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Paisagem carioca no cinema brasileiro

Todo e qualquer espaço urbano, por menor e mais insignificante que seja,
constrói uma identidade espacial, visual e de usos e costumes. Referências são criadas,
percursos instaurados, uma imagem se forma. A permanência ou não das características
básicas do sítio é que determinará a configuração de uma simbologia mais perene, algo
que sinaliza suas virtudes (e eventualmente seus “defeitos”). Entramos, portanto, no
caudaloso rio da história e suas marchas e contramarchas, idas e vindas, construções e
desconstruções. A formação de uma identidade maior, quer do ponto de vista interno, ou
seja, um enraizamento cultural da cidade na mente de sua população, quer do externo,
ou seja, a fixação de determinadas imagens recorrentes, chegando mesmo a uma marca
“oficial”, é um processo longo, parcialmente inconsciente e ideologicamente seletivo.
A augusta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tem quase cinco séculos e
por volta de 1800 já podia ser considerada um dos maiores sítios urbanos do país, apta a
ratificar dentro em pouco a condição de melhor opção como capital nacional. Embora
seu passado viesse se constituindo com alguma racionalidade, baseado no modelo
geométrico português, uma vez ultrapassada a faixa litorânea, prosseguiu ao sabor das
circunstâncias e premido pela sinuosa cadeia de morros da região. O ar levemente
bagunçado pela paisagem citadina se esboça aqui. Não havia nesta época um projeto
urbanístico propriamente dito para a cidade. Tal coisa a rigor só surgiria
intencionalmente com a reforma hausmanniana. Mas curiosamente já havia um certo
zelo em salvaguardar determinadas áreas ou construções mais antigas, algumas das
quais sobreviveram até o presente, como o Paço, o Passeio Público, a Ladeira da
Misericórdia, etc. Isto talvez se explique pelo fato de que as nações emergentes do novo
continente procuravam quase sempre transmitir a idéia de um certo lastro civilizatório.
Não houve Idade Média por aqui, mas assim mesmo procurávamos construir uma certa
tradição, procurávamos nos envelhecer.
O fato de termos permanecido ligados a uma determinada configuração espacial
e a uma determinada arquitetura durante a segunda metade do século XIX, quando o
crescimento populacional assustador e a incompatibilidade da infra-estrutura urbana
com diversos avanços tecnológicos e sociais (tipo bonde, carruagem, passeata, etc.)
puseram em xeque o velho passado colonial, liga-se a esta difusa construção de uma
“idade adulta” e à falta de um projeto concreto para a cidade. O maior intercâmbio com
o exterior durante o império trouxe novidades, comércio, bens, mas trouxe também o
estrangeiro, que, em geral, saía daqui horrorizado com a péssima qualidade de vida na
cidade. A falta de noções mínimas de saneamento público também colaborou para a
primeira imagem pública do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil. A idéia genérica
de cidade pestilenta metamorfoseou-se em inferno tropical. Éramos o foco maior das
endemias, o espaço da morte por excelência. Não por acaso as agencias de viagem
marítima estampavam avisos de advertência quanto aos perigos de rotas que incluíssem
o Brasil e mais especificamente o Rio de Janeiro.
Pode-se dizer que esta foi nossa primeira imagem, nossa primeira marca. Este
estigma foi tão forte, que a passagem à República trouxe não só o lema do progresso
como um projeto político e social, mas também uma atitude concreta para acabar com a
mácula. Governantes, intelligentzia e mesmo a população engajaram-se não apenas na
reversão do pecado, mas sobretudo na construção simbólica de uma nova cidade. É
quando o Rio deixa de ser lúgubre, soturno, sombrio, mal iluminado e triste para se
tornar alegre, gaiato, arejado, imponente, bonito e moderno. O bota-abaixo, em grande
(cortiços, morros, favelas) e pequena escala (quiosques, carroças, camelôs) é o
momento de ruptura com esse passado, é o ponto de inflexão para uma construção
simbólica do Rio de Janeiro. O símbolo aqui é quase literal, pois o que mudou na
prática foi muito pouco, sobressaindo-se apenas a Avenida Central e arredores. Mas não
se negligencie a força que a idéia teve. O morador do rio praticamente se reinventou
nesses poucos anos, a ponto de deixar de ser fluminense para ser carioca. O Rio de
Janeiro que habita nossas mentes nasce aqui.
