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Introdução à Relatividade Restrita

Paulo Tribolet Abreu


2007

1
1 Referencial de Inércia
Até agora assumimos a existência de um referencial parado, no qual fomos
baseando a nossa descrição científica do Universo. Mas, se nos lembrarmos
que todo o movimento é relativo a um referencial, somos levados a perguntar:
«Este nosso referencial está parado em relação a quê?»
Pela Lei Fundamental de Newton (F~ = m~a) e pela Lei da Inércia sabemos
que a velocidade uniforme e a velocidade nula são indistinguíveis em Física.
Assim, a questão não é a de se encontrar um referencial em repouso, mas
sim um referencial com aceleração nula (~a = ~0), pois isso implica que o
referencial tem velocidade uniforme (nula ou não). Sabemos que estamos num
referencial desse tipo se nele for válida a Lei da Inércia, isto é, se um corpo
não actuado por forças, ou actuado por forças de resultante nula, mantiver a
sua velocidade constante. Estamos então à procura de Referenciais Inerciais,
isto é, de referenciais onde é válida a Lei da Inércia.
Para muitas das experiências que se fazem, pode considerar-se a Terra
como um bom referencial de inércia. No entanto, a Terra roda sobre si mesma
e à volta do Sol. Tem, portanto, um movimento acelerado (velocidade não
constante) nem relação ao Sol. Experiências de grande escala, que envolvam
distâncias muito longas e massas muito grandes, não podem considerar a
Terra como um referencial inercial.
Podia pensar-se no Sol como alternativa, mas este também roda em torno
do centro da galáxia. A galáxia, por sua vez, rodopia numa dança cósmica
com outras galáxias do seu grupo local, este grupo local move-se acelerada-
mente em relação a outros grupos de galáxias, e assim por diante. . . Rapida-
mente notamos que não existe na Natureza nenhum referencial de inércia. O
que temos são referenciais acelerados que são aproximadamente de inércia,
dependendo da experiência que queremos fazer.
Como se transformam as leis físicas quando passamos de um referencial
de inércia para outro? É isso que os próximos parágrafos vão explicar.

2 Relatividade Clássica
Foi Galileu quem formulou pela primeira vez o problema da descrição do
mesmo fenómeno em diferentes referenciais. Aquilo que descobriu foi dar ori-
gem mais tarde à Relatividade Clássica, com as Equações de Transformação
de Galileu. Vamos apresentar o problema da transformação de Galileu e a
sua solução numa linguagem mais moderna e precisa.

2
2.1 Transformação de Galileu
Um acontecimento é algo localizado numa zona do espaço tão pequena que
se pode considerar pontual, e num intervalo de tempo tão curto que se pode
considerar instantâneo. Assim, um acontecimento A é definido por quatro
coordenadas: as três do espaço, mais uma do tempo:

A(x, y, z, t) = A(~r, t).

Sejam dois referenciais inerciais S e S 0 , que se movem um em relação ao


outro. Sem perca de generalidade, vamos admitir que S 0 se move em relação
a S com velocidade ~vS 0 S .1
Um determinado acontecimento A observa-se em S 0 . Terá então as co-
ordenadas (~rAS 0 , tAS 0 ). O que se pretende é passar de uma descrição em S 0
para uma descrição em S, isto é, transformar as coordenadas em S 0 para as
coordenadas em S: (~rAS , tAS ). A Figura 1 exemplifica este problema no caso
com duas dimensões.

v→S'S
yAS yAS' A
r→AS'
S'
r
→ xAS'
S'S
r→AS

S xAS

Figura 1: As coordenadas do acontecimento A nos referenciais S 0 e S.

Segundo Galileu, e confirmado pela nossa experiência do dia-a-dia, a


transformação é simplesmente:
para o tempo:
tAS = tAS 0 = tA ; (1)

para a posição:
~rAS = ~rAS 0 + ~rS 0 S = ~rAS 0 + ~vS 0 S tA ; (2)

para a velocidade:
~vAS = ~vAS 0 + ~vS 0 S . (3)
1
Leia-se «velocidade de S 0 em relação a S». No geral, ABC representa a grandeza A
do sistema B em relação ao referencial C.

3
Portanto, o tempo é igual em todos os referenciais. Relógios em movimento
marcam o mesmo que relógios em repouso. A posição é transformada so-
mando a posição do referencial em movimento, e a velocidade é transformada
da mesma forma, somando a velocidade do referencial em movimento.
O exemplo seguinte ilustra a transformação de Galileu.

