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As elites camarárias em São Paulo: um estudo dos mecanismos de eleição e posse


da edilidade paulistana (1765-1802)
Leandro Calbente Câmara *

O objetivo central do meu projeto é entender o funcionamento e as atribuições

da Câmara Municipal da cidade de São Paulo na segunda metade do século XVIII,

observando as relações dessa instituição com as demais instâncias de poder na região

(especialmente com o ouvidor e com o capitão-general). Desse modo, pretendo

dimensionar o papel e a importância do poder local (do qual a câmara é sua

manifestação mais visível e importante) frente aos poderes intermédios e centrais na

capitania de São Paulo.

Entretanto, para atingir tal propósito existem algumas discussões subsidiárias

importantes. Uma delas é identificar os mecanismos de eleição e posse da edilidade

paulistana. Através disso, é possível entender quais interesses a Câmara efetivamente

defendia e, também, compreender quais estratos sociais podiam nela atuar.

Sobre esse tema há uma série de trabalhos importantes, analisando a composição

dos ofícios camarários tanto na metrópole quanto na colônia 1 . Pretendo nesse artigo

*
Mestrando sob orientação da professora doutora Eni de Mesquita Samara. Bolsista CNPq. Texto
apresentado no I Seminário de Pós-Graduandos em História Moderna, UFF, Rio de Janeiro, 2006.
1
Sem pretender realizar um levantamento exaustivo, devo mencionar os seguintes trabalhos sobre a
questão: ABUD, Katia Maria. Autoridade e Riqueza: contribuição para o estudo da sociedade
paulistana na segunda metade do século XVIII. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH-USP,
1978; BICALHO, Maria Fernando. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; ______. Centro e periferia: pacto e negociação política na
administração do Brasil colonial, Leituras: Revista da Biblioteca Nacional, Lisboa, n 6, pp.17-39, abr.-
out. 2000; ______. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a
cultura política do Antigo Regime, Almanack Braziliense, São Paulo, n 2, pp. 21-34, novembro 2005;
COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). Dissertação de
Mestrado. Niterói: UFF, 2006; GOUVÊA, Maria de Fátima. Redes de poder na América Portuguesa: o
caso dos homens bons do Rio de Janeiro, 1790-1822, Revista Brasileira de História, São Paulo,
ANPUH, vol. 18, n° 36, pp. 297-330, 1998; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Os concelhos e as
comunidades, in. HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal. O Antigo Regime
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levantar alguns dados empíricos, coletados nas fontes documentais, e discuti-los com os

trabalhos sobre o tema.

A historiografia, em linhas bastante gerais, aponta para uma tendência de

oligarquização das edilidades no Império português. Seus cargos eram ocupados por

“indivíduos denominados homens bons. Essa designação vaga se referia aos

integrantes das elites sócio-econômicas locais, que deveriam atender uma série de

requisitos” 2 .

Entretanto, essa situação não se apresentava de maneira uniforme. Os conselhos

mais pobres nem sempre ofereciam grandes ganhos materiais e simbólicos, o que

tornava tais cargos menos atrativos. Por outro lado, os ofícios das câmaras mais

importantes eram bastante disputados, gerando grandes conflitos entre os diversos

grupos sociais que buscavam o controle da instituição.

Nesse sentido, o caso da Câmara da cidade de São Paulo, à primeira vista, pode

parecer atípico. Isso porque, após a realização das eleições anuais, muitos indivíduos

pediam licença dos cargos para os quais haviam sido nomeados, sendo necessária a

realização de novas eleições. Observando a tabela 1 nota-se que cerca de 51% dos

(1620-1807), Vol. 4, Lisboa, Editorial Estampa, 1993; ______. Poderes Municipais e Elites Locais
(séculos XVIIXIX): estado de uma questão, in. VIEIRA, Alberto. O município no mundo português,
Funchal, CEHA/Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 1998; SILVA, Isis Messias da. Pelouros e
Barretes: Juízes e Vereadores da Câmara Municipal de Curitiba – Século XVIII. Monografia de
conclusão de curso. Curitiba: UFPR, 2005; SOUSA, Avanete Pereira. Poder local e cotidiano: a
Câmara de Salvador no século XVIII. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 1996; VIDIGAL,
Luís. O Municipalismo em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Livros Horizonte, 1989; ______. No
Microcosmo Social Português: Uma Aproximação Comparativa a Anatomia das oligarquias Camarárias
no Fim do Antigo Regime Político (1750-1830), in. VIEIRA, Alberto. O município no mundo
português, Funchal, CEHA/Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 1998;
2
Adriano Comissoli, Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808), p. 21. (grifo do
autor)
3

oficiais que tomaram posse no período de 1765 a 1802 foram eleitos através de eleições

de barrete 3 .

