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perder-
perder-se
wilton cardoso
poesia pra ler
na tela do computador
sem confessionalismo
sem cerebrismo
sem ismo nem cismo
simplesmente amor
rima riso ímã
poesia de rir
de chorar
de parar e pensar
de andar
sem correção de rota
rôta a esmo torta
nem amanhã nem ontem
agora
sem hora
poesia
o vazio cruzou o meu caminho
nenhum nada é inocente
manchou-me todo de demência
manchei-o inteiro de per
verso
a puta palavra
e sua vulva aberta
incerta descoberta
vulnerável vazia
véspera de uma viagem sem
volta
vestida de virgem
vertigem
escrita primeira
ordeira sagrada
serviste secreta
ao poder ao império
mistério mutreta
excripta
quero-te vaga
vagante
quero-te ante e anti
estonteante amante
vazante por entre
poros e peças santos e senhas
quero-te risco
além do papiro
aquém dos sentidos
suspense ruído
ruína suspiro
quero-te ar
o ar que respiro
se a literatura morrer
meu bem não chore
não chore se o poema
esse dilema morrer
pra ele não é problema
e se a poesia ia
no cortejo veja
voltar no eco
da andorinha
essa
nunca veio
nunca vai ai
ouvindo legião
men
sagem
você foi a aragem
dentro do sonho
um jeito de andar
entre a rua e a calçada
um jeito de gesto
entre sol e luar
um jeito de amar entre o mar
e o ar
de galho em galho
como se o espaço
somente fosse um breve
estar suspenso
nas teias da melodia
como se o tempo
não fosse
nem rápido nem lento
apenas vento
a se tornar
tormento
numa vela o que cabe
numa vela o que sabe
numa vela o que invade
uma cela da vida
aberta em plena vida
e copulando-se
son
nhos
pal
pi
tavam
nos
seios
da moça
morri
morrinhos
hum mil
nove
centos
e quarenta
so
rri
de sau
dades
do que
nun
ca vi
so
rri
das
sau
dades
da mo
ça mo
rrinhense
morri
nhos
que nun
ca houve
pena da mor
te
para
rel
var
ou
res
valar
num
ver
de
mato
o
eu
réu
do
rel
ato
da
vi
da
par
a
vi
ver
so
frer
até não mais po
der
po
dar
todo e qual
quer
sentir
o mundo fluir
a máxima ten
são os nervos todos
até qua
se par
tir
até não mais vi
ver
até não mais mor
rer
todo e qual
quer
amar
amar de ver
dade
amar pro
fundo
amor e
terno
pre
firo a pro
fusão do amar amando
quem vai salvar
não vai ser deus
nem um exército de eus
proteus prometeus
oh! céus oh! véus ó zeus!
que rostos serão meus
talvez um bando de ateus
salvar quem vai
ai ai ai
esse negócio de poder
é foda
pode ser que não pude
pode ser pudim ou pode
amargar que nem fel
sua leveza
e riso moleque
seu errar sortido
de demônios
só sucesso
ordem e progresso
jesus te ama
vamo pra cama
não corra
socorro
me come
I love you
matar ou morrer
carrefour
shopping
doping
vá se foder
maio
no sofá da sala
(agora uma música soa da rua)
o tecedor de nadas
(o cão lambe o cu
sua face
nunca foi
distante da bunda)
pensa que pensa
lamenta?
tenta um lance um ponto
o ar não se dobra
o som se perde
ver o mundo de viés
escape tangente fuga
da razão da mão do din
din dlem dlem
dlem dlem
ri(t)mar o mundo a
meus pés
dez nortes
vórtices sem centro
dentro sem fora
pira de baco pira
do baco pirado ba
co ar massa luz
água vida ida da
mais dolorida
dias noites tardes
crepúsculos lares ruas e pa
darias pão há mendigos nesta
hora qualquer lá fora não há
margens a não ser a do papel
e se foi involuntário?
debaixo do rosto
o resto o rasto roto
de um rato
o esgoto corre sob as ruas
quedam
tão vazias
à noite
tal
paisagem faz saltos do alto
de um homem
que passa despercebido
roendo miragens
miríades
o homem era muito bom
atirava pra todos os lados
e acertava quase todas
eu não
atiro quase numa só direção
e quase não acerto
mas quando acertar
alvo algo alma
quero atingir seu coração
por um instante
gotas
comprimidos
pedaços de poesia
garimpados no dia
a dia bom dia! cortez
mente vão ficando aguados
o mesmo largo o mesmo
rio no leito do tempo
ah! mas minhas dragas
um gole de mercúrio
essas drágueas
não são minas mas eu curo
qualquer miséria da matéria
qualquer escuro
com esta grama dura
mente
depurada
das águas
entrevista com o zé pelota
Estes poemas, escritos entre 1999 e 2003, pertencem à mesma fase do marjnau (1999-2002) e do
pretextos marjnaus (2003-2004), compondo com ambos uma espécie de trilogia involuntária. São
textos feitos no papel, que estavam guardados no baú, esquecidos por mim. Ao resgatá-los,
percebi a unidade que mantinham com os dois marjnaus.
Resolvi chamá-los de poemas de perder-se porque fazem parte de uma virada em relação ao
Ciclo de Jaiara, cujo título alternativo é nostalgias de encontrar-se. Quando este caipira
acabou o Ciclo, tinha aprendido a fazer poemas longos, sérios e profundos, enfim, a fazer
poemas literários, que eram a sua obsessão. Então, ele estava finalmente pronto para tentar
o grande livro que sempre perseguiu, a sua Invenção de Orfeu ou Divina Comédia. Se o
resultado não fosse magnífico, pelo menos a tentativa havia de ser.
Mas algo aconteceu depois do Ciclo de Jaiara e comecei a fazer poemas curtos, bem humorados
e rasos, sob o pseudônimo de Zé Pelota. Este saci era uma máscara que inventei para deixar o
Moreira Cardoso trabalhar em paz a sua poesia densa, de feição modernista, mí(s)tica. Mas o
Zé, esse ateu sem vergonha, foi mais poderoso e matou o Moreira. Eu me perdi. E não tinha a
menor vontade de me encontrar.
Muita culpa disso têm o Leminski e o Deleuze, mestres de perdição que atravessaram o meu
caminho num mestrado meio desastrado. A academia, em vez de ordem, me pôs entropia, à sua
revelia é claro. Mas a perdição já estava em mim e estes demônios só mostraram o que eu me
recusava a ver, sob a pele do Moreira Cardoso. Viva o Zé Pelota! meu limiar, minha passagem,
minha viagem. Meu exu.
Goiânia, 25-10-2005.