Contemporâneo dessa nova cidade, o cinema brasileiro teve o privilégio de
acompanhar as transformações. Infelizmente a s centenas de filmes aqui realizados de
1898 a 1930 perderam-se quase todos. O que ficou de material e de informação
representa muito pouco e não sustenta afirmações categóricas. Por isso o que vai dito
adiante tem caráter meramente hipotético e pode deformar grandemente a compreensão
desse objeto fugidio.
Como dizia o crítico Paulo Emílio Sales Gomes, o cinema desses primeiros
tempos dedicava-se aos “rituais do poder” e ao “berço esplendido”, ou seja, registrava
quase sempre cerimônias oficiais e signos da supostamente prodigiosa beleza natural do
país. No primeiro caso, havia um óbvio foco nos homens, deixando-se o entorno físico
em segundo plano. No outro encontraríamos efetivamente a construção de uma geo-
iconografia que atuasse como símbolo das virtudes nacionais. Mas aqui surge um
primeiro problema. Se isto é verdadeiro, e aparentemente o é, para a maior parte dos
registros feitos no país, não parece válido justamente para o Rio de Janeiro. Se
encontramos o paranaense Aníbal Requião fazendo um Cataratas do Iguaçu (1907), não
conhecemos um Baía de Guanabara ou um Pão de Açúcar realizado por aqui. Nenhum
cineasta, ou melhor dizendo, cinegrafista carioca, parece ter se preocupado em destacar
ícones da beleza da cidade, pelo menos não como tema exclusivo de um filme. Nas
listagens de filmes que chegaram até nós nada parece indicar a presença deste tipo de
approach.
O possível óbice do também possível primeiro filme brasileiro, a filmagem de
Afonso Segreto enfocando a Baía de Guanabara, não se sustenta porque na verdade o
que teria sido enfocado eram as fortalezas e os navios e não um delineamento do
acidente geográfico. Isto é tão mais certo quanto não se verifica nas suas filmagens
posteriores qualquer destaque nesse sentido para este ou aquele local. Afonso filma o
Largo do Machado (1898), como filma a Rua Uruguaiana (1898) e na verdade, até onde
sabemos, só filma lugares comuns como estes. Pode ser que o tal deslumbramento
inicial com o cinema estivesse presente aqui. O êxtase valia para qualquer coisa: muro,
bebê comendo, pessoas andando diante da câmara, lá fora, e funerais, meetings e ruelas,
por aqui. Isto não significa que lugares importantes não tenham sido filmados. Em
1908, a Empresa Paschoal Segreto vai ao Pão de Açúcar e instala uma câmara no
teleférico colhendo planos mais ou menos gerais da cidade. Mas sua intenção com isso é
destacar a Exposição Nacional que esta ocorrendo bem embaixo, na Urca. Ou seja, a
cidade não é ainda, pelo menos cinematograficamente, algo de apreciável, objeto
definido e definível através de imagens enquadradas com intenções conscientes.
Ao contrario, o primeiro registro a delimitar claramente um lócus urbanus
tomando-o como tema enfocará justamente a Avenida Central. As imagens colhidas
durante a inauguração em 1905, frequentemente atribuídas a Antônio Leal,
provavelmente enfatizam o marco urbanístico e social que a obra representava desde a
sua proposição alguns anos antes. Reforça esta idéia, a profusão de documentários que
se seguem, também dedicados exclusivamente ao logradouro. Este interesse intenso
pelo jovem boulevard e a ausência completa de exames detidos em outros pontos chics
da cidade leva a crer em uma primeira porém difusa simbolização do Rio de Janeiro. A
Avenida Central é uma metáfora de toda a cidade, a única passível de apresentação
frente às classes médias que freqüentavam as salas de exibição de então e ao mundo,
neste caso muito provavelmente de acordo com nossas elites pensantes. Aliás, a
construção literária do Rio segue o mesmo padrão; João do Rio a frente. A belle époque
é propriamente uma construção discursiva, apoiada na coloquialidade da imprensa e dos
polígrafos, na leveza do art-nouveau, no chiste de marchinhas, lundus e cia., na
neutralidade do repertório teatral e nas imagens reiterativas de nossos prósperos e
iniciantes produtores cinematográficos. Uma peça como A capital federal, de Aluísio de
Azevedo, não é propriamente uma ácida critica às contradições da cidade e sim uma
celebração do seu progresso, pois o matuto não só não a entende como não consegue
dominá-la. Nesse sentido compreende-se o alcance e a agudeza da obra de Lima
Barreto, que procura desmascarar a impostura reinante.