Tabela 1: Eleição de Pelouro e Barrete (1765-1802)


Cargo Pelouro Barrete Total
Juiz ordinário 34 42 76
Vereador 61 53 114
Procurador 17 21 38
Total 112 116 228
Porcentagem (%) 49,12 50,87 100
Fonte: Actas da Camara Municipal de São Paulo. São Paulo: Publicação do Arquivo Municipal de São Paulo,
subdivisão da documentação histórica, vol. XV-XX, 1916-1923.

Além disso, havia uma grande rotatividade na ocupação desses cargos. Ao longo

do período desse estudo, houve nomeações para 228 ofícios, os quais foram ocupados

por 139 indivíduos diferentes. Ao lado do grande número de homens diferentes que

ocuparam tais cargos, percebe-se que nomeações contínuas dessas pessoas eram pouco

freqüentes, como se vê na tabela 2.

Tabela 2: Número de nomeações por indivíduo


1 nomeação 85 58,62%
2 nomeações 32 22,07%
3 nomeações 15 10,34%
4 nomeações 7 04,83%
Nomeações não identificadas 6 04,14%
Fonte: Actas da Camara Municipal de São Paulo. São Paulo: Publicação do Arquivo Municipal de São Paulo,
subdivisão da documentação histórica, vol. XV-XX, 1916-1923.

A grande maioria dos indivíduos que efetivamente tomou posse (58,62%) só

assumiu tais cargos uma única vez. Por outro lado, dentro do período estudado, nenhum

oficial teve mais do que quatro mandados na instituição.

3
Havia duas formas de eleição para os oficiais camarários. A primeira, chamada de eleição de pelouro,
consistia em um sistema um tanto complexo de eleição indireta, onde eram elaboradas listas trienais dos
indivíduos que deveriam assumir os tais cargos. Entretanto, na impossibilidade (pelas razões mais
diversas, inclusive pelos pedidos de dispensa dos cargos) desses assumirem seus cargos, realizava-se
eleições substitutas, chamadas de eleições de barrete. Sobre o tema consultar o título 67 das
ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro 1 [1603]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. (Edição fac-
similar organizada por Cândido Mendes de Almeida; Rio de Janeiro, 1870), pp. 153-157.
4

Essa situação, o alto número de pedidos de dispensa somado com a grande

rotatividade nas eleições, levou alguns pesquisadores a questionarem a importância da

câmara na sociedade paulistana. Nesse sentido, Katia Abud é bastante clara:

“[Na segunda metade do século XVIII] a Câmara passou, pois, a ser ocupada,

em sua maior parte, por portugueses de origem obscura, que procuravam São

Paulo para atividades de mercancia. (...) Já aqueles que possuíam outros

meios de ascensão não procuravam pela Câmara; ao contrário, até a

evitavam, conforme se percebe através do grande número de licenças que


4
eram solicitadas”

A autora observa que nesse momento (segunda metade do século XVIII) os

homens mais interessados em participar da câmara não eram aqueles provenientes dos

estratos sócio-econômicos superiores, mas dos médios e baixos. Segundo seus dados, no

intervalo de 1765 até 1800, 205 indivíduos ocuparam cargos na câmara, cujas profissões

foram identificadas em 108 casos 5 . Desses 108 identificados, apenas 65 estavam

situados nos estratos mais ricos da população 6 . Além disso, como pode ser observado

na tabela 3, a maioria dos homens eleitos era comerciante:

4
Katia Abud, Autoridade e Riqueza: contribuição para o estudo da sociedade paulistana na segunda
metade do século XVIII, pp. 88-89.
5
Os dados da autora são discrepantes dos meus, pois neles estão incluídos também os almotacés. Ainda
não pude realizar um levantamento completo dos almotacés, por isso não considerei esses dados em
minha análise.
6
Katia Abud, Autoridade e Riqueza: contribuição para o estudo da sociedade paulistana na segunda
metade do século XVIII, pp. 91.
5

