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CPDO

IN MEDIO VIRTUS
,

UMA ANALISE DA OBRA INTEGRALISTA


DE MIGUEL REALE

Ricardo Benzaquen de Araújo

t FUNDIÇiO GETULIO VIRGIS


CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAçAo DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL

RIO DE JANEIRO
1988
I fUtI.'OAC,'.O G�'IUU: VARGAS
! t�:jlIPO I CPLLJC

CPDOC
IN MEDIO VIRTUS
,

UMA ANALISE DA OBRA INTEGRALISTA


DE MIGUEL REALE

Ricardo Benzaquen de Araújo

FUNDiÇão GETULIO VIRGIS


CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAçAO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL

RIO DE JANEIRO
1988
,

CPOOCjlNDIPQ
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Jl.-�J38ilf .
025.00<{ gg
Coord enação editoria l : Cr i s t ina Mary Paes da Cunha

R e v i são de texto : Dora Rocha Flak sman

Dati logra f ia : Márc ia de Azevedo Rodrigues

Nota:

E s t e texto foi e scrito há cerca de c inco anos, no Cpdoc


da FGV, dentro de uma pesqu i s a ma i s ampla sobre a produção intele�
tua l int egra l i st a. Ao texto ori g i n a l acre s c e n t e i apenas uma intro-
dução e uma conc lusão, ambas bastante s umárias, e s perando que o
seu argumento a inda possa ser út i l . A propós ito, se e s ta e spe -
rança tiver a lgum fundamento, i s to se d everá bas icamente ao meu
amigo Amaury de Souza, o I uper j , c u j a inte l igência e erudição nunca
me fa l taram. Por i s to, e também pelo seu e s t ímu l o e companhe irismo,
este trabalho é ded icado a ele.

A 66 3 i

ARAÚJO, R i c ardo Benzaquen de.

In med io virt u s : uma anál i s e da obra integra l i 2


ta de Migue l R e a l e / R i c ardo Benzaquen d e Araújo. -
R io de Jane iro : Centro de pesquisa e Documentação
de H i stória Contemporânea do Bra s i l, 1988.

50 p.

Bibl iogr a f ia: p. 46 - 47

l. I n tegra l i smo - Bra s i l . 2. R ea l e ,Miguel,19.


I . Centro de Pesquisa e Documentação de H i stória Con
temporânea do Bra s i l. I . Título.

CDU 3 29.18 ( 81)


CDD 3 20 . 5 3 30981
Sumário

I n t rodução! 1

o absoluto e o re l a t ivo! 6

o E s tado e o homem! 26

Conclusão! 44

Bibl iografia! 46
In troduçã o

Pretendo rea l i z a r , n e s t e traba lho , uma aná l i s e da produ-

çao intelectual de Miguel R e a l e na época da e x i s tênc ia da Ação I n -

tegra l i s ta Bra s i l e ira ( A IB ) . Sou obrigado , portan to , a de ixar de


1
lado inúmeros outros e s tudos po s t eriormente rea l i zados por e l e,

concentrando-me , fundame n ta lmente , em tentar l evantar a sua v e r-

sao particular do integra l i smo .

o integra l i smo foi um movimento que surgiu por volta de

193 2 , no tumultuado e inc erto contexto que se seguiu a Revo lução

de 30, traz endo como novidade e s s encia lmente dois e l ementos: a pro

po sta de se organizar nacionalmente , contra uma tradição que ba -

seava e confinava a vida po l í t i c a bra s i l e i ra dentro dos l imi t e s do

" coron e l i smo " e das a l ianças loc a i s , e a preocupação em orientar a

sua a t i v idade a partir de uma doutrina , opondo-se ao cos tume , tão

comum na RepÚblica Ve lha , de m i s turar " c l iente l i s t icamente " as rela-

ç o e s pessoa i s c o m a s de poder .

E e u acred i t o que s e j a preci sament e através da d i scus são

da sua doutrina que a orig ina l idade do integra l i smo pode vir a

ser melhor compreendida . De fato , e l a inc orpora , de forma r e l a t i -

1
Uma � i s ão geral d a obra d e Rea l e , com ê n f a s e n o período p6s - in­
tegra l i s t a , poderá ser encontrada em M iguel Rea l e na UnB (1981 ) ,
des tacando - s e os t e x t o s de Ronaldo P o l e t t i , C e l s o L a f e r , Ant6nio
Paim e Tércio Sampa i o Ferraz J r .
2

vamente s i s temá t ica , um con junto de sug e s tões que perman eciam até

então inéd i t a s na c ena públ ica nac i ona l . Estas sugestõe s , em li-

nha s gera i s , propunham não s ó a cons trução d e uma soc i edade absoly

tamente homogê nea , em que as d i fe renças soc i a i s fossem aplai nadas

para e v i tar que se converte s s em em d e s i gua ldades , mas também a im-

p l ementação de uma mob i l i z ação permanente e i l imi tada , que tran s -

forma s s e todos o s c idadãos e m m i l itante s , como ú n i c o caminho para

se atingir e sustentar e s ta soc i edade .

. ' . 2
são po s i ç õ e s como e s ta s , de cunho n i t idamente totall.tar�o,

que , por um lado , dão a presença do integra l i smo nos ano s 30 um

colorido tão radic a l , tão revoluc ionári o , e, por outro , perm i t e m ,

com todos os cuidados q u e e s s a operaçao e x ige , q u e e l e s e j a teori-

camente confrontado , ao menos até c e rto pon t o , com os vários mov i -

mentos que compunham o " mo s a i c o " d o f a s c i smo europeu . I s to e v iden

temente nao s i g n i f i c a que a " ve rdad e " do integral i smo e s teja na

Europa , e l e se con s t i t u indo apenas numa e spéc i e de cópi a , de l im i -

tação d e uma matriz e s trangeira , que l h e s eria lógica e h i storica-

e que o fe-
,

mente anterior . Em vez d i s s o , o que pretendo s ug e r i r

nômeno do tota l i tari smo é po tenc i a lmente univers a l , podendo apare-

cer, sob formas concretamen t e d i s t inta s , ma s não incomparáve i s , em

qualquer lugar.

2 Sobre o conc eito de tota l i tari smo , pode-se consul tar o traba lho
c l á s s ico de Hannah Arendt , The origins o f tota l i tarian i sm ( 1973 ) .
Creio também que v a l e a pena dar uma o lhada na rec ente col etânea
de Le fort ( 1981 ) , e, para s e ter uma idé i a de uma variante tota­
l i tária bra s i l e i ra , no meu e s tudo sobre a obra de P l í n io Sa lga­
do ( c f . Benzaquen de Araú j o , 1984 ) .
3

Nota- s e , contudo, que tanto no c a so do fasci smo , em ge-

ra l , quanto no do integra l i smo , em particular , não devemos ima g i -

nar q u e s e j a pos s í v e l reduzir toda a riqueza e complexidade da

sua doutrina a urna única perspect iva , mesmo que e s ta tenha urna

ambição de uni formidade e monopó l i o tão grande quanto a tota l i tá-

ria . Muito ao contrár io , o que a aná l i s e dos autores da epoca e


3
da bibliogra f i a recente nos reve l a , corno em qualquer outro mov i -

mento pol í tico , é a e x i s tência de diversas l inhas ideo l óg i ca s , que ,

num momento , podem dar a impr e s são de que s e fundiram completamen-

te , para , no momento seguinte , reaparecerem s e parada s , opostas , e

qua s e antagôn icas.

E é justamente em função dessas d i vergênc i a s internas que

urna aná l i s e do pensamento integra l i s ta de Mig u e l Rea l e , mesmo que

s e j a tão limitada e introdutória quanto e s ta , parece-me ter a sua

importânc i a . Com e f e ito , s e o exame das pos iç6es inte l ec tu a i s de

P l í n io Sa lgado e Gus tavo Barroso , respecti vamente o principa l lí-

der e o chefe d a m i l í c i a do integra l i smo , demonstra que , embora

por caminhos inte iramente di ferente s , ambos s e aproximavam de urna

perspectiva tota l i tári a , o e s tudo dos textos de Reale deixa c l aro

que e l e adotava um ponto - d e - v i s t a eminentemente conservador , em que

a preocupação com o con j unto , com o todo , nao imp l ica a abol ição ,
- - 4
a anulaçao das partes que o compoem .

E s ta d i verg�nc i a , bá s i c a , ta l v e z possa ser relac ionada ao

fato de que , bem ma i s jovem do que P l ínio e G u s tavo, Rea l e ac abou

3 Em particular os traba lhos de De F e l i c e (1977 ) , Sternh e l l (1978)


e payne (1980 ) .
4
A respeito do conservadori smo , em e s pec i a l na sua vertente ro­
mântica, e laborada em pr incípios do s éc u lo X I X , o texto bá s ico
parece a inda ser o de Mannheim (195 3 ) .
4

por ter uma formação bastante d i s t inta da dos seus d o i s companh e i -


5
ros . Ass im, em v e z de s e i n s truir e ape r f e i çoar dentro do "mun-

d o " inte l ec tual da Primeira Repúb l i c a , d e stacand o - s e como j orna l i§

ta e / ou l i t erato , e l e ingres sou no integra l i smo imedi atamente de-

po i s de t e r concluído o curso d e d i r e i t o na U n i v e r s idade de são

Paulo. Este curso pa rece ter t ido e s pec i a l importância na d e f i n i -

ção d a carre i ra de R e a l e n o interior da AIB . De fato , a l ém de con

f i rmar um já antigo intere s s e pelo soc i a l i smo e pela ques tão so-

cial , e l e também lhe deu a oportunidade de desenvolver um talento

e spec í f ico para a s l e i s , t a l ento que o habi l i tava ma i s como j u r i s -

t a d o que como bachare l , e que f e z com q u e a sua a t i v idade po l í t i -

ca subseqüente v i e s s e s empre marcada por uma postura r igorosamente

acadêmica.

D e s s e modo , nao d e v e causar e s tranheza que R ea l e , conqu i s -

tando rapidamente um lugar na l id e rança do i n t egra l i smo , v i e s se

a ocupar exatamente a c h e f i a d o seu departamento nacional de dou-

trina . Este cargo logo o trans forma em uma f i gura púb l ica , que

edi tava rev i s ta s , pub l icava l i vros e a s s i nava colunas em j orna i s

d o mov imento , r e s ponsab i l i z ando- s e , de c e rta mane i ra , pelo lado

mais " rac iona l " da A I B.

o e x e r c í c i o d e s s a pos i ç ã o , po s s iv e lmente ma i s vo l tada para

a r e f l exão do que para o comba te , não imp l ica n e c e s sar iamente que

a prática e o comprome timento po l í t i c o s de R e a l e tenham s ido menos

5
No que s e r e f e r e � formação e � carre i ra de Rea l e , deve - s e exa-
minar o verbete que lhe é dedicado no· Dicionário h i s tórico bio­
gráfico hra s i l e ito ( c f. Be loch & A l v e s de Abreu , 1985 ) , a l ém dos
comentários autobiográ f i cos f e i t o s em Dantas Mota (198 1 ) e Mi­
gue l Rea l e n a UnB ( 19 8 1 ) .
5

intensos do que os dos seus colegas d e mov imento . Ela i r i a , entrg

tanto , in fluenc iar poderosamente a sua obra integral i s ta , dando:-

lhe um sentido extremame nte moderado e erud ito , erud ição que se

apoia , a n t e s d e ma i s nada , e m autor e s v i nculados à chamada trad i ­


6
ção soc iológ ica, como Durkh e i m , Tocquev ille , e Burckhard t . As s i m ,

cultura j u r íd i c a , in formação soc iali sta , e erud i ç ão soc iológ ica,

são , a meu ver , os principais ingred i e n t e s da con s e r vadora v i são

que Rea l e vai con s truir do integra l i smo , v i são que pa sso agora a

d i scu t i r .

6
Autores que , não por acaso , e s tabeleceram uma relação , me smo que
complexa e d i ferenc iada , com a perspec t i va con s e rvadora ( cf .
N i s be t , 1967 ) .
6

o absoluto e o relativo

"A un idade sem mu l t i p l i c idade é a t i rª


nia, e a m u l t i p l i c idade sem a unidade
é a confusio e a anarqu ia " .

