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1 Referencial de Inércia
Até agora assumimos a existência de um referencial parado, no qual fomos
baseando a nossa descrição científica do Universo. Mas, se nos lembrarmos
que todo o movimento é relativo a um referencial, somos levados a perguntar:
«Este nosso referencial está parado em relação a quê?»
Pela Lei Fundamental de Newton (F~ = m~a) e pela Lei da Inércia sabemos
que a velocidade uniforme e a velocidade nula são indistinguíveis em Física.
Assim, a questão não é a de se encontrar um referencial em repouso, mas
sim um referencial com aceleração nula (~a = ~0), pois isso implica que o
referencial tem velocidade uniforme (nula ou não). Sabemos que estamos num
referencial desse tipo se nele for válida a Lei da Inércia, isto é, se um corpo
não actuado por forças, ou actuado por forças de resultante nula, mantiver a
sua velocidade constante. Estamos então à procura de Referenciais Inerciais,
isto é, de referenciais onde é válida a Lei da Inércia.
Para muitas das experiências que se fazem, pode considerar-se a Terra
como um bom referencial de inércia. No entanto, a Terra roda sobre si mesma
e à volta do Sol. Tem, portanto, um movimento acelerado (velocidade não
constante) nem relação ao Sol. Experiências de grande escala, que envolvam
distâncias muito longas e massas muito grandes, não podem considerar a
Terra como um referencial inercial.
Podia pensar-se no Sol como alternativa, mas este também roda em torno
do centro da galáxia. A galáxia, por sua vez, rodopia numa dança cósmica
com outras galáxias do seu grupo local, este grupo local move-se acelerada-
mente em relação a outros grupos de galáxias, e assim por diante. . . Rapida-
mente notamos que não existe na Natureza nenhum referencial de inércia. O
que temos são referenciais acelerados que são aproximadamente de inércia,
dependendo da experiência que queremos fazer.
Como se transformam as leis físicas quando passamos de um referencial
de inércia para outro? É isso que os próximos parágrafos vão explicar.
2 Relatividade Clássica
Foi Galileu quem formulou pela primeira vez o problema da descrição do
mesmo fenómeno em diferentes referenciais. Aquilo que descobriu foi dar ori-
gem mais tarde à Relatividade Clássica, com as Equações de Transformação
de Galileu. Vamos apresentar o problema da transformação de Galileu e a
sua solução numa linguagem mais moderna e precisa.
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2.1 Transformação de Galileu
Um acontecimento é algo localizado numa zona do espaço tão pequena que
se pode considerar pontual, e num intervalo de tempo tão curto que se pode
considerar instantâneo. Assim, um acontecimento A é definido por quatro
coordenadas: as três do espaço, mais uma do tempo:
v→S'S
yAS yAS' A
r→AS'
S'
r
→ xAS'
S'S
r→AS
S xAS
para a posição:
~rAS = ~rAS 0 + ~rS 0 S = ~rAS 0 + ~vS 0 S tA ; (2)
para a velocidade:
~vAS = ~vAS 0 + ~vS 0 S . (3)
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Leia-se «velocidade de S 0 em relação a S». No geral, ABC representa a grandeza A
do sistema B em relação ao referencial C.
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Portanto, o tempo é igual em todos os referenciais. Relógios em movimento
marcam o mesmo que relógios em repouso. A posição é transformada so-
mando a posição do referencial em movimento, e a velocidade é transformada
da mesma forma, somando a velocidade do referencial em movimento.
O exemplo seguinte ilustra a transformação de Galileu.
Portanto,
vAS = vAS 0 + vS 0 S = 3 + 60 = 63 Km/h.
