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...

Em torno en tre espaço e cultura" (CRIADO


BOADO, 1998).
Este novo percurso encerra em si, não só
o estatuto de categorização absoluta e
histórica, a bipolarização estruturante
do pensamento moderno vem sendo

de alguns uma nova orientação, mas sobretudo um


reposicionamento teórico e filosófico que
consideramos de importância capital para
a Arqueologia enquanto ciência social.
A construção da racionalidade moderna,
questionada em várias áreas disciplinares,
de que são exemplo o pensamento
filosófico de Heidegger (1962), a
sociologia de Elias (1994) ou de Berger
e Luckmann (1999), ou, na própria

fundamentos sobretudo a partir de René Descartes,


originou uma bipolarização do
pensamento ocidental, baseada numa
oposição de categorias. Corpo I Espírito,
Arqueologia, as ideias de Criado Boado
(l993c) ou Thomas (1996), onde as
categorias alvo de polarização são vistas
como mantendo uma interligação

e potencialidades
Natureza I Cultura, Indivíduo I Sociedade dialética, cujo reconhecimento é
tornaram-se antónimos que têm fundamental para a produção de
constituído os pólos dos movimentos conhecimento.
pendulares de sucessivas correntes de No caso concreto da separação entre
pensamen to que se vêm degladiando mundo natural e mundo social, este

da Arqueologia a té ao presente.
Estes contrastes têm marcado a produção
do conhecimento, estando na origem de
uma divisão "administrativa" do trabalho
posicionamento epistemológico não
pretende negar a existência de um mundo
exterior ao Homem, independente do
sujeito cognoscente. Como sublinha

da Paisagem
intelectual, com as ciências ditas exactas Elias (1994), o desenvolvimento do
e naturais de um lado e as sociais de conhecimento racionalista humano
outro'. A Arqueologia não haveria de (por oposição ao conhecimento mítico
fugir a este contexto, e o facto de a ou providencial) foi por vezes
ANTÔNIO CARLOS VALERA!
disciplina trabalhar a partir de realidades acompanhado pela dúvida sobre se existe
materiais terá feito com que a comparti­ algo para além daquilo que é conhecido
mentação fosse assumida em muitos pelo ser humano, inquietação que viria
momentos. Como sublinhou Julian a ser apelidada de "bicho na maçã da
Thomas "In the opposition between modernidade" (idem).
culture arui nature (. .. ) the things olnature Efectivamen te, há toda uma infinidade
de materialidades cuja existência é

A
come to be seen as a passive store 01 goods,
Arqueologia da Paisagem tem pressupostos filosóficos e dominated and explnited by humanity". independente da conceptualização
tido, ao longo da década de 90, epistemológicos que lhe sub jazem (e que ([HOMAS, 1996: 13). humana. O que se postula é que toda a
importantes desenvolvimentos, considero importantes para a Arqueologia Esta asserção tem-se baseado numa representação que o Homem faz do que
de que será da mais elementar justiça enquanto ciência social) e sublinhar as ideia diluída no pensamento ocidental o rodeia (e dele próprio), tudo o que
destacar, à cabeça, o trabalho desenvolvido potencialidades que nela existem para moderno, que assume que, sendo produtor percebe, é social e contextllalmente
pelo grupo da Universidade de Santiago o tratamento de questões relacionadas de cultura, o Homem se emancipa da condicionado, pelo que o mundo e a
de Compostela. Vários são os textos de com o ser humano mental das sociedades Natureza, se localiza exteriormente a ela, consciência que, em cada momento
significativa importância para o tema, pré-históricas, dentro de um discurso utilizando-a como palco passivo que histórico, o Homem dele forma não
dedicados à constituição de um corpo que garanta mínimos de cientificidade. manipula e explora a seu belo prazer. podem ser realidades confundíveis.
teórico coeren te e metodologias As recentes abordagens da dimensão Os avanços tecnológicos, que entusias­ A consciência é, ao que sabemos,
adequadas à abordagem desta realidade, Espaço em Arqueologia têm vindo no maram o cientismo oitocentista, ou as privilégio da humanidade, sendo um
assim como à sua aplicação a case studys. sentido de propor a substituição de visões do mundo propostas pelas produto da interacção biologia Itodo
Não é, assim, objectivo deste texto, uma ':I\rqueologia Espacial", considerada principais correntes religiosas, têm, social, o que significa que a simples
112 devido à sua natureza, espaço disponível amarrada a perspectivas exclusivamente cada um à sua maneira, contribuído consciencialização de aspectos do mundo 113
e motivação que conduziu à sua escrita, funcionalistas, economicistas e para a in teriorização desta separação é já um factor de humanização. O mundo
produzir uma análise profunda e ecologistas, por uma "Arqueologia da entre Homem e Natureza. não humanizado é··nos, assim, inacessível,
desenvolvida sobre a Arqueologia da Paisagem" que se propõe alcançar um Reconhecida, contudo, a historicidade embora devamos admitir a sua existência.
Paisagem, mas tão-só enunciar alguns "modelo alternativo sobre a relação desta forma de pensar, negando-se-lhe O que importa assumir é que todo o