Exemplo 1 Um combóio passa por um apeadeiro a 60 Km/h. Dentro de uma


carruagem, um passageiro caminha a 3 Km/h. Qual a sua velocidade em relação
ao apeadeiro?
Colocando os dados na notação anterior, temos que o apeadeiro é o referencial
S, a carruagem é S 0 e o passageiro é o acontecimento A. Segundo os dados,

vAS 0 = 3 Km/h e vS 0 S = 60 Km/h.

Portanto,
vAS = vAS 0 + vS 0 S = 3 + 60 = 63 Km/h.

2.2 Consequências da Transformação de Galileu


É interessante transformar distâncias e intervalos de tempo de um referencial
para outro.
Sejam A e B dois acontecimentos quaisquer. Em S 0 , A e B têm coor-
denadas (~rAS 0 , tA ) e (~rBS 0 , tB ), respectivamente. Em S, as coordenadas são
(~rAS , tA ) e (~rBS , tB ).
O intervalo de tempo entre A e B, ∆t = tB − tA , é independente do
referencial, como se indica na Equação 1. Em particular, se os eventos forem
simultâneos num referencial, também o serão em todos os referenciais de
inércia, visto neste caso termos sempre tA = tB , ou seja, ∆t = 0.
Por outro lado, a distância `S 0 entre A e B, medida no referencial S 0 , é
dada por:
q
`S 0 = |~rBS 0 − ~rAS 0 | = ∆x2AS 0 + ∆yAS
2 2
0 + ∆zAS 0 .

No referencial S designamos essa distância por `S e temos:


q
`S = |~rBS − ~rAS | = ∆x2AS + ∆yAS
2 2
+ ∆zAS .

Como se relacionam as distâncias `S e `S 0 ? Usando a transformação de


Galileu para as posições (Equação 2), sabemos que:
~rAS = ~rAS 0 + ~rS 0 S = ~rAS 0 + ~vS 0 S tA
e que
~rBS = ~rBS 0 + ~rB 0 S = ~rBS 0 + ~vS 0 S tB .

4
Logo, podemos escrever:

`S = |~rBS − ~rAS |
= |~rBS 0 + ~vS 0 S tB − ~rAS 0 − ~vS 0 S tA |
= |~rBS 0 − ~rAS 0 + ~vS 0 S ∆t|. (4)

Assim, podemos concluir que, no geral, `S 6= `S 0 .


Se os eventos forem simultâneos, então ∆t = 0, e podemos concluir da
Equação 4 que:

`S = |~rBS 0 − ~rAS 0 + ~vS 0 S ∆t|


= |~rBS 0 − ~rAS 0 + ~0|
= |~rBS 0 − ~rAS 0 |
= `S 0 .

Ou seja, a distância entre dois eventos simultâneos é independente do refe-


rencial.

2.3 Limitações da Transformação de Galileu


Até ao final do século xix, a transformação de Galileu parecia obviamente
correcta. Mesmo actualmente, no nosso dia-a-dia, usamos a transformação
das velocidades da Equação 3, por exemplo, ao entrarmos e sairmos de esca-
das rolantes.
A transformação de Galileu é também aplicável a ondas, embora aí se
tenha que ter em conta que a velocidade de propagação de uma onda é inva-
riável no meio onde se propaga. Por exemplo, as ondas propagam-se na água
de um lago com uma velocidade de cerca de 3 m/s. Se uma pessoa atravessar
uma ponte sobre um lago e for deixado cair pedrinhas, as ondas propagam-se
sempre à mesma velocidade na água, independentemente da velocidade da
pessoa na ponte, isto é, independentemente da velocidade horizontal com que
as pedrinhas entram na água, como se indica na Figura 2.
Neste caso, o referencial em movimento S 0 é a pessoa em movimento, o
referencial parado S é a superfície das águas e os eventos são as entradas das
pedrinhas na água e a consequente geração das ondas O1 a O4 . Sabemos com
que velocidade as ondas se propagam na água, isto é, sabemos a velocidade
~vOi S , com i = 1, 2, 3, 4. Queremos saber com que velocidade a pessoa observa
as ondas a propagarem-se, isto é, queremos saber ~vOi S 0 . Usando a Equação 3,
podemos escrever:

~vOi S 0 = ~vOi S + ~vSS 0 = ~vOi S − ~vS 0 S . (5)

5
S
O1 O2 O3 O4

Figura 2: Propagação de ondas num lago, com a fonte de ondas deslocando-se


da esquerda para a direita. O referencial S representa a superfície da águas.
O referencial em movimento S 0 não se encontra representado.