Tabela 3: Renda e profissão dos ocupantes da Câmara 7


Cabedal maior que 500$000 Cabedal menor que 500$000 Total
Profissão Nº % Nº % Nº %
Comerciantes 33 50,76 17 40,47 50 46,72
Lavradores 12 18,46 13 30,95 25 23,36
Funcionários 4 06,15 7 16,66 11 10,28
Advogados 1 01,53 1 02,38 2 01,86
Mineiros 3 04,61 0 00,00 3 02,80
Boticários 1 01,53 0 00,00 1 00,93
Cirurgiões 2 03,07 0 00,00 2 01,86
Fabricante de telhas 1 01,53 0 00,00 1 00,93
Vive de jornais 1 01,53 0 00,00 1 00,93
Tabelião 0 00,00 1 02,38 1 00,93
Pintor 0 00,00 1 02,38 1 00,93
Sem profissão 7 10,76 2 04,76 9 08,41
Total 65 100 42 100 107 100
Fonte: ABUD, Katia Autoridade e Riqueza: contribuição para o estudo da sociedade paulistana na segunda
metade do século XVIII. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH-USP, 1978.

Cruzando os dados sócio-econômicos com o número de nomeações de cada

indivíduo, Abud constatou que os comerciantes mais ricos permaneceram pouquíssimo

tempo na câmara, na maioria das vezes apenas um mandato. Já os comerciantes de porte

médio e os tropeiros costumavam ocupar mais de um cargo na instituição. Daí, a autora

conclui que:

(...) os homens de negócios que viveram em São Paulo na segunda metade do

século XVIII tinham condições de pertencer à elite, sem que para tanto

7
Como se pode observar na tabela, a autora utiliza como critério de estratificação social o valor do
cabedal dos indivíduos analisados. Nesse sentido, Abud considera que um indivíduo com cabedal superior
a 500$000 teria destaque na sociedade.
6

necessitassem dos cargos do Senado da Câmara, que já então eram


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desprestigiados pela Metrópole

E justifica essa situação apontando que:

Se antes a Câmara, como órgão local, participava dos principais eventos da

terra, agora seu poder se restringia aos problemas do comércio local, limpeza

e abertura de ruas, e outras questiúnculas ligadas à comunidade. Ao mesmo


9
tempo, era desrespeitada e desprezada pela Coroa e por seus representantes

Tais premissas são reforçadas quando comparamos a Câmara de São Paulo com

outras câmaras municipais da América portuguesa. A Câmara de Curitiba, por exemplo,

teve num período de 135 anos a posse de 338 indivíduos distintos nos seus diversos

cargos. Entretanto, nesse mesmo período foi feita eleição para 816 postos diferentes.

Além disso, havia uma repetição recorrente dos mesmos homens nos diversos cargos da

instituição, sendo que 4 pessoas chegaram a ocupar 8 cargos 10 .

O caso da Câmara de Salvador é bastante similar. No intervalo de 1700 a 1800

cerca de 253 indivíduos exerceram cargos de vereador ou procurador em Salvador. E

novamente houve uma grande repetição de um pequeno grupo de pessoas ocupando

diversos cargos em anos seguidos 11 .

Entretanto, é preciso matizar um pouco a relação entre os mecanismos de eleição

das câmaras municipais e a sua perda de importância. Como alerta Adriano Comissoli, o

8
Katia Abud, Autoridade e Riqueza: contribuição para o estudo da sociedade paulistana na segunda
metade do século XVIII, pp. 101.
9
Katia Abud, Autoridade e Riqueza: contribuição para o estudo da sociedade paulistana na segunda
metade do século XVIII, pp. 109.
10
Isis Messias da Silva. Pelouros e Barretes: Juízes e Vereadores da Câmara Municipal de Curitiba
– Século XVIII, pp. 05-34.
11
Avanete Pereira Sousa, Poder local e cotidiano: a Câmara de Salvador no século XVIII, pp. 51-52.
7

processo de oligarquização das câmaras não passava necessariamente pelo número de

cargos que os indivíduos ocupavam. Pelo contrário. O importante é perceber que através

da constituição de redes de poder, especialmente através de alianças familiares, tornava-

se possível uma permanência recorrente de determinados grupos sociais na instituição

camarária 12 .