1 Arqueólogo da ERA Arqueologia, Ld.ª Doutorando em Pré-História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 2 Convêm, contudo, sublinhar a importância desta divisão no combate à pretensão, propagandeada pelo positivismo, de estudar
o Homem como um outro objecto qualquer, postura que esquecia que os homens agem com intencionaHdade em resultado de

consciências historicamente ancoradas, o que 05 distingue claramente dos objectos de estudo das ciências não sociais.

tema} Conceitos
A Arqueologia da Paisagem
propõe um modelo
alternativo para a inacessível, uma vez que o processo
de conhecer impõe alterações sobre
estrutura espacial, é um elemento
constituinte das relações sociais e não
que se fala mais adiante.
Não se trata aqui de uma simples incorpo­
abordagem da relação o que é conhecido, através das limitações aigo exterior a elas. Existe uma relação ração das correntes pós-processualistas
Homem/Espaço, cujos biológicas, da atribuição de sentidos orgânica entre sociedade e o seu espaço. na abordagem da vertente espacial da
fundamentos filosóficos são e de organizações específicas do real.
Assume-se, pois, uma posição
Reservamos, assim, o termo paisagem
para designar as realidades espaciais
existência humana. Defendendo a
con textualização, e portanto a
centrais na evolução das frequentemente apelidada de contrulÍvista que são socialmente percebidas, relativização das análises espaciais,
ciências sociais. e que postula que o sujeito cognoscente experimentadas e conceptualizadas. as novas perspectivas pressupõem um
lança sobre o seu objecto de conhecimento Em última instância, falar em paisagem posicionamento filosófico de base, que
conhecimento que produzimos só é apríorismos (valores, sentidos, cultural torna-se numa redundância. se constitui na recusa da separação entre
possÍ\'cl através de conceptualizações encaixando-o num quadro conceptual "The place anti IlIe people are collceptua/{l' natureza e sociedade, assumindo (1
e essa apreensào cognitiva do que nos que lhe é prévio e próprio do seu fi/srd. The societ)' delizles meaning from espaço como uma parte organicamen te
é exterior está inteiramente dependente tempo, espaço e condicionalismos p/ace, lhe place is defined in lerms of social integrante do processo social global.
do nosso aparelho conceptual, mental biológicos4 ). O sujeito ganha, assim, um relatiollship~, and the individuais in the A própria Arqueologia Espacial tem sido
e linguístico, ou seja, "(... ) o que não papel aetivo na criação do objecto, que society are lWt aliellated jí'om lhe [anti." redutora ao tratar a paisagem sobretudo
está simbolicamente representado na lingua é o resultado de uma relação dialética (SACK, 1980: 177). como território de exploração, privilegiando
de uma comunidade linguística não é Ce não polarizada) entre os dois. Na realidade, a interactividade orgânica aspectos de ordem econômica,
demográfica ou social, e quando

