beça,

óxidos de titânio
para endoidar o nosso crânio,

óxidos de ferro
que paralisem nossos corações,
nossas belas ações...

... aquilo que, sendo eterno,


caiba no pequeno inferno
de um tubo de ensaio.

12
Monumento

Modelada no oco, tamanho 40:


pegada, contrário de pedra.

Gira pelo universo, mas longe


de quem decifre, descomemora,
ranhura.

A eternidade já foi

– o passo,
o marco,

na dobra molhada
de um giro de pálpebra.

13
DERIVA
Deriva

A nave derivava o alto mar:

nave – navio – caravela – nau –


carme – galera – pele – catedral –
vela – capela – nave espacial.

Era o mesmo vento (ventura).


Era o mesmo passo (paixão).
Era a mesma flama (o afã).

17
Caravela

Sobre uma frase de Vieira

Escola de fugir;
nela se aprende

a singrar
a fingir
a sangrar.

18
Nave

Clara, travessia de azuis.

Por fora, no telhado, nasce mato.


Por dentro, santas pessoas:

São Geraldo
Santa Teresa

N. Sra. da Conceição
N. Sra. da Consolação

São Bartolomeu
Santa Bárbara

São Francisco de Sales


São Francisco de Assis
São Francisco de Paula

Morada de passarinhos
(aos santos alheios).

19
Naveta

(É onde se deposita a lágrima do incenso.


Fica perto do relicário.)

20
Nau

Quer dizer: agora.

Usa-se para
os descobrimentos.

21
MAR DA TRANQÜILIDADE
Convite

Vamos à lua –

onde se põe a Terra,


onde a cabeça do homem
flutua com falta de ar,

onde o fardo faz parte do luar.

25
VRUMMM!

A motocicleta invade a suíte de canções elisabetanas –


penso em John Cage morto esta semana.

BUZZZ!
A cantora espanta o mosquitinho com candura –
penso na lua,
o CLANG das patas de Apolo
rompendo o Silêncio,
movendo a areia

– mas que Silêncio???


A Lua estava cheia de gritos, litanias e ondas de rádio.

AH, penso na eternidAHde,


a música das esferas,
o chiado de uma surdez,
os passos de um astronauta,
um passeio de 4’33”.

26
PSIIT!
Penso em Silêncio –
é vão buscar o ideal,
é vão abandonar o ideal,
a vida é vão,
e a morte, no
fundo, também:
é vão e é vau.

Jonh Cage silencia –


penso na poesia,
nos ruídos que ele fará depois de moRTo

(refiro-me a seu coRPo).

27
Cavaleiro

No lado escuro mora


o esqueleto de São Jorge

com seu cavalo manco


com seu cajado branco

sem espada
olhar vazado de
nada

solidão / dragão

no lado esquerdo pulsa


a falta
o santo.

28
O Quelônio

Arrasta uma carcaça de interrogações


de que é feito esse animal
e que o animam.

Arrasta-se, portanto, entre as crateras;


lentamente filosofa
e imita.

Conhece bem o lado externo;


para estudar o interior, mete a cabeça
por dentro de seus polígonos.

De seu olhar circunflexo e esquivo


dirão que é arrogância;
mas não: é timidez.

29
Vôo

Viajo
na ave
que fura

o cinza
do tédio
que nubla.

Meu vôo verga o ferro do horizonte.

O esforço
que faço
desterra

em face
de esfera
a terra.

30
O Bicho Verde

Mais leve que a alma.

Mais louve que esperança.

Mais voe que acalma.

31
Mar da Tranqüilidade (Bom Jesus)

Onde o mar é de pedra


– é lá que começa a maré.

Zarpar: sim, para sempre (parado).

O marinheiro impossível

atrai as águas
– inspira os navegantes.

32
NAVEGADORES
O Monge (Straight No Chaser)

‘!!!’
Th. Monk

Seu coração, seu mosteiro.

O texto se lhe esvaiu:


pelos dedos:

emudeceu, be, bop.

Sem gelo,
direto, sem
anestesia.

Desça puro,
nada o dilua.

35
O Bispo (Registros de Sua Passagem Pela Terra)

‘eu preciso destas palavras. escrita’


Artur Bispo do Rosário

FICHA

Tinha o cabelo puxado para trás.


Não saía nem falava.
Passava os dias fazendo navios.

OBJETOS PESSOAIS (INVENTÁRIO)

Uma távola redonda, um


tutankamon de plástico, uma
túnica bordada, um
oráculo de elástico, uma
condecoração.

Um machado mumificado, um
cetro de miss, um
museu deste mundo.

36
QUARTO-FORTE

Sem janelas.
Com infiltrações.

O ocupante
abria vitrines para dentro.
Umedeceu-se por dentro.

As paredes enrijeceram,
sorando.

Causa mortis: broncopneumonia.


Causa vitae: vita.

37
O Profeta

‘GENTILEZA GERA GENTILEZA


AMORRR À NATUREZA’
Gentileza, cap. 1, v. 1

Oráculo viário:
O que se passa nesta cidade.

Visão que teve Alguém,


filho de Quem,
filho de Já Morreu,
filho de Um Cabra,
nos dias de Não Sei,
filho de Como Assim,
rei de Seu Penar.

Livro dos Viadutos


escrito pelo profeta Gentileza,
comedor de monóxido,
no vigésimo século,
quando se encontrava entre os ônibus

no tempo incivil dos automóveis.

38
EVERYDAYS
Sta. Teresa

As quatro venezianas
abertas como quatro velas.

Aonde me leva o quarto


na proa deste meu apartamento?

Jogo de bola no pátio,


faz calor, passa um caminhão,
vem um beija-flor.