Pascal c i tado por Reale em Perspecti­


vas integra l i s ta s ( p . 53 ) .

Parec e-me que o exame da obra de R e a l e deve ter como ponto

de partida uma a ná l i s e de O E s tado moderno , o l i vro que talvez ex-

ponha sua v i sio de mundo de forma mais s i n t é t i c a e g l oba l izante .

Nesse trabalho e l e n o s apr e s e nta uma aná l i s e da doutrina l ibera l ,

contrasta e s s a doutrina com a s " re a l idad e s " do mundo capita l i sta e

expõe a s a l ternativas de orga n i zaçio s o c i a l contidas no interior

do movimento fasc i s ta, a l ternativas que ele v a i chamar de tota l i ta -

r i smo e de int egra l i smo .

Seu e s tudo da ideologia l iberal começa por d e s tacar a impox

tincia que o " i ndi viduo como �nico centro c r i ador d e d i r e i tos" ( EM ?
p . 70) vai receber dentro d e l a . A noçao de ind ividuo e seus corol�

r i o s , a l i berdade e a igua ldad e , pos s uem uma h i stória bastante lon-

ga, que R e a l e vai ana l i sa r em um outro l i v r o , a Formacio da po liti�

ca burguesa . Neste momento , e l e s e l imita a nos lembrar que a apl1

7
Daqui em d i a n te, O E s t ad o mod e rn o , e a "-F -, o ",...
r= m ", i 0,--,d=ac...
c"7-"' p"- .J o "-= l í...t=-=i " c ", a "-..b ...-_

guesa serio c i tados, respect i vamente, pelas s i g l a s EM e FPB .


7

caça0 do indiv idua l i smo ao campo da po l í t i c a v a i r e s u l tar numa vi-

sao "contratua l i s t a " d o mundo , n a qual a vida soc i a l pa ssa a depe n -

der de acordos c e l ebrados e n t r e seus membros , acordos ori entados

por uma " Ra z i o " abstrata e universa l , que natural i za as relações

entre os homen s , tornando-as automá t i c a s e compu l só r ia s .

Se a doutrina l iberal começa a ser e l aborada no campo da

pOl í t i c a , vai ser na economia , en tre tanto , que e la irá a lcançar o

s eu maior d e s envolv imento . Reagindo ao " r egime de economia contro-

lada . . . pelo poder púb l i c o " (EM , p . 7 2 ) que carac t e r i zava o mercan-

t i l i smo , o l ibera l i smo econômico vai s e trans forma r , especia lmente

numa e spe-
.

depo i s da Revoluçio Francesa e da Revoluçio I nd u s tria l ,

Na França , pe l a pro-
.

cie de " c redo " o f i c i a l da soci edad e moderna .

pria ausência de uma burgue s i a industria l , e l e vai adqui r i r um s en -

t i d o eminentemente agrário . A questio bá sica , n e s s e c a s o , v a i ser a

da " supr e s sio dos d i r e i t o s feud a i s " (EM , p . 74 ) , e a conseqüente

formaçio de um " mercado l i vr e e de fron teiras abertas . . . ardente-

mente d e s e j ado pelos agri c u l tor e s " (EM , p . 75 ) . E s s e i n d i v idua l i s -

mo agrário v a i s e corpor i f i car n a doutrina F i s iocrá t i c a , que de fen-

dia a nio intervençio e s t a t a l nos a s suntos econômicos, necessaria-

mente entregues aos cuidados das " providenc i a i s " leis da natureza.

Na França , portanto , a s l e i s natura i s control avam a ter-

ra . Na Inglate rra , e s pecia lmente após a Revoluçio Indus tri a l , e la s

pa s sam a comandar a indústria . A s s i m , o " s i s tema econômico e labo-

rado . . . pelos mestres de Manc h e s t e r " vai r e f l e t i r a " me sma me n t a l i -

dade d o s f i s i ocrata s " (EM , p . 76 ) . Em ambos o s casos o ind iv íduo

coloc a - s e no centro do universo , a f irmand o - s e como o " único cr iador

da riqueza econômica " (idem ) , e a s cons eqüênc ias de sua supremaci a ,

o contratua l i smo e o economic i smo , adquirem o valor de forças natu-


8

rais , uni formes e imutáv e i s .

Encerrada e s t a suc inta apresentação da doutrina l ibera l , Reª

le pa s s a , então , a c r i t ic á - l a . E o ponto de par t ida do seu ataque

é exatamente e s t e caráter de " l e i natura l " de que o l ibera l i smo v a i

s e revest i r . E s t e caráter e s t á articulado com a própria noçao de

indiv íduo veicu l ada pelo l ibera l i smo , poi s , baseand o - s e numa con-

cepçao i n t e i ramente abstrata do homem , absolutamente separado dos

i nd i v í duo e
,

grupos primários , das famí l i a s e das c lá s s e s , e st e um

" c idadão do universo , igua l em toda parte , sem


contato com o mundo econômico e geográ f ic o , sem
r e l igião e s em v í c i o s " (EM , p. 171.

Ora , s eparado d e tal forma da soc i edade , o ind i v íduo conce-

bido pela doutrina l ib e r a l vai ter n a Razão a única fonte do seu

comportamento , urna razão u n i v e r s a l e impe s soa l , que pretende estar

presente na mesma propo rcã o e com o mesmo cont eúdo (os d i r e i t o s hu-

manos ) na mente de todos o s homens . Cons eqüentemente , os i n d i v ídu-

os cortam os seus laços com a s o c i edade apenas para s e submet e r em a

t i rania da razão , que , considerada pe l a doutrina l iberal corno par-

t e integrante da natur e z a , vai adqu i r i r força de l e i , constrangendo

a tudo e a todos sob seu dom í n i o .

É exa tamente por i s so que " o s maiores defensores do l ibera-

l i smo pol í t i c o ou econômico são d e t e rm i ni s t a s " (EM , p. 17) . A li-

berdade , para e l e s , tem um sentido puramente n ega t ivo , pois imp l i c a

s imple smente a " au s i n c i a d e obs táculos externo s " ( EM , P . 19 ) , ou

seja , a remoção de tudo aqu i l o que po ssa atrapalhar a a t i v i dade pri

vada dos indiv íduo s , impe d i r o l i vre curso d a s l e i s " natura i s " da
9

razao , que comandam, de ma neira absoluta e uni forme , o comportamen-

to humano . Não é d e s e e s t ranha r , portanto , que Reale compare es-

ta l iberdad e , numa c i tação d e Lock e , àquela que é exper imentada pe-

las águas ao descer o l e ito d e um r i o .

Conseqüentemente , e s s e " c onc e i t o negat ivo de l iberdade "

( EM , p . 18) não abre nenhum e s paço para a expressão das vontades

indiv idua i s , s i ngu l a r e s e intrans f e r í v e i s , nem po s s ib i l i ta a par t i -

c ipação d o s c idadãos na v ida d o E s tado . Pret ende apena s e l iminar

qua lquer interferência na razao natura l , que conduz os homens a

uma igua ldade compu l s ó r i a enquanto r e t i r a , de todos , o d i r e ito a


,

par t i c i pação po l í t i c a , a sua l iberdad e po sitiva , e, de cada um , sua

capacidade de auto - r e a l ização , de conc r e t i z ação das ex igênc i a s pe-

c u l i a r e s e origina i s da sua per sona l idad e . 8 Assim, " ex a l t a - s e o in

d i v íduo , e ao mesmo tempo s e proc l ama a impotência da sua vontad e "

( EM , p . 77 ) .

Note-se que , segundo R ea l e , e preci samente em função desse

caráter contrad i t ó r i o e nega t i vo d a l ib e rdade " l ibera l " que o E s t a-

do d e s empenha um pape l tão pouco importante na soc iedade moderna .

E l e não pode intervir d e mane ira po s i t iva na soc iedade , repres entan

do a vontade po l í t i c a dos c idadão s , pois i s to con s t i t u i r i a uma " im-

perdoáve l " i n f ração da negati vidade da l iberdad e . Limita-se , então ,

a atuar como um " g e ndarme " , um " guarda d e t r â n s i toll (cf . Berli n ,

1975 , p . 1 27 ) , interv indo apenas em s i tuações d e c r i s e , d e d e s eq u i -

l íbrio , preocupado apenas em e v i t a r que o s d i r e i t o s i nd i v idua i s en-·

trem em choque , e o s movimentos " natura i s " da razão s e j am pre j ud icª

dos .

8
Para uma d i scussão m a i s apro fundada dos conc e i t o s de l iberdade ne
gativa e po s i t iva , v e j a os e s tudos de Be r l i n ( 1975 ) e de La fer
( 1980 ) .
10

Esta prime i ra c r í t ica que R e a l e d i r i ge à dout r i na l iberal

tem , portan to , um s entido eminen temente interno . Ela l ida d i reta-

mente com a argumentação , com a l óg i c a do d i s curso l ibera l , procuran

do fundamentalmente apontar uma contradição que aí habita , e que

vai opor a l iberdade indiv idual ao d e t e rmini smo da razao.

A c r í t ica de R e a l e ao l ibera l i smo , entretanto , vai abranger

uma segunda d imen s ã o , b a s i c amente r e ferida à relação que vai se

e s tabe lecer e n t r e e s ta doutrina e a rea l idade socia l . Para Rea l e ,

e s pec i a lmente a part i r do s éculo X I X , v a i haver um divórcio total

entre o l ibera l i smo e a soc i edade capita l i s t a na qua l ele s e desen-

volveu . Em decorrênc i a d i s so , e l e d e v e s e r cons i d e rado e s t r i tamen-

te como uma doutr ina , um corpo d e pensamento , " um mundo de ficções

que s e quer impor à r e a l idade " ( EM , p . 83) .

Na verdad e , a e s trutura da soci edade burguesa já nao tem

mais nada a ver com a propo s t a l ibera l . Não encontramos ind i v í -

duos , m a s s im grupo s ; não e x i s t e igualdade , ma s exploração de um

grupo pelo outro , e a própria " negat iv idade " da l i berdade acaba

por ser contrad itada , na prá t i c a , p e l a i n t e r ferência do E s tado em

favor da burgu e s i a . Para me lhor e s tab e l e c e r e s t e s pontos , Reale

o monopo-
,

vai d e s tacar três carac t e r í s t ic a s básicas do l ibera l i smo :

l i o j ur í d i c o do Es tado , sua nao intervenção na s o c i edade e o cara-

ter nac iona l da soberania . E l e s e propoe , então , ana l i sar cada um

d e l e s separadamente e compará - l o s com a r e a l idade do mundo capita -

l i sta , para poder demonstrar o caráter utópico e i r r e a l da doutrina

l ibera l .

A primeira caracte r í s t ic a , o monopó l i o jurídico do Estad o ,

ao
,

e, provave lmente , a ma i s importante d e toda s . Ela se re fere

fato de que
11

" o E s tado libe ra l baseia - s e em duas ordens dis tin


tas de fenômenos sociais , os jurídicos e os econd
mico s . O s primeiros cabem tão somente ao Es tado ,
formando seu monop6 lio " ( EM , p . 93 ) .

Dessa forma , a nao intervenção e s ta t a l no domínio da economia , que

s e ria regido apenas p e l a s leis naturai s , tem como contrapartida o

controle abso luto d e toda atividade j u r ídica p e l o Estado .

E, em que consiste fundamenta lmente e s t a atividade? Para

R ea l e , citando aqui um dos capítu lOS da Dec laração dos Direitos Hu-

manos , e la consiste

"na cons ervaçao dos direitos naturais e imprescri


t í veis da p e s soa humana , a saber: a liberdade , a
propriedade , e a resistência à opr e s s ã o " ( EM , p.
94) •

O grande probl ema é que a doutrina libera l , acreditando piamente na

igualdade natural entre os homen s , c o l oca toda a ênfase na conser-

vacao d e s s e s direito s , deixando d e lado

"a cons tatação evidente de que há uma grande maiQ


ria s em o gozo da liberdade e da propriedade. , e
s em meios para r e si s tir à opr e s s ã o " ( EM , p. 95 ) .