N
conhecido pelos seus membros (... )" entre uma comunidade e a sua dimensão
(ELIAS, 1994: 5). Ora, a construção de a realidade., o espaço que espacial tem sido frequentemente estabelece uma articulação entre
uma língua e de um aparelho conceptuaP, percebemos em cada momento quebrada, para não dizer ignorada. sociedade e território, a relação é pouco
sendo dependente do potencial biológíco histórico é o resul tado de um A abordagem da paisagem, conceito não dialéctica, estando reservado ao espaço
(BERGER e LUCKlvlANN, 1999),
necessita de uma activação social para
compromisso entre mundo interior e
exterior, existindo nos termos das nossas o acto de conhecer interfere sobre o que é conhecido.
se constituir como mecanismo simbólico acções e significados (pEARSON e O conhecimento humano trata sempre com espaços
de conhecimento e organizador do
real, processo que é sempre, necessaria­
RICHARDS, 1994: 3). O espaço é
percebido através da transformação de
categorizados e nunca com espaços jzsicos indiferenciados.
mente, histórico. áreas físicas indiferenciadas em lugares, poucas vezes utilizado como sinónimo um papel passivo, explorado e utilizado
Significa tudo isto que, na abordagem que correspondem à categorização e de área abrangida pelo campo visual ou através de "estratégias" sociais (numa
das questões relativas à paisagem e, em conceptualização do meio físico mesmo de território, resume-se. em espécie de determinismo geográfico ao
geral, com a dimensão espacial da envolvente e aos quais é possível associar muitos casos, a meras descrições da contrário).
existência humana, temos de comiJerar nomes e histórias que dão aos locais geologia e da geomorfologia da área em Ao longo da década de noventa, contudo,
e distinguir duas realidades diferentes: sentidos, tornando-os depósitos de análise. Nestas situações, a Paisagem tem-se assistido ao desenvolvimento da
o espaço físico e o espaço categorizado. memórias e significados. A intervenção é tratada independentemente dos abordagem arqueológica da paisagem
O primeiro existe independentemente humana na paisagem é, ao mesmo tempo, contextos sociais que se estudam e por isso numa perspectiva mais abrangente, onde
de qualquer observador, apresentando uma intervenção física e conceptual, é igualmente frequente observarem-se a relação interactiva sociedade/espaço
ritmos de mudança próprios relacionados o que lhe confere um carácter contextual. as mesmas descri,ões de uma região assume importância estruturante, ao
com alterações de ordem exc1usivamen te Por outro lado, o Homem não pode aplicadas a sucessivos momentos ponto de servir de critério de periodização
fisica ou física e biológica. É um espaço pensar o espaço fora dele. A interacção históricos, esquecendo que as paisagens, histórica, onde aproximação à paisagem
designável por indiferenciado. O segundo é constante e ao espaço não está reservado sendo um produto histórico c social, é feita em interligação com todas as
é o que resulta da existência de um um papel meramente passivo. estão em constante processo de outras variáveis do todo socia\' como
observador munido de cousciência. Retomando a contestação da transformação e substituição, mesmo a estrutura económica e social, o
É um espaço que se cOl18trói através do polarização natureza/sociedade, o espaço quando não se verificam trausformações desenvolvimento tecnológico, a
compromisso entre o espaço físico é um meio activu na produção e físicas de vulto. organização institucional e política,
indiferenciado e a cogniçào do observador reprodução de qualquer organização É frequente ver a materialização desta o quadro mental e religioso. Postula-se,
historicamente ancorada. Como decorre social (PEARSOt>· e RICHARDS, perspectiva na própria organização dos assim, que a Paisagem é um assunto
114 do que acima se disse, o conhecimento 1994), o que significa que a paisagem, textos, nomeadamente nos de carácter que pertence, sobretudo, ao nível da 115
do espaço físico indiferenciado é-nos enquanto categorização de determinada mais monográfico e de síntese, onde síntese. O discurso sobre a paisagem é
não é raro ver o espaço ser tratado num um discurso interpretativo e explicativo
3 A linguística diz-nos mesmo que não é possível afirmar a existência de um pensamento extratinguísticQ, pelo que a tinguagem
não é um mero utensílio, mas é ela própria matéri9 do pensamento (KRISTEVA, 1969). capítulo à parte, normalmente no início e não meramente descritivo, que deverá
das obras, numa espécie de descrição de ser realizado no ãmbito da produção de
4 Para que não fiquem dúvidas do que se pretende afirmar com a expressão "condicionalismos biológicos" sublinhe-se que o
"equipamento sensorial e motor, especffico da espécie, impõe limitações óbvias à sua gama de possjbUidades~ e que a um palco onde actuaram os actores de sínteses sobre o todo social.
"animalidade do homem transforma-se com a socialização, mas não fica abolida~ (BERGER e LUCKMANN, 1966: 60 e 185).

