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Fusão ou confusão?

Pouco mais de dois meses depois de anunciada, a proposta de fusão entre a Varig
e a TAM, as maiores companhias aéreas brasileiras, enfrentam um momento
crucial. Nos próximos dias deverão ser divulgados os resultados das auditorias –
contábil, jurídica e atuarial – feitas nas duas empresas. São informações
aguardadas com ansiedade pelas partes. Em boa medida, é delas que virá o sinal
verde – ou vermelho – para o prosseguimento das negociações. Enquanto os
números não vêm à tona, Varig e TAM armam-se para enfrentar um possível
casamento arranjado, abençoado por quatro ministérios – Defesa, Planejamento,
Fazenda e Casa Civil –, e que foi motivo de reuniões recentes do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva com executivos das empresas e sindicalistas ligados à Varig.
Não se trata, porém, de uma preparação feita às claras. Nenhum dos
entrevistados desta reportagem – executivos das duas companhias aéreas,
fornecedores, credores e profissionais envolvidos com a fusão – concordou em ser
identificado. Num negócio que transformaria duas empresas combalidas num
colosso com participação de 70% no mercado aéreo nacional, declarações mal
recebidas podem colocar tudo a perder. E o que mais se vê nesse caso são
informações desencontradas ou conflitantes. Um exemplo simples: ao perguntar a
diversos envolvidos no processo qual a data final para a entrega do resultado das
auditorias, EXAME obteve quatro respostas diferentes.
De saída, é bom que se diga que a Varig, controlada pela Fundação Rubem Berta,
e a TAM têm planos de vôo distintos – e esse costuma ser o mais poderoso
antídoto contra fusões de qualquer tipo. A Varig, em situação pré-falimentar – nos
nove primeiros meses de 2002, registrou patrimônio líquido negativo superior a 2,5
bilhões de reais e prejuízo de mais de 2 bilhões –, ainda acredita que a solução
para a bancarrota passe pelos cofres do governo. A pessoas próximas, Yutaka
Imagawa, presidente do conselho curador da fundação, tem falado abertamente
que, apesar das crescentes dificuldades da Varig, dali ele não sai, dali ninguém o
tira. A política de Imagawa é: vão-se os dedos, ficam os anéis, diz um executivo da
Varig.

A mais recente manobra de Imagawa para permanecer no poder se tornou pública


dias atrás. No final de março, ele fora destituído da presidência do conselho da
FRB-Par, braço financeiro da Fundação Rubem Berta. Desgastado pelos conflitos
com credores e contrário à fusão, Imagawa teria sido escanteado graças à
pressão do governo, representado nas negociações pelo economista Luciano
Coutinho. Quatro dos sete curadores votaram pelo seu afastamento. Um deles foi
Gilberto Carlos Rigoni, o funcionário mais antigo da Varig, com 52 anos de casa.
Por duas semanas, Imagawa arquitetou como viraria o jogo. Sua saída foi cooptar
Rigoni, oferecendo a ele a presidência do conselho da FRB-Par em troca de
apoio. No dia 11 de abril, Rigoni foi eleito para o cargo. Ou seja: Imagawa
conseguiu manter-se, indiretamente, no poder. O japonês deu um golpe de caratê
em todo mundo, afirma um executivo da Varig. (Procuradas por EXAME, as
diretorias da Varig e da TAM recusaram-se a falar oficialmente sobre o assunto.)
A concorrente TAM, cujo prejuízo superou 605 milhões de reais em 2002, não tem
interesse em carregar a Varig nas costas. Na companhia fundada pelo
comandante Rolim Adolfo Amaro, a expectativa é que ao final da auditoria vários
esqueletos saiam dos armários da Varig – a aposta é que o passivo total da
empresa alcance 10 bilhões de reais. O negócio não sai de jeito nenhum, diz um
executivo da TAM. Pelo menos, segundo ele, não uma fusão ortodoxa – expressão
usada por vários dos entrevistados. Em outras palavras, se TAM e Varig derem
origem a uma nova empresa, ela não será a soma de 100% das duas partes. O
que será, então? A resposta ainda é nebulosa. A alguns interlocutores, o
presidente da TAM, Daniel Mandelli, tem se referido a essa possível nova
companhia como a coisa.

A tal coisa, como Mandelli batizou, começou a ganhar contornos mais precisos
nos últimos dias. Na mesma data em que Rigoni assumiu a FRB-Par, o banco
Fator, encarregado de orquestrar a fusão, enviou à Varig, à TAM e ao BNDES uma
proposta de modelagem da nova operação, antecipando-se aos resultados da
auditoria. De certo, sabe-se apenas que a nova empresa precisaria de uma
injeção de dinheiro novo que beira 600 milhões de dólares. Uma forte
possibilidade é que – além do BNDES – credores da Varig, como Banco do Brasil,
BR Distribuidora e Infraero, também se tornem acionistas da nova empresa.

Enquanto debatem se vão se juntar ou não, as duas empresas perdem terreno.