Ora no final do século xix, as equações de Maxwell mostraram que a ra-


diação electromagnética (de que a luz faz parte) se propaga através de ondas
no espaço. Surgiu então a questão de se saber o que ondula. Assim como as
ondas de som são compressões do ar, as ondas no mar são variações da altura
da superfície da água e as ondas nas cordas de uma guitarra são oscilações
dessa corda em torno de uma posição de equilíbrio, qual é o material que
oscila nas ondas electromagnéticas?
Como todo o espaço tem ondas electromagnéticas, mesmo o espaço en-
tre planetas que, aparentemente, não tem matéria, a substância de suporte
para estas ondas teria que ser muito estranha. Em particular, teria que ser
tão pouco densa que permitiria aos planetas girarem nas suas órbitas com
um atrito desprezável, e tão densa que permitiria à luz propagar-se com a
gigantesca velocidade de 300 000 Km/s! A essa substância deu-se o nome de
éter e, em 1887, Michelson e Morley realizaram uma experiência famosa para
detectar a velocidade das ondas electromagnéticas em relação a este estranho
éter.
A ideia, muito simples, baseou-se no exemplo anterior, das pedrinhas no

6
lago ilustrado na Figura 2, substituindo a água pelo éter, as ondas no lago por
ondas de luz no éter e a pessoa na ponte atirando pedrinhas por uma fonte
na Terra gerando ondas electromagnéticas. Esperava-se notar uma diferente
velocidade de propagação, por a Terra se estar a deslocar em relação ao éter,
como indicado na Equação 5.
O resultado foi chocante: não se notou nenhuma alteração da velocidade!
A luz propaga-se com a mesma velocidade em qualquer referencial!
A consequência imediata deste resultado foi eliminar-se a hipótese do éter,
o que muito agradou aos cientistas, que nunca tinham visto com bons olhos
esta substância com propriedades tão estranhas.
Mas este resultado, unido ao facto de as equações de Maxwell não serem
invariantes com a transformação de Galileu, mostrou que algo estava funda-
mentalmente errado, ou na teoria electromagnética, ou na visão do mundo
que originou a relatividade de Galileu. Como ninguém queria acreditar na
última possibilidade, houve uma multiplicação de esforços para descobrir o
que estaria errado no electromagnetismo e, em particular, nas equações de
Maxwell. Esses esforços foram todos em vão até que, em 1905, Einstein con-
seguiu resolver o assunto, mostrando que era a visão do mundo clássica que
estava errada e que tinha que ser alterada.

3 Relatividade Restrita
3.1 Transformação de Lorentz
A maneira como Einstein resolveu o problema anterior foi brilhantemente
simples. Ele definiu dois postulados e com eles desenvolveu uma teoria da
relatividade que é válida tanto para a radiação electromagnética como para
os fenómenos do dia-a-dia. Os postulados de Einstein foram:
• Todos os referenciais de inércia são equivalentes.
• A radiação electromagnética propaga-se com a mesma velocidade em
todos os referenciais de inércia.
Partindo destes dois postulados, ele deduziu as equações de uma nova
transformação, designada por Transformação de Lorentz,2 válida tanto todos
os fenómenos, inclusive os da propagação das ondas electromagnéticas.
Vamos apresentar a transformação de Lorentz de uma forma simplificada,
onde todos os movimentos são no eixo dos x (ver Figura 3). Conseguimos
2
Esta transformação foi descoberta por vários cientistas em alturas diferentes e de forma
independente. Em particular, foi descoberta por Lorentz em 1904 e por Einstein em 1905,
mas só este último se atreveu a tirar todas as implicações.

7
assim evitar complicações matemáticas desnecessárias, sem perder a genera-
lidade dos resultados. Nestas condições, a transformação é:

para o tempo:
v
tAS 0 + Sc20 S xAS 0
tAS = q 2
; (6)
vS 0S
1 − c2

para a posição (eixo dos x):


xAS 0 + xS 0 S xAS 0 + vS 0 S tAS 0
xAS = q 2
= q 2
, (7)
vS 0 S vS 0S
1 − c2 1 − c2

para a velocidade (eixo dos x):


vAS 0 + vS 0 S
vAS = v v ; (8)
1 + ASc0 2 S0 S

onde c representa a velocidade da luz no vazio, cerca de 300 000 Km/s.

v→S'S

A
S S'

Figura 3: Simplificação da Figura 1, para melhor exposição da transformação


de Lorentz.

