Você está na página 1de 410
ELSEVIER SALVANDO 0 CAPITALISMO 00S GAPITALISTAS ACREDITANDO NO PODER DO LIVRE MERCADO PARA GRIAR MAIS RIQUEZA E AMPLIAR AS OPORTUNIDADES c —— CAMPUS PTET MICS Cocca PMR OOM MUN Me eM CMSs compreensao do sistema capitaista e, em espe- Greco eur OMIM oa 0 catalisadores que inspiram @ engenhosidade CNC cor PCCM A UNOR MSC MTN TES Pec SNe Sa TciCNe ON UNE TERE PETC MST Cae Tae ame eee omer Se ora Mee PERC CNC Me TOC TCLS MCC C MCMC ACPA ICL ASG ORR On mio Annee eee CSU Ln UCL ona Wal-Mart - que ha 25 anos eram pequenos graos Poe ene etme Rin Ron See aCe UN Ce CNC TO RENCC ICC Ea pessoas. No correr da histéria, ¢ na maior parte do TOC eee CERO SOMRUeMe CnC CSU NE SOE PEC MCM MCN nose EC MONET ELEN Dees c TE OMC LN Lc NaCI bém o individual. Se TOC EME NTE eT eC act BRC SCRUM NGM CALA cue SCC Ca CO MME OEM PP euea aMELIGLcSy ons, fobres, pobres. A glabalizagao RO MONO CLC MOE acc RNC MECC} favordvel para as elites estabelecidas, As frontel: POSTON Ene MENON PCN Oe Meee On Ca Per TEMP ROC Sees nea teS} Pm MOMSEN Se CTC CONN eon eet Tae IC MCE CEST CT) DE Ce ee nC TE Wel eae (ese eure Ome sm sun TEM TREO Ce eee TON CGO ERC Ca aT ree es Me SALVANDO 0 CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS Associagao Brasileira para a Proteco dos Direitos Editoriak RESPEITE 0 AUTOR NAO Faca Copia Preencha a ficha de cadastro no final deste livro e receba gratuitamente informagées sobre os langamentos e as promogées da Editora Campus. Consulte também nosso catélogo completo e dltimos langamentos em www.campus.com.br SALVANDO 0 CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS ACREDITANDO NO PODER DO LIVRE MERCADO PARA GRIAR MAIS RIQUEZA E AMPLIAR AS OPORTUNIDADES Tradugio Maria José Gyhlar Monteiro €& = BS) a ‘aenmmenen ELSEVIER CAMPUS Do original: Saving Capitalism trom the Capitalists Tradugao autorizada do idioma inglés da edigéo publicada por Grown Business Random House, Inc. Copyright © 2008 by Raghuram G. Rajan & Luigi Zingales Todos os diteltos reservados. © 2004, Elsevier Editora Lida Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1098. Nonhuma parte deste livo, sem autorizacao prévia por escrito da ecitora, poderd ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregadoe: eletrénicos, mecanicos, fotogréficos, gravagao ou quaisquer outros. Editoragao Eletronica Estudio Castetani Copidesque Maritior Brenila Rial Rocha Revisdo Grélica Edna Rocha Roberta dos Santos Borges Projeto Grético Eisovior Editora Lida. ‘A Qualidade da Informagao. Rua Sote de Setembro, 111 — 16 andar 20050-006 Rio de Janeiro RJ Brasil Tolofone: (21) 3970-8300 FAX: (21) 2507-1991 E-mail: info @ elsevier.com.br Esoritorio Sao Paulo: Rua Elvira Ferraz, 198 (0552-040 Vila Olimpia Sao Paulo SP Tel. (11) 3841-8555 ISBN 85-352-0383-X Ecigao original: ISBN 0-609-61070-8 CIP-Brasil, Catalogagao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ RI328 Rajan, Raghuram Salvando 0 capitalismo dos capitalistas : acreditando no poder do livre morcado para criar mais riqueza @ ampliar as oportunidades / Raghuram Rajan, Luigi Zingales ; tradugao de Maria José Cyhlar Monteiro. ~ Rio de Janeiro : Elsevier, 2004 Tradugo do: Saving capitalism trom the capitalists ISBN 85-352-0383X 1. Mercado de capitais. 2. Mercado de capitais - Supervisao estatal. 3. Mercado financeiro. 4. Capitalismo — Aspectos Morais @ éticos. |. Zingales, Luigi. I. Titulo. 04-0250. COD ~ 992.041 CDU ~ 336.78 04 05 06 07 08 643214 As nossas familias PREFACIO S E NOSSO EDITOR TIVESSE O PODER de influenciar os fatos correntes para promover este livro e nao desse a minima para o sofri- mento humano, ele nao poderia ter feito nada melhor. Os jornais estio re- pletos de escAndalos corporativos. A implosio da bolha da Internet geroua maior destruigéo de riqueza em papéis que o mundo ja viu. Os protestos antimercado ganham forga a cada dia. As diividas relativas a viabilidade ou a fragilidade politica do sistema capitalista, que pareciam absurdas ha trés anos, quando comegamos a elaborar esta obra, afiguram-se hoje razoaveis. Sera que o capitalismo sem controles sera ainda o melhor, ou o menos ruim, sistema econémico? Sao necessarias reformas? E essas reformas de- veriam cuidar de consertar o sistema ou seria melhor alter4-lo completa- mente? A atual desilusao com os mercados livres sobreviver4 a0 colapso do mercado de agGes? E mesmo se a desiluséo for uma onda passageira, sob que forma o capitalismo sobreviveré no século XXT? Embora nosso livro tenha sido concebido e em grande parte redigido antes que os mais recentes escindalos viessem a tona, cle tenta coloca-los em perspectiva. Toda expansao do mercado produz novos vigaristas. E todo fracasso do mercado desencadeia uma caga as bruxas. Este livro visa enxergar além das conseqiiéncias imediatas das flutuagdes de mercado, para aferir os efeitos mais duradouros e profundos sobre o sistema de livre empresa. Embora enfoquemos os mercados financeiros, procuramos iden- tificar as forgas e fraquezas fundamentais do sistema capitalista, nado apenas em sua forma ideal, mas também em seus aspectos histéricos. Alicergamos nossc dela elaborada nos diltimos 20 anos. Mas este nao é um livro destinado a es- pecialistas porque consideramos que nossa mensagem é relevante para um argumentos em vasta literatura académica, boa parte publico mais amplo. Evitamos a apresentagio de andlises econométricas pormenorizadas, nao porque as consideremos pouco relevantes, mas por- que os resultados podem ser igualmente transmitidos ao paiblico em geral por meio de palavras, pecializadas, Este livro é também mais do que uma simples revisio de lite- ratura — ele procura tecer um argumento mais amplo. Embora os fatos his- t6ricos orientem nossos estudos, e os de outros autores, a hist6ria nos apre- senta poucos experimentos naturais a partir dos quais verificar todos os as- pectos de uma argumentagao mais ampla. Portanto, em certos momentos tentaremos convencer 0 leitor tanto pela ldgica quanto pelas autoridades e evidéncias historicas que citamos. O purista talvez nao aprove esta abordagem. Infelizmente, qualquer ten- tativa de integracao de diferentes campos do conhecimento e de fatos de diferentes épocas e estudos em geral é considerada insatisfatéria pelos pu- e os interessados podem procurar as fontes mais es- ristas, em parte porque os pest pletos de vieses. Caberia pedir desculpas se nao estivéssemos firmemente conyencidos de que os vieses sio inevitaveis em qualquer trabalho, e em ge- ral € a concorréncia entre eles que leva adiante 0 pensamento. Esta foi uma viagem de descobertas em que aprendemos muito ao longo da jornada. Precisamos agradecer aos que nos ensinaram de forma direta s atribuidos a diferentes aspectos estio re- ou indireta. 0 moderno campo das finangas foi criado em nossa época e sem dtivida temos uma grande divida intelectual para com os pionciros, muitos dos quais ainda estao ativos na pesqui devedores dos que nos orientaram no infcio de nossas carreiras. Em parti- cular gostarfamos de agradecer a Oliver Hart, Don Lessard, Stewart Myers, John Parsons, Jim Poterba, David Scharfstein, Andrei Shleifer e Je- remy Stein. Também somos muito gratos a nossos colegas da Faculdade de Administragao da Universidade de Chicago, alguns dos quais foram parcei- ros de nossas jornadas de descoberta intelectual ¢ outros nos ofereceram criticas extremamente titeis. Douglas Diamond, Fugene Fama, Steven Kaplan, Randall Kroszner, Canice Prendergast, Richard Thaler e Rob Vishny sao alguns dos que gostariamos de citar nominalmente, sem dimi- nuir a divida que temos para com os outros. Nosso livro também reflete o . Mas somos especialmente trabalho conjunto com varios colegas. Agradecemos especialmente a Abhi- jit Banerjee, Alexander Dyck, Luigi Guiso, Mitchell Petersen, Paola Sapi- enza e Henri Servaes, cujos esforgos contribuiram para moldar nosso pen- samento. ‘Muitas pessoas leram versdes preliminares dos capitulos deste livro. Heitor Almeida, Oliver Hart, Peter Hogfeldt, Steven Kaplan, Ross Levi- ne, Rajnish Mehra, Canice Prendergast, Radhika Puri, Roberta Romano, Gianni Toniolo, Andrei Shleifer e Ricl tarios de grande utilidade. Joyce Van Grondelle fez um excelente trabalho (como sempre) de verificagao das referéncias e da bibliografia, enquanto que Adam Cartabiano, Laura Pisani e Talha Muhammad nos auxiliaram a conferir dados e encontrar referéncias. Barbara Rifkind nos ajudou a formular uma proposta coerente ec, ainda mais importante, a encontrar John Mahaney, nosso editor. Ele nos deu uma contribuigao valiosa, auxiliando-nos a orientar nosso trabalho de modo a poder atender os virios publicos de forma inteligivel. Agradecemos rd Thaler nos ofereceram comen- au as varias sugest6es titeis que aprimoraram grandemente este livro. Shana Wingert, sua assistente, nos auxiliou pacientemente a administrar a logisti- ca do processo de redagio do livro. Sam Peltzman e o Center for Study of the State and the Economy nos ofereceram encorajamento ea fundamental assisténcia financeira no curso deste projeto. E, finalmente, notas pessoais. Raghu: Espero que com este livro meus pais possam ver 0 que fago para ganhar a vida. Sob muitos aspectos este livro reflete o que eles me ensinaram, desde as historias que meu pai lia para mim quando eu era crianga ao amor & leitu- ra que minha mie tentou me inculcar. Nao teria conclufdo este livro se mi- nha filha ‘Tara nao perguntasse constantemente: “Papai, ja terminou 0 li- vro?” Tara, lamento que este livro nao precise de ilustragdes, porque sem duvida teria pedido para vocé fazé-las. Devo a vocé e Akhil todos os fins de semana que poderfamos ter ido ao parque ou 4 praia. E, acima de tudo, agradego a Radhika, minha esposa, por todo 0 amor ¢ os conselhos que me deu ao longo deste projeto. Luigi: Este livro foi elaborado durante um periodo dificil em minha vida. De- sejo agradecer a todos os que me deram apoio moral: Elizabeth Paparo, Maria Coller, Francesca Cornelli, Mary Doheny, Leonardo Felli, Enrico Piccinin, Carol Rubin, Paola Sapienza, Abbie Smith, Stefano Visentin, Maria Zingales o proprio Raghu, cuja paciéncia e compreensio foram muito além daquilo que se espera de um amigo. Agradego a meus pais pela maravilhosa educagio que me propiciaram. Dedico este livro a meus filhos, Giuseppe e Gloria, propésito e alegria de minha vida. SUMARIO Introdugdo PRIMEIRA PARTE: OS BENEFICIOS DOS LIVRES MERCADOS FINANCEIROS CAPITULO As finangas beneficiam apenas 0s ricos? caPiTULO2 A transformagio de Shylock CAPITULO 3 A revolugio financeira e a liberdade econémica individual CAPITULO4 — O lado obscuro das finangas CAPITULO SOs resultados do desenvolvimento financeiro SEGUNDA PARTE: QUANDO SURGEM OS MERCADOS FINANCEIROS? CAPITULO6 — Asubmissao do governo CAPITULO7 Os obstéculos ao desenvolvimento financeiro CAPITULO8 — Quando as finangas se desenvolvem? TERCEIRA PARTE: A GRANDE REVERSAO CAPITULO9 — A grande reversio entre as guerras CAPITULO 10 Por que o mercado foi suprimido? CAPITULO IL Declinio e queda do capitalismo de relagoes 27 48 et 102 119 141 171 188 219 246 269 QUARTA PARTE: COMO TORNAR OS MERCADOS POLITICAMENTE MAIS VIAVEIS? CAPITULO 12 Os desafios futuros 299 CAPITULO 13 Salvando 0 capitalismo dos capitalistas 319 Conclusio BB Notas 343 Bibliografia 367 Os autores 383 Indice 385 INTRODUGAO O CAPITALISMO, OU, MAIS EXATAMENTE, 0 sistema de livre mer- cado, 6a forma mais eficaz de organizar a produgao e distribuigio que os seres humanos encontraram. Embora 0s livres mercados, especialmente os livres mercados financeiros, engordem a carteira das pessoas, nao conse- guiram, surpreendentemente, conquistar seus coragdes e mentes. Os mer- cados financeiros sao um dos mais criticados e menos entendidos elemen- tos do sistema capitalista. O comportamento dos envolvidos nos recentes escindalos financeiros, como 0 colapso da Enron, apenas fortalece a con- vicgio do ptiblico de que esses mercados sio meros instrumentos para que os ricos fiquem mais ricos a expensas da sociedade em geral. Contudo, como argumentaremos, mercados