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I

As nuvens avançavam lentamente.


O sol brilhava intensamente no céu claro, iluminando mais um início
de tarde na pacata aldeia de Kiza.
As pequenas manchas brancas formavam estranhas e belas formas
que se reflectiam nuns olhos claros que as observavam.
“Mais duas que se fundiram…”.
Um pequeno suspiro e os olhos fecharam-se. Enterrou a cabeça nos
braços e deitou-se sobre a mesa.
- Pst, pst…
Virou a cabeça e deixou entrevir um olho por cima do braço. O rapaz
a seu lado estendia-lhe um pedaço de papel muito bem dobrado. Só tinha
duas palavras escritas:
Não durmas.
Sorriu. Não precisava nem de olhar para saber quem o tinha enviado.
Se os gémeos lhe diziam para não adormecer era porque algo estava
prestes a acontecer. Olhou em frente, o professor dava a sua aula sobre
plantas curativas enquanto os alunos observavam e tiravam anotações.
Estava tudo muito calmo, calmo demais.
- Professor, é capaz de repetir o nome dessa planta, por favor?
- Sou sim, Lira. Esta é uma Cos…
- Aaaaaaaaaaaahhhhhhhhh!
Todos olharam para a rapariga que gritara e que estava agora a pôr-
se de pé em cima da mesa.
- Cobra! Está uma cobra enorme no chão!
Foi um alvoroço. As raparigas gritaram histéricas enquanto todos
subiam para cima das mesas e o professor tentava acalmar os seus alunos
mas em vão.
Entretanto, ele sabia o que fazer. Assim que o caos desabara, abrira a
janela e subira para o parapeito. Um pouco ao lado e abaixo da janela
estava um pequeno barracão onde se guardava o material de limpeza. Com
um salto, aterrou no telhado do barracão e virou-se para trás, pronto a
receber as pastas que lhe eram atiradas por um dos gémeos, Perry Filmiar.
Este saltou também, sendo logo seguido pelo irmão, Gunny Filmiar. Cada um
pegou na sua pasta e saltaram para o chão.
- Finalmente! Nunca vi aula mais chata! – exclamou Perry.
- Quem é que se iria interessar por plantas quando se pode estar cá
fora a apreciar o sol?! – disse Gunny, espreguiçando-se.
- O Danihel iria – observou o irmão.
- Sim, mas o Danihel… bem, não se pode considerá-lo uma pessoa
normal.
- Por falar nele, vamos buscá-lo?
- Vamos! – responderam os gémeos em uníssono.
Começaram a andar, mas ainda não tinham dado mais de quatro
passos quando uma voz forte se fez ouvir.
- Onde é que pensam que vão? Voltem já aqui e peçam desculpas a
todos pela confusão que armaram!
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Os três voltaram-se. O professor estava a gritar da janela que tinham
acabado de saltar.
- Ups! – ironizou Perry.
- Voltar? – Gunny ergueu uma dúbia sobrancelha.
- Não me parece – disse o terceiro rapaz, abanando a cabeça.
Dito isto, voltam as costas ao professor e começam a correr entre
gritos de euforia.
- Vocês… seus irresponsáveis! Um dia irão se arrepender! A Niryan vai
ficar a saber disto, ouviste bem? Arion!
O rapaz de olhos claros sorriu ainda mais abertamente ao ouvir o seu
nome.

