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Foi numa pequena área florestal, uma das últimas nos

arredores da cidade de São Paulo, que o consultor


Dick Schoenmaker descobriu como a crise mundial de
água afetava sua vida. Na ocasião, ele administrava o
Centro Artemísia, um espaço dedicado a cursos e
terapias alternativas. Há na propriedade um trecho de
mata preservada, com barulho de pássaros, insetos e
até um ou outro macaco bugio, além do zunzunzum
constante da cidade. Um amigo dele, que trabalha na
Sabesp, a companhia de abastecimento paulista, SECA NO SUDESTE?
mostrou-lhe fotos aéreas da região. Schoenmaker diz Terra rachada nas margens do Rio
que se recorda até hoje das imagens. As fotos exibiam Tietê, em São Paulo. Em cinco
uma das principais represas de São Paulo, de onde saía anos, a cidade deve consumir
a água que ele bebia, cercada por favelas e casas. Em mais água do que os rios e as
apenas alguns trechos das margens da represa ainda represas da região conseguem
havia mata. “Foi aí que eu entendi”, diz. Vendo as fornecer
fotos dos mananciais espremidos no meio da mancha
urbana, ficava evidente a importância de preservar as últimas nascentes. “Se não houver
mais floresta, de onde vai brotar a água que alimenta a represa?”

A preocupação de Schoenmaker reflete um problema global. Segundo as projeções mais


recentes da ONU, no ritmo de uso e do crescimento populacional, nos próximos 30 anos,
a quantidade de água disponível por pessoa estará reduzida a 20% do que temos hoje.
Cerca de 480 milhões de pessoas são hoje alimentadas com grãos produzidos com
extração excessiva dos aqüíferos, segundo a pesquisadora americana Sandra Postel,
diretora da ONG Projeto de Políticas Globais para Água e membro do Instituto
Worldwatch. “Se decidíssemos, de um dia para o outro, explorar os lençóis freáticos de
forma sustentável, a colheita mundial de grãos cairia 8%”, diz ela.

O mundo está descobrindo que a escassez de água não é uma questão exclusiva de quem
mora em regiões desérticas. Guerras por fontes de energia – como o petróleo – já se
tornaram corriqueiras. Neste século, a água está se tornando a questão central por trás dos
grandes conflitos no planeta. E isso, embora soe exótico para a maioria dos brasileiros,
deveria nos preocupar também. “No Brasil, os conflitos entre usuários de diferentes
recursos hídricos estão aumentando”, afirma um novo estudo sobre a crise da água,
divulgado dias atrás pela ONU, voltado especificamente para os países da Bacia do Rio
da Prata (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia).

A China está pagando pelo descuido O Brasil é um país privilegiado num planeta
ambiental. Cerca de 70% dos rios sedento. Tem cerca de 14% de toda a água doce
estão poluídos e 320 milhões de que circula pela superfície da Terra. Mas a
pessoas bebem água contaminada distribuição dessa abundância é desigual. Cerca
de 80% da água disponível está na Bacia Amazônica, daí a preocupação dos especialistas
da ONU com a Bacia do Prata. A maior parte da população – e da atividade econômica –
do país está em grandes centros urbanos dessa bacia, onde a oferta de líquido potável é
cada vez mais escassa. A maior cidade do país, São Paulo, está perto do limite. O volume
de água de rios e represas disponível hoje é praticamente igual à demanda da população.
A metrópole, de certa forma, já importa água. As represas da região metropolitana,
abastecidas por nascentes como a do Centro Artemísia, só dão conta de metade do
consumo da cidade. O resto é bombeado da Bacia dos Rios Piracicaba, Capivari e
Jundiaí, cujas águas naturalmente correriam pelo interior do Estado, ao largo da cidade.

De acordo com Dilma Pena, secretária de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo,
é preciso buscar novas fontes de água para a cidade. “Caso contrário, em cinco anos
faltará água na região”, diz ela. Um dos projetos do gabinete de Dilma é ampliar a
estação que vai buscar água explorana região do Alto Rio Tietê, a 36 quilômetros da
capital, a última fonte possível para os paulistanos. Se o consumo continuar crescendo no
ritmo atual, será preciso buscar mais água até 2025. “Ela deverá ser captada no interior
ou até em outros Estados, o que torna tudo mais caro”,
diz Dilma.

