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Filosofia da Ciência

Unidade 3 - A solução de Popper ao problema da indução

Karl Popper

Curso semipresencial de Filosofia da


Ciência

Juliana de Orione Arraes Fagundes

Brasília

Agosto - 2007

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RELEMBRANDO

Na última Unidade, vimos que o método indutivo, isto é, o método de colher

observações para depois partir para a formulação de leis gerais, não é capaz de

fornecer um conhecimento seguro do mundo. Várias críticas ao método indutivo

foram apresentadas.

Em primeiro lugar, vimos que o método indutivo não possui o rigor lógico da

dedução. Enquanto esta não permite a passagem de premissas verdadeiras para

uma conclusão falsa, a indução, de nenhuma forma, é capaz de evitar essa

passagem. Por maior que seja o número de observações feitas, isso não

impossibilita que a próxima observação seja contrária a todas as anteriores.

Em segundo lugar, vimos a crítica de Hume à indução. Esse filósofo escocês nos

mostrou que o argumento usado pelos indutivistas para defender a indução é

circular. Os indutivistas justificam o uso do método indutivo da seguinte forma: o

método indutivo sempre funcionou no passado, portanto, é um bom método. O

problema é que essa não é boa justificativa, pois o fato de o método indutivo ter

funcionado em diversas ocasiões não garante que ele funcionará sempre.

Outro problema relativo à indução diz respeito à vagueza para a determinação dos

critérios necessários para permitir uma indução razoavelmente segura. Como

saberemos definir quantas observações são necessárias? Ou quais são as

condições relevantes para a variação das observações?

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Apresentamos, ainda, o problema probabilístico. Para sabermos a probabilidade

de uma lei geral ser verdadeira, precisamos saber a probabilidade de todos os

eventos do tipo estudado se conformarem à lei geral. O problema é que os

eventos possíveis são infinitos, o que nos leva a uma probabilidade que tende a

zero.

Se você ainda tiver dúvidas acerca da indução, procure reler os capítulos

anteriores ou busque referências complementares. Para saber mais sobre as

críticas de Hume à indução, sugiro a leitura do texto do filósofo John Hospers

sobre o problema da indução. Para isso, clique no nome do filósofo.

ALGUNS EXEMPLOS

Diante dos diversos problemas apresentados pelo método indutivo, será que é

hora de abandonarmos a nossa confiança na ciência? Considerando os avanços

da medicina e da tecnologia, por exemplo, talvez seja precipitado abandonarmos a

nossa crença nas descobertas científicas. É possível, contudo, que o método

indutivo não caracterize a ciência de maneira adequada. O indutivismo pode ser

apenas uma caracterização ingênua do método científico. É certo que muitas das

descobertas científicas podem se mostrar falsas. Também é certo que isso já

aconteceu muitas vezes no passado.

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Vimos, por exemplo, que muito tempo foi necessário para que os zoólogos

descobrissem que nem todos os cisnes são negros. Além disso, a história da

ciência nos fornece outros exemplos, alguns, inclusive trágicos, como é o caso da

teoria heliocêntrica. Durante a Idade Média, os astrônomos adotavam o modelo

geocêntrico de Aristóteles para descrever os Universo. Para eles, a Terra estava

no centro do Universo, parada, e os demais corpos celestes giravam em círculos

ao redor dela.

Em 1514, Nicolau passou a defender a tese heliocêntrica, isto é, que a terra e os

demais planetas giravam ao redor do sol e este permanecia parado. Suas idéias

não foram levadas a sério, pois eram incompatíveis com os ensinamentos

teológicos. Até que Galileu Galilei, por volta de 1610, a partir de uma série de

observações astronômicas, demonstrou que o sol estava de fato parado no centro.

Na concepção da Igreja, as idéias de Galileu eram ofensivas, pois estavam em

contradição com os ensinamentos bíblicos. Por isso, Galileu foi condenado pela

Inquisição a viver em prisão domiciliar e a negar as suas idéias.

O FALSIFICACIONISMO

Uma nova maneira de pensar sobre o método científico foi proposta por Karl

Popper. Segundo o indutivismo, a ciência parte de observações particulares para

a formulação das suas teorias. Porém, Popper argumenta que a ciência não parte

da observação. O primeiro passo dado pelo cientista é a formulação da teoria. A

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teoria é considerada como uma conjectura, uma possibilidade aberta à

corroboração ou à refutação.

Após a formulação da teoria, para Popper, os cientistas partem para as

observações. Se as observações confirmarem a teoria, a teoria é apenas

corroborada, porém, se as observações se mostrarem contrárias à teoria, então

ela é sumariamente refutada (ou falsificada).

