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zigue-zague

Ensaios reunidos (1977-2016)

Seleção e organização:
Carmen Felgueiras,
Marcelo Jasmin
e Marcos Veneu

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Copyright © Alice Miceli de Araujo, Editora Unifesp

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revisores: Debora Fleck e Maurício Katayama

ficha catalográfica elaborada pela biblioteca da eflch/unifes P

Araújo, Ricardo Benzaquen de, 1952-2017.

Zigue-zague : ensaios reunidos (1977-2016) / Ricardo Benzaquen de


Araújo ; seleção e organização: Carmen Felgueiras, Marcelo Jasmin e Mar-
cos Veneu. – Rio de Janeiro : Editora PUC-Rio ; São Paulo : Editora Unifesp,
2019. – 448 p.

ISBN 978-85-5571-063-6 (Editora Unifesp)

ISBN 978-85-8006-284-7 (Editora PUC-Rio)

1. Ensaios brasileiros. 2. História. 3. Sociologia. 4. Antropologia. 5.


Ciência política. I. Título.

CDD 869.44 ; 300

Elaborado por Emerson I. Kamiya – CRB 8/7442

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> Sumário

Apresentação, 7

Prefácio – Hans Ulrich Gumbrecht, 11

Entrevista: Conversas com sociólogos brasileiros


– Ricardo Benzaquen de Araújo, 19

1 > Romeu e Julieta e a origem do Estado, 37

2 > As classificações de Plínio: uma análise do pensamento de Plínio


Salgado entre 1932 e 1938, 71

3 > O dono da casa: notas sobre a imagem do poder no “mito Vargas”, 93

4 > In memoriam: Gilberto Freyre (1900-1987), 115

5 > A fonte da juventude: observações sobre A Europa de Hoje, de Alceu


Amoroso Lima, 121

6 > In medio virtus: uma análise da obra integralista de Miguel Reale, 153

7 > Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu, 181

8 > As almas da História, 215

9 > História e narrativa, 237

10 > À sombra do vulcão. Comentários a “Pathos da Travessia Terrena:


o Cotidiano de Erich Auerbach”, de Hans Ulrich Gumbrecht, 263

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11 > Sobrados e Mucambos e Raízes do Brasil, 287