Um rangido soou no pequeno quarto quando Danihel se deixou cair


na cama. De sobrolho franzido, fitava o tecto, pensativo. A cabeça
repousava nas mãos de dedos entrelaçados, um joelho ligeiramente flectido
e os pés descalços nos lençóis de algodão já puídos.
A sua mente fervilhava com perguntas às quais, por mais que
pensasse não conseguia achar respostas satisfatórias. Porquê? Porque é que
haviam parado de falar mal se aperceberam da sua presença? Como? Como
era possível que nem o seu mestre se tinha dignado a dizer-lhe uma palavra
sequer e tenha preferido mandá-lo para casa com uma desculpa de todo
incoerente? O quê? O que seria tão importante assim que levasse a juntar
três dos grandes sábios da aldeia aos murmúrios numa salinha abafada em
pleno Verão?
Mas… pensando bem, podia estar a fazer uma tempestade num copo
de água. E se fosse apenas mais uma das suas discussões filosóficas ou
políticas das quais gostam tanto e da qual preferiram mantê-lo à parte?
Afinal, não passava de um jovem de catorze anos. No entanto, se assim
fosse, eles não estariam aos murmúrios e sim a plena voz, além de que
quando se haviam apercebido da sua entrada ficaram com expressões
deveras estranhas. Não, a verdade era que eles tinham-lhe escondido
alguma coisa. Ele sabia que sim. Afinal, já tinha catorze anos. Mas o quê?
Um ruído imiscuiu-se nos seus pensamentos fazendo-o despertar.
Danihel sentou-se na cama, ligeiramente aborrecido por o terem
interrompido. O som fez-se ouvir de novo, era apenas um cão a uivar. Mas,
ao contrário do esperado de qualquer outra pessoa, Danihel sorriu ao de
leve:
Os cães não uivavam àquela hora.

Os pés dançavam no solo seco e arenoso, deixando marcas bem


visíveis e levantando o pó, de modo que parecia que uma estranha névoa
encobria os seus corpos.
Os pés pararam.
Durante alguns segundos nada se ouviu além do distante chilrear dos
pássaros dos bosques.
A névoa revolteou-se, um indício de movimento; um brilho e o som de
algo a mover-se cuidadosamente fê-lo apurar ainda mais os seus sentidos.
“Esquerda!”
E, num único movimento fluído, deixou-se cair para trás fazendo com
que a lâmina passasse rente ao seu corpo sem o atingir, pousou a mão
esquerda no chão e com uma súbita contracção dos músculos avançou a
perna direita interrompendo a investida do adversário e levantando-o do
chão.

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O seu adversário caiu no chão mas ele, com um salto, já se havia
posto de pé e agora desembainhava a sua própria espada e apontava-a às
costas do oponente. Este virou-se para cima e levantou as mãos, rendendo-
se.
- Uma boa estratégia, mas tens de tomar mais atenção – disse,
embainhando novamente a espada e estendendo uma mão à sua aluna. –
Não podes dar por certa a vitoria, tens de estar sempre atenta aos
movimentos do teu oponente. E nunca te esqueças de confiar sempre nos
teus sentidos. Esta já não é a primeira vez que te digo isto, Pyra.
- Sim, mestre. Mas eu ainda vou derrotá-lo um dia! Espere e veja! –
exclamou a rapariga, estendendo um punho desafiador a seu mestre.
- Hun! Esperar para quê? Nunca vais passar dos meus calcanhares,
quanto mais vencer o mestre! – a voz desdenhosa era familiar a ambos.
Arion estava sentado no muro com Danihel ao seu lado e os gémeos
deitados na pedra cinzenta aquecida pelo sol. Todos tinham um aspecto
acomodado de quem já ali estava há um bocado. Pyra ergueu o canto do
lábio:
- Se não fosses tão convencido, eu diria que tinhas acabado de
elogiar o mestre.
Arion sorriu.
- Eu não sou convencido, sou realista.
- Só se vives noutro mundo, porque na minha realidade eu já te
ultrapassei há muito tempo – retribuiu ela.
- Hun! Queres que eu te mostre como estás errada? – provocou Arion,
saltando do muro e cerrando os punhos enquanto avançava.
- O único errado aqui és tu – disse Pyra, avançando também ela com
a mão já pronta para sacar a espada. – Mas vem! Não há vergonha em
perder…
- Já te estás a consolar a ti própria? – retorquiu ele – Tem calma, eu
não mordo.. muito.
- Tsc… - Pyra deitou-lhe um olhar cheio de desdém.