Tendo como única função a pres e r vaçao de direitos que atin-

gem somente a um pequeno grupo , o E s tado foi obrigado a abdicar de

qualquer atividade que pud e s s e ampliar a faixa dos que são bene fi-

ciados p e l o s direitos humanos , não tendo nenhum poder para " sociali

z a r " a liberdade . O s direitos , então , trans formam-se em privi l é -

gio s , e a negatividade que marca a re lação entre o E s tado e a so-

ciedade serve apenas para garantir a sua manutenção .


12

D e s s a forma , a grande maioria d a população , a s d i versas ca-

madas d e traba lhadores , " aque l e s que ma i s n e c e s s itam do E s tado , na-

da podem e s perar de l e " ( EM , p . 96 ) . Ignorados pe lo Estado , tendo

que enfr entar a exploração e

" a inju s t iç a que s e e v idenc ia nas re laç5e s entre


patr5es e empregados , nos contra s t e s de agricultQ
r e s e indu s t r i a i s , de produtores e consumidore s "
( EM , p . 97) .

o s indiv íduos sao l evados , depois da Revolução Franc esa , a recriar

a s a s soc iac5es nro f i s s iona i s , fundando s indicatos , coope rativas e

sociedades de ajuda mútua . Todos e s s e s grupos haviam s ido pro i b i -

dos pela l e g i s lação l ib e r a l d e 1789 , que , em função do princ ípio

da l iberdade contratua l , e s tab e l e c i a que " cada indiv íduo devia d e -

fender iso ladamente o s próprios d i r e i to s " , faz endo com que cada

contrato t i v e s s e um s en t ido e um valor i n t e i ramente pa rt iculare s .

Assim,

" o oper� r i o , por e x emp lo , e r a dec larado l i v r e d i ­


ante do pa trão , s e m o d i re ito de s e un i r a outros
a f im de e s tabe l e c e r normas g e r a i s de traba lho .
Para garantia da l iberdade contratua l , o E s tado
chegara a negar o d i r e ito de a s sociação , entre-
gando o s ma i s fracos ao capri cho e à ganânc ia dos
potentado s " ( EM , p . 99 ) .

Reagindo contra e s s e e s tado de c o i sas , os trabalhadores vao

c r iar inúmeros s indicatos durante o s é c u l o XIX . Ao mesmo tempo , a

burgue s i a adota também formas própr i a s d e organização , como os tru§


13

t e s e o s carté i s , o que v a i dar , a par t i r d e s t e momento , um s entido

eminen t emente c o l e t ivo à luta entre o capital e o traba l h o .

" A força econ8mica passava , d e s s e mod o , do ind i ­


v íduo para o s grupo s , const i tuindo verdade iros
E s tados dentro d o E s tado" (EM, p . 100 ) .

A vida econ8mica na s o c i edade capita l i s ta , portanto , termi-

nou por se organ i z a r de forma inte i ramen t e d i versa daqu e l a que ha-

via s ido prognos t icada p e l a doutrina l iberal . o r e s u l tado d i sso é

que nao SO o s princ í p i o s j ur í d i c o s l ibera i s eram esquec idos e vio-

lado s , m a s também a a t iv idade d o s grupos econ8micos terminava por

c r i a r um ordenamento lega l própr i o , aut8nomo , em f l agrante desafio

a o monopó l i o j u r í d i c o formalmente e x e r c ido pelo E s tado . Por exem-

pIo: a l iberdade contratua l ,

" o contrato entre indiv íduo s , cedeu lugar aos con


tratos c o l e t ivos . E e s s e s �i veram logo uma san­
ç ao própr i a: a greve e a pun ição d o s i n fratore s .
Era uma v e rdade i ra l e g i s lação soc i a l que se de­
s envo l v i a fora dos quadros do E s tado , f e rindo a
e x c l u s i v idade lur ídica sol enemente proc lamada pa­
ra e s t e nas con s t i tu i ç6es" (EM , p . 101 ) .

A i r r e a l idade do monopÓ l i o j u r í d i c o do E s tado pa rece e star

i n t e i ramente demon s trada . R e a l e part e , e n tão , para uma rápida d i s -

cus são d a s outras duas carac t e r í s t i c a s d e f inidoras do Es tado l ibe-

ra l , comparand o - a s sempre com o pe r f i l " re a l i s t a " da soc iedade ca-

pit a l i s t a que ele acaba de d e s enha r .


f f"UNDAç:I',? �GETÚLlO VARGAS 14
'_ I . O/. Q I CPooc
J
A segunda d e s s a s caract erí s t i c a s , o caráter nao intervenciQ

n i sta d o Es tado l ibera l , s ó se v e r i fica p l enamente no período de


,
formação da s o c i edade capita l i s ta , quando o aux í l io e s tatal nao e

mu ito n e c e s s á r i o para a burgue s i a . Entretanto , no per íodo de expan

são do capita l i smo , que se i n i c ia por v o l t a de 1860 , o E s tado vai

aparecer i n t e i ramente a r t i c ulado com os inte r e s s e s burgues e s . Esta

fase tem i n í c i o com o " prot e c i on i smo a l fandegário " e x i g ido pe los

empresár ios de a l gumas nações que , sem pode r concorrer com a s mer-

cado r i a s produzidas por indus t r i a i s de p a í s e s ma i s desenvolvidos ,

obrigam o E s tado a abandonar o l i vr e -cambismo , " pervert endo " , em

seu ben e f í c i o , as regras econômicas l ibera i s .

Contudo , para R e a l e , o apogeu d e s s e per íodo vai se dar du-

rante o proc e s so d e expansão impe r i a l i s t a r e a l i zado pelas naçoes

européias a part i r do s éculo XIX . Ne s s e proc e s s o , o E s tado nacio-

nal chega a de scarac t e r i z a r - s e qua s e que completamente , trans forman

do-se em uma e s péc i e de "mar ione t e " n a s mãos dos f inanc i s t a s inter-

naciona i s , que o man ipu l am a seu " b e l -praz e r " , ora forç ando - o a ir

a guerra , o r a obrigando-o a a c e i tar a p a z em cond ições d e s a strosas

para o s outros grupos soc i a i s nele contido s . Como s e vê , nada ma i s

inverídico e utópico d o que a s e paração entre o Es tado e a a t ivida-

de econômica . Na verdad e , a intervenção e s t a t a l é uma constante no

capita l i smo moderno , sempre a favor das c la s s e s mai s poderosa s .

Quanto a t e r c e i r a carac t e r í s t ica da doutrina l ibera l , o

caráter nacional da soberan i a , e l a deve s e r encarada como

" uma d a s conq u i s t a s p r e c í puas da Revolução Fran­


c e sa" , (consi s t indo ) "na a f i rmação de que a sobe­
rania r e s ide na nação , d evendo os repre s entantes
falar em nome da s o c i edade toda e não em nome dos
seus e l e i tore s " (EM , p. 107) .
15

Pretend i a - s e evi tar , com i s t o , que a a s s emb l é i a s e trans forma s s e ng

ma e spéc ie de " agregado" d e vontad e s pa rticul a r e s , " po i s o soberano

no E s tado deve s e r a vontade g e ra l " , que é "a vontade de todo o po-

VOll a Nesta concepção de Rou s s eau , cada d e putado representaria sem-

pre a vontade gera l , e nunca a von tade da fração do povo que o e l e -

geu .

Entretanto , acontece que , p e l o própr io tamanho da ma ior

parte das sociedades mode rna s , a s e l eção d e s s e s deputados teria de

s e r feita através d e partido s , que fariam a med iação entre o gover-

no e a ma s s a de e l e i tores. E s s e s partidos deveriam, por d e f i n ição ,

d i ferenc i a r - s e em função de ideolog i a s , o que pos s ibi l i ta r i a ao

e l e itorado

" d i s t r i bu i r - s e em torno de vários centros de i d e ­


ais , segundo . . . a s p r e s s õ e s do sent imento e do
intere s s e . D e s s e modo , pa recia rea l i zado o pensa
mento d e Jean Jacque s : a s vontad e s particulares
s e j u s tapunham para dar , por exc lusão , a vontade
g e ra l " ( EM , p . 109 ) .

O s partidos , contudo , nao man t i v e ram o seu fundo ideológico

por muito tempo . Foram rapidamente atraídos à s e s feras d e i n f l uên-

c i a dos grupos pro f i s s iona i s , trans formando - s e numa e sp é c i e d e " d i.§.

farc e " através do qual a a t i v idade corpora t iva , proibida por l e i , mª

t e r i a l i zava - s e no campo da po l í t i ca. Como r e s u l tado , a soberan i a

d e s l ocou-se d o domí nio d a nação , d a vontade geral , para o d o s s indi

catos e carté i s , com suas von tad e s part iculares e con f l i t i va s , dan-

do um caráter a inda ma i s irreal à dout r i na l iberal.


16

E s ta doutrina , portanto , a l ém de e s tar fundada em pressu­

postos contrad i tó r io s , v a l o r i z ando o ind i v íduo e negando a sua li-

berdade , não cons egue conc r e t i z a r , de forma duradour a , nenhum dos

seus princípios b á s i co s . A s s i m , O l ibera l i smo pa ssa a e x i s t i r ape-

nas como crença , como s e f o s s e uma a lma sem corpo , um v e rdadeiro

fantasma .

Tornava - s e n e c e s s á r i o , d e s ta forma , nao apena s c r i t i c a r mas

também superar sua doutrina , a t ravés da con s t rução de a l t ernativas

que fossem soc i a lmente ma i s j u s t a s , logicamente ma i s cons i s tente s ,

e que t i v e s s em cond iç5es de atuar d e mane ira e f icaz na remode l aç ão

da s o c iedade capita l i s t a , e s capando ao i r re a l i smo que acabou por

v i t imar a proposta l iberal.

Essas a l t e rnat iva s , segundo R e a l e , vao s e r bas icamente apr�

sentadas pelo movimento f a s c i s t a , que se torna , dessa man e i r a , o

grande opo s itor e sucessor do l ib e ra l i smo . Entre tanto , o significa

d o d e s t e movimento n ã o pode s e r reve lado de forma d i reta , automá­

t i c a , como quando se r e c i ta um catá logo de propos iç5es . Sua expli­

caça0 exige análise e �e f l e x ã o , po i s coexistem dentro dele duas co�

rentes que , embora bastante d i ferente s , sao g e ralmente confundida s ,

até mesmo pelos própr ios integrantes do f a s c i smo . Num e s forço para

d i s t ingu i - l a s , R e a l e sugere que a primeira de fende o que e l e chama

de Es tado Tot a l i t ár i o , enquanto a segunda sus tentar ia o Estado In­

t egr a l .

A primeira d e s t a s concepç o e s tem como ponto de partida a

negaçao absoluta do ind i v idua l i smo proposto pela doutrina l iberal.

S e esta valoriza ao máx imo O ind i v íduo e a l iberdade ( negativa ) , r�

duz indo o E s tado e a sua autoridade ao s eu valor mín imo , o fa scismo

tota l i tário vai po s tu l a r exatament e o contrár i o : um E s tado abso lu-


17

to , que ocupe todos os e s paços da sociedad e , absorvendo comple tamen

te os indivíduos e anulando a sua liberdad e .

E s ta corren t e , na visão de R e a l e , t e ria em A l fredo Rocco

seu maior de fensor no interior do fascismo , e seria anunciada nas

obras de Comt e , de Mais t r e , e Hege l . No entanto , sua principal fon

te de inspiração pOd eria s e r encontrada nos traba lhos de P latão ,

pois e s t e vai s e r o primeiro a d e finir o

" c onceito d e E s tado como um todo homogêneo , uma


unidade pura . . . , em que nao s e dis tinguiriam , prª
ticament e , a s partes compon ente s " ( EM , p. 180) .

No liberalismo s6 havia o indivíduo e a liberdade . No to-

ta lita rismo , s6 haverá a autoridade do E s tado . Raciocinando dessa

forma , d e f endendo uma noção d e tota lidade indiferenciada , amorfa e

inorgânic a , o tota litarismo pode s e tornar tão nocivo quanto a pr6-

pria doutrina libera l , pois faz " tábu l a rasa de muitas conquistas

precio s a s do c ri s tianismo e da civilização burguesa " , e specia lmen-

t e no que s e r e f e r e aos " va lores exc lusivos do indiv íduo" ( EM , p.

