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MOVIMENTO PELA IGUALDADE NO ACESSO AO CASAMENTO

CIVIL (MPI)

31 de Maio de 2009

Decidi juntar-me ao MPI por duas razões: por convicção e por dever cívico,
razões que andam de mãos dadas. Tenho a convicção profunda de que há
uma injustiça, uma imoralidade, grave, na sociedade portuguesa, a que o
Direito civil português tristemente dá cobertura e a que urge pôr fim, para
bem não apenas dos visados, mas para bem de todos. Tenho a convicção
profunda de que um dos factores pelos quais se mede o estádio de
civilidade de um país é a forma como o mesmo trata as minorias, pelo que
acabar com o triste imperativo que resulta de uma lei datada pela
homofobia e que podemos traduzir no mandamento dirigido às pessoas do
mesmo sexo vocês não podem casar é melhorar a sociedade, e do contrato
social de que todos fazemos parte. Trata-se de criar uma sociedade mais
justa, mais livre e mais solidária, imperativos de um Estado de direito.

Decidi juntar-me ao MPI por dever cívico, porque aprendi desde cedo que
nós não somos sem o outro, pelo que não podemos continuar a viver as
nossas vidas como se uma massa anónima de murmúrios sem nome não
nos incomodasse, eles, aquelas pessoas, que por acaso têm nome, existem,
são pessoas, pessoas só, às vezes pessoas sós, na sua condição, com direito
a serem pessoas por inteiro na sua dignidade, o primeiro princípio
constitucional, pessoas a quem a lei, em nome de preconceitos hoje
inadmissíveis, quer do ponto de vista constitucional, quer do ponto de vista
moral, quer ainda do ponto de vista político, afasta do acesso a um bem, a
um direito fundamental, o casamento, que tem consequências práticas e que
tem um peso simbólico de inclusão do outro na normalidade dos conceitos.

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Este movimento é ainda muito importante porque, insisto, está em causa
um direito fundamental, pelo que a questão devia ser simples de resolver,
na senda da Holanda, da Bélgica, do Canadá, da Espanha, da Noruega, da
Suécia, da África do Sul, ou dos cinco Estados dos EUA que já nos
tomaram a dianteira, a questão é fácil de colocar e tem uma resposta muito
clara se a virmos na sua simplicidade. No entanto, sabemos que há quem
não entenda que é mais importante discutir a imoralidade do mandamento
tu não podes casar do que um alegado conceito histórico de casamento
aliado à procriação, ou as alegadas consequências ditas inevitáveis da nossa
proposta como a poligamia ou mesmo - porque não? -o casamento entre
pais e filhos, entre irmãos, eu diria até com animais, os argumentos
terroristas que servem para desconversar e que são cegos a experiências
como a da nossa vizinha Espanha onde o mundo não acabou, antes pelo
contrário, onde o mundo continuou melhor, mais justo, mais solidário. Está
aqui em causa uma questão identitária, ao contrário desses devaneios
terroristas. Ninguém cometeu um erro, ninguém é, como se presume, um
erro. Os homossexuais são pessoas por inteiro, sãs, como outras quaisquer.

Hoje, evidentemente, seria um atentado à autonomia individual pretender-


se que o casamento tem por finalidade a procriação: só tem filhos quem
quer, só tem filhos quem pode, casa quem quer. Mas é importante perceber
que está em causa o acesso ao casamento civil, , instituição estadual com
século e meio, alheia a legítimas concepções religiosas ou outras. Em todo
o caso, como curiosamente explicam os Professores Pires de Lima e
Antunes Varela, o que há século e meio esteve na génese da proibição do
acesso ao casamento civil por parte de pessoas do mesmo sexo foi
entender-se não ser possível a comunhão plena de vida entre essas pessoas .
Isto é homofobia pura. Pura e simples. Ignorante e cega à realidade de
milhares de casais que existem, que fazem as suas vidas, que pagam

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impostos, mas que não são nós, são eles, são aqueles.

Não se pretende impor qualquer visão do casamento às pessoas de sexo


diferente; mesmo que o casamento tivesse por finalidade a procriação, que
não tem, não impediria o casamento de pessoas que não podem ter filhos; o
facto é que a lei nega toda a especialidade do casamento sem filhos seja
porque motivo for, isto é, nada há, em termos de regime, de especial nessa
circunstância; e mais importante, esta desconversa da procriação é uma
visão utilitarista das pessoas hoje, como já referi, inaceitável à luz da
autonomia individual. De resto, alguém no seu perfeito juízo pode supor
que mudando o casamento as pessoas vão ter menos filhos? A verdade é
que se confunde casamento com filiação. E a verdade é que se esquece que
os homossexuais têm filhos.