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Logo, podemos escrever:
`S = |~rBS − ~rAS |
= |~rBS 0 + ~vS 0 S tB − ~rAS 0 − ~vS 0 S tA |
= |~rBS 0 − ~rAS 0 + ~vS 0 S ∆t|. (4)
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S
O1 O2 O3 O4
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lago ilustrado na Figura 2, substituindo a água pelo éter, as ondas no lago por
ondas de luz no éter e a pessoa na ponte atirando pedrinhas por uma fonte
na Terra gerando ondas electromagnéticas. Esperava-se notar uma diferente
velocidade de propagação, por a Terra se estar a deslocar em relação ao éter,
como indicado na Equação 5.
O resultado foi chocante: não se notou nenhuma alteração da velocidade!
A luz propaga-se com a mesma velocidade em qualquer referencial!
A consequência imediata deste resultado foi eliminar-se a hipótese do éter,
o que muito agradou aos cientistas, que nunca tinham visto com bons olhos
esta substância com propriedades tão estranhas.
Mas este resultado, unido ao facto de as equações de Maxwell não serem
invariantes com a transformação de Galileu, mostrou que algo estava funda-
mentalmente errado, ou na teoria electromagnética, ou na visão do mundo
que originou a relatividade de Galileu. Como ninguém queria acreditar na
última possibilidade, houve uma multiplicação de esforços para descobrir o
que estaria errado no electromagnetismo e, em particular, nas equações de
Maxwell. Esses esforços foram todos em vão até que, em 1905, Einstein con-
seguiu resolver o assunto, mostrando que era a visão do mundo clássica que
estava errada e que tinha que ser alterada.
3 Relatividade Restrita
3.1 Transformação de Lorentz
A maneira como Einstein resolveu o problema anterior foi brilhantemente
simples. Ele definiu dois postulados e com eles desenvolveu uma teoria da
relatividade que é válida tanto para a radiação electromagnética como para
os fenómenos do dia-a-dia. Os postulados de Einstein foram:
• Todos os referenciais de inércia são equivalentes.
• A radiação electromagnética propaga-se com a mesma velocidade em
todos os referenciais de inércia.
Partindo destes dois postulados, ele deduziu as equações de uma nova
transformação, designada por Transformação de Lorentz,2 válida tanto todos
os fenómenos, inclusive os da propagação das ondas electromagnéticas.
Vamos apresentar a transformação de Lorentz de uma forma simplificada,
onde todos os movimentos são no eixo dos x (ver Figura 3). Conseguimos
2
Esta transformação foi descoberta por vários cientistas em alturas diferentes e de forma
independente. Em particular, foi descoberta por Lorentz em 1904 e por Einstein em 1905,
mas só este último se atreveu a tirar todas as implicações.
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assim evitar complicações matemáticas desnecessárias, sem perder a genera-
lidade dos resultados. Nestas condições, a transformação é:
para o tempo:
v
tAS 0 + Sc20 S xAS 0
tAS = q 2
; (6)
vS 0S
1 − c2
v→S'S
A
S S'
8
saber qual o valor de vAS 0 . Da Equação 8 resulta:
vAS 0 + vS 0 S vAS 0 + vS 0 S
vAS = vAS 0 vS 0 S ⇐⇒ c = v v
1+ c2
1 + ASc0 2 S0 S
vAS 0 vS 0 S
⇐⇒ c 1 + = vAS 0 + vS 0 S
c2
vAS 0 vS 0 S
⇐⇒ c + = vAS 0 + vS 0 S
c
⇐⇒ c2 + vAS 0 vS 0 S = c vAS 0 + c vS 0 S
⇐⇒ vAS 0 vS 0 S − c vAS 0 = c vS 0 S − c2
⇐⇒ vAS 0 (vS 0 S − c) = c(vS 0 S − c)
⇐⇒ vAS 0 = c.