185) . A l ém disso , e s t a concepção " mecânica " da unidade , sug erida

pelo totalitarismo , ao d e s prezar as part e s con s tituintes do todo ,

os indivíduos e o s grupo s , adquire um s entido tão ut6pico e irreal

quanto o do libe r a lismo . E s t e ignora o E s tado ; o totalitarismo de�

conhece os indivíduo s , ambos e squecem os grupo s .

A corrente integra lista , adotada por R ea l e , também s e preo­

cupa em c omba ter o individualismo e devolver a autoridade ao Esta­

do, mas de forma inteiramente diferente da postu lada pelo totalita-

rismo . Não s e trata , en tão , de absolutizar o E s tado e eliminar o


18

'. .

ind iv íduo, ace itando-se , com o s i na l trocado, a oposi ção impo s t a p�

la doutrina l i bera l, o que se pretende, ao contrár io, e a supera-

çao dessa cbntradição, anuland o - s e o antagon i smo entre o indiv íduo

e o Estado, entre a liberdade e a autoridade,

Para tan t o , torna - s e indispensável uma concepçao de totali-

dade completamente d i versa da sugerida pe lo tota l i tari smo, uma to­

ta lidade orgânica, d i ferenciada e complexa, que articule os e l emen-

tos que a compoem, os indivíduos e os grupos, s em de ixar de reconh�

cer os seus valores oróprios e s i ngulare s . Como d i z Rea l e ,

"uma das cara c t e r í s t i c a s da unidade orgânica e


preci samente esta de integrar d i s c r iminando . O tQ
do não deve absorver as pa rtes (tota l i t a r i smo ) ,
mas integrar valores comuns respe itando os va lo­
res e s pec í f icos e exclus ivos (integra l i smo ) " (EM,
p . 188 ) .

Mas como, concretamente, e s sa proposta integra l i sta pode

ser realizada? De que mane ira se pode s e l a r um armi s t í c i o e e s tab�

lecer a aliança entre o indiv íduo e o Estado? Para isso é nec e s s a ­

r i o que , de um lado, sejam red e f inidos os sentidos da noção d e in-

div íduo e da de Es tado, e, de outro, seja encontrado um terc e iro

e l emento capaz de fazer a med iacão entre os d o i s primeiros . Com e-ª.

tas duas " prov idinc ias " , a a l ternat iva proposta pe lo integra l i smo

e s tará em cond ições de s e r viabi l i z ada .

Comecemos por d i scutir a mudança de s igni f icado s o f r ida pe-

la noção de indiv íduo dentro da perspe c t i va do integra l i smo . A do!!

trina l ibera l, como já foi v i s to, d e f i n i a o indiv íduo em função da

igualdade e de uma v i são " nega t i v a " da l iberdade . Ac redi tando que

os homens eram " natura lmen te " igua is, que todos po s s uíam a mesma
19

" quantida de " d e razao , e la pre sumia que bas tava l ibertar os homens

das inst i tu i ções ( a n t i natura i s ) que os oprimiam, obstacu l i zando o

curso da razão , para que a igua ldade s e torna s s e regra . Era um " in

d i v idual i smo quan t i ta t i vo " , para u t i l i z a rmos uma e x pres sa0 de Sim

me l ( 1950 , p. 64 ) .

Já a noçao do ind i v íduo imp l í c i ta no fasc i smo in tegra l i sta

tem um s entido comp l etamente d i ferent e . Para e l e " o f im supremo do

homem é a autarqu i a , . . . i s to é , o d e s envo l v imento compl e t o da perso

n a l idad e " ( EM , p . 181 ) . E n fa t i za - s e , portanto , a s potenc i a l idades

e a vontade de cada um, a s caracter í s t i c a s particulares e orig ina i s

d e cada indiv íduo , aqu i lo que m a i s o s d i ferenc ia , não o que o s iden

t i f ic a . A crença em uma razão un i forme e onipotente é inte iramen-

te abandonada , e, em seu luga r , é v a l o r i z ada a persona l idade s ingu-

lar e incomparável de cada homem , s a l i entando - s e o seu " poder de

e scolha autõnoma " , a sua " facu ldade de interferinc ia " ( EM , p. 17 ) ,

e nao a sua pass i v idade d i ante das forças " natura i s " e invar i á v e i s

da razao .

A igua ldade , con s eqüentement e , d e i x a de ter qualquer impor-

tância , e a l iberdade adquire um s i gn i f icado puramente " i nter i orlt ,

confundindo-se com a noção de auto-rea l i zação , de expr e s sa0 das

" qual idad e s " internas d e cada indiv íduo . o integra l i smo de Rea l e ,

a s s im, vai ut i l i z a r uma v i são " qua l i ta t i v a " d o indiv íduo (cf . S im-

me l , 1950 , p . 7 8 ) , que parece ter no Renasc imento o seu ponto de

part ida , e n o romanti smo europeu , n o i n í c i o d o s éculo X I X , o s eu mQ


9
mento de ma�or e l aboraçao.
. _

9 Consul t e - s e , para uma aná l i s e do indiv idua l i smo qua l i ta t i vo , os


traba lhos de S imme l , ( 1950) e de Lukes ( 1973 ) .
20

Recapi tulando : e s s e " individua l i smo qua l i t at ivo" , propo s -

t o pelo int egra l i smo , aprese nta duas carac t e r í s t i cas b á s i ca s . Des-

preza a igualdade , enfatizando a singu l a r idade , a persona l idade

pecu l iar de cada indivíduo, e dá um s e n tido "interior" � id�ia de

l iberdade , que se equipara � noção de auto-rea l i zação , de expansao

das potenc i a l idades originais de cada homem .

Ora , a primeira d e s s a s carac t e r í s t icas faz com que cada

i nd i v íduo s e ded ique a uma a t i vidade e s pec í f i c a , s i n gu l a r , o que

tem como con seqüênc ia o i n e v i t á v e l aparec imento de um ideal de e s -


(
pec i a l i zação n e s s e t i po d e proposta . O r e s u l tado d i s so � que e s s e

i nd i v í duo nec e s s i ta sempre a r t i c u l a r - s e com a lgum organi smo coor-

denado r , que garanta a "supl ementação r e c í proc a " (cf . S imme l , 1950,

p. 8 2 ) , a compl ementaridade entre as d i v e r s a s a t i v idades dos d i f e -

rentes indiv íduos . E � prec i samente e s s a a função que vai s e r d e -

s empenhada pe lo E s tado n o e squema que R e a l e nos apr e s e nt a : a d e um

" c entro coordenado r " , rea l i zando a " in tegração i nc e s sante das va-

r i edade s " (Perspe c t i v a s integr a l ista s , p . 53 ) , eng lobando a s d i f e -

renças para que e la s possam s e a r t i c u l a r em um todo " orgânico " ,

h i erárquico e comp l emen tar , e não s e e spalhem na d i reção da anar-

quia .

A segunda carac t e r í s t i c a e s tudada , a auto - r ea l i zação , tam-

b�m v a i t e r profunda inf luênc i a na concepção integra l i sta da socig

dad e . I s so acontece porque e s sa auto- r e a l i zação não s e l imita ape

nas �s a t i v idades privadas do ind i v í duo , sua v ida em famí l i a , e,

e spec i a lmente , sua re lação com o traba lho, e s fera onde sao ma iores

a s suas chan c e s d e " re a l i z a r " a sua c r i a t iv idade , de expre s s a r a s

suas qual idades pe s soa i s . Ela e s t imu l a tamb�m a sua atuação po l í -

tica, sua part i c i pação na vida púb l i c a da comunidade e do E s tado .


21

E e pre c i s amente por i s to que a proposta integra l i sta sugere a c r i

ação de " corpos int ermed "

pos que representariam um "segundo nív e l " de " re a l i zação " , de ex-

pres sao d a s qua l i dades interiores de c a d a um , ampliando a " l ibe rdª

de" concre t i z ada ao n í v e l do trabalho.

E é o próprio traba lho que vai forn ecer o c r i té r io para a

formação d e s s e s corpos intermed i á r ios , que a s sumirão a forma de

grupos pro f i s s iona i s , ou s e j a , d e s i n d i catos e corporaçoe s . Estes

v ã o funcionar como mediadores entre o E s tado e o ind i v íduo , rela-

t i v i zando o poder d e coordenação exerc ido p e l o prime i ro e abrindo

ao segundo um e s paço no qua l e l e pode d e senvo l v e r a sua c idadan ia ,

exprimindo a sua persona l idade também na vida públ ica.

Not e - s e que há uma evidente re lação entre esta l iberdade

"qua l i ta t i v a " e a noção de l iberdade "pos i t i v a " , a l iberdade "an-

tiga " , que acen tua ba s icamente a i d é ia de par t i c ipação (c f . B e r l i n ,

1975 , e La fer , 1980 ) . E é exa tamente e s ta ênfase na pa rtic ipação

que vai por em contato e s ta s duas l iberdad e s , separando-as da li-

berdade "nega t i va " , que , ao contrár i o , r e j e i t a qua lquer pos sibi l i -

dade de atuação pOl í t ica dos i n d i v íduos , impl icando s imp l e smente a

manutenção de " uma e s fera privada de ação não controlada pelo po-

der" , capa z de garan t i r "a cada s e r humano uma porção de e x i s tên-

c ia independente do contro l e soc ia l " (c f . La f e r , 1980 , p. 21) .

Para R e a l e , entretanto , há uma profunda d i ferença entre a

pa r t i c i pação sugerida p e l a l iberdade qua l i ta t iva e a que é propo s -


. ,
ta pe l a l iberdade pos i t i va . Esta , que const1 tu1a o cerne da a n t i -

g a democ racia grega , impl icaria fundamentalmente n a superva loriza-

ção da e s fera pÚb l i c a , confund indo - s e com a soberan i a , e anulando

comp l e tamente a s emoçoes e as qua l idades privadas de cada c idadão.


22

Abso luti zando a par t i c i pação pOl í t ica , a vida púb l i c a , ela term i -

naria por e x i g i r a

" pr e s ença perpétua do c idadão na praça públ ic a ,


s em s e r incompa t í v e l com a submis são compl eta do
ind i v íduo à autoridade do con junto" (Actualida-
des d e um mundo antigo , p . 102 ) . 10

É interes sante nota r que a l iberdade mod erna , negat iva ,

proposta pela dout r i na l ibera l , atinge , por caminhos opos tos , o

mesmo resul tado: a anul ação da persona l idade do ind iv íduo . Uma

o entrega à " t iran i a " da razao , a outra ao contro l e da a s semb l é i a

d a s Cidade s-Estado . Nos dois c a sos , a s qua l i dades s ingulares de

cada indiv íduo são submetidas e apagad a s .

De fato, na v i são d e R ea l e , apenas a l iberdade qua l i ta t i -

va , com sua ênfase n a s ingu l a r idade e na auto-real ização , pos s ib i -

l i taria ao integra l i smo a montagem de u m projeto de soc iedade tão

complexo e equ i l ibrado que t i v e s s e cond i ç õ e s de en frentar e r e s o l -


. . ,
ver os d i l emas da vida moderna: e l e compreend e , num pr1me1ro n1-

ve l , uma e s fera de a tuação i n t e i ramente privada para cada indiví-

duo , ocupada ba s icamente pelo domínio do traba lho , da a t i vidade

produtiva , na qua l cada um tem e s paço para exprimi r e de senvolver

a sua person a l i d ad e , e x e rc i tando sua c r i a t i v idade como arti sta , ou

10
A c r í t ica que R e a l e d i r i g e à l iberdade posItiva é , n e s t e pont o ,
fundamenta lmente a mesma que é f e i t a por B e r l i n no s eu " Two COI!
cepts of l i berty" ( em Be r l i n , 1975 ) . A d i f e rença entre os do i s
é que a d i scordâ ncia d e B e r l i n abso l u t i z a a l iberdade nega t iva ,
tran s formando toda mob i l i z ação em v e í culo para o tota l i ta r i smo ,
enquanto Rea l e , o r i entado pelo que , segundo S imme l (1950 ) , e s ­
tou chamando de "l iberdade qua l i t a t i va " , não condena d e f i n i tivª
mente a idéia de pa r t i c ipaç ão , mas tenta combiná - l a com a d e f e ­
s a d e valores plura l i stas , a i nda que o s e u s e j a u m plura l i smo
e s s enc i a lmente l im i tado , j á que é corpora t i vo e con s e rvador.
23

como arte são.

