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Urbanização e transformação social: As estruturas populacionais dos

Bairros Rurais Paulistanos no início do século XIX ∗

Leandro Calbente Câmara 1

Palavras-chave: São Paulo; demografia; bairros rurais; história.

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo estudar as transformações nas estruturas


populacionais dos bairros rurais paulistanos, especialmente em Nossa Senhora do Ó e Penha,
decorrentes do processo de urbanização da cidade de São Paulo, no início do século XIX.
Daremos atenção especial às modificações nas estruturas de posse de cativos e seus reflexos
na economia e na população local. Para tal, trabalharemos com os maços de população dos
anos de 1827 e 1836, assim como com descrições de viajantes e memorialistas, documentação
que apresenta informações bastante ricas sobre o movimento populacional dessas regiões.


Texto de 2004.
1
Graduando em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e bolsista PIBIC-CNPq
com o projeto São Paulo: 1827, uma análise demográfica, Penha, Nossa Senhora do Ó e Santana.

1
Urbanização e transformação social: As estruturas populacionais dos
Bairros Rurais Paulistanos no início do século XIX ∗

Leandro Calbente Câmara 2

Saint-Hilaire, que visitou São Paulo no início do século XIX, ficou espantado com a
letargia das vilas e cidades do Brasil. Assim, constatou:

No interior do Brasil [...] a população permanente das vilas e cidades é


escassa; a maioria de suas casas pertencem a agricultores, que nas mesmas só
permanecem aos domingos e dias santos, para assistirem às solenidades religiosas,
conservando-as fechadas durante os demais dias do ano, sendo pois, a bem dizer,
inteiramente supérfluas, completamente inúteis (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 70)

No entanto, suas impressões sobre a capital da província foram bastante diferentes. Em


suas ruas, Saint-Hilaire encontrou:

Funcionários de todas as ordens, operários de diversas categorias, um


grande número de mercadores, proprietários de casas urbanas, proprietários de bens
rurais que, ao contrário dos de Minas Gerais, não moram em suas fazendas [...] se
contam também várias pessoas que vivem da venda de legumes e frutas cultivadas
em suas próprias chácaras (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 154)

E continua:

A situação de São Paulo é encantadora e é puro o ar que ali se respira. Vê-


se um grande número de lindas casas e as ruas não são desertas como as de Vila
Rica; os edifícios públicos são bem conservados e não se tem a cada passo, como em
grande parte das cidades e vilas de Minas Gerais, a vista impressionada pelo aspeto
[sic] de abandono e ruínas. (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 155, grifo meu)

A idéia de uma São Paulo urbanizada, detectada pelo famoso viajante, também
aparece nos dados das listas nominativas. Em 1836, existiam 1863 fogos (contra 1069 em
1802) na cidade e apenas 10% destes ainda dependiam fundamentalmente de atividades
agrícolas para sustento de seus domicílios 3 (KUZNESOF, 1986, p. 97 e 123). Estes fogos
geralmente eram menores e menos complexos que aqueles encontrados nas zonas rurais da
cidade 4 :


Trabalho apresentado no XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-
MG – Brasil, de 20- 24 de Setembro de 2004.
2
Graduando em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e bolsista PIBIC-CNPq
com o projeto São Paulo: 1827, uma análise demográfica, Penha, Nossa Senhora do Ó e Santana.
3
Sabemos que é preciso ter um pouco de cuidado com tais dados, já que as listas nominativas não eram muito
precisas na divisão profissional dos fogos. Contudo, tal número pode expressar com bastante intensidade as
transformações urbanas já que, usualmente, estas fontes privilegiavam as atividades agrícolas frente as demais.
BACELLAR (2001) e ARAÚJO (2003) discutem o problema das listas e suas divisões profissionais.
4
Entendemos núcleo central pelas freguesias da Sé, Santa Efigênia e do Brás. Por outro lado, temos os bairros
rurais compostos pelas freguesias da Nossa Senhora do Ó e Nossa Senhora da Penha. A cidade ainda era

2
Tabela 1
Tipologia dos Fogos Urbanos 5
Tipologia dos fogos Zona urbana1 Zona rural2
Singular 12% 06%
Desconexa 33% 13%
Nuclear 29% 50%
Extensa 01% 04%
Aumentada 24% 27%
Fraterna 01% 0%
Fonte: 1 SAMARA (1989, p.34); 2 CEDHAL, Maços de População, Capital, 1836.