financeiros sadios e concorrenciais sao uma ferramenta extraordinariamente eficaz para difundir oportunidades e combater a pobreza. Dado seu papel no financiamento de novas idéias, os mercados financeiros mantém vivo 0 processo de “destruigio criadora” que contesta velhas idéias e organizag6es ¢ as substitui por outras, novas e me- lhores. Sem mercados financeiros vibrantes, inovadores, a economia inevi- tavelmente se petrificaria e declinari: Nos Estados Unidos, a constante inovagio financeira cria mecanismos para levar o capital de risco 4s pessoas com idéias ousadas. Embora aqui se- jam comuns, esses vefculos financeiros ainda sio considerados radicais, até em paises desenvolvidos como a Alemanha. F a situagao nos paises do'Ter- ceiro Mundo beira o impossivel: as pessoas encontram dificuldade até em ter acesso a alguns délares de financiamento que lhes permitiriam ganhar a 2 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS vida de modo independente e satisfatério. Se os mercados financeiros tra- zem prosperidade, por que eles sio tio pouco desenvolvidos em todo 0 mundo e por que eles foram, até recentemente, reprimidos mesmo nos Estados Unidos Em toda sua histéria, 0 sistema de livre mercado foi freado nao tanto por suas deficiéncias econdmicas, como quereriam os marxistas, mas porque dependem da boa vontade politica para sua infra-estrutura. As ameagas provém basicamente de dois grupos de oponentes. O primeiro é o dos be- neficiados, aqueles que jé tém uma posigo estabelecida no mercado e que prefeririam continuar com a exclusividade. A identidade dos beneficiados mais perigosos depende do pais e da época, mas o papel ja foi desempenha- do pela aristocracia rural, pelos proprietarios e gestores de grandes empre- sas, por seus financiadores e pelos sindicatos. O segundo grupo de opositores, o dos destituidos, tende a vir 4 tona em tempos de crise econdmica. Aqueles que sairam perdendo no processo de destruigao criadora desencadeada pelos mercados — trabalhadores desem- pregados, investidores quebrados ¢ empresas falidas — nio véem legiti- midade num sistema em que se provaram perdedores. Desejam amparo, € como os mercados nao hes oferecem nenhum, tentam 0 caminho da politica. A improvavel alianca dos empresarios beneficiados — os capitalistas do ti- tulo — e dos desempregados aflitos é especialmente poderosa em meio aos destrogos das faléncias empresariais e dos trabalhadores demitidos. Numa recessio econdmica, o capitalista tende a se preocupar mais com os custos da competi¢ao que emana dos mercados livres do que com as oportunida- des que ele cria. E 0 trabalhador desempregado encontrara muitos outros em condigdes semelhantes, com as mesmas ansiedades, 0 que facilita sua organizagio. Sob 0 manto ¢ a organizagio politica proporcionados pelos destituidos, 0 capitalista se apossa da pauta politic: Nesses periodos, os politicos precisam de extrema coragem (ou temeri- dade) para louvar as virtudes do livre mercado, Para 0 politico é muito mais facil ceder ao capitalista, que defende ostensivamente os desamparados exi- gindo que a concorréncia seja freada e os mercados suprimidos, do que ver a destrui¢%o como a contrapartida inevitavel da criagdo. Sob a aparéncia de aprimorar os mercados para impedir futuras quedas da atividade, essas in- tervengées politicas visam bloquear seu funcionamento. Os capitalistas po- dem voltar-se contra 0 érgio mais eficaz do capitalismo e 0 piiblico, cujo Introdngiio 3 futuro é diretamente prejudicado por essas agGes, fica 4 margem, raramen- te protestando, muitas vezes sem compreender © que ocorre e, ocasional- mente, aplaudindo. Este livro comeca por recordar que grande parte da prosperidade, da inovagio e das crescentes oportunidades registradas nas ultimas décadas deveria ser atribuida ao ressurgimento dos livres mercados, especialmente os financeiros. Passamos entao a nossa tese central: como os mercados li- vres dependem da boa vontade politica para sua existéncia e como contam com poderosos inimigos politicos no establishment, sua sobrevivéncia conti- nuada nao pode ser dada como certa, mesmo nos paises desenvolvidos. Ali- cergados em nossa leitura das razées para a queda e a ascensio dos merca- dos na hist6ria recente, propomos estratégias que contribuam para tornar 0 livre mercado mais vidvel em termos politicos, Apés a mais prolongada expansio econdmica em tempos de paz da hist6ria recente, uma expansido que testemunhou a implosio das econo- mias socialistas, a preocupa¢ao com o futuro do livre mercado pode pa- recer alarmista. Talvez! Mas o sucesso tende a gerar complacéncia. Os recentes escindalos corporativos, os ciclos de prosperidade ¢ depressio decorrentes do movimento dos mercados financeiros e as dificuldades econdmicas conduzem a uma crescente desconfianga dos mercados. HA muitos outros sinais preocupantes, da virulenta retérica antiimigragio da extrema direita aos protestos antiglobalizacao da esquerda rejuvenes- cida. E mudangas demogr4ficas e técnicas iminentes criariio novas ten- soes. E importante entender que o predominio do livre mercado nao é necessariamente a culminagao de um processo inevitdvel de desenvolvi- mento econdmico ~ o fim da histéria, por assim dizer — mas pode ser an- tes um interhidio, como se viu no passado, Para que os livres mercados se tornem mais vidveis do ponto de vista politico, temos que repetir, para nés mesmos e para os outros, com freqiiéncia e em voz alta, os mo- tivos que os tornam tao benéficos. Reconhecemos e cuidamos de suas deficiéncias. E precisamos agir para fortalecer suas defesas. Este livro é uma contribuigio para tanto. Comegamos explicando por que os livres mercados concorrenciais sio tao titeis. Talvez o menos entendido dos mercados, 0 mais injustamente criticado e um dos mais fundamentais para tornar competitivo um pais seja o mercado financeiro. E também 0 mais sensivel aos ventos politicos. Mui- 4 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS tas das mudangas mais importantes de nosso ambiente econdmico nas trés tiltimas décadas decorreram de alteragdes nos mercados financeiros. Por todas essas razes, e porque é um representante adequado de seu género, daremos especial atengao ao mercado financeiro. Comegaremos com dois exemplos: o primeiro, o de um pais onde nao ha mercados financeiros; o segundo, de um pais onde eles sao dinamicos. Com excessiva freqiiéncia, as finangas sio criticadas como sendo apenas um ins- trumento dos ricos. Contudo, como sugere nosso primeira exemplo, os pobres podem ficar totalmente incapacitados se nfo tiverem acesso a financia- mentos. Para que os pobres tenham mais acesso aos mercados financeiros eles precisam se desenvolver e se tornar mais competitivos. E quando o fa- zem, como sugere nosso segundo exemplo, tudo o que detém os individuos sao seu talento ¢ sua capacidade de sonhar. A fabricante de tamboretes da aldeia de Jobra ‘Talvez nao exista maior autoridade em tornar o crédito disponivel para os pobres do que Muhammad Yunus, o fundador do Grameen Bank. Em sua autobiografia, Yunus narra como descobriu a importancia do financiamen- to quando era professor de economia numa universidade de Bangladesh. Horrori do com as conseqiiéncias de uma recente crise de alimentos so- bre os pobres, ele saiu do abrigo dos muros da universidade e foi visitar uma aldeia préxima, Jobra, para descobrir como os pobres sobreviviam. Come- cou a conversar com uma jovem mie, Sufiya Begum, que fabricava tambo- retes de bambu.! Descobriu que Sufiya precisava de 22 centavos para comprar a maté- ria-prima dos tamboretes. Como ela nao tinha dinheiro, tomava empresta- do de um intermediario ¢ ficava obrigada a lhe revender os tamboretes para resgatar 0 empréstimo. Com isso sobrava para cla um lucro de 2 centavos. Yunus ficou escandalizado: Observei como ela retomava o trabalho, suas pequenas maos morenas ali- savam as fibras do bambu como faziam todos os dias, hd meses, hé anos... Como seus filhos poderiam quebrar 0 ciclo de pobreza que ela iniciara? Como iriam para a escola se o que Sufiya ganhava mal dava para alimen- tala, que diré alimentar e vestir adequadamente sua fam(lia?? Introdugdo 5 Como Sufiya nao tinha 22 centavos, ela ficava presa as garras do inter- medifrio, Este a obrigava a aceitar a parca esmola de 2 centavos por um dia de trabalho 4rduo. Um financiamento a libertaria do intermedidrio ¢ lhe permitiria vender diretamente aos clientes. Mas 0 intermediario nao deixa- va que ela obtivesse um financiamento pa Por falta de 22 centavos, o trabalho de Sufiya era escravo. A escassez de financiamento, que tantas vezes 6 a situago normal em boa parte do mundo, se torna ainda mais cruel quando contrastada com a alter- nativa: o extraordinario impacto da revolugio financeira em algumas partes do mundo. Para isso, vamos para a California, nosso segundo exemplo. nao perder o poder que tinha. O fundo de busca Kevin Taweel, jé préximo ao momento de sua formatura pela Faculdade de Administragio de Stanford, nfo estava empolgado com a idéia de trabalhar numa grande empresa tradicional. Seu objetivo era ter a propria empresa. Nio faltavam ofertas de emprego, mas ninguém lhe apresentava a opor- tunidade de ser seu proprio chefe. Afinal, quem iria confiar em alguém com ta0 pouca experiéncia para ficar 4 frente de uma empresa? A escolha era clara. Se ele quisesse dirigir uma empresa teria que compra-la. Mas como? Nao apenas ele nao tinha dinheiro para isso, como nem tinha o suficiente para pagar as contas enquanto procurava por um alvo interessante. A situacio de Kevin é comum. Para milhdes de pessoas espalhadas pelo mundo, a falta de recursos para financiar suas idéias é o principal empeci- lho no caminho da riqueza. Com demasiada freqiiéncia, é preciso ter di- nheiro para ganhar dinheiro. Mas Kevin superou instrumento pouco conhecido chamado de fundo de busca. Menos de dois anos depois de sair de Stanford, ele estava a frente da prdpria empresa. Um fundo de busca (search find) € um meio de obter recursos destinados a financiar a busca de empresas dispostas a serem adquiridas.’ De modo ge- ral, alguém que acaba de se formar em administracio de empresas ou direi- ‘a barreira ao usar um to e sem recursos proprios monta o fundo. Este paga as despesas da busca e custeia algumas despesas do constituinte (o formando que esta buscando a empresa). Depois de identificar um alvo adequado, o constituinte negocia a aquisigo e consegue um financiamento. Em retorno pelo investimento inicial no fundo, os investidores do fundo de busca tém direito a investir na 6 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS aquisigao em termos favoraveis. Uma vez adquirido 0 alvo, 0 constituinte do fundo dirige a empresa por alguns anos ¢ depois disso a vende, paga os investidores e, espera-se, fica com uma fortuna consideravel em maos. Em dezembro de 1993, Kevin levantou US$250 mil para financiar sua busca. Um ano e meio mais tarde, com auxilio de um colega de faculdade, Jim Ellis, Kevin identificou um alvo interessante, uma empresa de servicos rodovidrios de emergéncia. O proprietério queria desfazer-se da empresa por US$8,5 milhdes, uma soma que os dois colegas conseguiram levantar junto a bancos e investidores individuais (a maioria investidores do fundo de busca original). Eas perspectivas que ofereceram aos investidores indi- viduais eram tao atrativas que conseguiram levantar os recursos necessirios em apenas 24 horas! Sob a direcio de Kevin ¢ Jim a empresa adquirida cresceu em ritmo bem acelerado, por meio de expansio interna ¢ de aquisigdes. As vendas, que em 1995 eram de apenas US$6 milhdes, somavam em 2001 US$200 milhdes: A empresa gerou um retorno fantastico aos investidores: as agées que cles tinham adquirido em 1995 por US$3 valiam US$115 em fins de 1999. Nem todos os fundos de busca tém um final tao feliz. Alguns constituintes esgotam os recursos antes de encontrar um alyo atraente. Outros tém suces- so em encontrar um alvo mas fracassam no gerenciamento. Contudo, de modo geral, os fundos de busca sao muito lucrativos, rendendo em média 36% ao ano para os investidores ¢ muito mais para os seus constituintes.