12 > Deuses em miniatura: notas sobre genialidade e melancolia em


Gilberto Freyre, 297

13 > Castelos no ar: notas sobre Portugal em Aventura e Rotina, 305

14 > Apresentação de Leituras de Gilberto Freyre, 313

15 > Amizade e republicanismo, 319

16 > Através do espelho: subjetividade em Minha Formação, de Joaquim


Nabuco, 325

17 > Nas asas da razão: ética e estética na obra de Lucio Costa, 339

18 > O mundo como moinho: prudência e tragédia na obra de Paulinho da


Viola, 351

19 > Textos e contextos, 361

20 > Esaú e Jacó: cordialidade e identidade nacional em Mário de Andrade e


Paulo Prado, 363

21 > Simmel: a metrópole e a grande cidade, 373

22 > Chuvas de verão. “Antagonismos em equilíbrio” em Casa-Grande &


Senzala, de Gilberto Freyre, 381

23 > A cidade secreta: intensidade, fragmentação e terror em Assombrações


do Recife Velho, de Gilberto Freyre, 391

24 > O linho e a seda. Notas sobre o catolicismo e a tradição inglesa em


Minha Formação, de Joaquim Nabuco, 403

25 > Um grão de sal: autenticidade, felicidade e relações de amizade na


correspondência de Mário de Andrade com Carlos Drummond, 409

26 > Terra de ninguém: escravidão e direito natural no jovem Joaquim


Nabuco, 423

Posfácio – Luiz Costa Lima, 441

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> Apresentação

Carmen Felgueiras, Marcelo Jasmin e Marcos Veneu

O livro que o leitor tem em mãos foi idealizado pelo próprio


Ricardo Benzaquen, mais precisamente no ano de 2015. Nessa época, ele con-
siderava que, como havia um certo volume de artigos seus publicados em
diferentes lugares ao longo de sua atividade acadêmica, valeria a pena reu-
ni-los em livro. Estando “pronto”, preocupava-o, antes de tudo, o título; aliás,
encontrar o título adequado – os desta coletânea o demonstram – sempre
foi uma de suas obsessões. Até que um dia o encontrou. Seria “zigue-zague”.
Satisfeito, fazendo questão da grafia com hífen, desenhava-o no ar para seus
interlocutores de ocasião. Contudo, as atribulações do cotidiano pessoal e
universitário, como professor da puc-Rio, adiavam indefinidamente o proje-
to. Perfeccionista que era, mesmo que estivessem “prontos”, é provável que
considerasse a hipótese de que uma releitura dos artigos exigisse um esfor-
ço de revisão, e mesmo de reelaboração, que demandaria um tempo e uma
energia de que não dispunha naquele momento. Infelizmente, a descoberta,
em 2016, da doença que acabou por vitimá-lo em 2017 encerrou para ele as
chances de concretização do projeto Zigue-zague.
Nada em Ricardo era óbvio, literal. O título, Zigue-zague, poderia nos
levar a supor que, com ele, Ricardo estaria se referindo apenas a uma trajetó-
ria intelectual que se desenvolveu de modo errático, sem um plano definido.
Nada mais falso. O título ultrapassa sua dimensão pessoal e torna-se uma
metáfora crítica da concepção moderna de história, crítica enunciada de
modo magistral no artigo “Ronda Noturna: Narrativa, Crítica e Verdade em

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Capistrano de Abreu”. Se, contra a tradição clássica da história, a moderna
historiografia nos impõe uma narrativa totalizante, na qual os eventos sin-
gulares dela participam apenas na medida em que contribuem para o desen-
volvimento de um enredo; se a objetividade do narrador neutro, peça-chave
dessa concepção, confere autoridade e legitimidade a esse enredo, Ricardo
aciona as artes de Hayden White, Ricoeur e Nietzsche, entre outros, para de-
monstrar a vã pretensão da concepção iluminista de história de dominar ou
erradicar a tragédia e o acaso.
Ricardo foi um grande intelectual, mas exerceu sua profissão de modo
peculiar. Não era um homem exclusivamente do gabinete, embora passasse
muitas horas do dia, e também da noite, trabalhando em sua sala no depar-
tamento de história ou na biblioteca da puc-Rio ou, ainda, em seu escritório
privado; também não era um intelectual público no sentido mais comum
do termo. Ricardo foi um professor – seu espaço público era a sala de aula, as
conferências e os seminários dos laboratórios de pesquisa e das associações
científicas de que participou, sempre de modo admirável, afirmando acima
de tudo a importância das ciências humanas como um valor.
Ricardo foi um orientador rigoroso e formou gerações de estudantes
na graduação e nos programas de pós-graduação da puc-Rio e do antigo Iu-
perj. Iniciava os alunos nos grandes autores da tradição clássica, em diálo-
go com a contemporaneidade e sem quaisquer preconceitos disciplinares,
transitando com naturalidade pela história, pela antropologia, pela filosofia,
pela crítica literária, pela sociologia. É extensa a lista de seus orientandos
e orientandas, em todos os níveis, da graduação ao doutorado, sem contar
uma infinidade de orientações informais, pois bastava que o estudante ou o
colega enunciasse um problema, uma dificuldade, e lá estava Ricardo pronto
a ajudá-lo com sua enorme erudição e inteligência.
Foi por isso, movidos por um sentimento de gratidão pelo tanto que
Ricardo nos ofereceu em vida, que resolvemos trazer à luz o seu último pro-
jeto, o Zigue-zague.
Acreditamos também que esta é uma forma de fazê-lo reviver através
de suas palavras e do que elas têm de mais poderoso: a capacidade de des-
pertar nos leitores o desejo de aprender com ele, de dialogar com ele e de
transcendê-lo. Em suma, mais que leitores, ele nos torna interlocutores.
Não sabemos se Ricardo manteria a cronologia de publicação dos artigos
ou se lhes daria uma ordenação temática. Nós, os organizadores, preferimos
a primeira opção. Acreditamos que o contato do leitor com o pensamento de
Ricardo Benzaquen se beneficiará com um mínimo de interferência, deixan-
do-o livre para fazer suas próprias escolhas temáticas e bibliográficas. Além