Exemplo 2 Vamos mostrar que a transformação de Lorentz prevê o resultado


da experiência de Michelson-Morley, isto é, que é compatível com o postulado de
Einstein, que afirma que a luz se propaga com a mesma velocidade em todos os
referenciais de inércia.
Usando a notação usual, temos que a Terra é o referencial em movimento S 0 ,
que o espaço é o referencial S e que o acontecimento A é a emissão de um raio de luz
com velocidade vAS = c. A velocidade de translacção da Terra é vS 0 S . Queremos

8
saber qual o valor de vAS 0 . Da Equação 8 resulta:
vAS 0 + vS 0 S vAS 0 + vS 0 S
vAS = vAS 0 vS 0 S ⇐⇒ c = v v
1+ c2
1 + ASc0 2 S0 S
 vAS 0 vS 0 S 
⇐⇒ c 1 + = vAS 0 + vS 0 S
c2
vAS 0 vS 0 S
⇐⇒ c + = vAS 0 + vS 0 S
c
⇐⇒ c2 + vAS 0 vS 0 S = c vAS 0 + c vS 0 S
⇐⇒ vAS 0 vS 0 S − c vAS 0 = c vS 0 S − c2
⇐⇒ vAS 0 (vS 0 S − c) = c(vS 0 S − c)
⇐⇒ vAS 0 = c.

Obtivemos este resultado independentemente do valor da velocidade entre os refe-


renciais vS 0 S . Portanto, a transformação de Lorentz mostra que velocidade da luz
é c em qualquer referencial de inércia.

Exemplo 3 Vamos mostrar que a transformação de Lorentz inclui a transformação


de Galileu para pequenas velocidades.
v v
A diferença da Equação 8 para a Equação 3 é a divisão pelo termo 1 − ASc0 2 S0 S .
No Exemplo 1, o comboio deslocava-se a 60 Km/h e o passageiro a 3 Km/h. Re-
parando que
c = 300 000 Km/s = 1 080 000 000 Km/h,
a transformação de Lorentz dá-nos:
vAS 0 + vS 0 S
vAS = v v
1 + ASc0 2 S0 S
3 + 60 63
= 3×60 = ≈ 63 Km/h.
1 + 1 080 000 0002 1 + 0,000 000 000 000 000 154

A única diferença é na décima-sexta casa decimal! Por isso, no nosso dia-a-dia,


podemos continuar calmamente a usar a transformação de Galileu. Apesar de não
estar correcta, serve muito bem.

Temos portanto uma transformação válida tanto paras as velocidades


pequenas do nosso dia-a-dia, como para as velocidades fulminantes dos fenó-
menos electromagnéticos. Há no entanto uma coisa muito espantosa nesta
transformação: o tempo não é o mesmo em cada referencial de inércia! De
facto, é isso que nos diz a Equação 6: o tempo medido no referencial S de-
pende da velocidade entre os referenciais vS 0 S e da posição em S 0 ; relógios
em repouso marcam tempos diferentes que relógios em movimento.
Este facto é apenas o início de uma série de consequências inesperadas
que surgem da transformação de Lorentz, e que levam a uma visão substan-
cialmente diferente do Universo.

9
3.2 Limite de Velocidade
A consequência mais imediata da transformação de Lorentz é a impossi-
bilidade de existirem velocidades superiores a c. Nenhum acontecimento,
partícula, onda ou informação se pode deslocar mais rápido que a velocidade
da luz no vazio, como se mostra nos denominadores das Equações 6–8.

3.3 Dilatação dos Tempos


Estudemos agora o que se passa com o tempo na transformação de Lorentz.
Sejam A e B dois acontecimentos no mesmo ponto do espaço, mas em ins-
tantes diferentes. Se B for posterior a A, então ∆tS 0 = tBS 0 − tAS 0 é o
intervalo de tempo entre estes dois acontecimentos medido no referencial S 0
e ∆tS = tBS − tAS é o medido em S. Qual será a relação entre um e outro?
Como transformo ∆tS 0 em ∆tS ? Segundo a Equação 6, e lembrando que
xAS 0 = xBS 0 , temos:
v v
tBS 0 + Sc20 S xBS 0 tAS 0 + Sc20 S xAS 0
tBS − tAS = q 2
− q
vS 0S v2
1 − c2 1 − Sc20 S
tBS 0 − tAS 0
= q
v2
1 − Sc20 S

ou seja,
∆tS 0
∆tS = q 2
. (9)
vS 0S
1− c2

Esta é a equação da dilatação dos tempos, que mostra que, para um


observador em repouso, o tempo passa mais devagar em referenciais em mo-
vimento, visto o denominador da Equação 9 ser sempre menor que 1.