* Muito mais notavel ainda do que seu retorno médio € 0 conceito que estd por tras do fundo de busca. O que ele financia nao € um ativo concreto que proporciona uma boa garantia para os financiadores. Nem mesmo € uma proposta de negécios sélida. O que esta sendo financiado é a busca de uma proposta de negdcios — na verdade a busca de uma idéia. O fundo de busca esta voltado para um mundo que nfo existia no passado, um mundo em que a capacidade de criar riqueza e de atingir liberdade econdmica da pessoa é determinada pela qualidade de suas idéias ¢ nao pelo tamanho de seu saldo bancario. O fundo de busca reflete um aprimoramento revolucionario na capaci- dade de um amplo segmento de pessoas ter acesso a financiamentos. Isso tem implicagdes profundas em suas vidas, as vezes até sob aspectos que elas ignoram. Por exemplo, durante boa parte da hist6ria, havia abundancia de trabalho enquanto apenas alguns poucos privilegiados tinham acesso ao ca~ Introdugao ue pital. Em conseqiiéncia, os empregados eram fracos em relac4o ao capital — na grande empresa tipica dos dias de ontem, os donos do capital (0s acio- nistas) ou seus prepostos (a alta diregdo) tomavam as decisdes, enquanto os que estavam nos escalées inferiores da hierarquia nao tinham alternativa senio obedecer. Com a difusio da disponibilidade de capital por meio dos mercados financeiros desenvolvidos, em muitos ramos de atividade, o ser humano ganhou forga em relagao aos donos de capital. Cada vez mais, 0 termo capitalismo como descrigao da empresa no livre mercado esta se tor- nando anacrénico. Embora possa ser dificil admitir isso em meio a uma recessio, o traba- Ihador qualificado médio, ou o gerente, dos paises desenvolvidos tém na verdade opcées bem maiores do que antigamente. Fendmenos que vio da delegagio de responsabilidades aos trabalhadores até o achatamento das hierarquias empresariais, do crescimento da propriedade dos empregados A fragmentagio de grandes empresas, so, todos eles, em alguma medida sig- nificativa, conseqiiéncias do desenvolvimento dos mercados financeiros. O quebra-cabeca Ha muitas diferengas dbvias entre Kevin ou Jim e Sufiya Begum. Um MBA de Stanford, tanto vestindo um elegante terno ou calgando sandalias espor- tivas, esta de fato muito longe de uma alded descalea com mios calejadas e unhas encardidas, Mas hé semelhangas importantes: ambos possuem gran- des qualidades que sé precisam ser complementadas com recursos. Propor- cionalmente ao valor da renda que cada um deles espera gerar, 0 volume de financiamento que buscam nao é muito diferente. Nenhum deles tem ati- vos concretos ou riqueza prévia para oferecer como garantia. Contudo Ke- vin e Jim conseguiram 0 financiamento necessario, enquanto Sufiya conti- nuou presa 4 armadilha da pobrez Por que Sufiya nao podia conseguir 22 centavos pagando uma taxa de ju- ros razoavel enquanto Kevin e Jim puderam levantar centenas de milhares de délares ao constituir seu fundo de busca? Por que os mercados financei- ros em alguns paises estao desenvolvidos e em outros, nio? Os paises onde eles se desenvolveram continuarao a desfrutar de seus beneficios ou a ex- pansao dos mercados financeiros registrado nas tiltimas duas décadas é uma bonanga passageira em milénios de opressao financeira? 8 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS A resposta “convencional” O fundo de busca funciona porque propieia aos recém-formados os incen- tivos corretos. Para tanto se apdia em varias instituigées. Os direitos do constituinte e dos investidores estao claramente demarcados em contratos que nao cuidam apenas da criacio do fundo, mas de seu futuro. O sistema juridico funciona, de modo que os contratos podem ser executados a baixo custo. Com suas participagGes definidas e asseguradas, as partes no sio es- timuladas a enganar-se ou manipular-se. Um sistema de contabilidade e de divulgacao de informagées bem como a manutengio de registros publicos contribui para fortalecer a confianga miitua. Isso também permite que seja assegurada a liquidez das aplicagdes de todos os envolvidos, O constituinte do fundo sabe que nao esta preso 4 empresa para todo 0 sempre, mas pode melhorar a empresa-alvo e sair vendendo sua parte num mercado de ativos liquido. Como 0 mercado capitaliza o fluxo futuro de lucros, 0 constituinte obter4 uma grande compensagio pelo seu esforgo em localizar empresas com desempenho fraco. Assim, o melhor talento é atraido para esse nego- cio, aprimorando ainda mais os niveis de confianca... A principal razio que impede Sufiya de obter financiamento a juros ra- zoaveis é que em paises como Bangladesh as instituigdes sao deficientes: os direitos de propriedade nao estio bem demarcados nem garantidos; nao ha 6rgaos voltados a coleta, guarda e disseminacio de informacées sobre solvéncia dos potenciais tomadores de empréstimos; hé pouca con- corréncia entre emprestadores; a legislagio que rege o crédito esta defa- sada; os contratos nio sao respeitados porque 0 judiciario com é lento ou corrupto... Contudo, para sanar as deficiéncias, no caso de Bangladesh, é necessirio ir além da resposta convencional: “Conserte as instituigdes!" Primeiro é preciso entender por que nao existem as instituigdes necessarias, Talvez as instituigdes existentes no possam ser mudadas porque estiio demasiada- mente arraigadas na histéria do pafs ou na psicologia das pessoas. Se este fosse 0 caso, os paises como Bangladesh estariam condenados a permane- cer subdesenvolvidos ainda por muitos anos. Felizmente, como argumen- tamos neste livro, as evidéncias historicas nao sugerem que o legado histé- rico seja uma fatalidade inelutavel. Gragas a engenhosidade humana, sem- pre que isso for possivel as pessoas criam novas instituigdes para substituir as existentes quando estas nao podem ser consertadas facilmente. E, ao fa- reqiiéncia Introducao 9 zé-lo, demonstram que a mudanga institucional é possivel, por mais que a historia condene um pais. Talvez. os pa‘ses mio-de-obra qualificada, riqueza ¢ tecnologias sofisticadas para criar novas instituig6es. A dificuldade dessa explicagao é que sua légica é algo circular: os paises sfio pobres porque nao tém instituigdes ¢ nao tém instituigdes pobres nao contem com as dotagées necessarias, como porque sao pobres. Isso esclarece pouco sobre as razées que permitiram a alguns paises escapar desse circulo vicioso. Nao explica por que alguns pai- ses ricos — em 1790 o pais mais rico do mundo em termos per capita era 0 Haiti — nunca desenvolveram as instituigdes necessérias e ficaram para trds.’ E nao explica por que pafses nao desenvolvem as instituigdes espectfi- cas que facilitam 0 acesso ao financiamento, mesmo quando contam com outras instituigdes bisicas de mercado. Ha 10 anos, seria impossivel imagi- nar algo semelhante ao fundo de busca na Franga ou na Alemanha. Nao Ihes faltou capacidade para criar as instituig6es necessarias a um setor fi- nanceiro dinamico, concorrencial; suas leis sio pormenorizadas ¢ bem aplicadas; sua populagio nao é menos instruida do que a americana; suas in- distri: mos buscar em nao dependem menos da alta tecnologia... Pre outro lugar uma explicagio pela qual as instituigdes necesséri: téncia de mercados financeiros competitivo: em geral sio subdesenvolvidas ou inexistentes em muitos paises. s para a exis em particular, e de mereados A politica dos mercados Nossa explicacao é simples. Mercados pequenos, informais so, sem dtivi- da, possiveis mesmo sem grande infra-estrutura institucional. Mas os gran- des mereados impessoais exigidos pela moderna economia capitalista pre- am de uma grande infra-estrutura em que se apoiar. Essas instituigdes de mercado ficam subdesenvolvidas quando os poderosos as consideram uma ameaga a seu poder. Os economicamente poderosos se preocupam com instituigdes que fortalegam os mercados livres porque elas tratam todos de modo igual, tornando seu poder redundante. Os proprios mercados se tor- nam assim uma afronta. Eles so fonte de concorréncia, obrigando, uma e cl outra vez, os poderosos a provar sua competéncia. Como a pessoa pode ser poderosa em decorréncia de feitos passados ou de heranga, e nao por suas capacidades atuais, os poderosos tém razao em temer os mercados. 10 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS. Naturalmente, os poderosos também se beneficiam de alguns mercados. Qual a vantagem de se deter o monopélio da producio de bananas em uma republica se nao ha mercado onde vendé-las? Mas quando esses mercados existem, os poderosos gostam de controla-los, como, jé ha muito tempo, reconheceu 0 pai da ciéncia econémica, Adam Smith: Aampliagio do mercado e a redugio da concorréncia sio sempre do inte- resse dos negociantes... A proposta de qualquer nova lei ou regulamenta- ¢io do comércio que tenha essa origem deve ser sempre vista com grande cautela, e nunca deveria ser adotada antes de ter sido longa e atentamente examinada, nao apenas com a mais escrupulosa atengio, mas com a maior desconfianga. Provém de uma ordem de pessoas cujo interesse nunca é exatamente o mesmo que o do publico ¢ que, assim, j4 0 enganaram e¢ opri- miram em muitas ocasides.¢ Os poderosos se opdem particularmente ao estabelecimento de uma in- fra-estrutura que amplie 0 acesso ao mercado e nivele as oportunidades. Os intermediarios que tém entre suas garras Sufiya Begum tém poder e conhe- cimento local para contornar o sistema de recuperagao de empréstimos inadimplentes que parece a outros de complexidade bizantina. Leis melho- res, melhor demareagao da propriedade ¢ criagio de agéncias piiblicas de classificagao de crédito permitiriam a criagio de um mercado financeiro di- namico e concorrencial, atraindo emprestadores de fora e tornando redun- dantes as habilidades daqueles intermediarios, ameacando assim seus gran- des lucros. Imaginando isso, os intermedidrios preferem que 0 mercado nao se desenvolva de forma alguma. E que melhor maneira de impedi-lo do que se opor a criagio das instituigdes necessarias? Nio sio apenas aqueles estabelecidos em paises pobres os que receiam 0 aumento da concorréncia nos mercados financeiros. Nos Estados Unidos, cujo mercado financeiro é vibrante, cerca de metade das empresas que se situavam entre as 20 maiores, em termos de faturamento, em 1999, no es- tavam nessa posigao em 1985. Ja a Alemanha, onde até hé pouco tempo os mercados financeiros estavam adormecidos, 80% das empresas que em 1999 estavam entre as 20 maiores, se encontravam nessa posigao em 1985. Embora varios outros fatores respondam por parte dessa diferenca, os mer- Introduciio 1 cados financeiros parecem afetar a mobilidade empresarial mesmo nos pai- ses ricos, ameacando o establishment.’ O que desejamos ressaltar é algo bastante simples. Aqueles que detém poder — os jé estabelecidos— preferem manté-lo, Fles se sentem ameagados pelos mercados livres. Os livres mercados financeiros sto especialmente problematicos porque oferecem recursos aos recém-chegados, que entio podem abrir a concorréncia em outros mereados. Portanto, a oposi¢ao aos mercados financeiros é especialmente valiosa. Para que essa l6gica possa ser mais do que uma teoria conspiratoria, pre- cisa ser itil para prever quando e onde os mercados se desenvolveriio. Se os ja estabelecidos dominam o poder, os mercados se desenvolverao se eles puderem se beneficiar diretamente disso ou se nao tiverem outra escolha. Ha pelo menos trés fases no desenvolvimento histérico dos mercados fi- nanceiros que podem s ial, quando um pais passa a ter um governo mais representativo e comega a respeitar os di- reitos de propriedade; a segunda, quando abre suas fronteiras para subme- ter grupos estabelecidos que de outra forma se apossariam do governo de- mocratico; ¢ uma terceira fase reacionaria quando os grupos estabelecidos procuram levar de volta ao poder os derrotados. As fases nao seguem rigo- rosamente esta ordem nem se verificam em todos os paises. Mas sao bas- acilmente identificadas: a fase ini tante gerais de modo a merecer maior atengio. A fase inicial: respeito pelos direitos de propriedade Para que os livres mercados competitivos possam se desenvolver, 0 pri- meiro passo € que 0 governo respeite ¢ assegure os direitos de proprie- dade até dos cidadaos mais fracos ou indefesos. Historicamente, a maior ameaca vem do proprio governo: sob o pretexto de proteger seus cida- dios de inimigos externos ou ideolégicos, os governos recorrem a seus poderosos exércitos ou forgas policiais para saquear os préprios cida- daos. Em algumas sociedades, o cardter do governo mudou mais cedo e se tornou representativo do povo, policiando suas interagdes com mao firme mas leve ¢ inspirando confianga em vez de medo. Em outros, os governantes ainda tratam scus paises como feudos pessoais, a serem pi- Thados 4 sua vontade. Por que alguns paises foram felizes enquanto ou- tros continuam condenados? 