Certamente, após a formulação da teoria, as observações deverão ser feitas em

grande quantidade e em condições diversas. Sempre que as observações

confirmam a teoria, ela é corroborada. Portanto, a teoria será tanto mais confiável

quanto maior a quantidade de observações feitas e a diversidade das condições.

Porém, sempre é possível que uma observação se mostre contrária à teoria. Por

mais que a teoria tenha sido corroborada, uma única observação contraditória é

suficiente para derruba-la. Uma lei geral não pode ser considerada verdadeira se

houver um caso que a contradiga, pois nesse caso a lei deixa de ser geral!

Para Popper, a possibilidade de falsificação está aberta a todas as teorias

científicas, e é justamente o que caracteriza a ciência. Todas as hipóteses

científicas devem ser falsificáveis, por mais estabelecidas que elas estejam, por

mais corroboradas pela experiência que elas tenham sido e por mais que as

pessoas confiem nelas. Uma hipótese que não seja falsificável, na visão desse

filósofo, não é científica.

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De acordo com essa concepção de ciência, a indução não é importante. O mais

relevante é a falsificação. Por mais que uma hipótese tenha sido corroborada, ela

sempre pode ser falsificada por uma observação. É a refutação o aspecto

interessante da ciência. Não existe a possibilidade de que as hipóteses científicas

sejam definitivamente provadas. Elas são apenas corroboradas.

No capítulo 2, vimos o quanto é difícil provarmos uma teoria científica. Por mais

observações que sejam feitas, sempre haverá a possibilidade de encontrarmos um

contra-exemplo. Não é possível, por meio de inferências lógicas, passarmos de

uma série de observações para a formulação de leis gerais. Porém, é possível

passarmos de uma de uma lei geral para a sua falsificação por intermédio das

observações. Assim, se a nossa hipótese for “Todos os cisnes são brancos”, no

momento em que um cisne negro for encontrado, a lei geral será revisada. No

método falsificacionista, sempre que uma observação se mostrar contrária à lei

geral, há uma contradição lógica, pois a premissa geral é verdadeira e a conclusão

particular é falsa. Se houver uma contradição lógica, a teoria científica deve ser

abandonada.

Essa particularidade lógica do método falsificacionista evita o problema da

indução, pois a ciência deixa de precisar da indução. As observações particulares

servem apenas para corroborar com a teoria, mas as inferências importantes para

a ciência são as refutações. E as refutações não são indutivas, mas sim um ponto

de partida para a realização de uma dedução. A falsificação, portanto, é um

método muito mais fácil e muito mais seguro do que a indução.

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CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO

Podemos, agora, voltar a uma das nossas questões: as leis científicas são

provadas? Existem provas científicas definitivas? Parece que não, a ciência é uma

rede de conjecturas propostas como hipóteses. Se essas hipóteses forem

refutadas, serão substituídas por novas hipóteses. Porém, se a ciência é apenas

conjetural, então como podemos diferenciar a ciência da mitologia, por exemplo?

Como separar a ciência da religião ou outros tipos de pensamento que não

seguem a metodologia rígida da ciência? Esse problema é o problema da

demarcação: como demarcar o território de abrangência do conhecimento

científico, separando-o da religião, da filosofia, da metafísica etc?

O critério proposto pelos falsificacionistas é o seguinte: para uma hipótese ser

científica, ela precisa ser falsificável. Caso contrário, não poderá ser considerada

científica. Chalmers (1993, p. 66) nos oferece alguns exemplos de afirmações

falsificáveis:

“1. Nunca chove às quartas-feiras.


2. Todas as substâncias se expandem quando aquecidas.
3. Os objetos pesados, como um tijolo, quando liberados perto da
superfície da Terra, caem diretamente para baixo se não forem
impedidos,
4. Quando um raio de luz é refletido de um espelho plano, o ângulo
de incidência é igual ao ângulo de reflexão.”

Como essas afirmações podem ser falsificadas? No exemplo (1), basta

observarmos uma quarta-feira chuvosa. No exemplo (2), será necessário

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aquecermos uma substância e observarmos que ela não se expande. Sabemos

que essa afirmação não é verdadeira. A água, se estiver perto de seu ponto de

congelamento, não irá se expandir quando aquecida. Assim, tanto o exemplo (1)

quanto o exemplo (2) são falsificáveis e são falsos. No caso da afirmação (3), para

que ela seja falsificada, será necessário soltarmos um objeto próximo à superfície

da Terra e o objeto flutuar ou subir. Embora saibamos que isso é muito pouco

provável, isso é possível. Se isso acontecesse, a afirmação (3) seria refutada. No

caso (4), basta observarmos um caso no qual o ângulo de incidência do raio fosse

diferente do seu ângulo de reflexão. Nesse caso, a lei da reflexão seria falsificada.