Um pouco atrás, Danihel retirou os cotovelos do muro e encostou as


costas, cruzando os braços à frente enquanto soltava um suspiro.
- Lá vão eles outra vez…

Ambos pararam a pouco mais da distância de uma investida. Cada


um avaliou o oponente.
- Onde está aquela tua arma esquisita? – inquiriu Pyra reparando que
ele estava desarmado.
- Arma esquisita? – repetiu Arion erguendo uma sobrancelha com
desdém. – Nem sabes o que uma joplin é e queres desafiar-me? – sorriu. –
Contra ti nem armas preciso.
Pyra franziu o sobrolho e rangeu os dentes.
“Irritante…”, e desembainhou a espada.
Começaram a andar em círculo sem quebrar um furioso contacto
visual. Segundos pareciam minutos enquanto eles se encaravam, cada um
esperando o outro atacar. Foi Pyra quem deu o primeiro passo, levando a
lâmina acima do ombro direito enquanto avançava, desferiu um golpe na
diagonal dirigido ao tronco de Arion. Este, com um forte impulso dos pés,
desviou-se a tempo mas ela levantou a lâmina ao nível da cintura e avançou
com uma estocada ao peito enquanto ele ainda estava a equilibrar-se.
“Hun!”

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Com um súbito movimento de ancas, Arion virou-se de lado e a
lâmina, inofensiva, continuou a avançar à sua frente levando uma
boquiaberta Pyra consigo. Com um sorriso, Arion mirou a parte de trás do
pescoço de Pyra, virando de lado a mão esquerda ao nível da sua cabeça e
levando-a a baixo com uma rapidez impressionante. Pyra fechou os olhos,
pronta para a dor que se seguiria.
Mas o embate nunca chegou. O seu pé colidiu com algo, o que a fez
cair. Intrigada, apoiou as mãos no solo poeirento e sentou-se, virando-se
para o oponente.
Arion estava no chão, a sua cara distorcida pela dor. Com os joelhos
bem assentes em cima das costas dele, Danihel premia-lhe o ombro
esquerdo para o chão ao mesmo tempo que, com a outra mão, torcia-lhe o
pulso fazendo com que o braço ficasse quase na vertical.
- Penso que já te disse que esses golpes eram proibidos uma vez.
Soltou-lhe o braço lentamente e levantou-se. Virando-se para Pyra,
Danihel disse:
- Desculpa perturbar o teu treino, mas há uma coisa que quero falar
contigo – e revirando os olhos na direcção de Arion, acrescentou: – e com
eles também…
Pyra assentiu com um aceno de cabeça e virou-se para o Mestre.
- Mestre, eu…
- Não é preciso dizeres nada. Este treino já deu tudo o que tinha a dar
– sorriu-lhe. – Podes ir com os teus amigos.
Pyra sentia-se inquieta, o seu coração batia apressado de
antecipação. Era raro ver Danihel tão sério, normalmente ele era como Arion
embora mais calmo e frio. Fosse o que fosse, era sério. Um arrepio de
excitação percorreu-lhe a espinha, era assim que ela gostava.

O Mestre seguiu-os com o olhar até desaparecerem atrás dos


edifícios.
- Espero que não se metam em sarilhos outra vez… - olhou para as
nuvens e sorriu levemente. – Como se fosse possível, não é… Asael?

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II
Uma noite “interessante”
Kiza era uma pequena aldeia no grande país de Roast. Rodeada
de bosques e florestas, era isolada, e os seus contactos com o mundo
exterior eram escassos. Por isso, quando os Comerciantes passavam
por Kiza duas vezes ao ano, eram sempre feitas grandes festas todas
as noites.
Dessa vez, chegaram no dia do Solstício de Verão e nessa
noite, houve uma das maiores festas já feitas em Kiza.
Durante o dia, montaram as tendas e as bancas na praça que
marcava o centro da aldeia, e, ao anoitecer, a aldeia inteira reunia-se
a pouco e pouco formando uma grande multidão para a satisfação
dos Comerciantes.
Os Comerciantes não eram apenas simples mercadores. Eram
uma grande família nómada que durante todo o ano percorria o Oeste
de Illíada, vendendo e comprando produtos de variados tipos:
joalharia, carpintaria, bens da agricultura e armas. Alguns dos
membros faziam espectáculos como trapezistas, malabaristas,
contorcionistas, mágicos ou com animais domesticados. Outra grande
atracção era os contadores de histórias: os mais velhos sentavam-se
e contavam as mais fascinantes histórias às crianças que os ouviam,
maravilhadas; aos adultos e mais velhos contavam todas as notícias,
do norte ao sul do Oeste, como as estranhas alianças e divergências
entre reinos, boatos sobre a realeza e, de vez em quando, alguma
nova descoberta científico-religiosa.
Nessa noite, a praça encheu-se com as suas vozes e música, os
risos das crianças que corriam de um lado para o outro, e as
murmuradas confissões dos adolescentes.