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disso, temos a quase absoluta certeza de que a seleção de Ricardo seria muito
mais restritiva que a nossa. Optamos por incluir praticamente todos os arti-
gos por ele publicados, à exceção de “Força Estranha” e de sua dissertação de
mestrado, Gênios da Pelota, que serão objeto de uma futura publicação de
seus trabalhos sobre o futebol. Por outro lado, acrescentamos aos artigos a
entrevista que abre a coletânea e uma palestra inédita sobre a amizade.
Resta esclarecer que, em todos os artigos, consta em nota a referência
do local e data da publicação original, seguida, quando foi o caso, dos esclare-
cimentos do próprio autor, feitos na ocasião.
Como alguém que vivia para os livros e para os – inumeráveis – amigos,
Ricardo nos fez tributários deles. Queremos, portanto, agradecer a todos que,
direta ou indiretamente, acompanharam o processo de feitura deste livro.
Em especial, somos gratos aos professores Hans Ulrich Gumbrecht, do depar-
tamento de literatura comparada da Universidade de Stanford, e Luiz Costa
Lima, do departamento de história da puc-Rio, que, de pronto, atenderam a
nossa solicitação de prefácio e posfácio. Eduardo Viveiros de Castro generosa-
mente autorizou a publicação de “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”.
Agradecemos a Paloma Malaguti e a Claudia Boccia pela digitação dos
originais.
A Heloisa Starling, professora do departamento de história da ufmg e
amiga de sempre, que cedeu a transcrição da palestra sobre a amizade.
Ao departamento de história da puc-Rio, que generosamente apoiou
esta publicação.
E, principalmente, nosso reconhecimento e melhores agradecimentos à
colaboração decisiva de Jane Russo e de Victor Burton. Sem eles, este livro, da
forma como o apresentamos agora, não teria sido possível.

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> Prefácio

Ricardo Benzaquen de Araújo e o acabamento


infindável da história intelectual*
Hans Ulrich Gumbrecht

À medida que vamos relendo – e, em alguns casos, lendo pela


primeira vez – os eruditos ensaios do nosso saudoso colega Ricardo Benza-
quen, chama a nossa atenção um gesto de abertura que permeia as quase
quatro décadas que eles abrangem e que nos evoca, de modo inevitável, a
lembrança de sua voz e de seu rosto. Trata-se da expressão de lamento e em-
baraço com a qual, repetidamente, Ricardo se desculpava por se concentrar
“apenas em um aspecto, e bastante marginal” de determinado tópico, às ve-
zes devido a uma “deplorável falta de tempo”, em outras ocasiões por “razões
particulares que não merecem ser mencionadas” no âmbito público. Ele usa-
va tais fórmulas, que poderiam soar como retórica acadêmica, da maneira
mais sincera, quase romanticamente ingênua – pois ninguém estava mais
ciente do que ele da potencial “complexidade avassaladora” que se escondia
em qualquer problema discutido e em qualquer questão levantada no âmbi-
to da história intelectual. Sem dúvida, Ricardo estava convencido, a cada vez
que as empregava, de que mais tempo de investigação e uma erudição maior
do que a sua (por mais difícil que fosse imaginar isso) poderiam ter-lhe per-
mitido produzir soluções e respostas mais completas. Essa também pode
ter sido uma das razões pelas quais, com mais frequência à medida que sua
idade avançava, ele se abstinha de vazar em texto escrito seus comentários

* Tradução de Marcos Veneu. Título do original: “Ricardo Benzaquen de Araújo and the
Endless Completion of Intellectual History”.

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de discussão notoriamente ricos e bem informados e, em vez disso, permitia
aos editores imprimi-los na condição de transcrições.
Ao buscar identificar o que pode ter sido a especificidade do estilo in-
telectual e da produção de Ricardo Benzaquen, sinto-me tentado a usar a
mesma linguagem apologética que se tornou parte de sua persona acadê-
mica – embora, provavelmente diferente de Ricardo, eu saiba que ter todo
o tempo do mundo para uma análise longa como um livro não me deixaria
mais perto de cumprir a tarefa autoatribuída. De início, pareceu-me sur-
preendente descobrir o quanto convergíamos, eu e Ricardo, nessa necessida-
de de nos desculpar pela impossibilidade de acabamento, dada a diferença
entre nossos temperamentos profissionais; mas agora estou persuadido de
que qualquer tentativa de compreendê-lo exige que se enfrente, também,
o problema mais geral com que ele se houve ao longo de toda a vida, sem
inteiramente avaliar sua magnitude e seriedade, isto é, aquele mesmo que
podemos designar, e então desenvolver, como o paradoxo do “acabamento
infindável” no seu tipo característico de história intelectual. Em outras pala-
vras: proponho-me a falar sobre como mais conhecimento produz mais per-
guntas do que respostas e ainda torna mais aguda nossa consciência de quão
distantes estamos de resolver os problemas e completar as documentações.