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3.2 Limite de Velocidade
A consequência mais imediata da transformação de Lorentz é a impossi-
bilidade de existirem velocidades superiores a c. Nenhum acontecimento,
partícula, onda ou informação se pode deslocar mais rápido que a velocidade
da luz no vazio, como se mostra nos denominadores das Equações 6–8.
ou seja,
∆tS 0
∆tS = q 2
. (9)
vS 0S
1− c2
Exemplo 4 Uma nave parte para uma viagem espacial. Viaja durante esse tempo
à velocidade de 0,8c. Quando tiverem passado 10 anos para o astronauta na nave,
quanto tempo terá passado no planeta de onde partiu?
Neste caso, a nave é o referencial em movimento S 0 e o planeta de partida é
o referencial em repouso S. O intervalo de tempo dentro da nave corresponde a
∆tS 0 = 10 anos e o tempo que, entretanto, passou no planeta corresponde a ∆tS ,
que é o que se pretende saber. Visto vS 0 S = 0,8c, podemos escrever, usando a
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Equação 9:
10 10
∆tS = q =q
(0,8c)2 0,64c2
1− c2
1− c2
10 10
=√ =√
1 − 0,64 0,36
10
= = 16,7 anos.
0,6
Isto é, na nave passaram-se 10 anos mas no planeta de origem decorreram 16,7
anos.
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entre posições, isto é, com distâncias ou comprimentos.
Como se medem distâncias e comprimentos? Para se evitarem parado-
xos e situações absurdas em relatividade, é necessário definir com muito
cuidado estes conceitos. Mais uma vez, foi Einstein quem ofereceu uma solu-
ção brilhantemente simples e poderosa: comprimentos e distâncias medem-se
através de eventos simultâneos.
Imaginemos estamos numa estação a ver um combóio passar e que que-
remos medir o comprimento de uma das carruagens. A solução proposta por
Einstein foi: colocam-se detectores ao longo de toda a linha; cada detector
tem um relógio, e todos os relógios estão certos entre si; num determinado
instante, um detector assinala a chegada da frente da carruagem e, simul-
taneamente, um outro detector assinala a passagem do fim da carruagem;
subtrai-se as posições destes dois detectores; o resultado é o comprimento da
carruagem em movimento, medido no referencial em repouso.
Matematicamente, temos dois acontecimentos distintos: o que marca a
chegada da frente da carruagem, que podemos chamar A, e o que assinala
a passagem do fim da carruagem, que chamaremos B. No referencial em
repouso S, a distância entre xAS e xBS dá-nos o comprimento `S da carru-
agem em relação ao referencial S. De notar que estes acontecimentos são
simultâneos em S, portanto tAS = tBS , mas não o são necessariamente em
S 0 , portanto tAS 0 6= tBS 0 . Este ponto é uma diferença radical entre a trans-
formação de Lorentz e a de Galileu: eventos simultâneos num referencial de
inércia podem não o ser noutro referencial de inércia. Iremos voltar a este
assunto na Secção 3.6, página 17.
Os passageiros dentro da carruagem medem o comprimento desta usando
réguas da maneira usual, e chegam ao valor de `S 0 , que se designa por compri-
mento em repouso ou comprimento próprio, pois é o comprimento medido no
referencial associado ao objecto. Como se relacionam as medidas `S e `S 0 ? Na
relatividade clássica deveriam ser iguais, mas na relatividade restrita nada é
o que parece, por isso teremos que fazer contas cuidadosas.
Da transformação de Lorentz para as posições (Equação 7) temos:
xAS − vS 0 S tAS
xAS 0 = q
v2
1 − Sc20 S
e
xBS − vS 0 S tBS
xBS 0 = q 2
.
vS 0S
1 − c2
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Portanto, podemos escrever:
`S 0 = xBS 0 − xAS 0
xBS − vS 0 S tBS xAS − vS 0 S tAS
= q 2
− q
vS 0S v2
1 − c2 1 − Sc20 S
xBS − vS 0 S tBS − xAS + vS 0 S tAS
= q
v2
1 − Sc20 S
xBS − xAS − vS 0 S (tBS − tAS )
= q
v2
1 − Sc20 S
`S
=q 2
.
vS 0S
1 − c2
Ou seja: r
vS2 0 S
`S = `S 0 1− , (10)
c2
que se designa por contracção dos espaços ou contracção de Lorentz, visto o
termo da raiz quadrada ser sempre menor que 1. Esta equação mostra que
um objecto em movimento fica mais curto para quem o vê passar, embora
quem se desloque com o objecto não note essa diferença. Por outro lado,
quem se desloca com o objecto também vai ver as dimensões do mundo «lá
fora» encolhidas, pois vai escrever uma equação de contracção dos espaços
parecida.