Arion estava entretido com os seus amigos. Cada um com um


copo de cerveja de cevada na mão, tinham-se sentado em cima de
algumas caixas e caixotes de madeira e conversavam animadamente.
Ou assim parecia.
Embora estivesse tão embrenhado na conversa como os seus
amigos, nem por um segundo Arion desviou o olhar de Niryan. Desde
que chegara à festa, ela tinha-se instalado nuns bancos perto dos
músicos e conversava com um outro sábio, Inn Alleín. Pareciam estar
ambos a divertirem-se como duas pessoas normais naquela festa o
que não deixava Arion sossegado. Por fim algo aconteceu. Ambos
levantaram-se com os respectivos copos e começaram a serpentear
por entre a multidão. Arion esticou o pescoço para os poder distinguir
melhor entre as outras pessoas. Contudo, quando passaram por
detrás de uma banca, ele desviou o olhar imediatamente para a outra
ponta, no entanto, eles nunca voltaram a aparecer. Com o coração
sobressaltado, Arion procurou-os entre a multidão, mas os dois sábios
tinham sumido sem deixar rasto. Desanimado, soltou um suspiro e foi

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quando se apercebeu que metade dos seus amigos estavam de pé a
olhar para a mesma direcção que ele.
- Ah! Já voltaste à realidade? – disse um deles, ao reparar que
estava a ser observado. – Estávamos a falar contigo há meia hora e tu
nada!
- Mas para onde é que raio é que estavas a olhar com essa cara
de idiota?
- Para nada! Pareceu-me ver um animal estranho ali a pass…
- Pois, pois! Chama-lhes animais que eu chamo-lhes mulheres!
- Estás parv…!
- Aha! – Tori, do seu lado direito, olhou-o seriamente e pousou
uma mão no seu ombro. – Porque é que nos escondeste isto?
- O quê? – Arion franziu o sobrolho, completamente perdido.
Tori ergueu-se e inchou o peito dramaticamente antes de falar.
- Porque é que não nos disseste que estavas outra vez caído
pela Allisia?
- O quê?! – exclamaram todos, inclusive o próprio Arion.
- O quê… a Allisia, a irmã mais velha da Pyra?!
- Ficaste doido?! – interviu Arion, ligeiramente corado.
- Anda lá! – incentivou Tori. – Vais me dizer que não a achas
gira?
- Acho! – e corou ainda mais. – Mas estou tão caído por ela
como tu! - retorquiu Arion. – E agora com licença que vou buscar
outra bebida!
- Aham…! – reponderam todos.
- Convida-a para sair!
- Vai lá falar com ela!
- Atira-te a ela!
No meio de risos, Arion abandonou-os e, quando estava certo
de que já não o viam, correu para o ponto de encontro ao lado de
uma banca recheada de jóias e peças de ouro.
Pyra já lá estava e viu Danihel a abrir caminho pela multidão na
mesma direcção.
- Até que enfim que vocês chegaram – disse Pyra mal os
avistou a ambos. – Já cá estou há um tempinho…
- O meu mestre e a Niryan desapareceram juntos. Devem ter
feito intervalos entre as chegadas de propósito para ser menos
suspeito – afirmou Danihel de sobrolho franzido.
- E os gémeos? Ainda não houve nada? – inquiriu Arion,
estranhando a ausência de ambos.
- Ah! – exclamou Pyra repentinamente. – Os alvos deles
desapareceram com o meu, estranho não é? – dito isto, esbugalhou
os olhos e levou as mãos à boca como se se tivesse assustado. – Será
que eles foram apanhados?
- Não – declarou Arion. – Eu sei onde eles estão.
- Como assim? – inquiriu Pyra, vendo-o a afastar-se por entre a
multidão. – Hei! Não nos deixes para trás!
Pyra apressou-se a segui-lo com Danihel atrás.
Arion não abrandou até chegar às barraquinhas de especiarias.
Olhou em volta e, como se se tivesse decidido momentaneamente,
avançou apressadamente para as traseiras das barraquinhas.
- Onde é que ele vai? – perguntou Pyra, massajando o nariz
depois de ter chocado com as costas de Arion.