A disputa pela água no Brasil já vai muito além dos


casos conhecidos no Agreste nordestino. O estudo da
ONU menciona conflitos pelo uso da água dos rios
Paraíba do Sul, Piracicaba, Capivari – na Região
Sudeste. “Na Região Sul, as áreas de conflito mais
visível resultam da demanda para irrigar campos de
arroz e da degradação da qualidade da água,
especialmente nas áreas de criação intensiva de gado”,
diz o relatório. A disputa afeta cidades como Santo LÍQUIDO
Antônio da Patrulha, Gravataí, Alvorada e João Guimarães, da Boticário, em
Cachoeirinha, na região metropolitana de Porto uma nascente de São Paulo. Ele
Alegre. A área, que reúne 650 mil habitantes, é tenta convencer os proprietários a
abastecida pelo Rio Jacuí. No verão, a estiagem faz a preservar os mananciais.
vazão do rio cair 40%. Plantadores de arroz, situados
acima dos pontos de captação de água para as cidades, aumentam o bombeamento para
irrigar suas lavouras. O resultado é que as cidades ficam sem água. “Nos anos mais
críticos, o Ministério Público precisa intervir para garantir a prioridade da população”,
afirma o diretor do Departamento Municipal de Água e Esgoto, Flavio Presser.
Os países debatem hoje a melhor forma de gerenciar a água, um recurso cada vez mais
escasso. A tendência mundial é recorrer à iniciativa privada. Em 1980, o mundo tinha 12
milhões de domicílios atendidos por concessionárias privadas. Hoje, são 600 milhões. A
Inglaterra, a França e o Chile foram pioneiros. Quase todo o negócio mundial de gestão
de água está nas mãos de duas empresas francesas. A maior delas, a Veolia, faturou US$
13 bilhões no ano passado. A segunda, a Suez, ganhou US$ 7,5 bilhões em negócios com
água. O setor apresenta grandes oportunidades. O banco de investimentos JP Morgan
calcula que as concessões municipais de água geraram US$ 465 bilhões em 2006. Até
2015, segundo o JP Morgan, o negócio deverá envolver US$ 1,2 trilhão.

Os defensores da privatização afirmam que só ela é capaz de gerar recursos para a


exploração e gestão da água. Trata-se de um fator essencial no caso de países como o
Brasil, onde o desafio ainda é garantir água tratada para todos. Hoje, 10,7% dos
domicílios do país não têm água encanada e 23,3% não contam com rede de esgotos. O
Ministério das Cidades estima que seria preciso investir R$ 178 bilhões para que os
brasileiros tenham água e esgoto até 2020. O modelo de privatização ainda precisa de
ajustes. Há seis anos, o governo do Amazonas licenciou para a Suez o abastecimento de
Manaus. O serviço ainda está longe do ideal. Cerca de 15% da população não recebe
água em casa e 230 mil pessoas recebem água menos de 12 horas por dia. Mais de 90%
da população não tem tratamento de esgoto. E a tarifa é considerada elevada.

Privatizando ou não o serviço de fornecimento, a escassez crescente tornará inevitável


estabelecer um preço para a água que vem dos cursos naturais, como rios e lagos. No
Brasil, há iniciativas como o Comitê de Bacias do Rio Paraíba do Sul, uma região que
concentra indústrias entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Há quatro anos, as empresas
instaladas na região pagam para tirar água do rio e para devolvê-la à rede de esgoto.
Quanto mais poluída estiver a água, maior o preço. Isso incentivou a implantação de
métodos mais eficientes para usar o recurso, diminuindo o consumo e aumentando o
índice de reutilização de água. “O objetivo de cobrar pela captação, pelo consumo e pelo
lançamento da água não é arrecadar fundos para resolver o saneamento, mas criar uma
cultura em relação a esse tema”, diz a secretária-executiva do Comitê da Bacia do Rio
Paraíba do Sul, Maria Aparecida Vargas.

Cuidar da gestão da água é essencial para garantir os recursos necessários ao crescimento


econômico. Basta analisar a experiência da China. O país, que resgatou milhões de
pessoas da miséria nos últimos anos, agora enfrenta os limites de seus recursos hídricos.
Para sustentar a superpopulação de 1,3 bilhão de habitantes e o consumo crescente das
indústrias, a China usa água de forma insustentável – e paga o preço. Os lençóis
subterrâneos da capital, Pequim, diminuem 2 metros por ano. Um terço dos poços da
região metropolitana já secou. A agricultura também está comprometida. Na região que
se estende do norte de Xangai ao norte de Pequim, responsável pela produção de 40% dos
grãos chineses, o lençol freático cai a uma taxa média de 1,5 metro por ano. Os
fazendeiros do norte enfrentam perdas tanto pela exaustão dos aqüíferos quanto pelo
desvio da água para cidades e indústrias. A demanda levou a China a construir canais
para transpor as águas do Rio Yang-Tsé para o Rio Amarelo. A obra, de US$ 60 bilhões,
é considerada uma das maiores do mundo.
Por que precisamos economizar água