Exemplo 4 Uma nave parte para uma viagem espacial. Viaja durante esse tempo
à velocidade de 0,8c. Quando tiverem passado 10 anos para o astronauta na nave,
quanto tempo terá passado no planeta de onde partiu?
Neste caso, a nave é o referencial em movimento S 0 e o planeta de partida é
o referencial em repouso S. O intervalo de tempo dentro da nave corresponde a
∆tS 0 = 10 anos e o tempo que, entretanto, passou no planeta corresponde a ∆tS ,
que é o que se pretende saber. Visto vS 0 S = 0,8c, podemos escrever, usando a

10
Equação 9:
10 10
∆tS = q =q
(0,8c)2 0,64c2
1− c2
1− c2
10 10
=√ =√
1 − 0,64 0,36
10
= = 16,7 anos.
0,6
Isto é, na nave passaram-se 10 anos mas no planeta de origem decorreram 16,7
anos.

Exemplo 5 (Paradoxo dos gémeos) No exemplo anterior, considerámos o pla-


neta como o referencial em repouso e a nave como o referencial em movimento. No
entanto, como o movimento é relativo, nada nos impede de considerar os referenci-
ais inversos, isto é, de considerar a nave em repouso e o planeta como o referencial
que se afasta da nave à velocidade de 0,8c. Mas desta forma terão passado 10 anos
no planeta em vez dos 16,7, e 16,7 na nave, em vez dos 10. É impossível que um
objecto tenha simultaneamente duas idades. Afinal, quem tem razão?
Este aparente paradoxo é conhecido na relatividade como o paradoxo dos gé-
meos. O astronauta deixa no planeta de origem um irmão gémeo. Ao fim de 10
anos, quando se voltarem a encontrar, quem é que envelheceu mais?
Segundo o gémeo no planeta, ele ficou em repouso e foi o irmão que viajou a
0,8c. Assim, para o gémeo no planeta passaram 16,7 anos e o irmão envelheceu 10
anos. No entanto, segundo o gémeo da nave, a situação está ao contrário: foi o
irmão que, juntamente com todo o planeta, se afastou da nave à velocidade de 0,8c;
portanto será o irmão que envelheceu apenas 10 anos enquanto que se passaram
16,7 anos na nave. Quem tem razão?
Este paradoxo é aparente, isto é, tem solução. Para que os dois gémeos se
voltem a encontrar para comparar as suas idades, um deles terá que voltar para
trás, isto é, um deles terá que travar e inverter o sentido ou então que fazer uma
curva para mudar de direcção. Em ambos os casos, o seu referencial deixou de
ser de inércia e passou a ser acelerado. Quebra-se assim a simetria do problema.
Há realmente um gémeo que envelhece mais que o outro, será o que não viajou no
referencial acelerado.
Mas deve notar-se que, se não houver alteração de velocidade, isto é, se ambos
os referencias forem sempre inerciais ao longo de toda a viajem, os gémeos nunca se
poderão encontrar uma segunda vez para comparar as idades, e ambas as descrições
estão correctas.

3.4 Contracção dos Espaços


Na secção anterior analisámos como os intervalos de tempo se transformam
nas equações de Lorentz. Vamos agora estudar o que acontece com intervalos