Para o bem ou para o mal, essa construção imagética avança e vamos encontrá-la
no registro fílmico mais antigo preservado da cidade. O luto pelo Barão do Rio Branco
(1911), anônimo, encaixa-se na categoria dos rituais do poder, mas curiosamente enfoca
pouco as autoridades, pouquíssimo o velório e muito a Avenida Central, logo
denominada justamente Rio Branco por conta do falecido. O tom dos planos, porém,
não tem nada de solene ou grandioso como seria de se esperar. A estatura política e
pública do Barão não corresponde este ou aquele plano geral. Ao contrário, há uma
indisfarçável dispersão na forma como as imagens são compostas. Os planos são
surpreendentemente rápidos, os enquadramentos não reconstituem integralmente
nenhum prédio ou local mais conhecido e o ir-e-vir de pessoas não merece destaque
maior, exceção feita ao presidente da República. O morto, inclusive, só aparece em
recorte de jornal e não “ao vivo”.
O que este filme e alguns outros fragmentos parecem traduzir é a familiaridade
compartilhada entre quem filma e quem irá assistir. Os realizadores aparentemente se
restringem a indicar o signo – Avenida Central, por exemplo -, sem conceber a
necessidade de emprestar-lhe qualquer outra conotação. A interdição do resto da cidade
por falta de qualificação civilizatória e a ausência de preocupações estéticas maiores
para com as imagens revelam a integração do cinema da época ao projeto da belle
époque, em que a intimidade surge como o índice mais acabado de tradução de um
status quo. Isto talvez seja corroborado pelo fato de que só encontraremos uma
visualização mais refinada da cidade na década de 20. O Pão de Açúcar será enfocado
como cartão-postal em Esposa do Solteiro (1926), de Carlo Campogalliani, merecendo a
honra de ser palco do desenlace da fita, com direito a luta em cima do bondinho em
pleno movimento (Moonraker, de Lewis Gilbert, não é uma novidade). E a ainda
importante Avenida Central, agora Rio Branco, apresenta-se em diagonal perfeita, vista
do alto, com os imponentes prédios construindo uma imagem de pujança, no olhar de
Adhemar Gonzaga e seu Barro Humano (1929).
Essas novas imagens que, podemos aproximar de uma certa visão turística em
formação, e que servem ao projeto estético do cinema brasileiro da década de 20,
preocupado em afirmar uma qualidade e uma estatura similares ao cinema americano e
europeu (vide filmes não cariocas como A filha do advogado [1926], de Jota Soares,
Fragmentos da vida [1929], de José Medina, São Paulo, a sinfonia da metrópole
[1929], de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, entre outros), são contemporâneas
também da percepção de que efetivamente, para além de o Rio de Janeiro ser “seguro”,
em termos sanitários, e “avançado”, em termos culturais, ele é isso e mais alguma coisa.
É uma grande cidade e como tal comporta diferenciações internas e possui consolidados
outros exemplos de intervenção urbanística que sustentam e difundem a sua
magnificência. O campo de signos se alarga e ganha agilidade narrativa. A maioria dos
filmes “sérios” da década de 20, cariocas ou não, inclui uma seqüência de montagem
relativa à movimentação urbana (trânsito, corre-corre, símbolos locais, etc.), querendo
com isso sinalizar o tal avanço civilizatório.