Num segundo níve l , abr e - se um e s paço no qual é pos s í v e l s e

combinar a a tuação púb l i c a d e s s e s indiví duos , a "expressão" das

suas pa ixões e i n t e r e s s e s po l í ticos , com a presença e f etiva do

Estado . E s t e n í v e l vai s e r composto por "6rgãos grupa l i s tas" (EM,

p. 99) , corpos int ermediár ios que , representando uma amp l i ação da

faixa de " re a l i z ação" de cada indiv íduo , vão t e r sua formação ba­

seada exatamente no me smo domínio em que e s t a " re a l ização" s e con­

c r e t i z ava no prime i ro n í v e l do pro j e to int egra l i sta , o do traba lho .

A d i ferença é que , n e s t e segundo n í ve l , a a t ividade criativa toma

um s e n t ido púb l i c o , e não privado , s6 podendo s e r conc r e t i zada em

grupos , nunca i soladamente.

E s s e s grupos s e rao , . portanto , de f i n idos por c r i térios re-

t i rados a o traba lho , s e rão grupos oro f i s s ionai s . Eles se dividi-

rão e m doi s t i pos , o s s indicatos e a s corporações. Nos prime i ros

i rão s e reun i r , s e paradamente , os repres entantes das duas c l a s s e s

d i r e tamente l igadas à produção. Assim, e m cada s e tor d a a t i v ida­

de produ t i va , haverá um s indicato de patrões e outro de emprega­

dos . Já as corporaç õ e s s e rão d e f i n idas por s e tor , e reunirão um

representante do s i ndicato dos pa t rõ e s , outro dos empregados , e

um enviado do Es tado , que , j untos d i scut irão os problemas internos

e a s r e i v indicações do s e tor como um todo.

Note-se que a formação das corporaçõ e s , grupos horizont a i s ,

ao contrário dos s i ndicatos , e s t á baseada em um duplo c r i t é r io : de

um lado , l e g i t ima- s e a d e s igua ldade , po i s R e a l e acred i ta f i rmemen-

te na d i ferença entre as capac idad e s indiv idua i s . De outro , tenta

-se s e l a r um acordo entre a s c l a s s e s preci sament e em função do se­

tor , da área comum d e a t i v idades que todos e scolheram para expr e s -


HGAS
FUNliA\".i GUUUO VA 24
L .Ji�': ICPDCC
�---

sar a s suas singular e s e d e s igua i s qua l idades i n t e r iore s . Dividem

-se entre patrões e empregados , certamente , ma s un i f icam-se pe lo

fato de que todos e sco lheram a área dos têxte i s , por exemp lo, para

trabalha r , e é em função d e s s a concord â n c i a que se vai tentar d e -

f i n i r uma a l iança e n t r e os dois grupos . o que s e para , o que d i f e -

renc ia , na e s fera das a t i v i dades privada s , e o que junta na area


. .

de atuação púb l ica , com os s indicatos faz endo a mediação entre os

indiv íduos e a s corporaçoe s , e estas entre os s ind icatos e o

E s tado .

As corporaçoe s , d e s s a man e i ra, sao grupos e s pec i a l i zados,

baseados na área de intere s s e comum que os seus membros, de ambas

as c l a s s e s , e s colheram para " re a l i z ar sua vocação " . E é exatamen-

t e esta e s pec i a l i zação das corporaç õ e s , que tem sua ra i z na pro-

pria s ingu lar idade da persona l idade do indiv íduo que e s t á na ba s e

d o e squema , que v a i tornar i nd i s pensáv e l , n o ponto f in a l da propo§

ta integra l i sta , a presença coordenadora do E s tado . E l e v a i fun-

c ionar como o grande integrador das d i v e r s a s a t i v idad e s dos ind i -

v íduos e dos grupos , dando u m caráter orgânico e compl ementar ao


.

conjunto das d i f e renç a s . A atuação do E s t ado , nesse e squema, e,

e v identemente , ba s tante grand e . Mas d e v e - s e s a l i entar que ela

não é f e i ta e m detrimento dos outros e l ementos que compõem o con-

junto , ocupando o lugar que l h e s pertenc i a . Ao cont rário , o Esta-

do vai s e s i tuar entre e s s e s e l emento s , no e spaço aberto pe l a sua

pr6pr ia s ingula ridade e e s pec i a l i zação , coordenando e superv i s io-

nando a s re l a ç õ e s que s e e s tabe l ecem entre e l e s .

Temos a s s i m , vol tando à d i scussão i n i c ia l , a proposta de

uma tota l idade e x t r emamente d i f e r enc iada , vertebrada e orgâ n ic a ,

na qua l a s d i ferenças sao integradas e eng lobadas , mas não abo l i -


25

das , num modelo que parece rea lmen t e e s tar mais próximo de uma or-

.dem h i e r�rquica , t a l como retrabalhada pelo con�ervadori smo euro-


11
peu , d o que d o totalltarlsmo.
. .

Na verdad e , a proximidade com uma perspe c t i v a con s e r vado-

ra nao p�ra a í , poi s o projeto integra l i sta que e s tamos ana l i sando

não pretende apenas s e r soc ia lmente ma i s j u s to e log i c amente ma i s

con s i s tente que o l ibera l i smo e o �ota l i ta r i smo . Ele tem também

a ambição de s e r m a i s f a c t í ve l , j � que os e l ementos b� s icos do

seu e squema , os indi víduos , os grupos pro f i s s iona i s , e o E s tado ,

s e r iam e f e t i vamente encontr�veis na soc i edade capi t a l i s ta mode rna .

De s s e modo , s empre segundo o ponto-d e - v i s ta de Rea l e , e s ta propo s -

ta não s e rea l i za apenas a o n í v e l d a doutrina , da utop i a , perden-

do-se num ideal onde só s e enxerga o que s e quer v e r . E l a enfren7

ta , pragmat icament e , a r e a l idade soc i a l , e, por i s s o , a sua e f i c � -

cia e a s s u a s chances de suc e s so sao , para e l e , b e m ma iores.

11
A d i ferença entre h i e rarquia e tota l i tari smo é d i s cutida , numa
prime i ra abordagem, p e l o art igo d e Dumont (1970 ) , e pelo meu
t e x to sobre P l í n io S a l gado (c f . Benzaquen de Araú j o , 1984 ) .
26

o Estado e o homem

Como j á foi d i t o na abertura da seçao anterior , o Estado

moderno é , t a l ve z , o l i vro ma i s importante e s in t é t ico de Rea l e ,

poi s l á e s tão cont idos e ana l i sados os mod e los que s ervem de ba-

s e à sua r e f l exão . Desta forma , s e e s t a aná l i s e se enc errasse- na

sua prime ira seção , o l e i tor t a l v e z pude s s e t e r uma v i são bem ra­

zoável do pensamento d e R e a l e .

Entretanto , parece -me importante e s tender u m pouco ma i s e §

t e traba lho , e examinar outro d e seus l ivros , a Formacão da pol í­

tica burguesa , para que possamos e s c l a r e c e r e confirmar ( ou não)

a lgumas das h i póte s e s l evantadas na aná l i s e de O Es tado moderno , e,

ao mesmo tempo , t e r uma v i são ma i s g e r a l do e squema inte l ectual do

autor que e s tamos e s tudando.

Ao e sc re v e r a Formacão da po l í t ica burguesa. Reale preten­

de ma i s do que f a z e r uma h i s tó r i a do l ibera l i smo e dos seus funda­

mentos . Sua intenção é a d e ana l i s ar a s propr iedades bá s i ca s , os

" pr i n c í pios pec u l i a re s " , da doutrina l ibera l . O ponto de part ida

d e sta procura é uma sucinta aná l i s e do �mpério Romano. Seu obj e ­

t i vo é , pre c i samen t e , o d e encontrar os princípios caracte r í s t icos

d e sta c i v i l i zação , que vão r e s id i r , s egundo R e a l e , no ex tremo for­

talec imento da autoridade central que aí v a i ocorrer . Sucedendo a

c i v i l i z ação grega , e s t ruturada em função das C idad e s - E stado , fero�


27

mente c iosas da sua independênc i a , Roma v a i s e d e s tacar por um

g i gantesco movimento no s ent ido da formação de um E s tado extrema-

mente pod e roso . E s t e E s tado teve por tare fa a unif icação das d i fg

rentes soc iedad e s que v i v iam no i n t e r ior do impé r i o , pos sibi l i tan-

do que houv e s se

" uma s ó l í ngua dominan t e , uma e s t rutura fundamen


t a l ha rmon i z ando a s d i ferenças étnicas e geográ­
ficas , e um pantheon reunindo todos os deuse s "
(FPB , p. 16).

Conseqüentemente , acaba s endo formada

" uma con s c i ê n c i a impe r i a l profunda . o mundo ad-


quire um ponto de r e ferênc i a , um imperador , do
qual tudo s e e spera como intérprete e guia das
a s pirações comun s " (FPB , p. 17) .

Não s e imag ine , contudo , que e st e ex traord inário pod er de que usu-

fruía o imperador t i ve s s e um caráter a rb i t rário , l ivremente man i -

pulado por e l e a o sabor d a sua vontad e . Ao contrário , o que tor-

na ext remamente importante e s t e f loresc imento " romano" do E s tado

é preci samente o fato de que e l e vem acompanhado de um minucioso

ordenamento l egal , que d e f ine os fundamentos conc e i tua i s e a s a t r i

bu ições conc retas d o Estado, faz endo com q u e a " consc iência impe­

r i a l s eja uma con s c i ê n c i a prec ipuamente j u r í d i c a " (FPB , p. 19) . NQ

te-se que é exatamente e s t a de f i n i ção j ur íd i c a do E stado romano

que v a i tornar pos s í v e l a sua recuperação , séculos ma i s tard e , pe -

los j u r i s t a s que pa r t i c i param da c r i ação da soc iedade moderna .

E s ta con s c i ê n c i a impe r i a l , no entanto , nao consegue durar

muito tempo, sucumbindo d iante de duas forças d e s agregadoras que o


28

Império Romano se v ê obrigado a enfrentar qua s e gue s imul taneamen-

te : a prime i ra d e l a s é o c r i s t ianismo , e a seg�nda , as populações

"bárbara s " que invadem o impé r io a par t i r do século IV .

o c r i s t iani smo representa um per igo para a centra l i z ação

romana porque introduz , no mundo antigo , a figura do indiv íduo .

E l a era , então , int e i ramente d e sconhec ida , me smo em regimes demo -

c rá t icos como o atenien s e . I s so acontece porque , como j á foi d i to

na s eçao anterior , a democ racia antiga valori zava apenas uma certa

d e f i n ição de l iberdade pos i t iva , que importava na par t i c ipação

obr igatória do c idadão na vida po l í t i c a da c idade . Assim, so era


,

reconhecido o lado públ ico de cada s e r humano , po i s a l iberdade

queria d i z er apenas atuação na e s fera do E s tado .

" O c idadão da pÓ l i s nao é l i vre por ser homem ,


mas por s e r c idadão , d e modo que os conce i tos de
l iberdade e soberan�a s e confundem tão int imamen
t e que o organi smo do E s tado acaba aniquilando a
autonomia do indiv íduo " ( F PB , p. 24) .

Não hav i a , para u s a r uma outra fórmula de R ea l e , " i nd i v i -

dual ização d a l iberdade " , não s e con s i d e rava o lado pr ivado , as

qua l idades i n t e r iores de cada homem . E foi preci samente esta a

" revolução" operada pelo c r i s t ia n i smo , a int rodução de uma " c u l tu-

ra da persona l idade " , faz endo com que " o homem deixasse de valer

como c idadão para valer como homem" (FPB , p. 21) . A princ ipa l COI!

s eqüênc ia d i s s o , natura lment e , foi o reconhec imento da ( re l a t i v a )

independ ência d o s ind i v íduos e m re lação a o E s tado , com quem pas-

savam , agora , a d i v i d i r a soc i edade .