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Comecemos por definir a notação. A garagem é o referencial S e o carro o
referencial S 0 . Chamemos A ao acontecimento da frente do carro passar a porta da
garagem. Consideremos então que os relógios em S e S 0 (portanto, do observador
na garagem e do observador no carro, respectivamente) foram ajustados de modo
que começam a contar o tempo no instante em que se dá esse acontecimento A,
portanto, quando a frente do carro cruza a entrada na garagem. Assim, todos os
intervalos de tempo são calculados a partir deste instante.
Qual será a velocidade do carro para que ele caiba à justa na garagem para o
observador na garagem?
s s
vS2 0 S v2 0
`S = `S 0 1 − 2 ⇐⇒ 4 = 5 1 − S2S
c c
2
v 0
16
⇐⇒ = 1 − S2S
25 c
vS2 0 S 16
⇐⇒ 2 = 1 −
c 25
⇐⇒ vS 0 S = 0,6c.
Portanto se o carro se deslocar a uma velocidade superior a 0,6c, não só vai caber
na garagem como ainda vai ter espaço para parar em segurança.
Vamos agora ver como cada observador descreve a entrada do carro na garagem,
com vS 0 S = 0,6c.
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Um relógio dentro do carro vai marcar, neste instante,
∆tS 0 4 ∆tS 0
∆tS = q ⇐⇒ =
2
vS 0S 0,6c 0,8
1− c2
4 3,2
⇐⇒ ∆tS 0 = 0,8 = .
0,6c 0,6c
Portanto, para este observador, o carro cabe na garagem: ele entra, a porta
fecha-se e simultaneamente a frente do carro toca na parede do fundo da
garagem.
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S 0 , a grandeza
2
∆s2 = c(tB − tA ) − (xB − xA )2 − (yB − yA )2 − (zB − zA )2
= (c∆t)2 − ∆x2 − ∆y 2 − ∆z 2
= (c∆t)2 − |∆~r|2
∆s2S = ∆s2S 0 .
ct
A B C D
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Um fotão que se desloque à velocidade c representa a velocidade mais
rápida possível no espaço-tempo. Assim, a sua trajectória, com um declive
de 45◦ , é a de menor declive em relação ao eixo x (ver a trajectória D na
Figura 4). Qualquer outra trajectória terá um declive superior a 45◦ . Este
facto tem consequências importantes na representação do espaço-tempo.
Seja A um acontecimento qualquer e coloquemos a origem do referencial
em A. O diagrama espaço-tempo fica dividido em três zonas: uma que
representa o conjunto de acontecimentos que podem ter influenciado A, isto
é, o passado de A; outra que representa os acontecimentos onde A poderá ter
influência, isto é, o futuro de A; e uma terceira área, que não influenciou A
e que A não pode influenciar. A Figura 5 ilustra estas trêas áreas.
Futuro de A
ct
Passado de A
17
ct
Futuro de A
A
x
Passado de A
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inferior a c. Portanto, A pode influenciar B e estes dois acontecimentos
podem ter uma relação causal.
Outra consequência importante é que a ordem temporal dos dois acon-
tecimentos é a mesma em todos os referenciais. De facto, se temos que
∆s2S 0 > 0, então ∆tS 0 > ∆xS 0 /c > ∆xS 0 /c2 . Logo, o sinal de ∆tS na
Equação 11 é o sinal de ∆tS 0 .
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