tema} Conceitos
o conceito de Paúagem
assumido é o de uma Como refere Robert Mandrou a propósito Arqueologia di scursou com preocupações a determinação de
realidade englobante, da França Moderna: impressionante facilidade sobre aspectos alterações na estrutura dos processos
resultado da interacção '54illsi le milieu nalurel se trouve êlre moins do enquadramento mental de sociedades cognitivos humanos. Para isso, Zubrow
orgânica entre o todo social e un cadre mental- offert à la spéculalion
intcllectuelle, el à la Immformation
pré-históricas, discursos esses cuja
ausência de fundamentos seguros viria
propõe a existência de Universais
Cognitivos (conceito que evoca o de
o meio envolvente leclmique - qu'ull élflnellr d'acúoll: il esl a ser denunciada a partir da década de 60, Universais Culturais aplicado em
pensé el senti surtour comme le point no contexto de uma Nova Arqneologia sociologia - GIDDENS, 1993) e que
o conceito que se defende de Paisagem d'applicaliol1 d'acri'i!Ílés qlloridiellnes: monde mais virada para questões materiais da seriam atributos cognitivos que seriam
é, pois, o de uma realidade englobante, hostile fi ji-atemel à la fois, monde du'!' paul' organização humana. A partir dos anos comuns a todos os elementos de uma
/'csllltado da interacção enHe o todo l'lwmme - el rnystériCli:\: (. .. ) I'espace el le 80, quer no âmbito da autodenominada cultura e transversais a todas as culturas.
social e o meio envolvente, que se temjJs, le cosmos nést encor/? paul' l'homme Arqueologia Pós-processual (também A consideração e utilização de Universais
expressa em cada momento histórico. moderne lIll cadre de jJensée." (Robert conhecida por Arqueologia Anti-processual Culturais e das generalizações que
Abarca os territórios e os seus aspectos Mandrou, Inl1Vductiol1 à la Frallce -- RENFRE\\7, 1994), que, questionando estes implicam têm sido frequente­
físícos e us estratégias econômicas, modeme, Paris, Albin Michel, 1974: a testabilidade, baseia o seu trabalho mente criticadas. Porém, a sua validade
sociais e políticas que as sociedades 103-104). em técnicas interpretativas e heurísticas, mantêm-se, mesmo reconhecida por
desenvolvem na sua relação com aqueles. A homogeneidade de um espaço privilegiando o singular, quer no âmbito alguns dos seus críticos, que a consideram
.Mas assume-se a Paisagem igualmente matematicamente mensurável não pode da designada Arqueologia Cognitiva­ apropriada desde que testável (ver, por
como um entendimento e como uma ser transportada mecanicamente para o -processual (idem), que insiste na exemplo, BELL, 1994).
experiência, estruturante das passado, onde o espaço é dominantemente testabilidade das hipóteses como forma No que à Arqueologia da Paisagem diz
mentalidades, ao nível do imaginário categorizado em termos qualitativos, de garantir cientiücidade e aborda respeito, penso que a utilização de
e das visões do mundo reguladas por mesmo ao nível das distâncias, como sohretudo o colectivo, os estudos Universais Cognitivos poderá ter
formulações ideológicas. nos demonstra a sociedade Temne, dedicados aos aspectos relacionados potencialidades interessantes,
São conhecidos inúmeros exemplos onde o espaço é medido pelo número com a ideologia e mentalidade, nomeadamente se tivermos em conta as
etnográficos e históricos da forma como de povoações percorridas nomeadamente o simbolismo e o possíveis aplicações do estruturalismo
a morfologia do espaço é organizada independentemente das distâncias significado, sofreram um forte incremento. psicogenético.
segundo áreas significantes para o existentes entre elas. A paisagem é Todavia, o debate (por vezes Na realidade, para além de um
imaginário colectivo (sejam as áreas construída de acordo com os inconsequentementc barulhento) entre entendimento consciente, portanto