29

Ora , s e esta nov idade in trodu z ida p e l o c r i s t i a ni smo conse­

guia ser rad i c a l mesmo quando comparada com a " d emocrá tica Atena s " ,

imag i n e - s e os problema s que causou ao explod i r numa c i v i l i zação

tão centra l i z ada corno a romana , onde o sentido de todas as rela-

ç o e s era dado pelo Es tado impe r i a l . Houve problemas de consc iên-

cia , po i s era preci samente a con s c i ência ind i v id ua l que e stava serr

do inventada , c r i a ram- s e dúvidas entre os c i dadã os , h e s i t ações en­

tre a I g reja e o E s tado , e, por f i m , o própr i o q u e s t i onamento da

autor idade do impe rado r , num proc e s s o que c r i ava fendas e buracos

na mono l í t i c a rocha do Estado romano .

Aba lada pelo c r i s t ia n i smo , esta rocha nao vai resistir ao

embate com outro poderoso in imigo , o s povos germânicos . O contato

com e s t e s povos teve um sentido profundamente desag regador para o

impé r i o , po i s e l e s repud iavam , v i o lenta e completamente , a sua

ma i s importante trad i ç ã o , a c entra l i zação e s tat a l .

"O Estado . . . nada s igni f i ca para o bárba r o , habi tu-ª


do a v a l e r soz inho nas aventuras da e x i stênc i a
nômade . O germano primitivo tem o ind i v idua l i s ­
m o e s pontâneo , irracional e prepotente dos de­
sorgan i z ado s " (FPB , p. 2 9 - 3 0 ) .

O i n d i v íduo c r i ado pelo c r i s t i a n i smo causava problema s , mas

nao advogava a ext inção do Es tado , nem a destruição da unidade im-

pe ria l ; pretendia coex i s t i r com e l e s . Já o i n d i v íduo " se l vagem"

traduz ido pelos germanos não adm i t i a nenhuma conv i vência com a

c i v i l i zação romana. É o " a ntagoni smo de c i v i l i zação , de raça s , de

l ínguas e de cos tume s ; l ibertari smo d e .povos primitivos contra e s -

tati smo d e povos cansado s " (FPB , p . 36) . Como r e s u l t ado d e s s e chQ
30

que , o E s tado romano s e d i s solve , e a unidade impe r i a l v a i de sapa-

recer . Das suas ruína s , combinando romanos e germanos atrav�s da

mediação da Igreja , nasce uma nova c i v i l i zação , d e f inida por ou­

tros princípios , a Idade M�d i a .

Para R ea l e , � realmente a I g r e ja que vai fazer a mediação

entre o mundo antigo e o mundo med i e va l . Conseguindo converter a

maioria dos c h e f e s " bárbaros " , a Igr eja c r i s tã consegue supremacia

sobre a s out r a s c rença s , trans formando a Idade M�d ia numa �poca de

unidade r e l igiosa . E s s a unidade , contudo , deve s e r duplamente r e -

l a t i vizada . No terreno propriamente r e l i g ioso , a I g r eja demon s t ra

uma " e spec i a l capac idade de adaptação " , a s s im i l ando , quando inevi-

táve l , tanto i n s t i tu i ç õ e s bárbaras quanto paga s . I s to vai perm i -

t i r q u e e l a s mantenham u m pouco da sua ident idade mesmo no inte-

rior da Igreja c r i s tã , fornecendo uma c e rta d i v e r s idade à unidade

r e l igiosa med i e va l .

Entretanto , � no capítulo d a s r e l a ç õ e s entre a r e l i g ião e

a s outras áreas da soc iedade que e s sa unidade prec i sa s e r cuidado­

samente qua l i f icada , poi s o c r i s t i an i smo med i e v a l não consegue en-

globar a s outras e s feras da vida soc i a l sob seu dom í n io . Estas

mant iveram a sua independênc ia , r e s t r ing indo a integ ração , a unidª

de, ao campo da r e l i g i ão . E s ta va i , conseqüentemen t e , torna r - s e

um domínio parcia l , e spec í f ico , e a sociedade feudal irá , portan­

to , organ i z a r - s e em função de outros princípios .

E s t e s princípios , segundo R ea l e , s e rao o "grupa l i smo e a

autonomia " ( F PB , p . 51 ) . o grupa l i smo r e s u l t a d i r e tamente da desa

gregação do Imp�rio Romano . Com e l a , o pod e r central pra t i c amente

desaparec e u , sendo sub s t i tuído pelo domínio de inúmeros " c h e fe s "

bárbaros que haviam invadido o imp�r io . o ind ividual i smo dos ger-
31

manos nao cami nhou numa d i reçio moderna , autonomi zando os ind i v í -

duos , mas c r i s t a l i zou- s e e m torno de grupos terr itoria i s , sob a

f i rme d i reçio de um d e s s e s c h e f e s , que s e denominavam " barõe s " :

" cada bario e soberano em sua baron ia . . . todo s.§.


nhor de feudo adquire poder absoluto em seu do­
mínio , d i spondo das terras e dos homens na qual�
dade de propr iet�rio" ( F PB , p . 43) .

E s s e s grupos terr itor i a i s , d e scen tra l i zados e aut�rquico s ,

sao os únicos suje itos da prime ira fase da Idade Média . De fenden-

do vio lentamente a sua independênc i a , e l e s também rea l izavam , in-

t e i ramente , o segundo princípio que caracteri zava esta época , ma r -

cado p e l a idéia de autonomia . De fato , e l e s atuavam como verda-

de iros ind i v í duos c o l e t i vos , comun icando- s e apenas através de uma

extensa e intr incada rede de r e l a ç õ e s contratua i s , que , d e um la­

do , abo l i a a figura do E s tado (este só v a i t e r uma e x i s tência for­

mal durante a Idade Média ) , e, de outro , tornava-se o fundamento

e o prenúncio do contratua l i smo l iberal que e s tava por v i r .

É, por tanto , em torno d e s s e s grupos t e r r i toria i s , os ba-

ronatos , que a soc i edade med ieval v a i se organ i z a r . Ne sse per ío-

do , "a economia g i ra em torno dos c a s t e los e dos mos t e i ros , tendo

como base o l a t i fúnd io e a mio-de-obra serv i l " , sendo " muito pequ.§.

no o prog r e s so que s e v e r i f i c a nos proc e s sos técni cos l e gados pe-

los produtores romanos " ( F PB , p. 58) . É o domínio d e uma " econo-

mia pa triarcal de fruiçio , na qual a terra é a única fonte de v i -

da" ( F PB , p. 59) .

Aos poucos , porem , e s s a pa i s agem buc ó l ica e aut�rquica co­

meça a ser mov imentada pe lo surgimento de novos grupos , indus t r i -


32

a i s e mercant i s , o r i entados por c r i térios econômicos comp l e tamente

d i ferente s . E s s e s grupo s , i n i c ia lmente d i s persos pe lo ca mpo , sob

o controle dos " barõe s " feuda i s , sentem rapidamente a ne c e s s idade

de s e reun i r , de s e a s soc i a r , não só para e s c apar aos " d e smandos

feud ai s " , mas também para regu l a r i zar a sua própria a t ividade pro­

dutiva , s e tori zando a produç ão , d i v id indo mercados e a s s egurando a

c i rculação d a s mercador i a s .

E s s e s grupos vão s e reun i r , então , nas c idades medieva i s ,

nas " c omuna s " , que s e tornam o " r e fúgio da ind ú s t r i a nascente e

dos mercador e s " . E l e s organi zam- s e em grupos pro f i s s iona i s , as

corpora ções de o f í c i o , e n t idades fechadas e exc l u s iva s , cada uma

d e l a s controlando um d e t e rminado s e tor da produção.

Not e - s e que e s ta separaçao entre o campo e a c idade , entre

a economia agrícola e a indu s t r i a l , não impl icava , de forma a lgu­

ma , que a s corpora ç õ e s e s t i v e s sem organ izad a s em função de princ í ­

pios opostos aos que , na d e f in ição d e Rea l e , marcavam a s ingu l a r i ­

dade da Idade Méd i a , o grupa l i smo e a autonomia . Muito pe lo con­

trário , as corporaçoes eram grupos internamente tão coesos e exter

namente tão independ e n t e s quanto qualquer barona to , e o próprio rg

lacionamento entre e la s s eguia o padrão contratua l , tí pico da Ida­

de Méd ia .

Dessa mane i ra , " cada corporaçao tem sua vida própr ia , au-

tárquica " . são " v erdadei ros E s tados dentro do E s tado" , " l igados ª

penas em acordos trans i t ó r ios " (FPB , p. 54/ 5 ) , para promover o bem

comum . Formam, j untamente com a s c idad e s , uma e s trutura feudal

para l e l a e oposta à do campo , ma s ba seada exa tamente nos me smos

princí pios .
33

Entre tanto , em termos concre tos , práticos , " o f lorescer da

v ida comun itária é a negaçao do feuda l i smo" (FP� , p. 53) • I s so

acontece porque a s c idades e os burgues e s , no seu processo de oPQ

s i ção ao feuda l i smo agrá r i o , são obrigados a s e a l iar ao E stado m�

d i e va l , que na époc a , t inha e x i s t ência apenas forma l , dando - l h e

conteúdo e pod e r . E s s a a l ianç a , que funciona como se fos s e uma

ponte , um e l o de l igação entre a c i v i l i z ação med i e v a l e a moderna ,

v a i t e r um s i gn i f icado e um a l cance dos mais profundos: ela torna

pos s í v e l , de um lado , a formação da soc i edade capi t a l i s ta , c r i ando

um mundo à imagem e s em e l hança da burgue s i a , e, de outro , fornece

um dos princí pios cara c t e r í s t icos d e s s a soc iedade , o E s tado mo-

derno .

E e prec i samente o Es tado o prime i ro a se bene f i c iar d e s ­

sa inédita l i gação , poi s,

" s e r v indo - s e do créd i to fornecido pelos mercado­


res e banque i ros , o poder centra l aumenta a sua
d i spon i b i l idade de for ç a s contra as pretensõ e s
insolentes dos senhores feuda i s " ( F PB , p. 80) .

Entre e s sa s novas forças d i s pon í v e i s i n c l uí a - s e , de man e i ra e spe­

c i a l , o uso da pólvora , " que d e s loca o d e s t ino dos exérc i tos do

va lor gue r r e i ro para as r e s e rvas de r iqueza" ( FPB , p. 81 ) , s imbo-

l i zando , c laramen t e , a a l iança entre o monarca e o e s pír ito me rcan

til .

Num segundo momen to , e a burgu e s i a que consegue lucrar com

a sua a s sociação com o E s tado , po i s e s t e , ma i s forta l e c ido , " aux i -

l ia a apl icação dos c a p i t a i s em grande e sca la , garan tindo o inter-

câmbio" (FPB , p. 80) e a c i rculação d a s rique z a s . o mais importa!!


34
• , .

te, contudo , r e s ide no fato de que o

" E s tado procura reun i r os súd i tos em uma rede


de intere s s e s econômicos , de modo que o capita­
l i smo já for t a l e c ido nas comunas é pro j etado ,
pela mão do pod e r púb l i c o , na e s fera ampla do
re ino" ( F PB , p. 8 3 ) .

É através do E s tado , portanto , que o capi ta l i smo adquire um cara­

t e r nac iona l , amp l i ando sua inf luênc ia para a l ém dos muros da c i -

dad e , e dando à burgue s i a um papel chave n a soci edade moderna .

Consolidado o t r iunfo do capita l i smo , torn a - s e pos s í v e l ,

ao Estado , comp l e ta r o proc e s so d e for t a l e c i mento de sua autoridg

de. D e s s a forma ,

" a soberania conc r e t i z a - s e em um apare lho buro­


c r á t i co não hereditário nomeado pelo chefe de
E s tado e obediente unicamente as suas orden s ;
c r i a uma f inança própr ia , o que é um e l emento d e
independ ênc i a e de r e s i stência contra o centr i fu
g i smo dos feudos ; a f i rm a - s e pod erosamente com um
exérc i to permanente de mercená rios ; e, last. no
lea s t , sus tenta uma luta d e c i s iva com o pod e r
r e l igioso , a t é a emancipação f i na l " (FPB , p . 84) .