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entre posições, isto é, com distâncias ou comprimentos.
Como se medem distâncias e comprimentos? Para se evitarem parado-
xos e situações absurdas em relatividade, é necessário definir com muito
cuidado estes conceitos. Mais uma vez, foi Einstein quem ofereceu uma solu-
ção brilhantemente simples e poderosa: comprimentos e distâncias medem-se
através de eventos simultâneos.
Imaginemos estamos numa estação a ver um combóio passar e que que-
remos medir o comprimento de uma das carruagens. A solução proposta por
Einstein foi: colocam-se detectores ao longo de toda a linha; cada detector
tem um relógio, e todos os relógios estão certos entre si; num determinado
instante, um detector assinala a chegada da frente da carruagem e, simul-
taneamente, um outro detector assinala a passagem do fim da carruagem;
subtrai-se as posições destes dois detectores; o resultado é o comprimento da
carruagem em movimento, medido no referencial em repouso.
Matematicamente, temos dois acontecimentos distintos: o que marca a
chegada da frente da carruagem, que podemos chamar A, e o que assinala
a passagem do fim da carruagem, que chamaremos B. No referencial em
repouso S, a distância entre xAS e xBS dá-nos o comprimento `S da carru-
agem em relação ao referencial S. De notar que estes acontecimentos são
simultâneos em S, portanto tAS = tBS , mas não o são necessariamente em
S 0 , portanto tAS 0 6= tBS 0 . Este ponto é uma diferença radical entre a trans-
formação de Lorentz e a de Galileu: eventos simultâneos num referencial de
inércia podem não o ser noutro referencial de inércia. Iremos voltar a este
assunto na Secção 3.6, página 17.
Os passageiros dentro da carruagem medem o comprimento desta usando
réguas da maneira usual, e chegam ao valor de `S 0 , que se designa por compri-
mento em repouso ou comprimento próprio, pois é o comprimento medido no
referencial associado ao objecto. Como se relacionam as medidas `S e `S 0 ? Na
relatividade clássica deveriam ser iguais, mas na relatividade restrita nada é
o que parece, por isso teremos que fazer contas cuidadosas.
Da transformação de Lorentz para as posições (Equação 7) temos:
xAS − vS 0 S tAS
xAS 0 = q
v2
1 − Sc20 S
e
xBS − vS 0 S tBS
xBS 0 = q 2
.
vS 0S
1 − c2

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Portanto, podemos escrever:

`S 0 = xBS 0 − xAS 0
xBS − vS 0 S tBS xAS − vS 0 S tAS
= q 2
− q
vS 0S v2
1 − c2 1 − Sc20 S
xBS − vS 0 S tBS − xAS + vS 0 S tAS
= q
v2
1 − Sc20 S
xBS − xAS − vS 0 S (tBS − tAS )
= q
v2
1 − Sc20 S
`S
=q 2
.
vS 0S
1 − c2

Ou seja: r
vS2 0 S
`S = `S 0 1− , (10)
c2
que se designa por contracção dos espaços ou contracção de Lorentz, visto o
termo da raiz quadrada ser sempre menor que 1. Esta equação mostra que
um objecto em movimento fica mais curto para quem o vê passar, embora
quem se desloque com o objecto não note essa diferença. Por outro lado,
quem se desloca com o objecto também vai ver as dimensões do mundo «lá
fora» encolhidas, pois vai escrever uma equação de contracção dos espaços
parecida.

Exemplo 6 Um cientista inventou um carro que se desloca a uma velocidade


muito próxima da da luz, com capacidade de travagem e aceleração praticamente
instantâneas. No entanto, enganou-se num pormenor: o carro tem 5 m de compri-
mento, mas a sua garagem só tem 4 m de profundidade. Um vizinho, que tem umas
«luzes» de relatividade, sugere que se entre na garagem a alta velocidade. Devido
à contracção dos espaços, o carro irá ficar tão encolhido que cabe na garagem.
Vamos descrever a operação de arrumar o carro na garagem de dois pontos de
vista:

1. do ponto de vista de um observador em repouso na garagem;

2. do ponto de vista do condutor do automóvel.

Em particular, vamos estudar como é que os acontecimentos «fechar a porta da


garagem» e «encostar a frente do carro à parede do fundo da garagem» são vistos
pelos dois observadores.

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Comecemos por definir a notação. A garagem é o referencial S e o carro o
referencial S 0 . Chamemos A ao acontecimento da frente do carro passar a porta da
garagem. Consideremos então que os relógios em S e S 0 (portanto, do observador
na garagem e do observador no carro, respectivamente) foram ajustados de modo
que começam a contar o tempo no instante em que se dá esse acontecimento A,
portanto, quando a frente do carro cruza a entrada na garagem. Assim, todos os
intervalos de tempo são calculados a partir deste instante.
Qual será a velocidade do carro para que ele caiba à justa na garagem para o
observador na garagem?
s s
vS2 0 S v2 0
`S = `S 0 1 − 2 ⇐⇒ 4 = 5 1 − S2S
c c
2
v 0
16
⇐⇒ = 1 − S2S
25 c
vS2 0 S 16
⇐⇒ 2 = 1 −
c 25
⇐⇒ vS 0 S = 0,6c.