de localização dos mortos, áreas simbolismos atribuídos (CR1\NG, processualismo e o pós-processualismo categorizado, a Paisagem é inconsciente­
cerimoniais, áreas residenciais de 1998: 27), ou seja, por códigos semânticos dá hoje sinais de esgotamento e são vários mente experimentada: é um espaço ao
divindades, etc.), que desempenham papel que sao <:ntendimentos conceptuais das os autores que, numa atitude conciliadora, mesmo tempo existencial (PEARSON e
tti1.ruturante não só na própria
j
suas car ..lcterísticas físicas. vêm sublinhando a complementaridade RICHARDS, 1994: 3) e pensado,
organização e gestão do território, tanto Chegados a este ponto, coloca-se a de perspectivas e a validade de propostas constituído através do já salientado
a nível de fronteiras como de estratégias inevit,\vel qnestão de se, face ao carácter que ambas as correntes apresentam compromisso entre o mundo exterior
de implantação e de exploração de histórico e contextual do significado, para a abordagem do todo social humano e o interior, sendo por isso um campo
recursos, mas também no quadro mental é possível recuperar os códigos no passado. privilegiado para as abordagens relativas
vivencial e ideológico. semânticos da Paisagem, Será um pouco neste sentido que vão as à psicologia social, nomeadamente no
Abrem-se, assim, novas dimensões de concretamen te para sociedades das propostas de Zubcrow (1994), que domínio da percepção'.
análise da realidade espacial na sua quais não possuímos registos escritos. procnra desviar a atenção dos problemas Existe, pois, cabimento para a aplicação
relação com o mundo social humano, O dehate tem décadas, a argumentação de como é feita a inlcrpretaçáo do de desenvolvimentos realizados no
entre as quais se destacam as dimensões é vasta, mas não é certamente este o local comportamento humano pela âmbito da psicogénese à análise
psicológica e perceptiva da paisagem. para grandes desenvolvimentos sobre Arqneologia ou de como se processa historiográfica 6 , o que a História das
Estas dimensões, talvez mais que o assunto. A sua equação, ainda que de a testabilidade das hipóteses, propondo Mentalidades usou com sucesso. Creio
quaisquer outras, alertam·-nos para a forma ligeira, apenas se justifica porque uma reorientação para as questões de particularmente interessantes as
necessidade de, na abordagem histórica da resposta depende a praticabilidade como o Homem produz e usa o utilizações que se poderão fazer dos
da paisagem c do espaço em geral, de uma Arqneologia da Pais:: ~em como conhecimen to do seu Il1 undo exterior: resultados dos trabalhos de Jean Piaget
distinguir o entendimento actual do a que se defende. A questào coloca-se a metodologia de abordagem derivaria sobre a cognição e da sua teoria dos
116
investigador (nm entendimento 117
sobretudo ao nível da dimensão cognitiva da constitnição de uma teoria sobre a estados cognitivos. Estas teorias estão
cientificamente estruturado sobre um que a Arqueologia da Paisagem pode representação do conhecimento, que teria na base do conceito de Lucien Goldman
meio tecnicamente mais dominado), assumir, já que para as dimensões como uma das suas principais de Máxima Consciência Possível, que
das relações com a natureza e os económica e social os pessimismos são
entendimentos que sobre ela se mais facilmente ultrapassáveis. 5 Note~se que 0$ trabalhos desenvolvidos no âmbito de uma Arqueologja da Percepção se centram no
produziam em épocas idas. estudo, não da percepção do individuo. mas nos sistemas que enquadram a percepção (Vaja~se
Na realidade, durante gerações, a CRiADO SOADO, 1998). Aliás. neste texto a paisagem é considerada enquanto produção colectlva
e não como entendJmento individual.