En tre tod a s a s providênc i a s tomadas n e s s e proc e s so de for-

t a l ec imento do poder centra l , uma deve ser e specia lmente d e s taca-

da : a recuperação da trad ição j ur íd i c a romana . De fato , mais do

que qua lquer med ida de ordem prá t i c a , como as que foram ac ima l i s -

tada s , a re-ut i l i zação d o d i r e ito romano v a i s e r o ponto máx i mo

d e s t e proc e s so d e reconst rução do E s tado na época moderna. Ela


35

vai lhe dar uma ident idade j ur í d i c a própria , conc ei tualmente d e f i -

n ida , fazendo com que o s e u recém- conqu i s tado pod e r i o concreto s e -

j a complementado pe l a sua valorização como um dos princ ípios fundª

men t a i s da nova c i v i l i zação burguesa , c i v i l i z ação que este me smo

E s tado havia a j udado a constru i r .

Mas não é apenas no pod erio e s ta t a l que a sociedade mod er-


. ,
na vai s e basear. E l a s e fundamenta também em um outro prl.ncl.-

pio , para l e lo e f i n a lmente oposto ao E s tado , que se conc r e t i z a na

f igura do indiv íduo . E l e v a i s e r recr iado por do i s movimentos

que desempenham um pape l fundamental no nasc imento da c i v i l ização

burgue sa : o Renasc imento e a R e forma . A s s im , " a fusão do homem

do Renasc imento completa a e s trutura mental do homem burguis " , do

ind iv íduo moderno , que tem sua sub j e t i v idade trans formada em um

" t emplo " , e encontra a sua fundamentação é t ica e fi losófica no

c r i s t i a n i smo prim i t ivo , o prime i ro a e l egi-lo e va lor izá- lo como


. , .
um prl.nc l. pl.o.

o capita l i smo , que havia t ido o s eu ponto de pa rt ida nos

quadros " grupa l i s t a s " d a s corporações medieva i s , pa s sava agora a

ser exerc ido pelo i nd i v íduo autônomo e onipotente em que s e havia

trans formado o burgui s . E s t e ouv ia apenas a voz da razão , int ere�

sava - s e so pelos s eus inte r e s s e s part iculare s , que colocava no

cen tro do mundo , d e s pre zando a h i s tó r i a e a s trad i ç õ e s .

A c i v i l i zação burgue sa , con s eqüentemen t e , v a i f i car ma rca-

da por um e s t ranho paradoxo , po i s e l a proc l ama a absoluta l iberda-

de ind i v idual " prec i s amente quando s e a f i rma a sobe rania do Esta-

do" (FPB , p . 119 ) . E é exa tamente e s s a contrad icão que vai se

const ituir n a carac t e r í s t ica e spec í fica , pecu l i a r , d a soc i edade mQ

derna . Esta , portanto , t e rá o seu " ponto nevrálgico" no fato de


36

ser cons truída a pa r t i r de dois princípios opostos e mutuamente eK

c l u s i vos , o ind i v í duo e o Es tado , um herde iro do c r i s t i a n i smo , o

outro da tradição romana , ambos pretendendo re inar absolutos , na

c i v i l i z ação burguesa , a trav é s da e l iminação do oponente . Com e fei

to , a h i s t ó r i a da soc iedade moderna , na v i são de Rea l e , vai con s i §

t i r ba s i camente n a s tentativas que cada um d e s s e s adversários rea-

l i za para e l iminar o outro, uma h i s tó r i a pr i s ione i r a , portanto ,

d e s s a insuperável contrad i ç ão .

Note - s e , contudo , que e s s e s d o i s princ ípios nao sao n e c e s ­

sar iamente opostos . Na verdad e , R e a l e sugere que j á no século XVI

era pos s í v e l s e perceber uma tentat iva de conc i l i á- los , rea l i zada

pelos teóricos do mercan t i l i smo , e, e s pecia lment e , por Jean Bod i n .

E l e s vão s i mple sme nte propor a superação do antagoni smo que s e e s ­

tabe l eceu entre o Es tado e o ind ivíduo , sugerindo , nao a e l imina­

ção de um pelo ou tro , ma s o for t a l e c imento mútuo dos dois termos .

Para i s s o , entre tanto , e s s e s teóricos terão que part i r de

uma concepção do indiv íduo e da l iberdade inte i ramente d i s t i nta da

que se trans formou em norma na sociedade burguesa. No ind ivíduo ,

para e l e s , "af irma - s e o va lor da con s c i inc i a , a ínt ima persona l i ­

dade do homem" ( F PB , p . 1 2 2 ) , enfati zando - s e a persona l idade e o

e s pírito s ingular de cada um , " porque a verdad e , nao a recebemos

pa s s i vamente , ma s a intuímos dentro de nós mesmos , em uma plenitu-

de exuberante de v ida i n t e r ior " ( F PB , p. 1 23 ) . Tra ta - s e , portan-

to , da valori zação d a s qua l idades i n t e rnas de cada indi víduo , exa­

tamente como a que vamos encontrar na base da proposta integra l i s ­

ta , j á ana l i sada .

A e s ta concepçao e s pec í f ica do indiv íduo vai corre sponder

o fato d e que a noçao


37

" que o s mercant i l i s ta s tim d a l iberdade nao e

igua l à dos f i l ó sofos do século XV I I I . . . para


e l e s a l iberdad e não é um conc e i to negat ivo, equi
v a l e n t e à supr e ssão de todo entrave a açao do
indiv íduo . Con s ideram-na , ao cont rário , um po-
d e r de a g i r individual que s e d e s e nvolve med ian­
t e o concurso do Estado " , (po i s este) " c r ia as
cond i ç õ e s indispensáv e i s à pro j eção d o próprio
indi víduo" (F P B , p. 147) .

E s se E s tado , por tanto , nao pretende absolut i z a r o seu po-

der, anul ando a l i berdade individua l . Ao cont rário , ele se arti-

c u l a com os ind iv íduo s , garante a expr e s são da sua vida interior ,

tornando - s e um Es tado " é t i co " , subordinado a princípios mora i s

m a i s amplos , que r e l a t i v i zam o s e u pod e r e regulam a re lação que

e stabe l e c e com os ind i v íduo s .

Not e - se que e s ta r e lação , pre c i s amente como na proposta in

tegra l i sta , não é d i re ta , mas med i a t i zada por corpos intermed iá-

r ios . Bod i n , para R ea l e , é o prime i ro pensador moderno a sug e r i r

"não a destruição d a s corporaçõe s , m a s a sua integração no Esta-

do " , pois " um Estado sem núc leos assoc i a t ivos capa z e s de por em

contato governantes e governados é uma abs tração que redunda em

t i ran i a " (FPB , p. 15 2 ) . Como se pode v e r , temos uma antec ipação

do mesmo e squema integra l i sta - ind i v íduo " qu a l i ta t i vo " , corpos

intermed iários e Estado orgânico - que v a i s e r ma i s tarde de fend i -

d o por R e a l e . Não causa .e stranh e z a , por tanto , que e l e a f i rme que

" ma i s do que nenhum outro e s tud ioso da c i inc ia


pOl í t ica , Bod in s e achega à pos ição do Estado
i ntegral contemporân�o" (F PB , p . 150 ) .
38

E s ta " b e l a " cons trução dos teóricos merca n t i l i s t a s , que te

ria superado a contradição entre o E s tado e o ind iv íduo , nao teve

cond ições de vinga r , e foi compl etamente de sprezada pela trad ição

l ibera l . E e la não vingou prec i samente porque e s ta concepçao qua-

l i t a t i va dos ind i v í duos não conseguiu s e impor a soc iedade mode r -

na . Este t i po de ind i v íduo , q u e t e m n o c r i s t i an i smo primitivo o

seu ponto de pa r t i da , vai s e r re tomado pe lo humanismo renascenti s -

t a d e forma e p i s ód i c a , po i s não tem forças para sobrepujar o n a tu-

ra l i smo introduzido p e l a dout r i na l ibera l . Esta faz uma e spéc i e

de " re interpretaç ão" tnecaniJ:ista d o conc e i to d e indiv íduo , e sv a z i an -

do-o d a sua person a l idade , da s u a v ida inte r ior , e o trans forma em

um átomo sem vontade própr i a , movido apenas p e l a razao natura l ,

uni forme e abs trata , que d e t ermina a s r e l a ç õ e s e os contratos que

todos os ind iv íduos devem e s tabe l e c e r .

Assim,

" o humani smo degrada- s e em natura l i smo . Toda a


orgu lhosa d e f e sa dos valores autônomos do ind i ­
v íduo v a i por terra ", ( F PB , p. 12 5 )

e perde - s e qua lquer chance de recon c i l iação e n t r e o indiv íduo e o

Es tado . o i nd i víduo tem d e s e r mantido a fa s tado do E s tado , po i s

qualquer interferência d e s t e poderá c r i a r obs táculos a o l i v r e cur-

so da razão . Não há , portanto , a l iança pos s í ve l . Ou o Es tado é

reduz ido à sua v e rsao mín ima , e os indiv íduos se organizam sem e l e ,

sob os d i t ames contratua l i s t a s da razão ou , ao con t r á r io , o Es tado

se expande até o s eu l im i t e máx imo , abso l u t i z ando a autoridade e


. , .
e l iminando os ind iv íduos . Nas duas a l ternativa s , o pr�nc� p�o ca-

cac t e r í s t ico da sociedade burguesa , a opos ição entre o indiv íduo e

o Estado , e mant ida.


39

D e s s a mane ira , a s tentativas " c l á s s i c a s " de superar essa

contradição pe la mera supr e s são d o oponen t e , quer absoluti zando o

E s tado , quer o indi víduo , permaneceram encerrada s no i n t e r ior d e s ­

s e d i l ema . A pr ime i ra a s e r ana l i sada por R e a l e é o contratua l i s ­

mo de Locke , t a l vez a ma i s pura expres são d a doutrina l ibera l .

O ponto d e part i d a de Locke é , e v identemente , o ind iv íduo

i solado, sem laços soc i a i s , mas dotado de razão . É esta razao

que o l eva e s tabe l e c e r contatos com os s eus semelhante s , para e v i-

tar que uns pr e j ud iquem os outros , e promover o bem comum . Como

se vê , Locke tem uma v i s ão e s s enc i a lmente otimista da natureza hu

mana , acredi tando que os homens pod iam v i ver em pa z desde o e s tado

de nature za , pelo s imp l e s fato de que todos eram igualmente dota­

dos de ra zão. B a s tava , então , e v i ta r que qualquer obs táculo ex-

terno atrapa lhasse o d e s enrolar da e x i s tênc i a , garant indo - s e um

e spaço privado para cada i nd i víduo , l ivre até da i n t e r f e r ênc ia dos

seus seme lhan te s , no qua l cada um e todos pod e riam obedecer " l i­

vremente " �s l e i s natura i s da razao .

O Es tado , n e s s e e squema , é fruto dos contatos c e l ebrados

entre os ind iv íduos , e tem como função b á s i c a a de garan t i r a in­

violab i l idade d e s s a s " e s fe r a s " privadas nas qua i s se d e s enrola a

vida humana na doutrina l ibera l . Esta noção negativa da l iberdade

vai obrigar o E s tado a uma função meramente pa s s i v a , trans forman-

do-o numa e spécie de po l i c ia l , que intervém apenas quando o equ i li

brio entre e s s a s e s feras é rompido, e a l guém ou a l guma co i s a in­

t e rpõe - s e no caminho particular de cada ind iv íduo.

O Estado, n e s s e caso , é u sado apenas para remover obstácu­

los , perdendo todo o seu s ent ido é t i c o , pas sando a atuar somente

em função da sua força , da sua coaçao.


40

" Em verdad e , o const ituciona l i smo ( d e Locke ) e a


doutrina que ens ina a usar a coaçao - única ra-
zão de ser do E s tado l iberal para a l cançar o
equ i l í brio entre os homens " , ( reduzind o - s e o E s ­
tado ) " a uma força mecânica d a qual os i nd i v ídu­
os s e s e rvem quando a l guma c o i s a surge obs t ruin­
do o caminh o " ( FPB , p . 19 2 ) .

E s tado so e
,

Apena s , pelo próprio ot imi smo lock eano , a coaçao do


,

necessária em momentos raros e exc epc iona i s , po i s a lógica do s i s -

tema imp l ica o respeito ao contrato , à c on s t i tuição , à s l e i s natu-

ra i s da razao .