Nos casos (3) e (4), embora seja muito pouco provável que aconteça a

falsificação, não há contradição lógica em sua possibilidade de falsificação.

Porém, há outros tipos de afirmações que não são falsificáveis, e essas não

podem fazer parte do domínio científico. Por exemplo:

5. Chove ou não chove.

6. Todos os solteiros são não-casados.

7. Deus conhece todos os nossos pensamentos.

A hipótese (5) não pode ser refutada, pois é uma tautologia, ou seja, é sempre

verdadeira, em quaisquer circunstâncias. A afirmação (6) também não pode ser

refutada, pois apresenta uma definição da palavra “solteiro”. No caso da afirmação

(7), não temos como realizar nenhuma observação que nos permitisse falsificar

essa idéia. As afirmações apresentadas pelo domínio da religião, portanto, não

podem ser consideradas científicas, pois não são falsificáveis. Aliás, certamente

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essa não é uma preocupação dos religiosos. Da mesma forma, as tautologias não

são falsificáveis.

Os cientistas, portanto, devem cuidar para que as suas hipóteses não sejam

tautologias, pois as tautologias não nos dizem nada a respeito de como o mundo

é. Um compromisso da ciência deve ser o oferecimento de informações precisas a

respeito de como funciona o mundo em que vivemos.

O que diferencia a ciência de outras crenças, embora nenhuma possa ser

provada, é que a ciência pode ser falsificada. Para que ela seja falsificável, suas

teorias devem ser formuladas em termos precisos. As previsões devem ser

definitivas. Por exemplo, quando um astrônomo prevê que o planeta x estará na

posição p no tempo t, sua previsão é definitiva e falsificável. Porém, se um

astrólogo afirma que as pessoas de sagitário terão muita sorte no trabalho no dia

1º de outubro e o senhora Luisa, que é de Sagitário, perder o emprego nessa

data, os astrólogos responderão que isso, na realidade, foi o melhor que poderia

acontecer e que agora ela poderá procurar um outro emprego melhor.

Percebemos, com isso, que a astrologia não apresenta previsões falsificáveis.

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CIÊNCIA E PROGRESSO

Para o indutivista, a ciência pode progredir. Como a ciência progride para o

indutivista? Por meio do acúmulo de observações e generalizações dessas

observações, isto é, pela indução. Como vimos, o falsificacionista rejeita a noção

de indução. Isso significa que ele também rejeita a noção de progresso na

ciência?

Imagine que o senhor Wilson foi a uma sapataria procurar um sapato vermelho. O

vendedor que o atendeu precisou abrir diversas caixas de sapato. A cada que

abria, percebia que o sapato contido nela não era vermelho. Ele fechava a caixa e

a colocava em uma pilha. Em seguida, abria outra caixa, e assim sucessivamente.

Após ter aberto um grande número de caixas, ele ainda não havia conseguido

achar o sapato vermelho. Isso significa que não fez nenhum tipo de progresso? É

claro que fez! Ele agora ao menos sabe que o sapato vermelho não está nas

caixas que ele colocou na pilha.

A posição do cientista é semelhante à do vendedor de sapatos. Embora ele não

tenha certeza a respeito de qual é a teoria verdadeira, ele ao menos sabe quais

não são as teorias verdadeiras. E isso, pensa Popper, é uma forma de progresso.

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Atividades

1. Muitas pessoas criticam a Teoria da Evolução de Darwin com o argumento

de que é apenas uma teoria, uma hipótese que ainda não foi provada e que,

portanto, não deve ser levada tão a sério. Olhando a partir de uma perspectiva

falsificacionista, você concorda com essa crítica?

2. Para saber mais sobre o falsificacionismo de Popper, sugiro a leitura do

texto do Papineau. Em seguida, escreva um resumo com as principais idéias

falsificacionistas que você aprendeu.

Referência

HOSPERS, John. O problema da indução. Disponível em:

<http://www.filedu.com/jhospersproblemadainducao.html> Acesso em: 26 ago. 07.

Para saber mais

CHALMERS, A. F. Apresentando o falsificacionismo. In: O que é ciência, afinal?

São Paulo: Brasilense, 1993.

PAPINEAU, David. O falsificacionismo de Karl Popper. Disponível em:

<http://www.didacticaeditora.pt/arte_de_pensar/leit_falsificacionismo.html> Acesso

em: 26 ago. 07.

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