Portanto se o carro se deslocar a uma velocidade superior a 0,6c, não só vai caber
na garagem como ainda vai ter espaço para parar em segurança.
Vamos agora ver como cada observador descreve a entrada do carro na garagem,
com vS 0 S = 0,6c.

Observador na garagem: Para este observador, o carro passou a ter o compri-


mento:
s
v2 0
`S = `S 0 1 − S2S
c
r
(0,6c)2
=5 1− = 5 × 0,8 = 4 m,
c2
que foi a conta feita anteriormente, para calcular vS 0 S .
A porta da garagem pode fechar-se quando o fundo do carro tiver passado
pela porta, isto é, quando o carro tiver andado 4 m:
∆xS 4
vS 0 S = ⇐⇒ 0,6c =
∆tS ∆tS
4
⇐⇒ ∆tS = .
0,6c

É também neste instante que a frente do carro toca no fundo da garagem.

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Um relógio dentro do carro vai marcar, neste instante,
∆tS 0 4 ∆tS 0
∆tS = q ⇐⇒ =
2
vS 0S 0,6c 0,8
1− c2
4 3,2
⇐⇒ ∆tS 0 = 0,8 = .
0,6c 0,6c

Portanto, para este observador, o carro cabe na garagem: ele entra, a porta
fecha-se e simultaneamente a frente do carro toca na parede do fundo da
garagem.

Observador no carro: Para o condutor, ele está em repouso e é a garagem que


avança contra ele e o carro à velocidade de vSS 0 = 0,6c. Assim, o seu carro
tem `S 0 = 5 m de comprimento, mas a garagem sofre a contracção dos es-
paços. Se gS = 4 m for o comprimento da garagem em repouso, isto é, o
medido pelo observador na garagem, e gS 0 for o comprimento da garagem
em relação ao condutor do carro, temos:
s
v2 0
gS 0 = gS 1 − SS
c2
r
(0,6c)2
=4 1− = 4 × 0,8 = 3,2 m.
c2
Portanto, o observador vê a garagem diminuir de tamanho, em vez de au-
mentar.
Para o condutor, o carro toca no fundo da garagem quando a parede tiver
avançado 3,2 m:
3,2
∆tS 0 = .
0,6c
Nesta altura, o carro ainda tem 5 − 3,2 = 1,8 m de fora da garagem.

3.5 Intervalo do Universo


A contracção dos espaços surge quando relacionamos acontecimentos simul-
tâneos em dois locais diferentes; a dilatação dos tempos verifica-se entre dois
acontecimentos sucessivos no mesmo ponto do espaço. Como relacionar dois
acontecimentos quaisquer, que não são simultâneos nem se dão no mesmo
sítio?
Minkowski, um discípulo de Einstein, descobriu uma grandeza que relaci-
ona dois acontecimentos e que é invariante em todos os referenciais de inércia.
Dados dois acontecimentos quaisquer A e B e dois referenciais inerciais S e

15
S 0 , a grandeza
2
∆s2 = c(tB − tA ) − (xB − xA )2 − (yB − yA )2 − (zB − zA )2
= (c∆t)2 − ∆x2 − ∆y 2 − ∆z 2
= (c∆t)2 − |∆~r|2

tem o mesmo valor em S e em S 0 , isto é:

∆s2S = ∆s2S 0 .

A esta grandeza, que tem as dimensões de uma distância ao quadrado, dá-


se o nome de Intervalo do Universo e é o equivalente ao teorema de Pitágoras
num espaço quadridimensional, em que ct representa a dimensão adicional
às três dimensões usuais do espaço. Este espaço quadridimensional chama-se
universo de Minkowski ou espaço-tempo e ∆s representa uma distância nesse
espaço. Como foi sublinhado por Minkowski, a teoria da relatividade restrita
sugere que se abandone a ideia de um espaço tridimensional, independente do
tempo, e se descreva o universo como um espaço-tempo quadridimensional.
Como se representa este espaço? Representar quatro dimensões é impos-
sível, mas podemos tentar representar um espaço-tempo simplificado, uti-
lizando apenas uma ou duas dimensões para o espaço usual. Na Figura 4
representam-se diversas trajectória de partículas num espaço-tempo bidimen-
sional (x, ct).

ct
A B C D

Figura 4: Trajectórias no espaço-tempo (x, ct). A é a trajectória de uma


partícula em repouso, B representa uma oscilação em torno de uma posição
intermédia, em C uma partícula desloca-se com velocidade uniforme e D é a
trajectória de um fotão, à velocidade da luz.