tema} Conceitos

...
A Arqueologia da Paisagem apresenta grandes potencialidades periodizador proposto por Filipe Criado
Boado (l993c) para as atitudes humanas
A passagem das sociedades de cariz
igualitário e organização territorial
para a abordagem da psicologia social no passado. face à natureza. fluida a sociedades de cariz mais
Criado Boado define quatro tipos de complexo, com territorialidades e
assume a existência de limites cognitivos centro, organizando-se o restante espaço atitudes que, grosso modo, faz corresponder fronteiras mais fixas e definidas,
impostos pelo desenvolvimento da de forma qualitativa e, portanto, a tipos de paisagens. Basta-nos, para o que poderá ser um bom campo de trabalho.
Estrutura Mental e Linguística em cada hierarquizada, em função deste centro. se pretende exemplificar, considerar as Se é plausível pensar que as fronteiras
época. Este conceito decorre da ideia Por outro lado, esta estrutura mental três primeiras: sempre existiram, é igualmente certo
de que as nossas capacidades cognitivas conduz à centração nos estádios términos a) Paisagem ausente, caracterizada por que a sua natureza (critérios em que se
não são um absoluto, mas um produto dos processos. Aplicada à análise uma atitude passiva ülce à baseiam, necessidades a que respondem,
histórico, portanto em mudança, e que espacial, esta centração significa que a natureza, onde os "códigos etc.) se alterou. A passagem de uma
em cada época há limites impostos àquilo noção de movimento dos processos culturais da sociedade e do situação de t1uidez à de constituição de
que pode ser concebido e cognoscível. espaciais é pouco desenvolvida, indivíduo são entendidos como fronteiras bem demarcadas e, se
Neste sentido, é famoso o trabalho de traduzindo-se na concepção mental de entidades que não desenvolvem necessário, vigiadas e defendidas,
Lucien Febvre sobre o ateísmo atribuído que o local actual é o local natural (teria uma acção distinta e resultado de um relacionamento com
a Rabelais, demonstrando que o mesmo que ser aquele). independente da natureza" o território que implica maiores
era uma impossibilidade no quadro Verifica-se igualmente que, com (idem: 22). investimentos e que cria maiores
mental do século XVI'. Em suma, o que frequência, a centração nos estádios b) Paisagem naturalizada, caracterizada dependências, tem implicações a níveis
o conceito de Máxima Consciência términos dos processos está associada por uma atitude participativa, mentais, estimulando a capacidade de
Possível faz é aplicar a um todo colectivo a concepções finalistas do espaço, isto que envolve os primeiros descentração que, ainda que funcione
no processo histórico a proposta de é, à atribuição de intenções às sequências "trabalhos de transformação com níveis baixos característicos de
Piaget, desenvolvida para o indivíduo: causais espaciais: as coisas acontecem efectiva do meio envolvente" quadros de pensamento pré-moderno,
a estrutura mental impõe limitações e existem com uma finalidade, que é a (ibidem: 24). tenderá a perceber o espaço cada vez
à cognição, muda com o tempo e poderão sua razão de ser. c) Paisagem domesticada, decorrente da menos de uma forma absolutamente
ser identificados estádios generalizáveis. Estas categorizações, obviamente com "autêntica" Revolução Neolítica centrada (espaço dado e inalterável),
As aplicações destas perspectivas de gradações e especificidades, têm sido e que é caracterizada por uma para desenvolver uma visão
análise à categoria de Espaço em História consideradas generalizáveis dentro de atitude activa e domesticadora progressivamente mais descentrada:
têm demonstrado que, na estrutura de universos espacial e temporalmente (no sentido de transformadora o espaço transforma-se, pode ser
pensamento pré-moderna, o espaço definidos. A sua aplicação à Arqueologia e submissora). transformado pelo homem, e vai
(tanto o físico como o social) é percebido da Paisagem pré-histórica, nas suas Esta transformação, em que
de forma centrada. E sendo centrada, dimensocs perceptiva, cognoscenle e progressivamente se vai observando o A territorialidade humana
existe a elevada probabilidade de a existencial, pode ser de grande utilidade. desenvolvimento da capacidade de é fonte de identidade e esta
concepção de espaço ser finita e
heterogénea: o centro dispõe de
A título de exemplo, veja-se a questão da
Iloção transformabilidade do espaço, que
intervir e modificar do Homem Social
sobre o meio resulta da interacção do
expressa-se na Paisagem.
qualidades que outros pontos não têm. não é apenas uma questão de percepção, progresso tecnológico, organização adquirindo movimento, mesmo que esse
O espaço finito e heterogéneo tende, mas de efectiva capacidade mental. económica e social, movimen tos movimento seja finalista e se enquadre
pois, a tornar-se num espaço A noção de transformabilidade do demográficos, organização política e ainda num espaço qualitativo,
hierarquizado qualitativamente, cujo espaço diz respeito à passagem da ideológica, mas também de transformações hierarquicamente organizado.
domínio do código semântico se torna percepção do espaço como dado ao nível da estrutura mental, A própria hierarquização qualitativa da
necessário para o seu entendimento. inalterável (própria dos estádios menos nomeadamente ao nível das categorias percepção espacial deverá encontrar-se
A perspectiva centrada do espaço desenvolvidos das estruturas mentais de processamento da percepção de espaço. cristalizada na Paisagem de uma época,
remete-nos para estruturas mentais definidos por Piaget para os primeiros Daqui decorre o interesse de testar a tese podendo ser percebida através de padrões
igualmente centradas, as quais são anos de vida do indivíduo) a um espaço de que a progressiva capacidade de de implantação espacial, das estratégias
caracterizadas pela incapacidade de progressivamente percebido como transformação do espaço depende, ao de exploração de recursos, da zonação
conceber perspectivas diferentes, a não construido e transformável C-Jrój:. io de mesmo tempo que promove, de alterações de actividades, comportamentos e
ser a níveis muito rudimentares. Neste estruturas mentais com outras nas estruturas mentais colectivas de uma construções, etc. 119
118
quadro mental, a concepção do espaço capacidades cognitivas). Esta noção sociedade, que lhe permite Para tal, Criado Boado e Villoch Vásquez
tende a ver determinados locais como subjaz, em grande parte, ao esquema progressivamente conceber a realidade (1998) propõem-nos um método
como acessível à intenção humana de desconstrutivo, aplicável ao estudo dos
6 Não posso deixar de relembrar aqui o trabalho desenvolvido neste âmbito por José Baginha enquanto professor universitário. intervir e alterar, verificando até que padrões de implantação e estratégias de
que deixou marcas em muitos dos saus alunos. ponto este tipo de alterações se visibilidade'. A metodologia advogada
7 Lucien Febvre, O problema da descrença no século XVI. A religião de RabeJais, Lisboa, Início, 1970. cristalizam na paisagem. visa o reconhecimento de regularidades