Fonte: FAO
risco 1
Índia Mulheres tiram água de um poço. A escassez
do país deve piorar com o aquecimento global

risco 2
África Homens retiram água do Lago Chade. O lago
tem hoje menos de 10% de seu tamanho original

risco 3
Austrália A pior estiagem dos últimos cem anos
afeta a agricultura. O país estuda reciclar água de
esgotos

risco 4
EUA Trabalhador ajusta sistema de irrigação em
Calipatria, na Califórnia. O Estado é um dos que
mais utilizam água de lençóis

A China também paga pela poluição de seus poucos


recursos hídricos. Estima-se que 70% dos rios locais
estejam poluídos. Cerca de 96% da população rural
despeja seu lixo a céu aberto. A sujeira é carregada
pelas chuvas, elevando o número de doenças. Hoje,
320 milhões de chineses bebem água com detritos
animais e altas doses de arsênio – causador de
problemas na pele, cânceres e doenças circulatórias –,
de acordo com a organização não-governamental
Amigos da Natureza, com sede em Pequim. Em A estudante Jéssica abre uma
novembro do ano passado, os habitantes de Harbin, torneira com um adesivo. A gota
capital da província de Heilongjiang, no norte do país, de papel é parte de uma
descobriram isso de forma dramática. O Rio Songhua, campanha que ela e seus amigos
que corta a cidade, amanheceu coberto por uma criaram em Toledo, no Paraná
mancha de substâncias químicas cancerígenas com 80 quilômetros quadrados. O despejo
no Songhua foi causado pela explosão de uma central petroquímica. Os 3,8 milhões de
habitantes de Harbin ficaram cinco dias sem água. “O câncer acaba de assumir a
liderança no ranking de causas de morte na China. E a principal razão é a poluição do ar e
da água”, diz Yanfeng Wu, da Academia Chinesa de Ciências Médicas. “Na China,
apenas o tabagismo não consegue explicar a escalada da doença. A principal razão é a
poluição do ar e da água.”
Na segunda estrela emergente da globalização, a Índia, o combate à pobreza é
prejudicado pela escassez de água. Um sexto da produção indiana de alimentos só é
possível graças ao bombeamento da água do lençol subterrâneo, que se esgota
rapidamente. No Estado de Tamil Nadu, mais de um terço dos aqüíferos são explorados
de forma insustentável. Mais água é retirada deles do que reposta pelo ritmo de recarga
natural das chuvas. Em Punjab, uma região agrícola altamente produtiva, considerada o
celeiro da Índia, os lençóis freáticos caem à velocidade de 1 metro por ano. Segundo
estimativas do Banco Mundial, até 2050 a demanda de água na Índia ultrapassará os
suprimentos disponíveis.

A falta de água também explica algumas tragédias do continente africano. Quem vive em
países como Gâmbia, Mali ou Somália tem menos água por dia que a usada por um
americano para escovar os dentes. Na Líbia, as reservas subterrâneas da costa do
mediterrâneo, onde ficam as principais cidades, como Trípoli, ficaram salobras. O país,
financiado pelo petróleo, está gastando US$ 25 bilhões para construir um rio artificial de
1.000 quilômetros de extensão, para transferir água de depósitos subterrâneos ao interior
do continente. Essa fonte não dará conta do consumo atual para sempre e deverá secar
em, no máximo, 50 anos.

A situação do Brasil não se compara à da África e está longe da escassez da China ou da


Índia. Mas o país não está em situação confortável (leia o mapa). Nosso nível de
consumo pode levar, em algumas décadas, a situações que afetem nosso estilo de vida.
Entender que vivemos escassez de água é difícil para um brasileiro. Aprendemos na
escola que o Brasil tem a maior bacia hidrográfica do planeta e foi abençoado com
chuvas tropicais abundantes. Muitos imaginam que o Brasil um dia poderia vender água
para o mundo. Mas o país mal dá conta de abastecer sua população. Sem uma mudança
nessa auto-imagem, é complicado estimular o uso racional do recurso.

“Tem gente que diz que está pagando pela água e, por isso, pode fazer o que quiser com
ela”, afirma Luzia Helena Almeida, assessora de Educação Ambiental da Sabesp. “Mas
os consumidores pagam apenas o custo de tratamento e distribuição.” A taxa de água não
reflete sua escassez nos rios.