12 SALVANDO 0 CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS Embora respostas unidimensionais raramente sejam satisfatérias para perguntas desse tipo, as evidéncias histéricas sugerem um padrao curioso: em muitos dos pafses afortunados, a distribuigao da propriedade, especial- mente a terra, foi em geral muito mais igualitiria. Por exemplo, entre os paises do Novo Mundo, a terra do Canadé e do norte dos Estados Unidos estava bastante distribufda, com um niimero consideravel de agricultores “yeoman” a frente de extensdes moderadas de terra. Nos paises do Caribe e na América Latina, a norma era a existéncia de grandes propriedades, mui- tas vezes exploradas por proprietarios escravocratas ou que estabeleciam relagdes feudais com uma populagao local décil.* A conexio entre distribuigao da terra ¢ governo responsivo pode nao ser coincidéncia. Na América do Norte, a maioria dos agricultores era, indivi- dualmente, pequena demais para criar suas proprias forgas policiais. Fazia sentido, do ponto de vista coletivo, criar um governo transparente, repre- sentativo no qual cada cidadio fosse tratado do mesmo modo de acordo com 0 determinado pela lei. Além disso, como 0 agricultor independente da América do Norte era dono de sua terra, tinha fortes incentivos para tratd-la bem e aprimorar suas técnicas de produgio. Com o passar do tempo cle passou a entender sua terra, quais as lavouras certas € quais os momentos adequados de plantar ¢ de colher bem como passou a usar as técnicas cientifi- cas adequadas. Mesmo se inicialmente a propriedade foi distribuida quase que por acidente, 4 medida que os imigrantes cercavam seus lotes ¢ os culti- vavam, 0 agricultor independente passou a ser um proprietario produtivo de suas terras. Mesmo 0 mais voraz dos governos pensaria duas vezes antes de perturbar esse sistema de propriedade. Era bem melhor cobrar regular- mente impostos desse agricultor do que matar a, por assim dizer, galinha dos ovos de ouro, tomando sua propriedade. Em resumo, como a propriedade estava difundida, os proprietirios da América do Norte pressionaram por um governo aberto, justo e respeita- dor do império da lei. Os agricultores pequenos mas prosperos tinham o poder coletivo de pressionar por esse governo. FE. como os agricultores esta- vam préximos de sua propriedade e a administravam bem, fazia sentido econdmico respeitar seus direitos de propriedade. Tudo isso gerou um campo fértil para o surgimento de uma forte economia de livre mercado. Vejamos agora a América do Sul. Os colonos europeus estabeleceram grandes plantagGes e fazendas operadas com auxilio de trabalho escravo Introducto 13 importado ou populagdes indigenas déceis.? Mas os donos das proprieda- des tinham incentivos bem diferentes daqueles do agricultor independente da América do Norte. Fsses poderosos proprietarios estabelecidos nao ti- nham interesse num governo imparcial, representativo. Antes, eles tinham tamanho suficiente para manter suas préprias forgas policiais e dinheiro bastante para influenciar qualquer governo existente. Com o tempo, a civilizagio forgou a emancipagio dos escravos € as po- pulagées internas déceis se tornaram conscientes de seus direitos. Isso pre- judicou a economia da produgao em grandes propriedades. A tnica manei- ra de se manterem lucrativos que restou aos grandes proprietarios foi asse- gurar que os trabalhadores tivessem poucas oportunidades econdmicas al- ternativas — por exemplo, limitando seu acesso as escolas e ao crédito.'® Portanto, em lugar de criar instituigdes de livre mercado, os poderosos ja estabelecidos tinham incentivos para suprimi-las ativamente. Naturalmente, a hist6ria de cada pais é suficientemente diversificada para seguir precisamente 0 esquema proposto. Mas o quadro geral mais amplo fica claro: pafses, ou até regides, como o sul da Itélia ou 0 nordeste da India, que foram dominados por grandes propriedades feudais tiveram dificuldades para implantar o império da lei e o respeito 4 propriedade. O dominio dos magnatas estabelecidos nao foi inquebrantavel. Mas de modo geral foram necessérias revoltas politicas internas dramaticas ou o desa- fio de forgas externas para que as mudangas necessarias ocorressem. Na Ingla- terra, os Tudors destruiram os grandes senhores ¢ a igreja para consolidar seu poder e isso levou ao surgimento do Parlamento e do governo constitucional. No Brasil, as reformas econdmicas se seguiram 4 revolug’o em fins do século XIX. Nos paises da Europa continental, a reforma agréria e a reforma politica se seguiram as ondas sismicas geradas pela Revolugio Francesa ¢ as subse- qiientes conquistas napolednicas. Muitos desses paises se juntaram 4s fileiras dos afortunados. Os desafortunados, resguardados de reformas internas ou de distirbios externos, continuaram a ser lentamente estrangulados. A segunda fase: submissao dos estabelecidos nas democracias O surgimento das democracias constitucionais é um grande passo em dire- cdo aos livres mercados financeiros porque os cidadaos obtém maior segu- 14 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS ranca de que sua propriedade seré respeitada. Mas nao € suficiente. Pois até nas democracias industrializadas ha poderosos interesses estabelecidos — empresas industriais e instituigdes financeiras. Eles podem se opor a0 livre acesso ao financiamento simplesmente porque j4 contam com suficiente fi- nanciamento préprio e os mercados financeiros provém recursos @ novos concorrentes indesejados. Aqueles jé estabelecidos tém 0 poder de bloquear as instituigdes necessa- rias ao financiamento porque constituem um grupo organizado, voltado para seus objetivos e dotado de amplos recursos. Tém maior capaci dade de atrair legisladores e burocratas para suas opinides do que a grande massa de cidados nao organizados. Pense em quem 0 Congresso dos Estados Uni- dos procurou auxiliar em primeiro lugar apés a terrivel tragédia de 11 de setembro de 2001. Os ataques terroristas afetaram todo o setor de turismo. Mas a primeira legislago aprovada no se voltou para as centenas de mi- Ihares de taxistas ou de trabalhadores em restaurantes e hotéis, mas sim para as companhias aéreas que conduziram um esforgo de lobby organizado para fazer jus a subsfdios custeados pelos contribuintes. De modo andlogo, se os interesses industriais e financeiros estabelecidos se opéem ao desenvolvimento financeiro, eles contam com a organizacio ¢ a influéncia politica para impedir que a criagdo de instituigdes se torne par- te importante da pauta do governo. O financiamento pode esvair-se mes- mo que as pessoas o desejem, simplesmente porque elas nao tém forga para lutar por ele. Para ver como a conveniéncia politica pode superar 0 interesse ptiblico, basta recordar 0 que ocorria nas dreas rurais do sul dos Estados Unidos ha nao tanto tempo. Nos primeiros anos do século XX, as alternativas de crédito para os agri- cultores do sul eram desanimadoras. Poucos bancos sequer considerariam a possibilidade de conceder crédito rural ¢ os que 0 faziam cobravam taxas de juros extremamente altas. O crédito rural era um terreno fértil para os agiotas e, ano apés ano, os agricultores entregavam suas safras em paga- mento dos juros dos empréstimos tomados para manter suas atividades. Se a safra se perdesse, praticamente nao havia forma de o agricultor e sua fa- milia se livrarem das garras dos agiotas.!! Introducéo 1s Araiz do problema estava na legislacao bancaria dos Estados Unidos que nao tinha em mente o interesse do piblico. Alguns estados nao permitiam que os bancos tivessem mais de uma agéncia. Muitos estados também im- pediam que os bancos de fora do estado atuassem em suas fronteiras. A ra- zAo para isso era simplesmente limitar a concorréncia entre os bancos de modo a permitir que os bancos existentes continuassem lucrativos, Nao importava que sem concorréncia os bancos do estado se tornassem pesados © preguigosos e que dado os limites ao ntimero de agéncias, os bancos fos- sem demasiado pequenos e arriscados e assim nao se dispusessem a fazer empréstimos rurais que os amarrassem as vicissitudes do clima local. A po- pulagio dos estados estava mal-atendida. Mas os bancos implantados nos estados contribuiam largamente para as campanhas politicas ¢ durante muito tempo sua vontade prevaleceu sobre os interesses da populagio. Somente na década de 1990, as normas arcaicas que regiam a atividade bancéria nos Estados Unidos foram finalmente revogadas. Se os mais poderosos atores econdmicos de um estado ou pais decidem se opor a criagao de instituigées de livre mercado, entio sé hé uma esperan- ¢a para o surgimento dos mercados: a concorréncia vinda de fora. Isso por- que as restrigGes polfticas impostas 4 concorréncia interna e aos mercados tendem a tornar os atores internos, nao importa o quanto sejam poderosos em termos internos, ineficientes e pouco competitivos em relacao aos ato- res de fora que ja estao habituados a um ambiente mais competitivo. Em conseqiiéncia, se a concorréncia vinda de fora se infiltra pelas fronteiras politicas, aos atores internos jé estabelecidos s6 restam duas opgdes: remo- ver as normas que se interpdem no caminho dos livres mercados internos ou perecer. De modo geral eles fazem a escolha racional, Foi isso, de fato, o que aconteceu com as normas que limitavam o ntime- ro de agéncias bancérias nos Estados Unidos. Na medida em que a tecnolo- gia aprimorava a capacidade dos bancos de emprestar ¢ de captar recursos a distancia, a concorréncia de bancos fora do estado aumentou mesmo que estes nao tivessem agéncias locais. Os politicos nao podiam impedir essa concorréncia pois nao tinham jurisdi¢io sobre ela. Em lugar de ver suas pequenas ¢ ineficientes instituigdes locais serem suplantadas por agentes ex- ternos, eles revogaram as normas que impediam a criago de novas agéncit Com excegao de alguns poucos bancos ineficientes, os estudos mostram que todos se beneficiaram. A retirada daquelas normas permitiu um au- 16 SALVANDO 0 CAPITALISMO DOS CAPITAL mento significativo da taxa de crescimento da renda per capita no estado ca redugao do risco da atividade bancéria.!? Da mesma forma, o comércio exterior e os fluxos transnacionais de capi- tal expdem as empresas estabelecidas num pais a uma vigorosa concorrén- cia vinda de fora. Os paises sio obrigados a fazer o necessario para tornar suas economias competitivas e nao o que é melhor para os interesses esta- belecidos. De modo geral, isso implica um fortalecimento das instituigoes necessdrias para os mercados internos. Por exemplo, no Japio do inicio da década de 1980, 0 mercado de titulos empresariais era fraco. A causa estava no controle exercido pelos bancos: comerciais sobre o chamado Comité de Titulos, um érgio oficial ao qual deviam dirigir-se as empresas que desejassem emitir titulos nao garantidos. (isto 6, titulos no respaldados por garantias reais). Aparentemente, a razao era assegurar que as empresas 6 lancassem titulos seguros para o publico. A verdade era que os bancos utilizavam 0 Comité de Titulos para proveger seu negocio de empréstimos comerciais. A Hitachi, entao uma empresa de primeira linha com classificagio