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Um fotão que se desloque à velocidade c representa a velocidade mais
rápida possível no espaço-tempo. Assim, a sua trajectória, com um declive
de 45◦ , é a de menor declive em relação ao eixo x (ver a trajectória D na
Figura 4). Qualquer outra trajectória terá um declive superior a 45◦ . Este
facto tem consequências importantes na representação do espaço-tempo.
Seja A um acontecimento qualquer e coloquemos a origem do referencial
em A. O diagrama espaço-tempo fica dividido em três zonas: uma que
representa o conjunto de acontecimentos que podem ter influenciado A, isto
é, o passado de A; outra que representa os acontecimentos onde A poderá ter
influência, isto é, o futuro de A; e uma terceira área, que não influenciou A
e que A não pode influenciar. A Figura 5 ilustra estas trêas áreas.

Futuro de A
ct

Passado de A

Figura 5: Zonas de influência para o evento A.

Se adicionarmos a dimensão y ao espaço, os dois triângulos sombreados


passam a cones (Figura 6); no espaço-tempo quadridimensional, teremos um
cone quadridimensional.

3.6 Simultaneidade e Causalidade


Sejam A e B dois acontecimentos quaisquer. Seja ∆s2 o intervalo do Universo
entre estes dois acontecimentos, como definido anteriormente. Vamos agora
estudar algumas propriedades que estes dois acontecimentos têm entre si e
que são consequência das conclusões estudadas anteriormente.

• Já vimos o que sucede quando A e B se dão simultaneamente, mas em


pontos do espaço distintos (contracção dos espaços), e quando sucedem

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ct

Futuro de A

A
x

Passado de A

Figura 6: Zonas de influência para o evento A no espaço-tempo (x, y, ct).

no mesmo sítio, mas em instantes diferentes (dilatação dos tempos).


Uma conclusão a que chegámos quando estudámos a contracção dos es-
paços foi que eventos simultâneos num referencial de inércia S poderão
não o ser noutro referencial de inércia S 0 . De facto, da transformação
de Lorentz tem-se:
v v
tBS 0 + S20 S xBS 0 tAS 0 + S20 S xAS 0
∆tS = q c 2 − q c 2 (11)
v v
1 − Sc20 S 1 − Sc20 S
Se ∆tS = 0 então fica:
v
∆tS 0 + Sc20 S ∆xS 0 vS 0 S
0= q ⇐⇒ ∆tS 0 = − ∆xS 0 6= 0.
vS2
0S c2
1 − c2

Por outro lado, se ∆tS = 0 e ∆xS = 0, então o mesmo se dá em


todos os referenciais inerciais. Se dois acontecimentos se dão ao mesmo
tempo e no mesmo sítio num referencial, o mesmo se passa em todos os
referenciais. Isto é um resultado importante, pois significa que, quando
dois corpos chocam, este choque se dá no mesmo instante e no mesmo
sítio para ambos os corpos. Outra maneira de descrever um choque
não seria aceitável.
• Se ∆s2 > 0, então os acontecimentos formam um par do género tempo.
Isto significa que é possível partir de A e chegar a B a uma velocidade

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inferior a c. Portanto, A pode influenciar B e estes dois acontecimentos
podem ter uma relação causal.
Outra consequência importante é que a ordem temporal dos dois acon-
tecimentos é a mesma em todos os referenciais. De facto, se temos que
∆s2S 0 > 0, então ∆tS 0 > ∆xS 0 /c > ∆xS 0 /c2 . Logo, o sinal de ∆tS na
Equação 11 é o sinal de ∆tS 0 .

• Se ∆s2 < 0, então os acontecimentos formam um par do género espaço.


Neste caso, há referenciais onde A e B têm uma ordem temporal in-
versa, isto é, num referencial A dá-se antes de B e noutro referencial
é B que se dá antes de A. No entanto, verifica-se que não é possível
partir de A e chegar a B a uma velocidade inferior a c, portanto A não
pode influenciar B e estes dois acontecimentos não têm uma relação
causal.

• Finalmente, se ∆s2 = 0 então um raio de luz pode unir os aconteci-


mentos A e B.

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