Hoje pedimos que se tome consciência de que os direitos fundamentais,


enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, garantem ao indivíduo
um espaço de não intervenção alheia, querendo aqui chamar-se a esse
espaço uma moral colectiva maioritária, ditada ou votada, decidida ou
eleita, que lhe não permitisse esse acontecimento único que é ser-se, em
liberdade, o que se é. Por isso mesmo, contra direitos fundamentais não
valem, sem mais, maiorias, sob pena de se funcionalizarem os primeiros; é
por isso, também, que os direitos fundamentais, sendo a asserção mais
efectiva nas liberdades e nas competências, como é o caso, não admitem e
devem resistir ao discurso do que diz a maioria sobre o comportamento a
ele associado, ou do que é, conjunturalmente, a vontade parlamentar. Mais:
é ainda pelo que se vem afirmando que as liberdades e competências,
fortemente ligadas à dignidade das pessoas, não têm de esperar pelo
consenso social para terem plena efectividade. Nesse sentido aponta-se
uma vocação contramaioritária dos direitos fundamentais. Quer-se com este

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passo recordar que numa ordem constitucional fundada na dignidade da
pessoa, à qual o Estado se subordina, quando um direito expressa
claramente uma liberdade ou uma competência que inscrevem o titular num
universo de seres livres e iguais em dignidade, só por razões muito
ponderosas, excepcionais e com claro apoio na Constituição pode o
legislador afastar uma categoria de pessoas daquele direito.

É, pois, absolutamente inadmissível qualquer tentação referendária sobre o


direito de acesso ao casamento civil por parte das pessoas do mesmo sexo.
Isso seria totalitário.

Pura e simplesmente, à luz do que referi, não é moral ou juridicamente


aceitável retirar um bem a um grupo de pessoas sem razões para isso. E não
há razões para isso. Razões, amigos, razões. Não há um interesse
constitucional ou moral contrário a ponderar com vista a um resultado
diferente do que aqui defendemos. Não há.

A sociedade prefere pensar que os homossexuais podem existir desde que


não chateiem, desde que não apareçam nessa condição, desde que se
disfarcem. Ignoram o sofrimento dessa condição de invisibilidade e não
fazem o exercício sobre si próprios. Experimentem. Gostava de propor o
exercício a um homem ou a uma mulher heterossexual casados.
Experimentem imaginar o momento em que se apaixonaram. Não poderem
expressar publicamente o vosso afecto. Eventualmente a vossa família não
vos aceitar. Condicionarem cada gesto de expressão de um sentimento.
Num momento de crise viverem a mesma apenas com quem compreenda
que o amor que sentem não é aceite por parte da sociedade. Quererem
casar, exteriorizar a vossa relação perante terceiros, aceder a esse bem
jurídico e social e esbarrarem com uma lei que vos diz que vocês são

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anormais para o efeito. Experimentem o exercício.

A questão é que o Direito vai à frente no derrubar das discriminações em


matéria de direitos fundamentais e não espera por consensos sociais. A não
ser assim, não tinha acabado a escravatura, não se tinha consagrado o
sufrágio feminino, não tinha permitido o casamento inter-racial, que ainda
nos anos sessenta, nos EUA, conhecia sentenças que temiam pelos filhos de
uma tal aberração, e o próprio casamento não teria mudado radicalmente
nos últimos cem anos no sentido da igualdade entre homens e mulheres e
da facilitação do divórcio. Deixou de ser casamento? Não. Tal como na
vizinha Espanha, quando tivermos a decência de acabar com o
mandamento tu não podes casar, o casamento dos católicos continua
incólume, cada pessoa casa com a sua concepção intocável, simplesmente
há mais um grupo de pessoas com acesso a esse bem, pessoas silenciadas
anos e anos, criminalizadas até há trinta anos, tidas por doentes até há vinte
anos, mortas por regimes totalitários, que foram de humilhação em
humilhação levantando a cabeça até a momentos como o de hoje onde
todos possamos parar de dizer eles e possamos de uma vez por todas dizer
nós.

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