AA (0 nivel mais alto é AAA), nao conse- guiu autorizagio para emitir titulos e se viu obrigada a tomar empréstimos bancarios pagando altas taxas de juros. O crescimento do Euromercado (um mercado offshore localizado em Londres) ¢ a abertura das fronteiras japonesas aos fluxos de capital final- mente reduziram, na década de 1980, 0 controle que os bancos exerciam ha tanto tempo. As grandes empresas japonesas podiam fugir dos bancos na~ cionais e tomar empréstimos no Euromercado. La nao havia exigéncia de garantias reais e eles podiam emitir livremente um amplo leque de instru- mentos com diferentes prazos de vencimento ¢ cotados em varias moedas. As emissées no Euromercado, que no inicio dos anos 70 representavam apenas 2,7% do financiamento das empresas japonesas, em 1984 ja partici- pavam com 36,2%. © Comité de Titulos acabou dissolvido, nao por pres- sio do governo ou porque os bancos 0 considerassem ineficiente, mas por- que a concorréncia transnacional assim o determinou. De modo mais geral, no século XX, perfodos de alta mobilidade interna- cional de bens e de capital (1900-1930 e 1990-2000) acompanharam perio- dos de desenvolvimento maximo dos mereados financeiros. Mais relevante ainda, os paises mais abertos ao comércio internacional durante esses pe- riodos foram os que tinham mercados financciros mais maduros. Como Introducao uv exemplo, pequenos paises, como Hong Kong, Luxemburgo e Suiga que sio abertos por necessidade e, nao por coincidéncia, tendem a ser importantes centros financeiros. Fronteiras abertas limitam a capacidade das politicas nacionais entravarem a concorréncia ¢ retardarem o crescimento econdmi- co e financeiro. Contribuem para salvar o capitalismo dos capitalistas! A esperanga, entio, para paises como Bangladesh, é que 4 medida que se integrem & economia mundial, as instituigdes arcaicas que aprisionam lite- ral e figurativamente seus povos se vejam obrigadas a mudar para melhor. As pessoas terao um ac ca de liberdade econémic: Em resumo, nosso argumento até aqui é que cada est4gio no desenvol- vimento de um pais cria seu proprio conjunto de poderosos estabelecidos que so tém interesse nas instituigdes que sustentem seu poder. Se o poder econdmico de um pais estiver concentrado em maos dos que nao tém ca- pacidade econémica — os senhores feudais ou os grandes agricultores ine- ficientes —as instituigdes favoraveis ao mercado sé terao chances de surgir aps uma mudanga politica que democratize o poder. Mas a democratiza- 0 livre aos financiamentos e, com isso, 4 esperan- Gao pode nao ser suficiente. Até numa democracia, os interesses estabele- cidos podem manter-se geral de se mostrar apatico quando se trata de agao politica. Uma impren- sa livre, participagao politica ativa e partidos politicos competitivos con- tribuem para mitigar essa situacdo, mas o que em tltima andlise impede um novo conjunto de interesses estabelecidos de apossar-se das politicas econ6micas de um pais é a pressao concorrencial que vem de fora das suas fronteiras politic: tivos, apoiando-se na tendéncia do péblico em . Essa pressio obriga os politicos nacionais a adotar politicas mais eficientes, mais propicias ao mercado quanto mais nao seja para contribuir para a sobrevivéncia dos interesses estabelecidos internos. A concorréncia entre sistemas politicos abre uma oportunidade para os mercados livres. A terceira fase: reagao Mas se tudo o que se interpée entre a tirania dos interesses estabelecidos ¢ s livres mercados concorrenciais éa abertura das fronteiras, até que ponto os mercados sio estdveis? A abertura das fronteiras de um pais aos bens e servigos estrangeiros j4 nao seré uma decisao politica, dependente do esta- a 18 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS do de espirito da populagio do pais? Sendo assim, 0s livres mercados nao estardio apoiados em alicerces méveis ¢ fracos? Os alicerces podem mover-se, mas nao ao sabor de qualquer capricho politico. As fronteiras dos pafses sio porosas. Quando 0 resto do mundo esta aberto, € dificil que um tinico pais possa impor barreiras ao fluxo de bens, capitais e pessoas. Sempre haverd formas de superar, contornar ou passar por baixo das barreiras impostas por um pais. Assim, quando o mun- do esta aberto, as fronteiras de um pafs forgosamente estarao abertas a me- nos que se trate de um estado policial. Os interesses estabelecidos serio controlados. Talvez seja por isso que a crise asiatica de 1988, que aconteceu quando boa parte do mundo progredia de forma saudavel, nZo alterou a ati- tude da maioria dos governos do leste da Asia em relacao & abertura das fronteiras. A situacio pode se alterar se varios grandes paises fecham suas frontei- ras. Nao apenas essas agdes enfraquecerao os paladinos da abertura em cada um dos patses abertos, mas também facilitario o controle de um pats sobre os fluxos que atravessam suas fronteiras. Portanto, uma reversao da globalizagao pode ser contagiosa. Uma agao concertada desse tipo nao € inimagindvel. Nao apenas um declinio da atividade econdmica pode rever- berar em muitos paises, cle também pode colocar significativos segmentos atuantes do piiblico contra os mereados concorrenciais e, por associacio, contra a abertura das fronteiras. Para entender por que o declinio da atividade econdmica pode gerar uma oposi¢io aos mercados, consideremos as conseqiiéncias naturais de um mercado concorrencial e aberto: ele cria novos riscos ¢ destréi fontes tradicionais de seguranga. O lado obscuro dos riscos se manifesta invaria~ velmente nos periodos de declinio e se faz acompanhar por um sentimento agudo de falta de seguranca. Nao surpreende que aumente a oposicao. Expliquemos isto com mais pormenores. A concorréncia naturalmente distingue os competentes dos incompetentes, os trabalhadores dos pregui- gosos, os que tém sorte dos que nao tém. Portanto aumenta 0 risco com que se deparam empresas e pessoas. E também aumenta 0 risco a0 expandir as oportunidades nos bons momentos e reduzi-las nos maus, com 0 que as pessoas se sentem numa espécie de montanha-russa. Em ultima instancia, a maioria das pessoas est4 em melhor situagio, mas a viagem nem sempre € agradavel e alguns siio jogados fora. Invrodugio 19 ‘Também, quando a concorréncia é limitada, pessoas ¢ empresas desfru- tam de varias formas de seguranga implicita. Estas podem desaparecer com a evolugio dos mercados. Um exemplo pode esclarecer a quest’io. Quando a concorréncia por trabalhadores das empresas é limitada, as empresas sabem que seus trabalhadores terao pouca mobilidade no futuro. Sabendo que seus empregados serao fiéis, as empresas preferirao retreinar seus trabalhadores em tempos de dificuldade em lugar de demiti-los, proporcionando-lhes uma espécie de seguro contra periodos de adversidade. J4 numa economia con- correncial, os trabalhadores tém mais mobilidade em perfodos de prosperi- dade. Isso torna dificil para as empresas justificar 0 retreinamento ou a ma- nutengio de um excesso de empregados em periodos de dificuldade porque elas sabem que quando a prosperidade voltar os trabalhadores nfo estarao0 obrigados a ser fiéis. Do mesmo modo, formas tradicionais de seguranga im- plicita entre empresas e emprestadores, fornecedores e clientes, cidadios e comunidades podem se tornar tensas quando os mercados evoluem e ofere- cem mais opgdes aos participantes. Muitas vezes, as formas explicitas de se- guro nao substituem plenamente as formas tradicionais de seguranga. Em suma, 0 mercado concorrencial nao apenas gera perdedores clara- mente identificados, como também os priva das tradicionais redes de segu- ranga. E'ssas pessoas tornam-se os destituidos: trabalhadores em ramos que nao tém futuro por causa da concorréncia, investidores que perdem as pou- pangas de toda uma vida, os pequenos empresfrios e os agricultores asso- berbados por uma divida assumida para financiar investimentos em épocas mais présperas... Os destitufdos, ao deparar-se com a privagio, terdo gran- de incentivo para se organizar e obter protecio do sistema politico. Se con- seguirem se organizar, eles demandarao muito mais do que subsidios. Na verdade, suas demandas tendem a se voltar contra o sistema econdmico que os levow a essa situacio, especialmente porque essas demandas coincidem com os desejos dos capitalistas estabelecidos. Nao se trata de uma possibili- dade teérica, j4 aconteceu antes. A grande reversao O mundo ja experimentou pelo menos uma vez um periodo de crescente glo- balizagao e grande expansao dos mercados. Refletindo sobre essa época, 0 pre- sidente do Congresso Internacional de Estudos Histéricos disse em 1913: 20 LVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS O mundo esta se tornando uno num sentido completamente novo... Como a terra se estreitou por meio das novas forgas que a ciéncia pds & nossa disposigio... os movimentos da politica, da economia e do pensa- mento, em cada uma de suas regides, estio se inter-relacionando mais es- treitamente... O que ocorre em qualquer parte do globo tem agora um significado para qualquer outra parte. A hist6ria mundial tende a se tornar hist6ria unica." Os mercados estavam de fato em expansio quando essas palavras foram proferidas. Mas, logo apés, a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressio criaram grande desarticulagio e desemprego. E: ocorreram num momento em que o nivel de seguro formal disponivel para a maioria das pessoas era de minimo a inexistente (apenas 20% da for- ¢a de trabalho da Europa Ocidental tinha alguma forma de plano de apo- sentadoria em 1910, s6 22% tinham seguro-saude e praticamente nao se conhecia 0 seguro-desemprego). Os trabalhadores, muitos dos quais se tornaram politicamente conscientes nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, se organizaram para exigir alguma forma de prote¢ao contra as adversidades econ6micas. Mas a reagio realmente se consolidou durante a Grande Depressio, quando aqueles que tinham perdido foram se unindo, em pats apés pais —agricultores, investidores, veteranos de guerra, idoso: Os politicos tinham que reagir, mas uma tamanha exigéncia de protecao no podia ser atendida dentro das rigorosas restrigSes orgamentarias do governo sob o padriio-ouro. Portanto, 0 mundo abandonou a camisa-de- s fatos forca do padrao-ouro, que na época era o principal avalista do livre-comér- cio ¢ dos livres movimentos de capital. As fronteiras se fecharam. Os governos obtiveram controle do acesso aos mercados financeiros e muitos paises também nacionalizaram significativas porgdes de seus siste- mas bancarios. Com sua capacidade de abrir e fechar os financiamentos, os governos passaram a exercer extraordindrio poder sobre as empresas priva~ das. Além disso, intervieram mais diretamente ao nacionalizar empresas ou patrocinar cartéis. Em parte essas agdes refletiam uma desconfianga do mercado; em parte eram conseqiiéncia da inadequacao de politicas piblic: passadas. Como 0 governo nao podia estabelecer rapidamente uma rede de seguranga razoavel, tentou limitar diretamente a amplitude das flutuagdes do mercado limitando a concorréncia. Introduzao 21 Sem concorréncia externa, e com 0 governo disposto a proteger empre- gos € empresas, 0s interesses estabelecidos fizeram a festa. Aproveitarain esse perfodo em que as politicas internas nio estavam mais sendo disciplinadas pela concorréncia internacional nao apenas para conquistar vantagens tem porarias mas para virar a legislagao a seu favor de modo que a vantagem pu- desse ser mantida em periodos mais favorveis, quando nao conseguissem manipular a raiva dos desamparados contra os mercados. A reversio da aber- tura propiciou as condigdes sob as quais os mercados puderam ser, ¢ de fato o foram, reprimidos. E essa repressio durou muito tempo. Com o fim da concorrénci nada por algumas poucas grandes empresas. Os entrantes nao tinham chance. Pior, as economias nao mais podiam se renovar por meio da des- truicao criativa, que permite que instituigdes velhas ¢ exaustas déem lugar a outras jovens ¢ inovadoras. Embora isso nao tivesse grande importincia no periodo que se seguiu 4 Segunda Guerra Mundial, quando quase todo 0 mundo estava preocupado com a reconstrugio, com o tempo o ritmo da , a maioria dos ramos de atividade foi domi- economia mundial comegou a se desacelerar. Foi s tiltimas trés décadas, estimulada em boa medida pela percepgio de que as fronteiras fechadas geram estagnacio econdmica, que as finangas e as economias voltaram a ser livres. Em resumo, a histéria sugere que 0 consenso polftico em favor dos livres mercados nao pode ser dado como certo, mesmo nos pafses desenvolvidos. A batalha politica tem que ser sempre renovada para preservar a liberdade por meio da progressiva abertura da economia mundial nas econdmica. A desgraca de Sufiya Begum, embora extrema, nao esta tao dis- tante de nds! Os perigos do movimento antiglobalizagao A abertura das fronteiras aumentou 0 bem-estar de muitas pessoas, muitas das quais ignoram o papel desempenhado pelas finangas em suas vidas ¢ 0 ris- co que © fechamento das fronteiras representaria para elas pessoalmente. Infelizmente, muito poucas pessoas entendem isso, ¢ assim os protestos con- tra a globalizagio aumentam sem contestagio em todo o mundo, Com uma séria crise econémica, as fronteiras abertas parecer cada vez menos atraen- tes, mesmo sendo mais benéficas, do ponto de vista politico, nesses perfodos. 