1.
Comecemos por descrever o “mundo” de Ricardo, no sentido fenome-
nológico do termo, i.e. como um horizonte e uma ontologia particulares
através dos quais ele e outros experimentaram o seu ambiente. Acima de
tudo, esse era um mundo de textos escritos e impressos, muito mais predo-
minantemente e (para ele) naturalmente do que um mundo de coisas, pes-
soas e eventos aos quais esses textos se referiam. Para seus alunos e amigos,
os momentos em que ele parecia mais “em casa” eram quando seus olhos
míopes estavam tão perto de uma página coberta de letras que ele tinha de
mover a cabeça para acompanhar as linhas manuscritas ou impressas. E esse
mundo particular também implica a antecipação da sua infinitude e da im-
possibilidade de ser abarcado por qualquer esforço de erudição (donde as
desculpas de Ricardo) – não por incluir todos os diversos tipos de texto, mas
antes por consistir num gênero específico cujas ontologia e vocação são de,
em cada caso individual, multiplicar o número de referências possíveis a ou-
tros textos.
Esse é o gênero de textos que preservam, descrevem e também am-
pliam a história das ideias, e ao mesmo tempo o gênero de textos que se tor-
nou, desde o começo do século xix, o objeto central e o produto do domínio

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acadêmico das “artes e humanidades”; mas representou igualmente a genea-
logia literária das “ciências sociais” não empíricas surgidas algumas décadas
depois. Sob o ângulo institucional das disciplinas acadêmicas, o corpo de
textos em questão poderia, portanto, ser rotulado com o sempre bem-vin-
do predicado de ser “interdisciplinar”; porém, ao menos na prática intelec-
tual de Ricardo, ele aparecia como um – e apenas um – universo, ao mesmo
tempo intelectualmente homogêneo e ideologicamente centrífugo. Desde
muito jovem, Ricardo parece ter adquirido e acumulado um conhecimento
realmente assombroso dos clássicos dessa tradição, sobretudo franceses e
alemães. Max Weber, Georg Lukács e Erwin Panofsky tornaram-se seus mes-
tres, junto com Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel e Lucien Febvre, com
Hannah Arendt, Erich Auerbach, Walter Benjamin, Carl Schmitt ou, de modo
mais excêntrico e significativo, Georg Simmel, bem como Michel de Certeau,
Michel Foucault, François Furet e Jacques Le Goff, mas também Umberto Eco
e Giorgio Agamben, Arthur Danto, Robert Darnton e Hayden White. Ricardo
era capaz de citar seus principais trabalhos (e também os menos centrais)
quase literalmente, em qualquer discussão, juntamente com os textos mais
importantes de seus predecessores e discípulos.
O mundo textual de Ricardo tinha um centro bastante difuso, mas não
verdadeiros limites, o que confirma e explica a observação, feita num co-
movente obituário por seu aluno João Marcelo Ehlert Maia, de que em sua
linguagem a palavra “enfim”, como uma interjeição, nunca tinha um senti-
do mais forte do que um ponto e vírgula, de fato mais prolongando do que
concluindo uma descrição. E como para sublinhar no cotidiano, um tanto
ironicamente, que o seu tinha de ser um mundo de civilização, e não de rea-
lidades imediatas, Ricardo infalivelmente usava a distinção metafórica cor-
respondente, desvelada por Lévi-Strauss, entre o “cru” (cru) e o “cozido” (cuit)
ao insistir, sempre que ia a um restaurante, que desejava seu bife “muito
bem passadinho”.
Se parece não ter havido uma figura única que tenha influenciado deci-
sivamente a formação acadêmica de Ricardo Benzaquen, a sequência crono-
lógica de seus textos – inaugurada em 1977 com um belo ensaio sobre Romeu
e Julieta, de Shakespeare, e a origem do Estado, em coautoria com Eduardo
Viveiros de Castro – torna bastante fácil seguir um percurso linear de cres-
cimento intelectual. A maior parte de seus primeiros trabalhos compõe-se
de bem executadas, mas estreitamente focalizadas, reconstruções (ou expli-
cations de texte) de documentos e discursos históricos, principalmente da
tradição direitista do integralismo brasileiro entre as décadas de 1930 e 1950.
A partir de meados dos anos 1980, porém, Ricardo começa a mostrar uma

