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Seleção e organização:
Carmen Felgueiras,
Marcelo Jasmin
e Marcos Veneu
Editora associada à
@editoraunifesp
Apresentação, 7
6 > In medio virtus: uma análise da obra integralista de Miguel Reale, 153
17 > Nas asas da razão: ética e estética na obra de Lucio Costa, 339
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* Tradução de Marcos Veneu. Título do original: “Ricardo Benzaquen de Araújo and the
Endless Completion of Intellectual History”.
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1.
Comecemos por descrever o “mundo” de Ricardo, no sentido fenome-
nológico do termo, i.e. como um horizonte e uma ontologia particulares
através dos quais ele e outros experimentaram o seu ambiente. Acima de
tudo, esse era um mundo de textos escritos e impressos, muito mais predo-
minantemente e (para ele) naturalmente do que um mundo de coisas, pes-
soas e eventos aos quais esses textos se referiam. Para seus alunos e amigos,
os momentos em que ele parecia mais “em casa” eram quando seus olhos
míopes estavam tão perto de uma página coberta de letras que ele tinha de
mover a cabeça para acompanhar as linhas manuscritas ou impressas. E esse
mundo particular também implica a antecipação da sua infinitude e da im-
possibilidade de ser abarcado por qualquer esforço de erudição (donde as
desculpas de Ricardo) – não por incluir todos os diversos tipos de texto, mas
antes por consistir num gênero específico cujas ontologia e vocação são de,
em cada caso individual, multiplicar o número de referências possíveis a ou-
tros textos.
Esse é o gênero de textos que preservam, descrevem e também am-
pliam a história das ideias, e ao mesmo tempo o gênero de textos que se tor-
nou, desde o começo do século xix, o objeto central e o produto do domínio
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2.
Mas qual era o efeito dessa técnica de contextualização cada vez mais
específica e sofisticada? Em princípio, os contextos históricos mais gerais
que Ricardo conseguia ativar pertenciam ao corpus dos clássicos europeus
das humanidades e das ciências sociais, ao passo que as obras individuais
analisadas faziam parte da tradição intelectual brasileira, cujos contornos
frequentemente se tornavam visíveis, pela primeira vez, apenas graças ao
seu trabalho. Destacando, em cada análise, um grande número de similari-
dades e diferenças entre os textos individuais em questão e seus contextos
não necessariamente sul-americanos, Ricardo dava aos textos brasileiros não
só uma inesperada complexidade como também uma nova e cosmopolita
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4.
Entretanto, fiéis ao que podemos aprender com a obra de Ricardo, deve-
ríamos nos perguntar, mais uma vez, pelos contextos específicos que torna-
ram possível esse estilo. Um desses contextos é bem evidente e já foi, de fato,
mencionado. Trata-se da simpatia explícita que Ricardo sentia pela forma do
ensaio intelectual, como cultivado por Georg Lukács, sobretudo na coletâ-
nea A Alma e as Formas, de 1911. Como no caso do próprio Lukács, podemos
suspeitar que a convergência promovida por Ricardo entre contextos infin-
dáveis e perfis de subjetividade específicos necessitava, para ser viável, de
liberdade em relação a constrangimentos lógicos e discursivos. Outro possí-
vel contexto é mais incerto, porém, creio, suficientemente interessante para
ser mencionado. Pois existe ao menos uma prática cultural, de longa data e
ainda produtiva, na qual se reúnem contextualização infindável e efeitos de
subjetividade específicos. Estou me referindo, claro, ao Talmude como uma
coleção em constante crescimento de comentários e instruções para a vida
judaica, oriunda da tradição rabínica; uma coleção cuja complexidade cen-
trífuga permanentemente motivou e rejeitou todo tipo de sistematizações
internas e fechamentos externos. Ao mesmo tempo, contudo, o Talmude
preservou, como efeitos de subjetividade, os nomes de muitos rabinos indi-
viduais e, mais surpreendentemente, certas tonalidades e gestos que podem
ser a eles associados.
Ora, alunos, colegas e amigos de Ricardo sempre estiveram a par de
suas origens familiares judaicas – mas não é tão claro o papel exato que essas
origens desempenharam em sua educação. “Benzaquen”, o nome de família
por ele usado em todo tipo de situações cotidianas, remonta à genealogia
sefardita marroquina de sua mãe, ao passo que o nome “Araújo” aponta para
a ascendência portuguesa (não judaica) de seu pai. É possível que a ênfase
dada ao nome sefardita tivesse a intenção de estabelecer uma conexão e tra-
dição matrilineares, como é da vida judaica. Mas não deveríamos fazer disso
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5.
Em vez de ceder à tentação, típica das humanidades acadêmicas, de ro-
mantizar e assim exagerar o impacto da herança judaica, a de Ricardo Ben-
zaquen, nesse caso específico, devemos reconhecê-la como apenas uma par-
te, óbvia, da infindável complexidade intelectual em cuja origem ela talvez
tenha estado. Essa complexidade fazia também de Ricardo o mais generoso
professor e orientador, pois ele era incapaz de manter seus interesses sepa-
rados dos de seus alunos. A mesma complexidade, como tentei mostrar, per-
mitiu todo tipo de conexões, paradoxais e, no entanto, possíveis de viver, em
sua existência: a contextualização infindável com os efeitos de subjetividade
específicos; a ascendência cristã portuguesa e a marroquina sefardita; o hu-
mor e estilo de intelectual judeu numa universidade católica; um patriotis-
mo brasileiro sem posições políticas bem circunscritas mas com uma aura
cosmopolita; e um mundo feito de textos que nunca chegou a reprimir o
carisma pessoal e o charme individual.