Nenhum sinal de terra firme.

41
Nem Gagárin

Cortaram meu telefone hoje.


Fiquei neste apartamento
sem um fio sequer.

Não sei de ninguém tão isolado.

Nem Gagárin,
nem uma cadela cosmonauta.

42
Área de Serviço

Parecem morcegos,
os pregadores no varal vazio.

É verão neste hemisfério,


e a borboleta azul se descolou do céu
nervosamente.

Tudo aconteceu de estalo;


quando eu vi,

perdera-se.

43
Acidente

Foi levar o lixo


e deixou bater a porta
com a chave por / dentro /.

Venta muito neste hemisfério.

44
Susto

A cortina japonesa
caiu à francesa.

Decepou aquele meu fantasma


que estava de bruços na janela

/ pequena platéia /

com sua vaia agargantada


naquela boca entredentes
finalmente escancarada!

45
Motorista 67

Circula pela cidade


dentro de uma hemoglobina azul.

Vai vestido
de automóvel.

Toma as dores
de seus amortecedores
e acelera.

Cavaleiro
de setecentos cavalos.

46
O Fusca 77 desse Motorista

Vai num besouro redondo e cego

sem antena,
sem carteira,
sem farol,

tudo azul.

Mágico,

veloz

ás

OZ 0005.

47
DESLOCAMENTO
Alento

O óleo da alma distribui-se além dos poros

(sopro na lama).

Não sei se não caibo ou se sobro.

51
Deslocamento

(Terêncio)

Sou homem;
a nada do que é humano
sou estranho.

/ Eu /

Sou homem
a nada do que é humano;
sou estranho.

52
Sonda

A cápsula resume-se na pele.


O cérebro retesa o capacete.

Por detrás do visor,


o rosto, o estertor.

53
O Metal de uma Sonda

Eu: perfurado.

Mensurável, não me reconheço.


Só compreendo o espelho espedaçado de uma lua nova.

54
Sir Henry Moore

Como a cabeça
que é capacete,
utilizável.

Como a cabeça de vento


feita de bronze,
fundida.

Como a cabeça
aberta no jardim bem tratado

de um museu.

55
Pouca terra

Vão-se os anéis,
mas não os de Saturno.

Algo treme sob a pouca terra do meu rastro.

Desaparecem minhas mãos,


ficam as linhas.

56
Lição de Anatomia

Subsiste na altura do fígado


o coração neanderthal,
a vesícula

inextirpável.
Subjaz, suja, sutil.

Silêncio!
Pensa-se ali, por vezes,
no chiaroscuro.

Da mesma forma,
cérebro também é víscera.

57
Fragmentos de Clausura

por dentro range:


ficção / não /

creio nela
desacredito de / mim /

e o narrador sua
emperrado em / mim /

a pele de / mica /
do meu pensamento

que esfarela.

58
Teste

Escrever o plural de:


individual.

Sublinhar a palavra morte:


morte.

Envolver com um círculo o horror:


horror.

Marcar um xis na resposta certa.

59
O ASTRONAUTA
O Astronauta

No inferno, por amor à claridade


da chama, que o queimou com seu chamado.

A lava em suas veias congelava,


sua nave derivava o alto mar.

Agora está vestido como Apolo,


dentro da veste branca (macacão).

Sem peso, finalmente está sozinho,


dentro de suas imaginações.

Dá um beijo no tubo de oxigênio


dentro do capacete reluzente.

E pisa o chão do luzeiro da noite,


celestino, distraído: eis o homem.

63
Câmbio

Quem dobrar o não do Cabo do Não –


quem passar para lá do Bojador –
quem for almirante do Mar Oceano –
quem naufragar e quem se desgarrar –

ejete-se.

A nave-mãe rebrilha constelada


O cordão, solto, prende no espaço.
O instante deu a volta nos limites.
A estrela me limita ao verbo instar.

Câmbio, desligo.

64
envio
Poema Lupiscínio

‘Saudade...’
Nunca, de L. Rodrigues

O uivo
(o uuivo)
inventa
uma lua cheia.

O envoi
inventa
uma direção.

Vai, canção,
dizer a ela:

eu uivo – VIVO.

67
ÍNDICE

CARRO ALEGÓRICO

‘O astronauta tropeçou na pedra lunar’ 7


‘E / a nave pousou, pluma leve’ 8
‘Pôs o pé na lua’ 11
‘E pó’ 12
Monumento 13

DERIVA

Deriva 17
Caravela 18
Nave 19
Naveta 20
Nau 21

MAR DA TRANQÜILIDADE

Convite 25
VRUMMM! 26
Cavaleiro 28
O Quelônio 29

69
Vôo 30
O Bicho Verde 31
Mar da Tranqüilidade 32

NAVEGADORES

O Monge 35
O Bispo 36
O Profeta 38

EVERYDAYS

Sta. Teresa 41
Nem Gagárin 42
Área de Serviço 43
Acidente 44
Susto 45
Motorista 67 46
O Fusca 77 desse Motorista 47

DESLOCAMENTO

Alento 51
Deslocamento 52
Sonda 53
O Metal de Uma Sonda 54
Sir Henry Moore 55
Pouca Terra 56
Lição de Anatomia 57
Fragmentos de Clausura 58

70
Teste 59

O ASTRONAUTA

O Astronauta 63
Câmbio 64

envio

Poema Lupiscínio 67

71
Edição eletrônica livre.

Terminou-se de gerar
em outubro de 2006,
na oficina da Rua Bocaina,
em São Paulo.

Em comemoração
aos 10 anos das
Edições Quem Mandou?

‘As Edições Quem Mandou? praticamente não existem!’

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