Esta nova postura significa propriamente um mapeamento, um inventário
daquilo que a cidade pode oferecer de melhor. Houve exemplos isolados dessa atitude
nos primeiros tempos; as tais exceções que confirmam a regra. Mais especificamente
em dois filmes muito famosos, Nhô Anastácio chegou de viagem (1908), anônimo, tido
como o primeiro filme de ficção brasileiro e Paz e amor (1910), de Alberto Moreira, o
de maior sucesso da bela época. O primeiro contava a história do matuto que vem à
capital pela primeira vez e a percorre entre assombrado e assustado, decidindo ao final
voltar para o campo. Seu itinerário pode ser entendido como uma indicação do que
considerávamos naquele momento como nossas glórias citadinas: Estrada de Ferro
Central do Brasil, Caixa de Amortização, Palácio Monroe, Arcos da Lapa, Passeio
Público, Avenida Central, etc. Se o enquadramento praticado tinha o mesmo ar de
familiaridade aqui enunciado, o foco era muito mais o matuto do que este ou aquele
prédio ou lugar. O segundo tem o mesmo parti-pris. Acompanha o cronista Tibúrcio da
Anunciação em sua peregrinação pela cidade, revelando o que ela tem de ímpar –
cinematógrafo, ópera, mundanismo social, meetings – e de criticável – a política, certas
figuras públicas. Não se sabe exatamente o que era mostrado, mas claramente a intenção
é a cultura da cidade.
O mapeamento pode ter começado na série sobre os estados brasileiros realizada
em 1910 e que dedicava um número à então capital federal, Brasil Pitoresco nº 1
(1910), anônimo. É mais provável que isso tenha acontecido no malogrado filme de
episódios Os mistérios do Rio de janeiro (1917), de Coelho Neto, primeira vez em que a
cidade é alçada ao título de um filme em tom pomposo e indicativo de sua condição de
personagem principal. O impulso pode ter recebido uma ajuda externa por ocasião da
exibição do filme inglês A trip from Gibraltar to Rio de Janeiro (1919), anônimo.
Registro de uma daquelas costumeiras epopéias de aviação, a obra aparentemente
apresentou a primeira visão aérea marcante da cidade, colhendo a Baía de Guanabara e
a urbis interior adentro. A façanha logo seria repetida, tomando-se o cuidado de elaborar
a “grande” imagem do local. Juan Etchebarne sobe num avião no ano seguinte e procura
dar uma idéia do skyline carioca, à semelhança da já comum imagem de Manhattan, em
Rio de Janeiro visto de aeroplano (1920). É talvez a primeira elaboração consciente,
mas a não-recorrência desta forma talvez indique a inadequação do Rio de Janeiro para
esse tipo de construção. Ele destacou também o Pão de Açúcar, o Corcovado (o morro,
pois a estátua não existe ainda) e o Campo dos Afonsos.
O marco definitivo desse processo de embelezamento cinematográfico da cidade
ficou por conta da Terra Encantada (1922), de Silvino Santos, filmado por ocasião das
comemorações do centenário da independência, quando a cidade foi preparada para
sustentar o ufanismo pátrio. Algo talvez dispensável, como o demonstra Cidade do Rio
de Janeiro, realizado por Alberto Botelho, em 1924, como uma ilustração preparatória e
um presente à família real italiana, que visitaria o país dentro em breve. O que
transparece neste filme é a construção altamente racional do urbanismo carioca. Em que
pese a evidente influência francesa em prédios, jardins, parques e traçado urbano, é
notável a diversidade apresentada e o sentido de composição dos locais, com o filme
realçando-lhes, harmonia, linhas de força, enfim beleza. Botelho é cuidadoso mas não
exatamente plástico, talento inato em Silvino. É na obra deste que a cidade é alçada
visualmente à condição de maravilhosa. Utilizando recursos como tilting, panorâmica,
plongée e contre-plongée, filmado do alto de prédios, de carros em movimento, de dia e
de noite, nas ruas e no interior dos prédios e fazendo uma extraordinária comparação via
montagem entre a graça feminina (com direito a primeiros planos) e o esplendor da
cidade, o português sediado em Manaus recria o espaço urbano carioca emprestando-lhe
um sentido de magia. Esta terra possuiria tantos detalhes, tantas facetas, tanta riqueza,
que um olhar virgem se deslumbra com sua profusão, sua inesgotável capacidade de
desdobrar-se que logo estaria em vias de desaparecer, encoberta pelo concreto e
desfigurada pela ocupação humana.
Este período – que, grosso modo, vai até meados dos anos 40 – apresenta uma
espécie de sagração da cidade.