Com a alta do dólar e com o crescimento da Gol – em março, a companhia
presidida pelo empresário Constantino de Oliveira Júnior foi responsável por
18,8% do total de passageiros transportados no Brasil –, ficou bem mais difícil
ganhar dinheiro com o transporte aéreo. Cinco anos atrás, as maiores empresas
brasileiras do setor faturavam, em média, 30 centavos de dólar por passageiro
transportado por quilômetro. Atualmente, faturam um terço disso.
A situação é muito mais grave para a Varig. Os fornecedores cansaram de esperar
pelos pagamentos. Crédito, nem pensar. Nas últimas semanas, as negociações
com a BR Distribuidora, por exemplo, ficaram mais tensas. A Varig gasta por dia 7
milhões de reais com combustível. O acerto com a BR agora é o seguinte: pagou,
abasteceu. Caso contrário, a companhia fica sem combustível. O próprio
presidente da Petrobrás, José Eduardo Dutra, teria dito numa reunião recente que,
apesar de o governo apoiar a fusão, a estatal não poderia conceder privilégios à
Varig. Caso contrário, correria o risco de, como companhia aberta, ser
questionada pelos acionistas. O aperto também chegou ao uso das aeronaves.
Pressionada pelas empresas de leasing, a Varig foi obrigada a reduzir a frota. De
janeiro até junho, o total de aeronaves devolvidas chegará a 13. As que ficaram
passam agora muito mais tempo no ar: enquanto a média de cada avião do setor
é de 11 horas diárias de vôo, na Varig o índice beira 17 horas.
Nada disso parece tirar o sono de quem está na companhia. Os executivos da
Varig não agem como se a empresa estivesse à beira da morte, diz um executivo
de uma das credoras. Ao contrário. A Varig parece um doente terminal que
quando ganha um pouco de oxigênio põe salto alto e vai brincar o Carnaval. Uma
mostra dessa tendência a subestimar a realidade é a visão de que os problemas
da Varig são pontuais. Segundo a liderança da empresa, a dificuldade seria
apenas cumprir os compromissos de 2003. A Varig tem dívidas da ordem de 280
milhões de dólares a vencer neste ano. Como sua geração de caixa deverá ser de
180 milhões de dólares, a conta não vai fechar.

Quem está envolvido no processo garante que na TAM o senso de urgência está
instalado. Na sede da companhia, localizada no aeroporto de Congonhas, em São
Paulo, a luz vermelha está acesa há muito tempo. Segundo especialistas do setor,
o erro estratégico da companhia foi apostar na morte da Varig e exagerar na
encomenda de aeronaves – nos últimos dois anos, recebeu 36 Airbus. A TAM
agora está pagando o preço, diz um analista.

Se o cronograma planejado for cumprido, a decisão final sobre a fusão – sua


aprovação ou seu engavetamento – será conhecida até o final de abril.
Estimativas indicam que se a fusão vingar cerca de 8.000 funcionários das duas
empresas perderão o emprego. Só o custo trabalhista das demissões deve chegar
a 100 milhões de dólares. Essa seria uma das principais preocupações do
governo federal. De um lado, ele se recusa a injetar dinheiro numa companhia
doente e a arcar com o custo político de uma medida como essa. De outro, uma
nova empresa – saneada– representaria uma redução de quase um terço dos
empregos que as duas companhias hoje oferecem. É uma sinuca para um
governo cuja marca mais forte é a preocupação social.

O enxugamento, porém, será vital em caso de fusão. Do contrário, a nova


empresa corre o risco de repetir por aqui o que aconteceu com a Air Canada. No
dia 1º de abril, a companhia canadense entrou com pedido de falência. Suas
dificuldades começaram há três anos, quando adquiriu a rival Canadian Airlines.
Na época, o governo canadense estabeleceu regras para impedir demissões e
obrigou a empresa a continuar operando rotas não lucrativas. Com custos altos,
mesmo detendo 73% do mercado doméstico e sendo a única companhia a fazer
vôos internacionais, a Air Canada não resistiu.
Outro fator crucial para o eventual sucesso da fusão é equacionar as diferenças
culturais entre Varig e TAM – um obstáculo aparentemente intransponível. Com os
estudos da fusão, elas ficaram ainda mais evidentes. O que na TAM depende da
aprovação de três pessoas e é feito num dia, na Varig precisa passar por vários
conselhos, afirma um executivo ligado à negociação. Mesmo os funcionários da
linha de frente das duas empresas não costumam trocar cumprimentos cordiais no
saguão dos aeroportos.
Para o consumidor, o aspecto perceptível da proposta de fusão até agora é o
programa de compartilhamento de vôos iniciado em 10 de março. Para otimizar o
uso das aeronaves, as duas empresas passaram a operar conjuntamente 252
vôos diários e deixaram de atuar em rotas pouco rentáveis. O número de cidades
brasileiras atendidas caiu de 189 para 129, diz um executivo do setor. E poderá
cair ainda mais. O programa prevê quatro fases de operação – todas já
apresentadas ao Cade, o órgão oficial de avaliação da concorrência nos mercados
–, mas apenas duas entraram em vigor.
O que poderá acontecer nos próximos dias? É difícil prever. Mas, quer a fusão
decole, quer não, é bastante provável que o governo tenha de interferir no
funcionamento de todo o setor. Numa entrevista recente, o ministro da Defesa,
José Viegas, afirmou que o modelo liberal que embasou a aviação civil nos últimos
anos fracassou. O governo vai ter de definir se a aviação está ligada à soberania
e à infra-estrutura do país ou se é um bem de consumo como qualquer outro, se é
como vender cachaça, diz um executivo do setor.

Fonte
CORREA, Cristiane. Fusão ou confusão?. Exame, São Paulo, abr. 2003.

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