Os dados da Décima Urbana6 de 1809 e 1829 reforçam a sensação de um adensamento


das regiões consideradas urbanas. Nestes dados é possível perceber que as ruas da freguesia
de Santa Efigênia já estavam sendo incorporadas à região central da cidade 7 .
Este movimento de crescimento articula-se com a necessidade de estabelecer redes de
abastecimento para a cidade. A construção e a ampliação das Casinhas, ao longo do final do
século XVIII 8 , é um exemplo da necessidade de agilizar e tornar mais efetivo o comércio na
cidade. A importância deste mercado fica evidente no relato de Saint-Hilaire:

Não há em São Paulo rua mais freqüentada do que a das Casinhas. A gente
do campo ali vende suas mercadorias aos comerciantes, em cujas mãos os
consumidores vão adquiri-las. Durante o dia nota-se ali acúmulo de negros, de
roceiros, de muares, de arrieiros; de noite a cena é outra: os animais de carga e os
compradores cedem lugar a verdadeiras nuvens de prostitutas de baixa classe,
atraídas pelos camaradas (servidores livres) e pelos roceiros, que elas tentam pescar
em suas redes. (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 163)

Outro importante ponto de troca era a Rua da Quitanda, onde mulheres pobres
realizavam um comércio miúdo de alimentos e produtos diversos. Ao contrário das Casinhas,
este tipo de atividade era clandestino e fortemente repreendido pela Câmara da cidade. No
entanto, era fundamental para a manutenção das camadas menos favorecidas da população
(DIAS, 1995, p.26-28).
O papel administrativo da cidade também tinha grande relevância. Ao longo do século
XVIII e início do século XIX, a Câmara da cidade se afirmou como um dos órgãos
fundamentais para arbitrar as diversas tensões sociais que surgiam junto desta urbanização.
Suas instâncias de ação eram múltiplas, sendo uma instituição fundamental para o

composta por outras freguesias e bairros, entretanto não fazem parte do escopo desta pesquisa. Para uma
discussão sobre o assunto conferir KUZNESOF (1986) e MARCÍLIO (1973).
5
Aqui utilizamos a tipologia e os dados encontrados por SAMARA (1989, p. 34). Os dados não incluem a
freguesia do Brás. Na parte rural, trabalhamos apenas com as freguesias da Penha e Nossa Senhora do Ó
6
A Décima Urbana foi criada em 27 de junho de 1808, cobrando 10% do rendimento liquido de prédios urbanos
habitados, na corte, cidade, vilas e lugares notáveis do litoral para a fazenda real (GLEZER, 1992, p.89).
7
A criação da freguesia data apenas de 1809, mostrando que o crescimento da cidade nesta nova direção
acontecia com uma certa rapidez.
8
As primeiras seis Casinhas ficaram prontas em 1774. No entanto, estas não bastaram e logo foi preciso ampliá-
las. Já em 1787, o Senado da Câmara mandava aumentá-las pois estas não podiam mais acomodar as
necessidades da cidade. Conferir TAUNAY (1951, p.133-135).

3
funcionamento da vida econômica local, já que, entre outras coisas, detinha o controle do
arremate dos estancos 9 .
O espaço de atuação da Câmara, no entanto, estendia-se além dos limites urbanos da
cidade, atingindo os bairros e freguesias distantes, impondo sua jurisdição e suas decisões10 .
Contudo, poderia ir até mais além. Na ata da Câmara de 17 de dezembro de 1808 temos a
seguinte situação:

[...] Assim mais se fez um officio ao senhor general, relativo a um officio


que a Camara da villa nova de Bragança dirigiu a este Senado [da cidade de São
Paulo] para o fim de interceder ao illustrissimo e excellentissimo senhor general
pelo povo daquella villa serem isentos da recruta pela razão de serem aquelles
moradores os que fertilizam a esta cidade com os alimentos naturaes, e por nós
vermos ser justo fizemos a dita representação ao mesmo illustrissimo, e
excellentissimo senhor general a quem não só rogamos pelos moradores da dita
villa, como também de Atibaia e Nazareth (Actas da Camara Municipal de S.
Paulo, vol XX, p. 451-452, grifo meu)