É quando se desenvolvem grandes obras como o Jockey Club, a urbanização da
Lagoa, a construção do Cristo Redentor, a abertura da Avenida Presidente Vargas, entre
outras, e se compõe justamente Cidade Maravilhosa (1936), a marchinha de André filho,
transformada quase que imediatamente em hino. Além do Centro, a Zona Sul também se
afirma, desenhando um perfil art-déco na paisagem e elegendo a praia como ponto de
encontro entre a natureza e a ação humana, aspecto esse imortalizado no famoso
calçadão. Estamos em um momento em que a imagem é tudo, tendo pouco peso
aspectos salientes da cultura da população, entre elês o carnaval. Por isso, não há
contradição entre a visão “turística” que se instaura, e da qual Lábios em beijos (1930),
de Humberto Mauro, talvez seja o representante maior, ou entre a forte estilização
implementada pelo cinema de estúdio advindo com o sonoro e da qual Favela dos meus
amores (1935), Humberto Mauro, certamente é um dos maiores exemplos, e a dura
realidade do cotidiano, onde claros urbanos, obras inacabadas, desmonte de morros e
favelização crescente construíram uma imagem um tanto menos risonha.
Lábios em Beijos reflete a ascensão da Zona Sul e a flagra ainda distante e
levemente deserta. Os locais retratados transmitem garbo, tranqüilidade, placidez em
contraste com o já tradicional vaivém do Centro, incluído nas seqüências iniciais.
Vemos o Jardim Botânico, a Vista Chinesa, a Visconde de Albuquerque, a praia do
Leblon, a avenida Niemeyer, ou seja, justamente locais onde a natureza foi domada e
organizada para fazer ressaltar sua beleza “única” no mundo. Não por acaso, pouco
depois, o mesmo Humberto Mauro realizaria uma série de sete curtas documentais
infelizmente perdida intitulada “As sete maravilhas do Rio de Janeiro” (1934). Este
sentido distintivo levará os realizadores a se aproximarem cada vez mais desses marcos
e a repeti-los com freqüência. Temos assim o Hotel Copacabana Palace em 24 horas de
sonho (1941), de Chianca Garcia, Carnaval no fogo (1950), de Watson Macedo, e O
homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga, para citar apenas um marco e alguns
filmes expressivos. Inclusive, não há discrepância entre a imagem cenográfica
construída pelas obras e o hotel real. O que importa é referenciar o ícone. Além disso,
na medida em que as narrativas vão dando campo a filmagens em locação, o efeito se
torna mais intenso e direto, como a abertura de 24 horas de sonho, uma curiosa
narrativa em torno de uma campeã mundial de tentativas de suicídio. A escolha do
Cristo Redentor como palco de mais uma tentativa fracassada aproveita-se da
simbologia (e mitologia) nascente da “cidade abençoada”, aquela que acolhe a todos,
proporcionando-lhes uma trajetória árdua mas feliz ao final.
Não houve vozes discordantes internamente com relação a esse “ufanismo
carioca”. Não que não existissem intenções nesse sentido. Dentro em pouco Moacyr
Fenelon começaria a desenvolver seu projeto de um cinema mais engajado socialmente,
promovendo um retrato mais nuançado da sociedade carioca e trazendo para o campo
cinematográfico o universo das classes médias baixas e do subúrbio. Nada porém com a
força e o vigor do documentário realizado por Orson Welles em 1942. It’s all true
representa o ponto de ruptura com essa imagem idílica, incursionando com olhar
investigativo pelas verdadeiras raízes da cultura popular carioca, o que significou
adentrar não só o subúrbio (filmou em Cascadura e Quintino) como principalmente o
morro (Providencia, Mangueira e Saúde, entre outros). O filme, porém, não foi
concluído na época e sua possível influencia não ocorreu. As obras sérias da Atlântida,
portanto, permanecem como o ponto de inflexão na busca de um reconhecimento do
homem que habita esse espaço e de uma problematização de sua vivência na cidade. Os
objetivos são alcançados apenas parcialmente, na medida em que a presença desses
ícones já não vem envolta numa fotografia glamurosa, desaparecendo assim o tom
“turístico”. Os filmes falham em externar as contradições existentes entre ricos marcos
citadinos e pobres e esmagados cidadãos. Isto pode ser percebido por exemplo na
seqüência clímax de Amei um bicheiro (1953), de Jorge Lleli e Paulo Vanderley, passada
no recentíssimo e já famoso Aeroporto Santos Dumont.