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- Hmm… Acho que faço uma ideia do que ele está a pensar… -
meditou Danihel, dando-lhe um pequeno empurrão nas costas para
que avançasse.
Arion avistou-os imediatamente assim que deu a volta.
Estavam de costas mas Arion podia ver um copo de cerveja de
cevada nas mãos de cada um. Á sua volta estavam as filhas dos
Comerciantes, que Arion sabia estarem proibidas de sair das
caravanas, de olhares fixos de admiração nos dois rapazes.
- E não foi só! Mesmo depois de ter levado duas estocadas o
raio do urso ainda se levanta! – dizia animadamente um deles.
- Estava prestes a dar um daqueles rugidos… vocês sabem,
enormes e assustadores, mas eu – e ergueu tanto o copo como a voz
– esgueirei-me por trás dele e…
- Zás! – gritaram os dois em uníssono, assustando as raparigas.
- Cortámos-lhe a cabeça – disseram ambos num sussurro,
passando a mão por baixo do queixo.
- Ooooohhh! – gritaram as raparigas, começando a aplaudir
enquanto eles sorriam com um ar convicto e acenavam as cabeças.
Um pouco atrás, Danihel, Pyra e Arion olhavam, incrédulos, por
ouvirem tamanha estupidez.
- Tão corajosos! Se fosse eu nem sabia o que fazer! – as outras
raparigas acenaram em consentimento.
- É verdade…
- Vocês não tiveram nem um bocadinho de medo? – perguntou
uma, abrindo muito os olhos.
- É claro que tivemos! – afirmou Perry.
- Mas o importante não é não ter medo, o importante é saber
controlá-lo! – completou Gunny, acenando com o dedo indicador.
- Ooooohhh! – aplaudiram outra vez as raparigas. – Vocês são
tão…
- Estúpidos e idiotas!
Viraram-se todos para Pyra que avançava para os gémeos com
um olhar furioso.
- Hã?! Pyra?!
- Que raio estavas tu a fazer a ouvir as noss… Aaaahh!
- Não! As orelhas não! – gritou o outro, tentando tirar as mãos
de Pyra que, por sua vez, arrastava-os pelas orelhas.
- Ah! Arioooon…! – gritou uma rapariga ao avistá-lo.
Imediatamente, começaram todas a acenar e a chamá-lo.
Ele sorriu e acenou-lhes também.
- Hoje não dá…
Um grande “Oooh” de decepção fez-se ouvir vindo das
raparigas.
- Mas amanhã venho! - afirmou Arion, consolando-as com um
grande sorriso na cara.
Elas gritaram, desta vez de felicidade e, despedindo-se,
voltaram para as caravanas.
- Hee… - fez Danihel, olhando de lado para Arion. – Popular
como sempre…
- Claro. Pensei que já soubesses… - olhou para Danihel com um
sorriso convencido. – As mulheres preferem sempre olhos claros.
Riram-se ambos. Á sua frente, os gémeos ainda se contorciam
para libertarem as suas orelhas.