Precisamos começar a agir agora para não termos problemas no futuro. Isso envolve três
estratégias de ação. A primeira é usar a água de forma eficiente. Isso não implica
necessariamente abrir mão de confortos, como um mergulho de piscina. O segredo é
adotar tecnologias mais eficazes. Quando descobriu isso, há três anos, o empresário
paulista Luiz Fernando Lucho do Valle decidiu mudar o foco de seus negócios. Fundou a
incorporadora Esfera e passou a construir condomínios residenciais com cuidados extras
no uso da água. Num dos lançamentos, no Rio de Janeiro, a água do chuveiro e da pia dos
banheiros é tratada e reutilizada nos vasos. A água coletada da chuva é usada para irrigar
os jardins. Os chuveiros também têm redutores de vazão. As torneiras só liberam água
quando você aperta um botão. O sistema, chamado temporizador, é cada vez mais comum
em sanitários públicos, mas não nas casas. “A água nunca representou uma preocupação
para as pessoas. Seu valor sempre foi baixo e o volume sempre foi grande”, diz Valle.
Segundo o empresário, esses cuidados podem reduzir em até 30% a taxa do condomínio.
Alguns equipamentos simples têm grande poder para reduzir o desperdício de água. O
eletricista Francisco de Assis Marinho, de São Paulo, instalou em sua casa uma nova
válvula de descarga, com dois botões. Um, para dejetos líquidos, libera metade da água
do reservatório. O outro, para os sólidos, despeja a carga total. “Nunca tinha visto
nenhuma parecida, mas resolvi arriscar”, diz. É comum encontrar esse tipo de produto na
Europa. No Brasil, ainda custa 30% a mais que os modelos comuns. Mas o retorno do
investimento pode ser rápido. Marinho diz que já viu diferença na primeira conta de
água: “Minha média de consumo caiu um terço”.

A segunda linha de ação – talvez a mais difícil – envolve a mudança de hábitos. As


campanhas de economia de água freqüentemente pregam medidas como banhos mais
curtos, lavagem de roupa com a carga máxima da lavadora ou escovar os dentes com a
torneira fechada. O difícil é pôr isso em prática. A estudante Jéssica Renata de Souza, de
16 anos, de Toledo, no Paraná, teve uma idéia para ajudar. Ela faz parte do Ecoclube,
uma espécie de clube de escoteiros ambientais que surgiu na Argentina e vem crescendo
no país. Com os amigos do Ecoclube, Jéssica inventou uma nova campanha. Sua turma
criou um adesivo estimulando o cuidado com a água: “Cuide bem da água porque ela
pode acabar”. Passaram de porta em porta nas casas de um bairro da cidade. Das 40
famílias visitadas, 28 toparam participar do desafio de economizar água. “A gente dava
um objetivo bem simples”, diz Jéssica. “Era só escolher a torneira que mais gasta água na
casa, colar nela o adesivo da gotinha e tentar controlar o consumo.”

A terceira estratégia para evitar uma futura escassez de água no Brasil é algo que parece
evidente: parar de matar as nascentes. O desmatamento e a pavimentação do solo, para
construir casas e estradas, estão secando os mananciais de água pura que alimentam rios e
lagos. Esse é o drama de São Paulo, uma cidade cuja periferia cresce com favelas que
ocupam irregularmente o último cinturão verde. É por isso que o despertar ambiental do
consultor Dick Schoenmaker foi tão importante. Ele deu o primeiro passo de uma
iniciativa promissora para deter a devastação nos mananciais paulistas: pagar para os
proprietários das terras preservarem as áreas de nascentes. Schoenmaker batizou a
iniciativa de Oásis, as ilhas de vegetação, isoladas no meio da cidade, que ele vira na foto
aérea. Desenvolvido pela Fundação Boticário, o projeto também ganhou US$ 400 mil da
Fundação Mitsubishi.

Um dos desafios era atribuir um preço para o manancial. Quanto vale preservar 1 hectare
de nascentes em São Paulo? Até R$ 370 por ano, segundo os cálculos dos técnicos da
Boticário. “Para chegar a esse valor, levamos em consideração quanto custaria para obter
água se a floresta não estivesse preservada”, diz o engenheiro florestal João Guimarães,
da Boticário. Captar e distribuir água de uma represa limpa é 200 vezes mais barato que
fazer o mesmo com a água poluída que escorre de bairros residenciais ou zonas
industriais. “Esse incentivo econômico é nossa esperança para desestimular quem acha
que é melhor cortar a floresta para criar um loteamento clandestino”, diz Guimarães. Ele
e Schoenmaker tentam evitar que os sitiantes de São Paulo destruam as nascentes da água
que, por ironia, os próprios sitiantes bebem – o retrato fiel de um país que ainda vive a
ilusão da abundância.
Por que não sobra água no Brasil
O Brasil tem 14% da água doce do planeta, mas as bacias hidrográficas são as mais
populosas

Fonte: Agência Nacional de Água

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