Esta questão implicava não só em um reconhecimento mais pertinente das
diferenças entre as classes e do mecanismo de exploração capitalista brasileiro, como na
construção estética de uma nova escala imagética. Um trabalho mais propriamente
estético em torno da cidade começa a ser esboçado curiosamente em dois filmes
institucionais encomendados pela Light, Cidade do Rio de Janeiro (1948), de Humberto
Mauro, e O transporte do carioca (1950), de Jean Manzon. O que transparece aqui é
que a infra-estrutura urbana já não funciona tão bem. Há problemas - que a Light
obviamente irá resolver...- e sua existência é evidenciada por curiosos jogos de
montagem, por divertidas e irônicas narrações e por enquadramentos mais
descontraídos, integrando ícones à paisagem comum, como se o Rio de Janeiro tivesse
atingido uma maturidade que lhe permitisse inclusive revelar seus problemas.
Logicamente o alcance dessas supostas críticas é limitado. Só ganham verdadeira
consistência no divisor de águas que é Rio 40 graus (1955). A colocação do homem
comum no centro das atenções não implica o deslocamento dessa paisagem mais
tradicional e conhecida, muito pelo contrário. Será justamente contra ela que se
colocarão os dramas humanos, como na utilização do Maracanã, no filme de Nelson
Pereira dos Santos. Há inclusive uma certa sutileza em todos esses novos filmes, pois
eles escolhem marcos mais novos, mais modernos, tanto no sentido estético, como no
sentido social, já que são obras para as massas, algumas delas para as massas populares.
Contudo, Rio 40 graus é mesmo um divisor. O tratamento da paisagem carioca
seguirá de agora em diante duas grandes linhas. Uma se dedicará a apresentar a cidade
de forma harmoniosa, recorrendo aos ícones como confirmação e não mais como
sagração. Um clichê se instaura e será repetido quase a exaustão, privilegiando-se o
Corcovado e o Pão de Açúcar. Neste sentido basta citar obras bem recentes como Bete
Balanço (1984), de Lael Rodrigues, e Como ser solteiro (1998), de Rosane Svartman, e
verificar a presença desses mesmos pontos servindo como marcos do que seria o Rio de
Janeiro. Esta visão conservadora ganha lastro visual na obra do cineasta argentino
Carlos Hugo Christensen, que adota a cidade para viver e a exalta em sucessivas
elegias: Meus amores no Rio (1958), Esse Rio que eu amo (1961), Crônica da cidade
amada (1965). O que há de distintivo aqui será justamente o emprego pioneiro da cor,
como que renovando a já tradicional imagem da cidade. A outra linha procurará
justamente o confronto entre esse Rio cartão-postal e sua vivencia cotidiana. São obras
como Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Faria, Cinco vezes favela (1962), de
Carlos Diegues e outros, A grande cidade (1965), de Carlos Diegues, As cariocas
(1966), de Roberto Santos e outros e Opinião pública (1967), de Arnaldo Jabor, em que
contradições, oposições, situações inconciliáveis são encenadas justamente em locais
“tradicionais” da cidade. Isso não significa uma desglamurização da paisagem, ainda
que ela realmente não seja mais tratada como símbolo de beleza em si. A escolha tem a
intenção de integrar o homem a esta paisagem e mostrar que ela também lhe pertence
pelo menos idealmente. A violência que se vê nesses locais não é culpa da paisagem e
sim das relações sociais que se expressam através dela. É notável começar a ver um
filme como Garrincha, alegria do povo (1962), de Joaquim Pedro de Andrade,
justamente por uma grande homenagem a esse palco popular chamado Maracanã. A
imagem o trata como um templo e a banda sonora se abstém de qualquer comentário,
deixando o coro das torcidas evidenciar o êxtase que percorre o concreto e o gramado. É
mais notável ainda ver o filme tomar uma posição bastante critica em relação ao futebol
(seria o ópio do povo) sem no entanto desfazer a mística criada no inicio em relação ao
local. O cinema novo promove ao seu modo também uma sagração desse novo Rio de
Janeiro, às vezes emprestando-lhe conotações insuspeitas, como no caso do Parque
Lage, reinventado em Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e Macunaíma (1970),
de Joaquim Pedro de Andrade.