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- Mas sabes… - começou Arion de novo, olhando seriamente
para Danihel. – Se quisesses também podias ter raparigas a toda a
tua volta, loucas por um bocadinho do teu charme. Tu sabes que sim.
Danihel, com a mão, levantou as madeixas de cabelo caídas
sobre os olhos e passou os dedos pelo cabelo castanho-claro,
enchendo-o de reflexos louros, ao mesmo tempo que revirava os seus
olhos castanhos para o céu nocturno.
- Não, obrigado. Podes ficar com elas – e olhando para os
gémeos que tinham finalmente se libertado, acrescentou: - Prefiro
alguém que saiba a diferença entre um urso e um gato de palha.
Voltaram ambos a rir-se. Por sua vez, Pyra voltava com os
gémeos atrás, agarrados às orelhas e extremamente de mau humor.
- Bem, vamos?
- Sim – respondeu-lhe Danihel, voltando à sua seriedade. –
Rápidos e silenciosos, não podemos dar a entender a nossa presença.
Perceberam?
- Sim! – responderam todos em unânime.
- Sigam-me.
Danihel enveredou pela rua à sua frente, virou na primeira
esquina à direita e reuniu-os.
- Todos juntos dá muito nas vistas – disse-lhes. – Vamo-nos
separar em três: eu e Arion vamos pelos telhados. Gémeos, vocês vão
pelo arvoredo lá ao fundo – e apontou-lhes as árvores a menos de 100
metros de distância. – Pyra, pedir-te-ia para voares mas há demasiado
luar para isso, por isso, vais ter que ir por baixo. Tu és a melhor a
esconder-te e a com menos probabilidade de ser notada. Vais ser o
nosso batedor.
Pyra assentiu vigorosamente.
- Vamos!
Arion e Danihel escalaram as casas à sua frente pelas janelas,
Perry e Gunny correram agachados e sem ruído até às árvores, as
quais subiram, desaparecendo de vista.
Pyra fechou os olhos e concentrou-se. Aguçou os seus sentidos,
concentrando-se principalmente na audição. Conseguia agora ouvir
os passos de um gato na casa ao lado, mas não era o suficiente.
Fechou os olhos com mais força, cerrou os dentes e tentou
aprofundar-se ainda mais nos ruídos à sua volta.
Uma cortina a ondular ao vento… as folhas das árvores a
roçarem umas nas outras… a respiração quase inaudível dos seus
amigos… uma coruja a piar… um murmúrio!
Pyra sorriu. Não conseguia distinguir o que diziam, mas não
estavam muito distantes. Apercebeu-se que as vozes vinham do
arvoredo apenas um pouco à frente de onde os gémeos estavam.
Abriu os olhos e tentou manter a concentração unicamente no
murmúrio. Rápido e sem um único ruído, percorreu ruas e quintais até
penetrar no arvoredo. Aí parou, conseguia ouvir gotas de água a
escorrer por uma telha e a cair para o que supunha ser um recipiente
com água. Se bem se recordava, havia um barracão velho por ali que
poderia servir para ela, Arion e Danihel se esconderem.
Fez-lhes sinal e estes vieram imediatamente juntar-se-lhe.
Murmurando, disse-lhes:
- Há um barracão já ali à frente que pode ser útil.
Anuíram ambos. Pyra continuou a avançar pelos espaços entre
as árvores e os arbustos. Conseguia ouvir os dois atrás dela a
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fazerem o menor ruído possível e os gémeos a seguirem-nos pelas
copas das árvores como verdadeiros macacos silenciosos embora
mantendo sempre alguma distância.
Pyra sentiu a sua capacidade de audição a diminuir, o seu
corpo estava a começar a ficar cansado. Mal podia avistar o barracão
voltou à sua audição normal, esforçando-se, no entanto, por continuar
tão silenciosa como dantes.
A partir do momento em que conseguiram ouvir vozes,
abrandaram o passo até estarem mesmo por detrás do velho
barracão. Um de cada vez, esgueiraram-se para a sombra da parede
de madeira apodrecida. Assim que lá se encontravam os três,
aperceberam-se que estavam na orla de uma clareira. A poucos
passos de distância estavam todos os sábios da aldeia. Era possível
ouvir tudo o que diziam, mesmo os sussurros.
- …o exterior.
- Concordo – afirmou a voz da única mulher sábia da aldeia,
Niryan. – Quanto mais rápido o fizermos, melhor. Penso que a cidade
de Eltan deve ser a nossa prioridade.
- Sim, Eltan é a cidade mais próxima e tem muitos mais
recursos de comunicação do que nós. É sabido por todos que tem
também um grande potencial bélico para uma cidade. Sugiro que lhe
solicitemos ajuda militar – todos reconheceram a voz do Mestre.
- É a nossa única solução embora não me agrade
particularmente – Inn Alleín, mestre particular de Danihel, suscitou
alguns acenos de concordância dos outros sábios.
- Como já é sabido por todos, o governo de Eltan, desde há
alguns anos, tem se vindo a tornar bastante questionável – comentou
Al Sielthe, um sábio já com bastantes anos de vida, o que podia ser
dito pelo seu topo da cabeça já escasso de cabelo. - Temos de ser
cuidadosos com o que dizemos e fazemos ou acabaremos parte do
Povo de Eltan – concluiu destacando as últimas palavras.
- “Povo de Eltan”?! – murmurou Pyra, olhando para os outros
em busca de uma explicação.
Arion abriu a boca para falar mas foi impedido por Danihel que
fez um sinal para que se calassem e ouvissem, o Eremita iria falar.
- Crianças… - disse, na sua voz rouca e pausada. – Acalmem os
vossos inquietos corações… Não há razão para o pânico… pois todos
sabíamos que ele viria. Durante anos esperámos por este dia e
preparámo-nos para ele o melhor que podíamos… Não vamos, agora,
desperdiçá-los por banalidades como o medo – os outros sábios
baixaram as cabeças como sinal de respeito e de que o tinham
compreendido. O Eremita voltou a falar: - Lidaremos com Eltan
depois… Neste momento, a sobrevivência da aldeia deve ser a nossa
prioridade…
«Sobrevivência…!?». Atrás do barracão, Pyra, Arion e Danihel
entreolharam-se com aflição; nas copas das árvores, sobre os ramos,
os gémeos trocaram olhares de angústia e inquietação. O que poderia
ser tão grave que poria a sobrevivência da sua aldeia em risco?
A voz suave do Mestre fez-se ouvir novamente.
- Tendes razão, Eremita. Devemos pensar na população acima
de tudo. Eu proponho que a evacuemos para evitar mortes inocentes
e desnecessárias.