A a l terna t i va construída por Hobbes também v a i t e r no in-

d i víduo o seu ponto de pa rtida . Entretanto , por ter , ao contrário

de Locke , uma v i são extremamente pe s s im i s ta da natureza humana , e l e

termina por propor a con s t rução d e um Es tado absoluto , e o compl e -

t o de saparec imento d a l i berdade . I s so acontece porque , par t indo

do princ ípio de que todos os homens nascem igua i s , Hobbes percebe

que esta igualdade os l eva a uma t e r r í v e l r i va l idade , pois

" quando dois homens d e s e j am a mesma coisa , sem


poder usufruir dela ao mesmo tempo . . . ambo s pro­
curam s e d e s t ru i r , e cada qual procura sub j ugar
o outro" ( FPB , p. 172 ) .

o indiv íduo i s o lado , cons eqüentement e , é dominado mui t o

ma i s pe l a s suas pa i x õ e s , principa lmente p e l o ego í smo , do que pela

razao . o e s tado d e natureza , d e s sa mane ira , s ó pode s e r um r e i no

de guerra , nunca de pa z : homo homini l upu s (FPB , p . 173 ) .


41

Ora , e prec i same n t e para impe d i r que e s t e e s tado de guerra

s e genera l i z e , l evando prat icamente à d e s truição da e spécie huma-

na , que os ind i v íduos u t i l izam a razao que l h e s resta para cele-

brar um contrato que tran s fe r e o pod e r d e cada um para uma única

en tidad e , o Levi athan , o e s tado absoluto . Este deverá u s a r o po-

der concentrado de todos os homens para impe d i r que eles se des-

truam . " O E s tado nasc e , po i s , do medo rec íproco , e é onipotente e

sem l i m i te s " .

Como s e ve , para Hobbe s , o E s tado também tem na coaçao seu

princ ipa l componen t e , uma coação usada agora como regra , cotid iana

mente , e no seu l i m i t e máximo , abs o l u t i zando a autoridade e supr i

mindo a l iberdade para o própr io bem dos indiv íduos . Hobbe s , as-

sim, inverte a fórmula d e Locke apenas para permanecer pri s ioneiro

do mesmo d i l ema que a carac t e r i z a , e a c i v i l i zação burguesa como

um todo , qua l s e j a , a opo s i ç ão entre o E s tado e o indiv íduo .

A proposta d e Hobbe s , contudo , nao é o único caminho para

Na mesma epo-
,

a abso l u t i z ação do E s tado . Ex i s tem vários outros .

ca em que e l e formulava a sua doutr ina , vemos a c r i s t a l i z ação , no

continen t e , e spec i a lmente na França e na Espanha , de um E s tado ab-

soluto que tem muito pouco a v e r com a s teorias de Hobbe s . Ele

não é construído de baixo para c ima , ma s , a o contrár i o , tem seu

ponto de partida no engenho po l í t i c o de a l guns ind iv íduos incomuns ,

os soberano s , que acabam por monopo l i za r todo o pod e r , submetendo

uni formemente todos os s eus súditos .

E s t e t ipo d e abso l u t i smo , que tem suas ra í z e s na a t i vidade

dos príncipes do Renasc imento , não é fundado , portanto , no medo da

autod e s t ruição de indiv íduos comun s , igua i s entre si , mas sim na

" vontade de pod e r " de a lguns indi víduos excepeciona i s , os sobera-

nos . É um E s tado " mecânico " , tão construído quanto o d e Hobbes ou


42

Lock e , mas sua con s t rução é f e i t a por um a r t i s ta , e nao por s im-

p I e s artesãos . É o E s tado como obra d e arte , fruto do gênio do


12
prínc ipe , e não do medo dos indiv íduos comun s .

De qua lquer forma , o s d o i s tipos d e absoluti smo aqui anali,.

sados obedecem à contradição pecu l i a r à c i v i l i z ação burgue sa , po i s

cont inuam opondo o E s tado ao indiv íduo . I rão surg i r , como eles,

uma s é r i e d e outras propo s t a s que pretendem resolver e s t a ambigüi-

dade c o n s t i tutiva pela e l iminação do indiv íduo , pelo próprio fato

de que e apenas a dout r i na contratua l i s t a , tal como desenvolvida

no l ibera l i smo d e Locke , que consegue tornar - s e universa lmente

ace ita , a f irmand o - s e como o " credo " o f i c i a l da c i v i l i zação burgue-

sa . No pensamento dos próprios " ideó logos " da Revolução Franc esa ,

como Rou s seau e Kan t , podemos encont ra r , depo i s de uma prime i ra fª

se ext remamen t e ant iabso l u t i s ta e l ibera l , um segundo momento fun-

damen t e marcado pela ê n f a s e na autoridade e n a abo l ição da l iber-

dad e , ê n f a s e que v a i s e reprodu z i r também na obra dos c r í t icos da

revoluç ão , como de Bona l d , de M a i s t r e , Comte e Hege l .

Todas e s s a s doutr i n a s a n t i l ibera i s , contudo , sao tão con s -

t i tutivas d a soci edade burguesa quanto o próprio l ibera l i smo . E l a s

apenas " i nvertem o s i n a l " , chamando a atenção para aque l e termo d a

contrad i ç ã o , o E s tado , que f o i h i s tor icamente de sprezado p e l o pre­

domínio po l í t i c o da doutrina l ib e ra l .

o própr io tota l i tari smo , apres entado por Rea l e no E s tado

moderno como uma d a s correntes do f a s c i smo , pode , então , ser con-

12
Note - s e que R e a l e u t i l i z a expl i c i tame nte o trabalho c l á s s ico de
Burckhard t , A c i v i l i zacão do Renasc imento na I t á l i a , fonte d e s ­
ta ú l t ima c i tação , para a sua aná l i s e d e s t e tema .
43

sid erado corno urna fórmula burguesa de tota l i z ação , po i s sua propo�

ta tem corno fundamento exa tamente a contradição entre o indiv íduo

e o Estad o , carac t e r í s tica pecu l ia r d e s t e t i po de c i v i l i zação .

Esta opos ição só s e rá superada p e l a a l terna t i va integra-

l i s ta , a l terna t i va que R e a l e vi corno e sboçada no mercant i l i smo e

d e s envolv ida dentro de urna d a s v e r t e n t e s do f a s c i smo , e que pr e­

tende e l iminar não um dos t e rmo s , ma s a própria contradição entre

eles . Assim, s e a c i v i l ização romana ba seava-se na idéia do E s ta ­

do fort e , a Idade Média nas categorias d e grupa l i smo e autonomia ,

e a época burguesa no con f l i to entre o i nd i v íduo e o E s tado , o mun

do contemporâneo t e r i a corno traço d e f i nidor um e squema conc e i tual

part icu lar , marcado pe l a mediação e p e l a complementaridad e , em que

urna concepção qua l i ta t i va do i nd i v íduo , poderosos grupos inte rmedi

á r io s , e um Estado é t i co j untam- s e para viabi l i z a r a c i v i l i zação

integra l i s ta , a qua l , d i scutida em mais profundidade em O Estado

moderno , tem o seu quadro h i s tór ico , o retrato dos s eus antec e s s o ­

r e s e riva i s , d e s enhado na Fo rmação da po l í t ic a burguesa .


FUNDAC/"Q GETÚLIO VARGAS
INOIPO I CPOOC 44

Conc lusão

Minha única intenção , n e s t e traba lho , foi a de levantar

a lguns pontos que perm i t i s sem uma primeira abordagem do pensamen-

to integra l i s ta de Mígue l R e a l e . Vo l tado fundame nta l mente para a

d i s cus são de d o i s l i vro s , O E s tado moderno e a Formação " da po l í -

tica burguesa , e s t e t e x to não teve sequer a pretensão d e abarcar o

con junto d e sua obra pub l i cada no período , d e i xando a tarefa para

um e s tudo po s t e r i o r .

Creio, por é m , que a ambição d e d e s enhar uma e spéc i e de

" pe r f i l b� s i c o " d a r e f l e xão integra l i s ta d e R e a l e , in terpre tando - a

em função d a sua a s soc iação com um ponto d e v i sta con s e rvado r , nao

de ixa de ter o seu i n t e re s s e , a t é porque nos o ferece um ponto de

pa rt ida para d i f erenc i � - l o d o s s e u s principais companhe iros d e l i -

de rança n a AI B , P l í n i o Sa lgado e Gustavo Barroso . De fato , a ma -

ne ira pela qua l e s t e s d o i s ent endem o integra l ismo pa rece e s tar

ba s tante a fa s tada daqu e l a que é sus tentada por Rea l e , aproximando-

se ma i s do que e l e própr i o chama de " tota l i ta r i smo " , ou de " Es t a -

do tota l i t� r i o " .

Não devemos dedu z i r da í , contudo , que P l ínio e Gustavo t e -

nham exatamen te a mesma po s ição a r e s p e i t o do q u e s e r i a a proposta

integra l i s t a . O que ocorre s imple sme n t e é que , apesar de inúmeras

d i vergências no que s e r e f e r e à sua v i são da h i stória , e, conse-

qüentemente , à d e f in i ç ã o de quem s e r i a o seu ma ior in imigo - Gus-


45

tavo e a n t i - semita , P l ín i o nao - ambos pa recem c o n f l u i r na defe­

s a de um mesmo mode l o de soc i edade que t e r i a de , ser implementado

pelo integra l i smo . E s t e mode lo e n f a t i z a a nec e s s idade de s e supe ­

rar a s in j u s t iç a s econômic a s , a questão soc i a l , pela cons trução d e

uma nova ordem que permita aos s e u s integrantes conviver e s s enc ia�

mente como igua i s , ou melhor , mais do que igua i s , idênticos . Esta

ident idade radic a l , abso luta , s e r i a produz ida pe lo abandono das

carac t e r í s t ic a s pa r t i c u l a r e s de cada um , daqu i l o que os d i n t i ngue

e separa , em troca de uma uni forme ade são à doutr ina i nt eg ra l i s t a ,

padrão d e sabedo ria e v i r t ud e , a pa r t i r do qual todos os c idadãos ,

ou s e j a , todos os m i l i tante s , a qualquer hora e lugar , deveriam

or ientar a sua condut a .

Temo s , como s e pode percebe r , uma proposta e f e t i vamente

bem d i versa da de R e a l e , fundada na anu lação , e não n a cons ervaçao ,

subord inada , d a s pecu l ia r idad e s soci a i s . Na verdad e , acred i to meâ

mo que P l í n i o e Gustavo pos sam v e r v i nc u l ados ao que Zeev Sternhell

( 1 9 7 8 ) apontava como s e const ituindo em uma corrente " m í s t i c a " , rg

volucionária e tota l i tár i a , dentro d o fasc i smo europe u . R e a l e , po r

s u a vez , t e m condições de s e r as soc iado a uma outra vertente do

f a s c i s mo , uma vertente " pl a n i f icador a " ( idem) , formada ba s i c amente

por inte l e c tua i s e m i l i ta n t e s como Oswa ld Mosley e Henri de Mm,

or iundos d a tradição soc i a l i sta , que s e preparavam agora para e l a -

bora r , n o i n t e r i o r de mov imentos fasc i s ta s , a a l ternativa de um

corpor a t i v i smo l a i c o , cons ervador e autori tár io , capaz de moderar

a s d i ferenças e os c on f l i to s econômico s , e , d e s s a forma , en frentar ,

racional e pragmat icame n t e , a " qu e s tão socia l " .


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Mônica Pimenta Velloso A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e


regionalismo paulista

Dulce Chaves Pandolfi Da Revolução de 30 ao Golpe de 37:


e Mário Grynspan a depuração das elites

Ãngela Maria de C. Gomes Getulismo e trabalhismo: tensões e dimensões


e Maria Celina S. O'Araújo do Partido Trabalh ista Brasileiro

Mônica Pimenta Velloso Os intelectuais e a pol(tica cultural do


Estado Novo

Ãngela Maria de C. Gomes I ndustrialização e classe trabalhadora no


e Marieta de Moraes Ferreira R io de Janeiro: novas perspectivas de
análise

Ricardo Benzaquen de Araújo In media virtus: uma análise da obra


integral ista de Miguel Reale

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