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técnica de leitura de textos individuais, na maior parte brasileiros, onde a
sempre crescente infinitude do seu mundo textual mais amplo se tornava a
substância em múltiplos planos de um processo complexo de contextuali-
zação. Com clareza cada vez maior, ele conseguiu usar a inevitável infinitude
de tais contextos para produzir a impressão de comentários potencialmente
infinitos. A partir desse momento, os ensaios acadêmicos de Ricardo já não
tinham o estatuto de interpretações que identificavam e descreviam signi-
ficados finitos, mas sim o de notas correntes que abriam completamente o
potencial hermenêutico dos textos individuais.
Num estágio final de rara (se não singular) maestria no gênero acadê-
mico do comentário, a energia de complexificação de Benzaquen terminou
por alcançar até mesmo os textos clássicos que formavam o corpus de seus
contextos infindáveis. Em sua contribuição a um debate em 2007 entre his-
toriadores da arquitetura, por exemplo, ele mostrou como o conceito de
“metrópoles”, de Georg Simmel, não apenas descrevia um ambiente cultural
– típico de cidades como Berlim ou Paris dos anos 1920, cheio de tradições
e inspirações diversas que terminavam produzindo uma sensibilidade de
“choque” –, mas também se tornava o pano de fundo produtivamente con-
trastante para entender lugares com uma harmonia histórica orgânica, que
Simmel associava sobretudo a Roma. Quase quinze anos antes, eu já havia
ficado perplexo quando, ao comentar minha própria tese de que a “tragédia
da vida cotidiana” era um tema existencial que reunia várias dimensões da
obra de Erich Auerbach, Ricardo reagira com uma multiplicação nuançada
de conotações envolvendo o conceito de “tragédia” na mesma situação his-
tórica. E quanto mais crescia a complexidade interna daqueles elementos
contextuais, menos possível tornava-se, para Ricardo, chegar à conclusão de
um comentário histórico individual.

2.
Mas qual era o efeito dessa técnica de contextualização cada vez mais
específica e sofisticada? Em princípio, os contextos históricos mais gerais
que Ricardo conseguia ativar pertenciam ao corpus dos clássicos europeus
das humanidades e das ciências sociais, ao passo que as obras individuais
analisadas faziam parte da tradição intelectual brasileira, cujos contornos
frequentemente se tornavam visíveis, pela primeira vez, apenas graças ao
seu trabalho. Destacando, em cada análise, um grande número de similari-
dades e diferenças entre os textos individuais em questão e seus contextos
não necessariamente sul-americanos, Ricardo dava aos textos brasileiros não
só uma inesperada complexidade como também uma nova e cosmopolita