22 SALVANDO 0 CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS Os mercados sempre gerardo perdedores para cumprir sua fungio. Nao ha como negar que os custos da concorréncia ¢ da mudanga tecnolégica afetam desproporcionalmente alguns segmentos. Infelizmente é principal- mente sua voz, e nao os desejos da maioria silenciosa ou os interesses das geragOes futuras, que influenciard os politicos. O perigo da polftica conser- vadora é ignorar as preocupagGes dos perdedores ou a ameaga que eles re- presentam para a prosperidade geral. A politica liberal esta igualmente equivocada quando ataca o sistema que cria os perdedores em lugar de ad- mitir que se trata de um aspecto inevitdvel do mercado. A evolucao recente nao traz bons augtrios. O aumento do militarismo em todo o mundo pode ser apenas uma pequena nota de rodapé na historia. Mas seja, ou nao, o fervor guerreiro tende a aumentar a fé na ago dos go- vernos, até na arena econémica, ao tempo em que reduz.a fé da populacio na légica dos mercados abertos. Uma crise econdmica em que a prosperi- dade que muitos esperam é afetada adversamente, os escindalos corporati- ‘a dos mercados, as chances de uma vos que minam a fé do ptiblico na jus guerra prolongada e um renovado ataque aos mercados sfio condigoes jé vistas em perfodos anteriores, Os mercados nao se sairam bem do embate. Isso nao quer dizer que nao tenhamos aprendido nada com a década de 1930. A historia nao é tao enfadonha que se repita exatamente. Os paises desenvolvidos criaram redes de seguranga para suas populagdes, embora até as melhores tenham alguns buracos. Mas os paises recentemente desen- volvidos e os em desenvolvimento ainda dependem de redes de seguranga informais que se esgargaram hé muito tempo sob 0 ataque violento dos mercados. Nao é inconcebivel que o movimento antimercado possa ganhar forga af e se espalhar para os paises desenvolvidos. E os paises desenvolvidos precisam enfrentar novos problemas. A mu- danga tecnolégica e 0 crescimento econdmico de paises como a India e a China estao forgando segmentos inteiros da atividade econémica a enco- Iher ¢ se reestruturar. O envelhecimento da populagio dos paises desenvol- vidos ¢ a conseqiiente necessidade de imigrantes vindos dos paises em de- senvolvimento podem alimentar no futuro grandes tensdes politicas, quan- do os trabalhadores imigrantes forem chamados a pagar os beneficios da populagio nativa envelhecida. Além disso, na medida em que os aposenta- dos do rico Ocidente apenas possuem mas nfo criam valor, os conflitos re- lativos aos direitos de propriedade podem aumentar. Introducio 23 Nenhum destes problemas em perspectiva deixa de ter solucao. Mas re- querem politicas pragmiticas € nao ideolégicas, e sugeriremos alguma Falando de modo geral, as fronteiras devem ser mantidas abertas para que os paises possam desfrutar de mercados livres e o campo de jogo possa ser nivelado. Mas fronteiras abertas e mercados livres também tém que ser tor- nados palataveis. Ha pouco em comum entre mercados livres e interesses estabelecidos, mas 0 pouco que ha pode ser expandido. E possivel encon- trar mais coisas em comum entre os livres mercados e os desamparados. Para impedir que a politica trabalhe contra o mercado, é preciso auxiliar os que perdem na concorréncia, nao para continuar uma batalha perdida mas para minorar sua dor e prepara-los para um futuro melhor. Resumindo, 0 ponto central deste livro é a tensio fundamental entre mercados ¢ politica, Grandes mercados exigem uma infra-estrutura subs- tancial. A dificuldade de organizar uma agio coletiva complica o desenvol- vimento dessa infra-estrutura sem a assisténcia do governo. Mas essa assis- téncia sofre de problema parecido: as mesmas dificuldades de organizar uma acao coletiva frustra as tentativas da sociedade de assegurar que 0 go- verno atue no interesse ptiblico. A esquerda ¢ a direita tradicionais desta- cam apenas um dos lados dessa tensao: para a esquerda, trata-se da necessi- dade de intervengio governamental; para a direita 6 uma questao de cor~ rupgio do governo. Se ambas estiverem corretas, como sem diivida estao, a estabilidade politica dos mercados livres nao pode se apoiar em prescrig6es unilaterais ideolégicas. Antes, precisa de uma rede sofisticada de pesos e contrapesos. Para entender que pesos e contrapesos poderiam ser esses, precisamos entender melhor por que os livres mercados so benéficos, como surgem, quem se opde a eles e quando esta oposi¢io ganha forga. Sao estas as questécs examinadas neste livro. PRIMEIRA PARTE os BENEFICIOS DOS LIVRES MERCADOS FINANCEIROS CAPITULO 1 AS FINANGAS BENEFICIAM APENAS OS RICOS? P ARA QUE OS ALICERCES politicos do livre mercado se fortalegam, a sociedade precisa conhecer melhor © quanto Ihe deve. O primeiro passo para construir uma defesa dos mercados é criar uma consciéncia em relacio a seus verdadeiros beneficios e a suas limitacgdes. Como o sistema de livre mercado € tao fraco do ponto de vista politico, as formas de capitalis- mo encontradas em muitos pafses esto bem distantes do ideal. Si0 uma versio corrompida, na qual poderosos interesses impedem que a concor- réncia desempenhe seu papel natural, sadio. Para defender os livres merca- dos de seus criticos, portanto, precisamos mostrar nao apenas o quanto de nossas vidas présperas se deve a eles, mas também por que as desagradaveis parddias de capitalismo registradas em boa parte da historia recente nao re presentam fielmente a empresa de livre mercado. E, além disso, tentare- mos convencer 0 leitor de que nao nos deparamos hoje com a escolha de Hobson entre um socialismo corrupto e um capitalismo corrupto como foi © caso durante boa parte da historia. Ha um caminho melhor e ele esta ao nosso alcance. Um grupo de mercados, os financeiros, atrai ainda mais oprébrio. Pou- cos economistas profissionais do atual mundo desenvolvido estariam con- tra os livres mercados de bens e servigos, mas um ntimero consideravel de- les ainda se opde aos livres mercados financeiros. Esses mercados nao ape- nas sio mais malcompreendidos do que os demais, mas também sio mais importantes porque, como veremos mais adiante, eles sao o elixir que ali- menta 0 processo de destruicio criativa, rejuvenescendo continuamente o 28 SALVANDO 0 CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS sistema capitalista. Como tal, cles sio também 0 principal alvo dos podero- sos interesses que receiam a mudanga. Portanto, boa parte do livro se con- centrara nos mereados financeiros como exemplo representativo. Contudo, para montar uma defesa é preciso saber do que estamos nos defendendo. Portanto examinaremos 0 que piblico acredita que os mercados e instituigées financeiras fazem. Uma opiniado bastante difun- dida é que Wall Street é um parasita que vive 4 custa do homem comum. Na melhor das hipoteses, os banqueiros tiram de Pedro para dar a Paulo enquanto ficam para si com uma respeitavel comissio que lhes permite morar num apartamento de luxo com vista para o Central Park. O ro- mance de Tom Wolfe, A fogueira das vaidades, capta perfeitamente esta maneira de ver 0 mundo das finangas. Eis uma passagem em que Judy McCoy explica a sua filha Campbell 0 que seu pai, um corretor de titu- los, faz: - Papai nao constroi nem casas nem hospitais, enem ajuda @ sonalratles mas ele cuida dos tatulos para aa pessoas que precisam do dinheiro. ~ Titulos? = Sin. Imagine que wn titulo & utr pedage de bole © woot nito fix bol, tas uma fatia do bole para alguém, cai uma migalha 0 vocé a cada vez que vocé guarda. gudy Borie eitunitee Campbell, que parecia porceber que ora uma brincadeira, uma espécie de conto de fadus baseado no que seu pat fusia. = Migathas? — porguntou querenda saber mais. = Stim = Wdia gudy, Mas voce precisa imaginar uma porgéo de migathas. Se vocé passar adiante um nimero suftcionte de fatias de bolo, lago tend miga- has bastantes para fazer um bolo gigante.! Wolfe nao esté em minoria ao criticar os banqueiros. Em obras que vio do Mercador de Veneza de Shakespeare a L’Argent de Emile Zola, os banqueiros ocupam um lugar moral consideravelmente inferior ao das prostitutas. E enquanto muitos os véem como sanguessugas, outros os consideram poderosos demais. Considere essas palavras de Woodrow Wilson na cam- panha para a presidéncia dos Estados Unidos, em 1912: As finangas beneficiam apenas os rico 29 O grande monopélio deste pais é o do dinheiro, Enquanto existir, nossa variedade, nossa liberdade e nossa energia individual tradicionais estio fora de questdo no que se refere ao desenvolvimento. Uma grande nagao industrial é controlada por seu sistema de crédito. Nosso sistema de erédi- to € concentrado. Portanto, o crescimento da nagio e todas nossas ativida- des estio em maos de alguns homens que, mesmo quando suas ages sto honestas e voltadas ao interesse ptblico, estio necessariamente concen- trados nos grandes empreendimentos em que seu dinheiro esta envolvido € que necessariamente, em razdo de suas limitagdes, congelam, inibem e destroem a auténtica liberdade econdmica.? Wilson reconheceu a grande importancia do financiamento (“uma gran- de nagao industrial é controlada por... crédito”) mas lamentou que seu po- der fosse usado para “congelar, inibir e destruir a auténtica liberdade eco- némica”. Essas duas percepgGes aparentemente opostas — banqueiros que sio imiteis e a0 mesmo tempo poderosos demais — serio compativeis? A resposta é afirmativa e elas caracterizam bem 0 mundo das finangas, mas apenas num mercado financeiro subdesenvolvido - um sistema em que falta a infra-estrutura financeira basica como a boa e gil aplicagio das leis, os claros padrdes contibeis e as autoridades reguladoras e fiscalizadoras eficazes. A razio por que estas convicg6es sao validas é simples. O talento e a perspicdcia empresariais nao valem nada sem os recursos que permitam pé-los em funcionamento. Um bom sistema financeiro amplia 0 ace: fundos. J4 num sistema financeiro subdesenvolvido, 0 acesso é limitado. aos Como 0s recursos si tio importantes, 0 financiador que controla 0 acesso € poderoso, mas como o acesso é tio limitado, ele pode ganhar muito fa- zendo pouca coisa. Seu papel é simplesmente o de um porteiro, mantendo os ricos dentro dos portées em seguranga enquanto deixa de fora aqueles que concorrem por recursos. Assim ele valida tanto a opiniiio de Judy McCoy de que ele amealha as migalhas do bolo que 0s outros criam quanto a de Woodrow Wilson de que os banqueiros “congelam, inibem e destroem a auténtica liberdade econémica”. Por que o financiamento € tio limitado numa economia sem infra- estrutura financeira? O financiamento é a troca de uma soma de dinheiro hoje pela promessa da devolugo de mais dinheiro no