tema} Conceitos
que documentam estratégias intencionais, quando surgem os primeiros sinais, são inerentes à percepção da paisagem, numa perspectiva de refutação, é
através de uma desconstrução do espaço identificáveis no registo arqueológico em parte derivadas do grau de igualmente assunto de relevo para as
arqueológico que possibilite detectar como tal, de ambas as transformações familiaridade e associação a essa questões aqui discutidas, mas terá que
os modelos de articulação de um espaço e pela determinação de se se articulam mesma paisagem, são fundamentais na ficar para uma próxima ocasião, Apesar
(formas elementares do espaço, vias de ou têm percursos e desenvolvimentos constituição de uma identidade de tudo, não posso deixar de citar Lakatos
trânsito, uso e ocupação do solo, zonação mais ou menos independentes. (NAS H, 1997). O espaço é essencial no (1978) expondo as ide ias de Popper: o
de actividades, etc.), permitindo colocar Um outro ângulo, onde a Arqueologia desenvolvimento do sentimento de problema não é evitar os erros é ser-se
hipóteses sobre os códigos semânticos da Paisagem permite a exploração de pertença, pelo que a territorialidade implacável na sua eliminação, não é ser-se
da paisagem arqueológica considerada. aspectos de cariz mais existencial e mental, humana é tonte de identidade. Esta ousado nas conjecturas, mas incansável
Como procedimento paralelo, considera-se corresponde às questões relativas à funda-se na comunhão, isto é, no que na sua refutação; a convicção, essa, é
fundamental evitar a aplicação mecânica identidade. Este tema é, ainda hoje, um é comUlll a um certo grupo, mas pior que a crença,
da racionalidade moderna do espaço, tema "perigoso", sobretudo devido aos igualmente na diferenciação: o nós é
procurando a analogia com si tuaç6es autênticos Ülntasmas que ainda são também definido por oposição ao
que, no presente, conservem traços certos postulados gerados no contexto ourros. Somos tão definidos pelo que Bibliografia
significa tivos de racionalidades da Arqueologia Histórico-Culturalista. somos como pelo que não somos IO • BELL, Jamas, (1994), "Interpretation and testability in theories
espaciais pré··modernas. Esta proposta Não se evocam aqui as velhas teorias Ora, as complexas redes de identidades about prehlsloric thlnking", The anclente mlnd. Elements af
cognitive archseology, (CoUn Renfrew e Ezra Zubrow, eds.),
vai ao encontro da metodologia que Hill étnicas nem se pretende fazer associar têm cristalização espacial e na New Directlons In Archaeology, Cambridge, CUP, p. 15~21.
(1994) denomina por Tighl Local Ana/og)' conjuntos recorrentes de artefactos a constituição da Paisagem é essencial BEAGER, Petar e LUCKMANN, lhamas, (1999), A construção
social da realidade. Um livro sobre sociologia do
e que sustenta o recurso à comparação povos, como, por estranho que pareça, o sentimento de pertença do ser conhecimento., (1996), Usboa, Dinalívro.
baseada na selecção do maior número ainda vai acontecendo. O problema da h uma no; as pessoas não se localizam CRIADO BOADO. F., (l993a), 'Vlslbllldad y intarprotatkln dei
registro arqueologlco w, Trabajos de Prehistorla, 50, Madrid,
de similaridades e da maior variedade identidade é bastante mais complexo apenas no espaço, elas definem-se p.39-56.
CRIADO SOADO, F., (l993b), "The vlsiblltyb ollhe archaeologlcal
de similaridades possíveis entre o (porque as identidades são múltiplus e também através de um sentido de lugar, record and lhe interpretation of social realiIy", Interpretlng
fenómeno passado e a analogia presente, sobreponíveis) e interessante, sendo, que, assim, gera identidade, conferindo Archaeology. Finding meaning in lhe past., (HOOOER, I. et ai
edltors), London, Routledge, p. 194-204.
aumentando o grau de Habilidade da em minha opinião, central para o estudo uma vez mais ao espaço uma face CRIADO BOADO, F., (1993c), "Limites y possibiHdacles de la
analogia com a proximidade no tempo da diversidade cultural. Para o que está psicológica. "Ser humano é vh'er num Arqueologfa deI PaisaJe~, SPAL, 2, Sevilla, Universidade de
Sevilha, p. 9-55
e espaço entre as realidades comparadas. em questão no presente texto, interessa mundo cheio de lugares significanles" CRIADO aOAOO, F e VILLOCH VÁSQUEZ. V.. (1998). "La
Por outro lado, ao mesmo tempo que sobretudo lembrar que a identidade é (CRANG, 1998: 108), ou seja, numa monumentallzación dei paisaje: percepción y sentido original
en ai megalitismo de la Sisrra de Barbanza (Galicia)", Trabajos