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dignidade. Para leitores familiarizados com seu estilo, fica claro que foi a
duradoura concentração de Ricardo sobre a obra de Gilberto Freyre, culmi-
nando em sua monografia de 1994 intitulada Guerra e Paz: Casa-Grande &
Senzala e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30 (já há tempos ela mesma um
clássico), que rendeu as ilustrações mais impressionantes da eficácia própria
do que podemos chamar o “método Benzaquen”.
Se a inegável proximidade de Freyre com o horizonte de ideias fascista
durante o segundo quartel do século xx, momento do surgimento intelec-
tual de Casa-Grande & Senzala, bloqueou por décadas qualquer confron-
tação nacional frutuosa com aquela obra-prima de 1933 sobre a identidade
cultural brasileira, a abordagem de Benzaquen transcendeu o politicamente
plausível unilateralismo da sua recepção e inflamou assim um novo fascí-
nio e respeito pelo pensamento de Freyre, com a virtude de não pôr de lado
seus aspectos objetivamente problemáticos. Nada poderia ser, de fato, mais
essencial para o estilo intelectual de Ricardo: ele nunca respondia a posições
unilaterais com contraposições igualmente idiossincráticas, mas as ultra-
passava por meio de uma complexidade e um poliperspectivismo próprios
dele, isto é, graças aos contextos históricos que ele era capaz de evocar em
sua máxima complexidade.
A nova visão de Gilberto Freyre que Benzaquen possibilitou tornou-se
também o ponto de partida para uma galeria crescente de retratos indivi-
duais, extraídos da tradição intelectual nacional. Um ensaio particularmente
belo, publicado por Ricardo em 2002, desenvolveu a comparação óbvia entre
Casa-Grande & Senzala e o simultaneamente competidor e convergente li-
vro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, de 1936. Em vez de tomar
partido, ele elevou o contraste entre a visão de Freyre da cultura brasileira
como síntese e a intuição de Buarque de um precário equilíbrio entre tradi-
ções distintas a um nível de precisão no qual a leitura de ambos os livros saía
ganhando por suas diferenças. Com efeito semelhante, de libertação dos mo-
dos de entender demasiado monocromáticos e das reivindicações políticas
previsíveis, Ricardo trouxe à luz um filão discursivo de engajamento ético
nos escritos de Lucio Costa, o mentor da concepção de Brasília, e descobriu
momentos de melancolia e hesitação na correspondência de Mário de An-
drade, o modernista emblemático da história literária brasileira. Finalmente,
um número considerável de trabalhos publicados e sólidas evidências bio-
gráficas fazem-nos imaginar que Ricardo estava a meio caminho de um livro
sobre Joaquim Nabuco como figura fundadora do modernismo político no
Brasil, uma figura com a qual ele próprio compartilhava uma ambiguidade
produtiva entre o cosmopolitismo e o patriotismo.

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3.
Dada a ontologia essencialmente textual do mundo de Ricardo e os
movimentos intelectuais dominantes no universo acadêmico durante sua
adolescência e juventude, não seria de admirar que ele se deixasse impres-
sionar por postulados como o “il n’y a pas de hors-texte”* de Jacques Derrida,
e mais ainda pela redução neo-historicista da história a uma variedade de
tonalidades e gêneros textuais, isto é, por um movimento iniciado no final
dos anos 1970 e que a nossa memória ainda tende a associar, muito estreita-
mente, ao nome de Hayden White e o seu livro-marco Meta-História. Há, de
fato, alguns poucos – e inabitualmente longos – trabalhos entre as primeiras
publicações de Ricardo nos quais ele parece ter explorado o potencial dessa
implosão – ou liberação – das normas para pensar e escrever “história” tais
como elas haviam surgido, por volta de 1800, com a ascensão da visão histó-
rica na cultura ocidental. Mas algo nesses textos de Benzaquen parece ter-se
desviado das convenções, então fortemente estabelecidas, da desconstrução
e do neo-historicismo; algo bastante difícil de discernir – embora a extensão
desses ensaios possa ter sido o sintoma de uma hesitação, de sua parte, em
abraçar as novas posturas em questão.
Observo duas diferenças relevantes entre o neo-historicismo e a reação
de Ricardo a ele, diferenças que provavelmente ocorreram sem qualquer in-
tenção programática. Em primeiro lugar, Ricardo não se deteve, como era
típico do discurso neo-historicista, num nivelamento geral dos diversos
gêneros e tradições textuais em relação ao passado. Antes, após apontar os
limites da “austeridade científica” e talvez também de uma racionalidade
de tipo hegeliano, que haviam controlado a história acadêmica nos séculos
xix e xx, ele cautelosamente marcou preferência pela tradição do realismo

literário e pelas possibilidades da imaginação em lidar com o passado; uma


preferência que, a partir da nossa distância, parece similar a alguns temas
na obra do jovem Georg Lukács. Além disso e sobretudo, porém, podemos
acompanhar um fascínio, ao longo de toda a obra de Ricardo, pelo repertório
de conceitos e formas concernentes à subjetividade, fascínio que põe seu es-
tilo intelectual a uma distância ainda maior do neo-historicismo e sua busca
por “energias” solapando as dimensões do sujeito.
Evitemos mal-entendidos: Ricardo Benzaquen nunca retornou (ou fi-
cou preso) ao gênero tradicional da “biografia histórica”. Antes, ele estava à
procura do que poderíamos descrever como “efeitos de subjetividade”, isto
é, de tonalidades textuais como “tragédia” e “melancolia”, “autenticidade”

* N. do T.: “Não há nada fora do texto.”