futuro. Nao sur 30 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS preende que essa troca possa ser problematica, Primeiro, até o tomador de empréstimo mais honesto pode ser incapaz de cumprir sua promessa, devi- doa incerteza intrinse incorrem em algum risco. Quando 0 risco envolvido é substancial ¢ concen- trado, torna-se dificil encontrar pessoas dispostas a assumi-lo. Segundo, é dificil atribuir um valor as promessas. As pessoas dispostas a nao cumprir 0 que prometem sao as mais dispostas a prometer demais. Assim, a propria natureza da troca tende a favorecer os desonestos. Finalmente, mesmo pes- soas com as melhores intengdes podem sentir-se tentadas a agir de modo oportunista quando devem dinheiro. Numa economia sem infra-estrutura para mitigar esses problemas, 0 financiamento fica restrito aos poucos que tém as conexées ou a riqueza necessarias para assegurar os financiadores. Esses podem prosperar simplesmente agindo como porteiros. Como expli- caremos neste cap(tulo, 0 acesso limitado ao financiamento reduz acentua- damente as escolhas dos cidadaos no que se refere 4 determinagao de sua mancira de trabalhar e de viver. No proximo capitulo explicaremos por que isto nao precisa acontecer. Com a infra-estrutura adequada, os problemas intrfnsecos que descre- vemos podem ser superados, de modo que o financiador pode ampliar © acesso aos recursos e aprimorar a liberdade econémica. E isso nao é um pensamento utépico. Como veremos no Capitulo 3, a revolugio ocorri- da nos mercados financeiros dos Estados Unidos nos tiltimos 20 anos ja a qualquer investimento. Portanto, os financiadores aprimorou grandemente a liberdade econdmica, colocando o ser huma~ no, € nao o capital, no centro da atividade econdmica. ‘Tudo isso sugere que os que desejam se opor ao livre acesso ao financiamento e as liberda~ des que o acompanham precisam apenas se concentrar em restringir a infra-estrutura necesséria ao mercado financeiro moderno. Os proble- mas intrinsecos ao financiamento farao 0 resto, ao restringir 0 acesso. Quando isso tiver sido entendido, estaremos prontos para prosseguir com o resto do livro. Os problemas intrinsecos do financiamento Sorte, ignorancia ou desonestidade ~ no jargio, incerteza, selegio adversa ou risco moral — podem impedir a liquidagao dos financiamentos. Expli- quemos rapidamente o porqué. As financas beneficiam apenas os ricos? 31 Poucos investimentos sao totalmente seguros, de modo geral sempre ha alguma incerteza sobre seu sucesso. Para atrair recursos para empreen- dimentos arriscados, as pessoas ou empresas interessadas tém que pro- meter aos investidores o pagamento de um prémio de risco além do retor- no de um investimento seguro. Num sistema financeiro desenvolvido, os financiadores reduzem o prémio exigido de um tomador ao distribuir 0 risco entre varios investidores ou alocando-o aos investidores com mais condi¢Ges de assumi-lo. Como os financiadores de sistemas finan- ceiros subdesenvolvidos nao tém capacidade de distribuir adequada- mente 0 risco, 0 prémio de risco exigido pelos investidores é alto ¢ 0 fi- nanciamento se torna muito oneroso. Os problemas provocados pela incerteza sio exacerbados porque nem todas as pessoas sao intrinsecamente honestas. Sem amplas informagdes sobre 0 histérico crediticio de um tomador, o financiador tem dificuldade em distinguir os honestos dos desonestos. Mesmo no caso de inadimplén- cia, no é facil separar o azar da fraude. Como € dificil identificar e punir os desonestos, os financiadores com informagées limitadas tém outro motivo para cobrar encargos elevados. Contudo ha um limite para os encargos que os financiadores podem co- brar. Um problema com que o financiador se depara € chamado de selegi#o adversa.> Os tomadores de empréstimo honestos que pretendem liquidar suas dividas sio muito sensfveis 4 taxa de juros. Esperam arcar com todo 0 6nus do pagamento da taxa alta. Quanto mais alta for a taxa de juros, maior o ntmero de tomadores honestos que desistirio de se candidatar a financia- mentos, ao constatar 0 quanto terao que pagar. Jd aqueles que nado tém in- tengio de liquidar suas dividas se candidatarao aos empréstimos por mais alta que seja a taxa. Em resumo, quanto mais aumentar a taxa, mais 0 con- junto dos tomadores de empréstimos sera “selecionado adversamente”, constituindo-se principalmente de tomadores desonestos. Porém quanto maior essa concentragao, maior a taxa de juros que o financiador devera co- brar para manter 0 equilibrio, tendo em vista a grande taxa de inadimplén- cia esperada. E um circulo vicioso, Quanto mais ele aumenta a taxa, mais 0 financiador precisa aumenté-la, até 0 ponto em que todos os bons clientes desistiraio de tomar empréstimos. Nesse ponto, sem dtivida o financiador nao desejaré emprestar porque sabe que os tinicos clientes desejosos de to- mar empréstimos sao os que nao pretendem pagi-los! 32 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS Em resumo, pode nao existir uma taxa de juros que permita a lucrativi- dade dos empréstimos concedidos, de modo que o financiador simples- mente nega crédito aos candidatos que néo tiverem um histérico sélido. Num sistema subdesenvolvido isso deixa uma grande parte da populagio sem acesso ao crédito. A incerteza e a desonestidade nao sio os tinicos problemas com que se depara o financiador. Mesmo um tomador de empréstimos intrinsecamen- te honesto pode agir de modo contrario aos interesses do financiador — um fendmeno conhecido como risco moral — quando os termos de pagamento ‘do mal-estruturados. Por exemplo, se os encargos se tornam muito one- es rosos, 0 tomador do empréstimo pode considerar que a tinica forma de amortizar o empréstimo é assumindo maiores riscos. Esse “jogar para res- suscitar” pode ir contra os interesses do financiador porque os projetos em- preendidos pelo tomador podem ser na maioria das vezes desastres. Num sistema financeiro desenvolvido, o financiador tem as informagdes para ve- rificar quando os temos do financiamento comegam a se constituir em in- centivos perversos para o tomador. Ele tem a capacidade de redigir o tipo certo de novo contrato e pode contar com um sistema legal eficiente para ajudar a reestruturar os velhos contratos (uma tarefa que nao é trivial quan- do 0 tomador tem varios financiadores) e garantir o cumprimento dos no- vos. Num sistema em que as técnicas de elaboragao, negociagdo e cumpri- mento de contratos Jo subdesenvolvidas, é dificil oferecer aos tomadores © incentivos certos durante a vida do projeto, de modo que os financiado- res ficam relutantes em conceder empréstimos. A tirania das garan Como 0 financiador esté arriscado a perder seu dinheiro em decorréncia da da si ou do ri quando a ink incerteza legio advers ‘© moral, ele hesita em emprestar ~estrutura financeira nfo é adequada para resolver esses pro- blemas. Mas ele pode também se proteger exigindo garantias, ativos de va- lor com que o financiador possa ficar no caso de inadimpléncia do toma- dor. Esse € 0 prinefpio dos penhores, que vigora até nas economias mais subdesenvolvidas. As garantias reduzem o problema da incerteza, pois o emprestador pode recuperar parte, ou todo, do emprestado cas 9 o empreendimento falhe. As financas beneficiam apenas os ricos? 33 sso também reduz as assimetrias da informacao; muitas vezes é mais facil avaliar ativos fisicos do que carater. Além disso, 0 tomador do empréstimo verificara que é oneroso apresentar garantias de valor se pretende escapar com 0s recursos emprestados, pois perderd os ativos dados em garantia. Portanto, a exigéncia de garantias obriga os desonestos a se excluirem do conjunto de candidatos a empréstimo, deixando apenas os candidatos de boa-fé que pretendem seriamente devolver o empréstimo. A perda potencial das garantias também leva o tomador do empréstimo a pensar duas vezes antes de adotar um caminho mais arriscado. Os dois efei- tos, exclusio dos desonestos do conjunto de candidatos a empréstimo e re- dugao do incentivo para assumir riscos indevidos, tornam as garantias um instrumento eficaz para estimular a concessao de crédito. O financiador em potencial considera 0 empréstimo com garantias menos arriscado enquan- to o tomador do empréstimo se beneficia da menor taxa de juros cobrada pelo financiador.t Na maior parte das economias subdesenvolvidas ¢ nos guetos das desenvolvidas, o empréstimo alicergado em garantias colaterais pode, de fato, ser a tinica forma de conseguir financiamento fora do efrculo dos amigos ¢ conhecido: Aqueles entre nds que sao romanticos nao podem, ou nao querem, reco- nhecer a légica dessa transagio econdémica. Castigam Shylock quando ele vem buscar sua libra de carne mas nao véem que essa é a garantia que per- mitiu ao mercador de Veneza tomar 0 empréstimo. Além disso, uma tran- sagio econdmica desapaixonada € desfigurada pela natureza vil do (quem mais?) financiador e seu édio pelo tomador do empréstimo. Contudo, a 16- gica é impecavel. O tomador que precisa do empréstimo est4 preparado para sacrificar algo valioso para obter o financiamento. Na verdade, se nio fosse pela natureza repulsiva da garantia e pelas tensas relagdes anteriores entre as partes contratantes, a garantia seria perfeita. O emprestador tem melhor uso para o dinheiro do que para a libra de carne do tomador ¢ nao a cobraria se 0 tomador nao fosse inadimplente. Fste dé imenso valor a sua carne ¢ nao deixaria de cumprir seu compromisso a toa.) Nao podemos olhar apenas para a eventualidade infeliz que leva o financiador a cobrar a garantia para qualificar a transagao de injusta. Numerosos estudos mostram que é mais facil para o financiador aquila- tar a garantia, quanto mais empréstimos forem feitos. A facilidade com que um credor pode exigir a garantia varia de pais para pais. Na Inglaterra, por 34 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS exemplo, o financiador toma um ano e perde cerca de 4,75% do custo de um imével para retoma-lo do tomador insolvente. Os empréstimos hipote- carios representam 52% do produto interno bruto (PIB) na Inglaterra. Na Italia com um PIB per capita aproximadamente igual ao da Inglaterra, sio necessarios trés anos e um gasto que representa de 18% a 20% do imével para que a hipoteca seja executada. Os empréstimos hipotecdrios represen- tam ali apenas 5,5% do PIB. Os politicos dos Estados Unidos nos proporcionam mais evidéncias da importancia de se contar com garantias. Numa tentativa de proteger as familias do excesso de endividamento para consumo a que os bancos as es- tariam “forgando”, a Comissio de Legislagio de Faléncias argumentou em 1973 que seria bom para as familias com menos recursos se elas pudes- sem ficar com alguns ativos mesmo tendo entrado em processo de falén- cia. A comissio propés que parte substancial dos ativos da familia fosse isenta de tomada por parte dos credores (esses ativos sao chamados de “isengdcs falimentares”), de modo que as familias tivessem um patrimé- nio para recomecar a vida. De acordo com essas recomendagées varios estados adotaram as isen- cGes. Em alguns casos estas sio extremamente gencrosas. Por exemplo, no ‘Texas 0 falido pode ficar com a casa em que mora, qualquer que seja seu prego, € mais US$30 mil em outros ativos. Uma isengao falimentar é uma espécie de seguro: ela impede o tomador do empréstimo de perder tudo em caso de calamidade pessoal. Isso pode estimular os tomadores a assumir ni- veis de endividamento mais elevados. Mas também impede que os ativos isentos sejam usados como garantia, tornando os financiadores menos dis- postos a oferecer empréstimos. As altas isengées falimentares conduziram a uma probabilidade signi- ficativamente mais alta de que as familias tivessem seus pedidos de financia- mento recusados ou que fossem desestimuladas de tomar empréstimos.’ As familia mente a tinica garantia que tém a oferecer, as isengdes Ihes retiraram 6 uinico meio de obter financiamento. Elas ficaram com muito menos aces- so ao crédito nos estados com isenges mais altas e pagaram taxas de juro mais elevadas que nos estados com baixas isenc6es. Jé as familias mais ri- cas contam, em geral, com muito mais ativos nao protegidos para garantir os empréstimos. O menor interesse dos financiadores em emprestar ap6s pobres foram as mais afetadas. Como a moradia é freqiiente- 35 As financas beneficiam apenas os a instituigio das isengdes nado as afetou muito. Na verdade, seu endivida- mento aumentou nos estados com isengées altas; as familias ricas ficaram mais propensas a tomar empréstimos porque uma parte maior de seus ati- vos ficava ao abrigo das execugdes. Assim, uma legislacao financeira que visava auxiliar as familias pobres acabou por prejudica-las e favorecer aquelas em melhor situacao. Neste livro veremos repetidos exemplos dis- so, ¢ talvez, mais de um possa ser atribuido simplesmente a ignorancia econémica dos legisladores. A injustica da exigéncia de garantias nao é que 0 financiador as execute se o tomador for inadimplente; ele pode evitar isto se, para comegar, se absti- ver de tomar o empréstimo. O problema é que s6 aqueles que tém ativos podem tomar empréstimos. De certa forma, o mundo das finangas subde- senvolvidas se assemelha ao de Mateus (25:29 Porque a todo 0 que tem dar-se-Ihe-4, ¢ teré em abundancia; mas ao que nao tem, tirar-se-lhe-4 até o que parece ter. Num mundo assim, a riqueza, nao as idéias produtivas, gera financiamento. Alguns argumentam que as coisas nao sao tao desanimadoras para os po- bres. Em um perspicaz livro recente, The Mystery of Capital, 0 economista peruano Hernando de Soto observa que os pobres de boa parte do mundo em desenvolvimento possuem propriedades que poderiam ser oferecidas como garantia se seu status juridico no fosse tio confuso.* Por exemplo, as casas construfdas na favela de Dharavi, em Bombaim, sio construgdes séli- das assentadas em terreno étimo. Mas como estio alicercadas em terrenos publicos ou privados nao tém status legal. Como sua propriedade nao serve como garantia, argumenta de Soto, os pobres nao tém acesso a financia~ mentos. A solugao para o problema, sugere, é dar aos pobres titulos de pro- priedade desses terrenos. Embora a idéia tenha méritos substanciais, nao é uma panacéia. Se os pobres ocupam a propriedade privada de terceiros ou, como é em geral o caso no mundo subdesenvolvido, terrenos publicos, a legaliz nos ocupados poderia provocar invases nos terrenos que restam, gerando uma ampla inseguranga da propriedade, um efeito oposto ao que se busca. Se, por outro lado, os pobres tém uma longa historia de ocupagao da ter- rae contam com a sangao da comunidade para fazé-lo (e, a propésito, é im- cio dos terre- 36 SALVANDO O CAPITALISMO DOS CAPITALISTAS pressionante com que facilidade o tempo e 0 costume santificam as origens obscuras da propriedade), os incentivos criados pela legalizagio podem nao ser de todo perversos. Mas se a comunidade local determina os direitos de propriedade, entao nao fica claro se o titulo concedido por um governo dis- tante seria suficiente para tornar a propriedade uma boa garantia. Um fun- ciondrio do banco precisaria de coragem para executar a hipoteca de um imével na favela de Dharavi contra os desejos da mafia local e uma pessoa ainda mais destemida para se mudar para aquele local, tomando 0 lugar do ocupante original. Em outras palavras, alguns pobres podem ter garantias, mas a menos que exista um mercado liquido para clas — € a legalizagao é apenas um passo para a cria¢ao de tal mercado — nio fica claro se cles conse- guirao tomar emprés dos pobres, especialmente daqueles que nao possuem ativos, seria o desen- imos, Uma abordagem melhor para facilitar 0 acesso volvimento de uma infra-estrutura financeira mais ampla. Voltaremos ao assunto mais adiante. ... E conexdes Um financiador que atua num mercado financeiro subdesenvolvido pode estar disposto a emprestar, mesmo sem garantias, se sabe que 0 to~ mador pode ser controlado por outros meios. A liquidagio de quantias emprestadas dentro do circulo familiar ou de amigos ou vizinhos, por exemplo, pode ser assegurada pela ameaca de ostracismo social, como no caso do Banco Grameen do exemplo apresentado na Introdugio (além da confianga cega das mies na capacidade de seus rebentos, isto provavelmente explica por que a principal fonte de financiamento exter- no para empresas familia e os amigos).’ Mas os pobres nao contam em geral com amigos ou parentes ricos. De modo que, mais uma start-up sejaa vez, so em geral os ricos que tém os conhecimentos certos para obter fi- nanciamento. A escassez de informagoes puiblicas, confidveis e oportunas sobre os to- madores de empréstimo apenas reforga a limitagdo do grupo que tem aces so ao crédito. Quando nao existem mecanismos para uma transmissio con- fidvel de informagées, a principal Fonte de dados com que o financiador conta sio as relagdes pes oais na comunidade proxima ou as transagoes de negécios. Como as informagées sobre a situagao crediticia do tomador do As finangas beneficiamn apenas os ricost 37 empréstimo sio fundamentais, amigos, parentes ¢ parceiros de negécios sio os candidatos mais provaveis 4 obten¢io dos financiamentos. Na falta de informagdes atualizadas e confidveis, o financiador daré também mais peso a reputacao. Empresas estabelecidas, que ja existem ha mais tempo, tém melhores chances de ter consolidado essa reputagao. Mais uma vez, os financiamentos tendem a gravitar para um pequeno conjunto de atores es- tabelecidos e aqueles streitamente ligados a eles. Como exemplo da importincia das conexdes, a associagio a cubes pare ce afetar as politicas de empréstimo dos bancos da Itdlia, um pais onde a di- vulgagio de informagGes ainda é bastante deficiente e onde hé poucos me- canismos para a difusio dos dados.'° Um banco est4 duas vezes e meia mais propenso a conceder crédito a uma empresa se 0 funcion4rio responsavel pertencer ao mesmo clube que o empresario. Também é sete vezes mais provavel que se trate do principal banco da empresa (isto é, 0 banco que faz mais empréstimos 4 mesma). O fato de pertencerem ao mesmo clube nao apenas aumenta a probabilidade de que 0 crédito seja concedido como au- menta a magnitude dos recursos disponiveis. Os empréstimos feitos a em- presas cujo proprictario € sécio do mesmo clube sio 20% maiores do que os empréstimos feitos por bancos cujos funciondrios nao tenham a mesma proximidade social. Recentemente, esse tipo de financiamento foi ridicularizado como sen- do um capitalismo de compadres, algo peculiar as culturas orientais ou Lati- s que toleram abertamente a corrup¢ao, pelo menos por padres ociden- Mas estudos histéricos mostram que os empréstimos a tomadores co- nhecidos refletem o subdesenvolvimento financeiro de uma economia mais do que alguma propens da Nova Inglaterra do inicio do século XIX emprestavam grande parte de seus fundos a membros de seu préprio Conselho de Administracio ou a na ta ao cultural a falta de honestidade. Os bancos pessoas com estreitas relagdes pessoais com os conselheiros.!! O que impe- a pratica de ser excessivamente opressiva foi que a entrada no seg- mento das atividades bancarias era livre. Ainda assim, como apenas os ricos ou pessoas de boa reputagao podiam abrir bancos, o financiamento se res- tringia efetivamente aos interesses estabelecidos. As praticas de “emprésti- mo privilegiado” cram uma solugao dentro da primitiva infra-estrutura in- diu es formacional ¢ contratual da época e nao se perpetuaram quando a in- fra-estrutura se desenvolveu. 38 SALVANDO O SAPITALISMO DOS CAPITALISTAS Deveriamos nos preocupar? Como 0s financiamentos acabam por beneficiar os ricos muitas vezes sc considera que exista uma discriminagio ativa contra os pobres. Esperamos ter convencido 0 leitor de que quando a infra-estrutura financeira é subde- senvolvida, nao é facil conceder crédito. O financiador naturalmente pro- cura financiar os que jf tém porque estes tém o que dar como garantia ou dispoe de conex6es que amenizam as preocupagoes dos financiadores. Qual- quer emprestador racional se comportaria do mesmo modo. De fato, os economistas denominam esse comportamento de discriminagao racional, para diferencid-la da forma mais tradicional de discriminagio que se alicer- ca numa aversio a grupos especificos. Entretanto, deverfamos nos preocupar? Acreditamos que sim, porque a economia nio pode produzir seu potencial pleno e porque o que produz nio € distribufdo de forma justa Claramente, os ricos ¢ os bem relacionados nao sito os tinicos a ter talen- to. Se nem todos os que tém talento podem obter os recursos necessdrios para levar adiante suas idéias, a sociedade empobrece. Além disso, sem acesso a financiamentos externos, uma oportunidade — 0 auto-emprego — se fecha, Em conseqiiéncia, os pobres sio duplamente prejudicados, nao apenas por perderem uma opgao, mas também porque seu poder de barga- nha quando trabalham para os que tém recursos é enfraquecido. Igualmente odioso, como veremos, 6 0 fato de que quando poucos con- trolam todos os recursos, eles t@m maior facilidade de conspirar para obter Inero a custa do resto da economia. Por exemplo, se nao hi informagGes publicamente disponiveis sobre os tomadores de empréstimo, os banquei- ros tém mais facilidade de se sentar em seus sales fumando charutos e fa- zendo acordos para dividir 0 mercado. Afinal, num ambiente em que as in- formagées sio inadequadas € oneroso para un banqueiro “de fora” afastar uma empresa de sua relagao estabelecida com seu banqueiro tradicional: como o banqueiro “conhecido” sabe muito mais sobre as empresas que sio suas clientes do que os banqueiros de fora, provavelmente este s6 consegui- rf trabalhar com as empresas que o banqueito ja estabelecido nao considera lucrativas.'? Com pouca concorréncia externa, os bancos podem formar cartéis com facilidade. Nao surpreende que o Comité Pujo criado em 1911 pelo Congresso dos Estados Unidos para investigar as praticas correntes no setor financeiro tenha verificado que As financas beneficiam apenas os ricos? 39 a possibilidade de concorréncia entre essas casas bancérias... € ainda mais distante do entendimento entre elas ¢ os outros, que ninguém procuraré, oferecendo melhores condigdes, tirar clientes ja atendidos por outros... Isso € descrito como um principio da ética bancaria."3 O Comité Pujo rotulou o setor financeiro de “truste do dinheiro”, lem- brando os trustes ou cartéis das estradas de ferro, do ago e do petrdleo que estavam atraindo 0 oprébrio na época. Quando os financiadores conspiram, eles véem poucos motivos para perturbar o status guo. Isso tem outros efeitos — por exemplo, eles nao dese- jam se arriscar incentivando as inovagoes. O juiz Louis Brandeis, nomeado para a Corte Suprema pelo presidente Wilson, escreveu uma acusagao can- dente as financas em seu livro Other People’s Money. Ble atacou a relutancia dos bancos em apoiar inovagiies, listando uma série delas que tiveram lugar no século XIX e nos primeiros anos do seguinte e que mudaram o mundo. Elas iam do navio a vapor ao telégrafo. Nenhuma, afirmou, foi financiada por bancos. Em suma, 0 financiamento num sistema subdesenvolvido tende a ser concedido a conhecidos, a ser pouco competitivo e conservador, uma des- crigio adequada das finangas nos Estados Unidos do inicio do século XX. Que efeito teve na escolha individual ¢ na liberdade individual? Eo que ve~ remos a seguir, A segunda revolucao industrial e a importdncia do financiamento Até cerca de meados do século XIX, a economia dos Estados Unidos (e do mundo) registrava poucas empresas com mais de 100 empregados. A maio- ria era administrada pelo proprictario. O historiador Eric Hobsbawm comparou as 150 familias mais ricas de Bordeaux (Franga) em 1848 com as 450 mais ricas da mesma regiao em 1960 € verificou que o maior grupo do segundo periodo, os executivos assalariados, estava completamente ausen- te no primeiro.4 A razao do surgimento dos gerentes assalariados foi uma nova forma de organizagio que surgiu na segunda metade do século XIX: as grandes empresas verticalmente integradas que o historiador de Harvard, Alfred

Você também pode gostar