tornam possíveis, as transformações também um assunto da mente e da paisagem. A ligação é de tal forma forte de Prehistoria, 55, n." 1, Madrid, p. 63-80.
mentais decorrem de novas racionalidades paisagem. que, frequentemente, grupos de CRANG, Mike, (1998), CufturalGeography, London, Routledge.
ELIAS, Norbert, (1994), Teoria Simbólica, Oeiras, Cella,
económicas, políticas, sociais, etc., ou Já foi rrferido que a Paisagem assume identidade são designados com um termo GIODENS, Anthony, (1993), Sociologia, Lisboa, Fundação
CaJouste Gulbenklan.
"da, possibilitam novas visôes do mundo uma dimensão psicológica. Nela, é de referenciação espacial (orientais, GOLDMAN. Lucian, (1959), ~Le concept de structure significativa
que actuam, em feeback, sohre a própria frequente a natureza ser deformada nortenhos, serranos, ilhéus, etc.), numa en Histolre de la Cultura", Recherches DJaJectfques, Paris,
Gallmard.
estrutura mental. através de magias, de animismos, de osmose entre espaço e identidade. HEIDEGGER, M., (1962), Being and Time. Oxford, Blackwell.
Neste sentido, é interessante sublinhar totemismos, etc., que reforçam e ajudam Em suma, uma investigação da Paisagem HILL, James, (1994), "Prehistortc cognition and the sclence of
archaeology", The anciente mind. Eloments of cognitive
a plausível interligação entre os níveis a estruturar sentimentos de pertença e como a que se assume neste texto é archssology, (CoUn Aenfrew e Ezra Zubrow, eds.), New
de descentração aplicados ao espaço que se relacionam com os imaginários obviamente, mais do que um projecto, Dlrecllons in Archaeology, Cambridge, CUP, p.8:)-92.
LAKATOS,IITVe, (1918), Fa/siffcaçiloemet~ eles programas
físico e os aplicados ao espaço social. coJectivos de cada época e comunidade, um programa de investigação orientado de investigação cientffica, Siblioteca de Filosofia
O problema é o de saber até que ponto ou sej a, com as respectivas visões do para um discurso de síntese sobre a Contemporânea, Usboa, Edições 70.
NASH, George, (1997), "Monumemality and lhe Landscape: the
questôes relativas a alterações na mundo. ;\ Paisagem deverá, assim, íntima relação entre as sociedades possibla symbolic and poliUcaldistribution of lon9 chambered
tombs amund the Btack Moutains, Cenlral WaJes", Semiotfcs
percepção do espaço físico como dado expressar ideologias, imaginários e humanas e o seu espaço e, no caso ofLsndscap9: Archaeologyofmind, BAR, Intemational Serias,
inalterável se articulam com alterações crenças, mas também sensações e concreto da Arqueologia, sobre alarma 661, p. 17-30.
RENFREW, Cofin, (1994), "Towards a cognitiva archaeology", The
nas pcrcepçóes da ordem social como iden tidades' . como essa relação se expressa anclente mind, élements of cognitiv6 archaeo/ogy, (CoMn
ordem natural, onde os lugares ocupados '}1 paisagem mo/dada e moldando as pessoas materialmente. O seu carácter Renfrew e Ezra ZUbrow, eds.), New Directlons in Archaeology,
Cambridge, CUP, p.3-12,
são lugares naturais, não sujeitos a que a habitam, torna-se um hauco de científico está dependente dos corpos SACK, R.D., (1980), Conceptlons of space In social thought: a
contestação, resultado de uma fixação memórias culturais, uma." mais c. livú < teóricos e metodologias que se criarem gsographlc perspectiva, London, Macmillan.
lHOMAS, Jullan, (1996), rime, Cu/lureand Idontlty. An InterpreUve
120 nos estádios términos dos processos outras mais residuais" (CR'\NG; 1998: 23). para a formulação de hipóteses, criando archaeo/ogy, Lendon, Reuttedge. 121
(neste caso sociais). A testabilidade As emoções e sensaçôes (medos, condições para a sua testabilidade. Se esta ZUBROW, Ezra, (1994), "Knawledge representation and
archaeology: a cognitiva example usig GIS", ThB anelente
poderá passar pela determinação de inseguranças, desorientações, etc.) que se deve fazer numa perspectiva de minei. élemenfs 01 cognitive arehseology, (Colin Renfrew e
confirmação ou, à maneira popperiana, EzraZUbrow, _), New DI_ons in Arohaeology, CamlJrldge,
CUP,p, 107-118.

~ Uma teorização sobre as ques1ões da visibilidade podera ser encontrada em CRIADO BOADO. 1993a e 1993b j{) Há que não esquecer que os grupos de identídade são múttíplos e se envolvem numa complexa rede de interligações. O

indivíduo pode participar em diferentes grupos e a sua integração num deles fica dependente dos critérios que elegemos para a

oAs identidades a que me refiro neste texto são ldentídades co!ectivas. definição de "membro".

tema} Conceitos

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