Em seu trabalho Comissoli estuda a Câmara de Porto Alegre e encontra uma

situação um pouco parecida com a de São Paulo. Seus dados apontam que no período de

1767 até 1808 houve eleição de 252 ofícios camarários, os quais foram preenchidos por

cerca de 125 indivíduos. Assim como em São Paulo, na Câmara de Porto Alegre era

pouco freqüente a reeleição dos mesmos homens nos diversos cargos, como se percebe

na tabela 4.

Ocupação efetiva dos ofícios camarários (1767-1808)


N. de CARGOs Efetivos N. DE INDIVÍDUOS PERCENTUAL DE INDIVÍDUOS (%)
1 56 44,8
2 33 26,4
3 13 10,4
4 14 11,2
5 5 4,0
6 2 1,6
7 2 1,6
Total 125 100
Fonte: COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). Dissertação de
Mestrado. Niterói: UFF, 2006

12
“Como se vê, a historiografia tem se dedicado ao assunto da oligarquização das Câmaras portuguesas a
partir de dois horizontes analíticos: o do número de cargos individualmente exercidos ao longo dos anos e
o da sucessão patrilinear na ocupação dos mesmos ofícios. Propomos, entretanto, que a oligarquização
das Câmaras lusas (em especial no ultramar) seja estudada sob o prisma da formação de bandos, sugerido
por João Fragoso. Tais bandos podem ser entendidos como facções políticas envolvidas com a
administração pública, seja através da Câmara, seja através de ofícios régios. Os membros do bando
(também chamado facção, parcialidade ou partido) possuem ou estabelecem laços de parentesco entre si,
mas compartilham também interesses econômicos e políticos bastante aproximados. Dessa forma, a
atuação do bando na Câmara se guiava pelo interesse comum do grupo, estabelecendo estratégias que
visavam seu benefício. Formava-se uma rede de poder”. em Adriano Comissoli, Os “homens bons” e a
Câmara de Porto Alegre (1767-1808), p. 81-82
8

Ainda assim, o autor consegue demonstrar em seu trabalho que um determinado

grupo social, chamado de “bando dos cunhados” 13 , consegue controlar um grande

número de ofícios camarários, mesmo que individualmente nenhum deles tenha

permanecido por vários mandatos.

Portanto, é possível que os pedidos de dispensa e as recusas em participar das

câmaras, o que acontece com grande freqüência em São Paulo, não signifique um

desprestígio da instituição. Com o estabelecimento dessas redes era possível que um

determinado indivíduo mantivesse sua influência na câmara sem atuar como oficial,

logo a recusa seria uma decisão de interesses pontuais, e não um efetivo distanciamento

desse espaço de atuação política.

Nesse sentido, vale lembrar um aspecto específico da Câmara de São Paulo que

demonstra com clareza a influência das redes familiares na gestão dessa instituição.

Refiro-me a disputa política dos Pires e dos Camargos, as duas famílias importantes na

capitania desde o século XVII. O resultado dessa disputa foi o estabelecimento de um

acordo no qual a Câmara local sempre deveria contar com um juiz e um vereador de

cada uma dessas famílias. Tal acordo recebeu aprovação régia e tornou-se lei, estando

ainda em vigor em meados do século XVIII 14 .

Logo, ainda que fosse possível o intercâmbio de diversos indivíduos nos

diversos ofícios da Câmara Municipal de São Paulo, as duas famílias, suas ramificações

e seus aliados conseguiram manter o controle da instituição camarária por mais de dois

séculos. Dessa forma, para entender o processo de formação das elites camarárias é

imprescindível estar atento para a construção dessas redes familiares.

13
Adriano Comissoli, Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808), p. 85-115.
14
Ver o “Registro de um edital que o juiz presidente mandou registrar depois de publicado a respeito da
eleição de barrete” de 12/01/1765 em Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. São Paulo:
Arquivo Municipal de São Paulo, 1919-1941, v. XI, pp. 95-97.

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