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- Discordo. Acho que devemos utilizar todos os homens capazes
de pegar numa espada e fazer uma frente de combate enquanto as
mulheres e crianças se refugiam em Eltan.
- Isso não tem sentido – retorquiu Niryan. – As mulheres
também foram treinadas para o combate e podem lutar como
qualquer homem.
- Fazer uma frente de combate não é uma opção, Sielthe.
Perante uma força cujos números não conhecemos, o certo será fazer
uma manobra surpresa aproveitando o facto de serem eles a vir até
nós. O perfeito seria uma emboscada – declarou o Mestre.
- Mas uma emboscada em que não se conhece o número de
tropas inimigas pode resultar num final trágico. Podemos ser nós os
surpreendidos! – contestou Sielthe.
- Isso não vai acontecer! – afirmou Alleín subitamente. – Se
colocarmos batedores fora da aldeia circundando-a, iremos saber
imediatamente de que direcção vêm e quantos são. Com uma boa
estratégia acho que conseguiremos vencer.
- Assim é! – exclamou Niryan. – Quando soubermos tudo o que
pudermos sobre eles decidiremos qual a estratégia a tomar. Até lá
qualquer discussão será uma perda de tempo – afirmou, olhando
severamente para o Mestre e Sielthe.
- Crianças… - voltou a dizer o Eremita e todos voltaram os seus
olhares para ele. – Eu irei escrever a carta para Eltan… deixo-vos
entregues ao resto – fez uma pausa. A sua cara de pele enrugada
contraiu-se, como se estivesse a fazer um pequeno esforço, e as duas
pregas de pele que eram as suas pálpebras ergueram-se
suavemente, deixando dois pequenos brilhos azuis à vista. O Eremita
olhou para cada um dos sábios, para ele ainda jovens crianças, e
disse, na sua voz rouca: - O meu tempo já está a acabar-se… esta Era
não irá durar muito mais.

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