Essa apropriação prossegue de forma mais significativa, embora efêmera, em um
conjunto de filmes de menor quilate, como Todas as mulheres do mundo (1966), de
Domingos de Oliveira, El justiceiro (1966), de Nelson Pereira dos Santos, e Os
Paqueras (1969), de Reginaldo Faria, entre outros, nos quais o que desponta é a
construção desse ser único chamado carioca. A paisagem empresta signos que definem o
morador autentico da cidade. Beleza, alegria, descontração, bom humor, musicalidade,
misticismo, miscigenação, enfim, integração, fazem um resumo do descompromissado
bando que se engaja no desbunde e cria novos sítios urbanos como as famosas Dunas da
Gal. A proposição se dilui e se caricaturiza na pornochanchada e no pornô-chic,
chegando a uma visão francamente negativa como a de Rio Babilônia (1980), de
Neville D’Almeida. Estamos em vias de expor com o máximo de violência possível a
cidade “partida”, para usar o termo do jornalista Zuenir Ventura. A cidade se parte e sua
imagem se fragmenta. Não há nada de particulamente distintivo na Copacabana de A
viúva virgem (1972), de Pedro Carlos Rovai, no Centro de A dama da lotação (1975),
de Neville D’Almeida, ou na Zona Norte de Chuvas de verão (1978), de Carlos
Diegues. São filmes comuns sobre uma cidade comum. Os velhos ícones são agora
ícones de uma decadência como a Estação da Leopoldina que aparece em Romance da
empregada (1984), de Bruno Barreto. O esplendor se foi.
Isso não significa que a cidade não tenha sido mais filmada. Muito pelo
contrário. O documentário continuará a registrá-la em profusão, eventualmente ainda
fazendo-lhe elogios como em Rio amado (1966), curta de Fernando Cony Campos. Mas
as centenas de complementos que lhe são dedicados ao longo dos anos 70 apontam na
verdade para a busca de uma cidade que já não existe mais. Os temas giram quase
sempre sobre costumes ou locais em vias de desaparecimento, como Cinema Íris
(1977), de Carlos Diegues, que inclusive ajudou na luta pelo tombamento da sala, ou
Palácio Monroe (1978), de Célio Gonçalves, que documenta a demolição do palácio de
mesmo nome. Há inclusive um tom nostálgico em alguns projetos como Folia (1974),
de Adhemar Gonzaga, e Memória do carnaval (1976), de Alice Gonzaga, em que
imagens de arquivo servem de contraponto ao vazio ou degradação contemporâneos. O
esplendor realmente se foi.
Era preciso portanto reinventar a cidade, ainda que isto não ocorresse de fato na
realidade. É ao que se propõem filmes como Bete Balanço e Ópera do Malandro
(1984), de Ruy Guerra, estilizações altamente sofisticadas, que brincam com as noções
do espectador a respeito de seus conhecimentos visuais e sonoros a respeito do Rio de
Janeiro daquele momento e de outrora. Signos como bondes, carrilhões e blocos de
carnaval surgem na banda sonora deste, enquanto aquele promove uma desconstrução
geográfica da cidade, apresentando um novo Rio para um novo público, que estava
voltando a consumir cinema naquele momento. O que prevalece no entanto é a imagem
fracionada e violenta, vista de Uma avenida chamada Brasil (1989), de Octávio
Bezerra, a Primeiro dia (1999), de Daniela Thomas e Walter Salles, este inclusive
baseado parcialmente no livro Cidade partida. A nova geo-iconografia (um
Sambódromo em Isto é Noel [1991], de Rogério Sganzerla, a Gávea e o Leblon em Não
quero falar sobre isso agora [1991], de Mauro Faria) não tem força e a velha imagem
(Maracanã, Central do Brasil, Copacabana em Veja esta canção [1994], de Carlos
Diegues e novamente a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar em Como ser solteiro)
parece apenas rebarbativa. Em que pese a beleza do plano sobre o Pão de Açúcar no
filme de Rosane Svartman, ele indica que o Rio é apenas isso ou se resume a isso. Nada
de novo no front.

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