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e “ilusão”, “contentamento”, “amizade” e “intensidade”, ou, num nível mais
próximo à identidade nacional brasileira, “cordialidade” como estilo pessoal
nas interações sociais. Da mesma forma, é notável perceber como os nomes
próprios e, com eles, os perfis individuais dos diversos autores nacionais fa-
voritos nunca se dissolviam sob o efeito da técnica de contextualização dis-
cursiva de Benzaquen. É precisamente a coexistência, de certo modo natural
e aparentemente sem esforço, de contextos históricos infindáveis junto a
efeitos de subjetividade altamente específicos que eu experimento como o
seu estilo intelectual único.

4.
Entretanto, fiéis ao que podemos aprender com a obra de Ricardo, deve-
ríamos nos perguntar, mais uma vez, pelos contextos específicos que torna-
ram possível esse estilo. Um desses contextos é bem evidente e já foi, de fato,
mencionado. Trata-se da simpatia explícita que Ricardo sentia pela forma do
ensaio intelectual, como cultivado por Georg Lukács, sobretudo na coletâ-
nea A Alma e as Formas, de 1911. Como no caso do próprio Lukács, podemos
suspeitar que a convergência promovida por Ricardo entre contextos infin-
dáveis e perfis de subjetividade específicos necessitava, para ser viável, de
liberdade em relação a constrangimentos lógicos e discursivos. Outro possí-
vel contexto é mais incerto, porém, creio, suficientemente interessante para
ser mencionado. Pois existe ao menos uma prática cultural, de longa data e
ainda produtiva, na qual se reúnem contextualização infindável e efeitos de
subjetividade específicos. Estou me referindo, claro, ao Talmude como uma
coleção em constante crescimento de comentários e instruções para a vida
judaica, oriunda da tradição rabínica; uma coleção cuja complexidade cen-
trífuga permanentemente motivou e rejeitou todo tipo de sistematizações
internas e fechamentos externos. Ao mesmo tempo, contudo, o Talmude
preservou, como efeitos de subjetividade, os nomes de muitos rabinos indi-
viduais e, mais surpreendentemente, certas tonalidades e gestos que podem
ser a eles associados.
Ora, alunos, colegas e amigos de Ricardo sempre estiveram a par de
suas origens familiares judaicas – mas não é tão claro o papel exato que essas
origens desempenharam em sua educação. “Benzaquen”, o nome de família
por ele usado em todo tipo de situações cotidianas, remonta à genealogia
sefardita marroquina de sua mãe, ao passo que o nome “Araújo” aponta para
a ascendência portuguesa (não judaica) de seu pai. É possível que a ênfase
dada ao nome sefardita tivesse a intenção de estabelecer uma conexão e tra-
dição matrilineares, como é da vida judaica. Mas não deveríamos fazer disso

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excessivo caso, especialmente aqueles entre nós que ainda recordamos a ale-
gria que Ricardo tirava da observação autoirônica de que ele havia herdado o
senso de humor judaico de seu pai, não judeu.

5.
Em vez de ceder à tentação, típica das humanidades acadêmicas, de ro-
mantizar e assim exagerar o impacto da herança judaica, a de Ricardo Ben-
zaquen, nesse caso específico, devemos reconhecê-la como apenas uma par-
te, óbvia, da infindável complexidade intelectual em cuja origem ela talvez
tenha estado. Essa complexidade fazia também de Ricardo o mais generoso
professor e orientador, pois ele era incapaz de manter seus interesses sepa-
rados dos de seus alunos. A mesma complexidade, como tentei mostrar, per-
mitiu todo tipo de conexões, paradoxais e, no entanto, possíveis de viver, em
sua existência: a contextualização infindável com os efeitos de subjetividade
específicos; a ascendência cristã portuguesa e a marroquina sefardita; o hu-
mor e estilo de intelectual judeu numa universidade católica; um patriotis-
mo brasileiro sem posições políticas bem circunscritas mas com uma aura
cosmopolita; e um mundo feito de textos que nunca chegou a reprimir o
carisma pessoal e o charme individual.

18 ricardo benzaquen de araújo

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