A existência de interesses comuns entre as vilas de Atibaia, Bragança e Nazaré 11 e a


cidade de São Paulo fica evidente nesta ata. Suas buscas pelo apoio da Câmara paulistana
sugerem que o alcance do poder desta instituição não se limitava apenas ao seu município. Os
embates e as tensões entre os diversos órgãos de poder local, todavia, ainda não são
suficientemente claros, ficando evidente a necessidade de realizar estudos mais aprofundados.
O processo de “urbanização incipiente” 12 , pelo qual a cidade passava, possibilitou a
formação de grandes fortunas. No entanto, esta riqueza não parece ter sido distribuída entre o
conjunto da população, pelo contrário, a cidade apresentava altos índices de concentração de
renda. Analisando os inventários da cidade, Viveiros (2003, p. 127) detectou que nas
primeiras décadas do século XIX, mais de 70% da riqueza era controlada por uma parcela
bastante pequena da população.
Quitandeiras, padeiras, roceiros e pequenos comerciantes, artesãos, tentavam
sobreviver numa cidade que “mais inchava do que crescia, multiplicando a pobreza”
desencadeando um “processo de mobilidade descendente” e uma “tendência de
pauperização” de largas parcelas da população local (DIAS, 1995, p. 15 e 87). E muitas vezes
este processo acontecia de forma ainda mais acentuada na parte periférica da cidade, em suas
freguesias rurais.

As freguesias rurais da Penha e Nossa Senhora do Ó 13 formavam uma espécie de


entorno agrícola para São Paulo. Grande parte dos seus habitantes viviam de pequenas roças

9
O estanco era um sistema de monopólio de determinado produto concedido pela Câmara para certas pessoas,
conferir BOMTEMPI (1970, p.97-98). Este sistema foi abolido em 1821, mas o poder municipal conseguiu se
reorganizar após 1828 (DIAS, 1995, p.84-86).
10
Parecem existir poucos estudos voltados para a instituição camarária e as relações políticas da cidade com seu
entorno. Assim como faltam estudos que tentem detalhar com mais clareza o funcionamento administrativo da
cidade ao longo do período colonial e início do século XIX. O trabalho de BLAJ (2002) é uma notável e
importante exceção desta situação.
11
É bom lembrar que estas vilas fizeram parte da cidade de São Paulo por um longo tempo. Elas só tornaram-se
vilas independentes em 1769. Ver MARCÍLIO (1973, p. 54).
12
A idéia de urbanização incipiente é sugerida no importante estudo de DIAS (1995). Acreditamos que esta
noção é bastante adequada para exprimir as transformações sociais da cidade neste momento.
13
As duas freguesias foram desmembradas da Sé em 1796. Conferir MARCÍLIO (1973, p. 54).

4
e, geralmente, direcionavam sua produção para o abastecimento do núcleo central paulistano.
Com a crescente urbanização de São Paulo, estes espaços agrícolas tornaram-se ainda mais
importantes para a manutenção e o funcionamento daquele espaço urbano. No entanto, parece
que tais transformações não trouxeram grandes benefícios para a população local no início do
século XIX.
O relato de Luis D´Alincourt, que visitou a cidade em 1818, deixou a seguinte
impressão sobre o povoamento de Nossa Senhora do Ó:

Adiante está a Igreja de Nossa Senhora do Ó, colocada em uma colina com


o frontispício para S. Paulo, donde dista légua e meia; o estado de ruína, em que se
acha dá logo a conhecer a pobreza do povo, que chega a mil e duzentas almas de
confissão, suas fazendas, e moradas são distantes umas das outras, e somente há um
pequeno número de casas perto da igreja [...] os habitantes desta Freguesia cultivam
a cana de açúcar para extraírem aguardente, o que forma o principal ramo do seu
negócio; colhem café, mandioca, algodão; plantam milho e legumes, quanto basta
para o seu consumo (D´ALINCOURT, 1976, p. 44, grifo meu).

Suas estimativas sobre a população parecem bastantes similares com os dados


encontrados nas listas nominativas:

Gráfico 1
Quadro Comparativo entre os recenseamentos – 1802/1827/1836
3000

2500

2000
População

Penha
1500 NSÓ
Total

1000

500

0
1802 1827 1836
Ano

Fonte: 1802: KUZNESOF (1986, p.103); 1827 e 1836: CEDHAL, Maços de População, Capital,
1827 e 1836.

Num intervalo de pouco mais de 30 anos, o número de habitantes locais apenas


oscilou, sem apresentar qualquer tipo de crescimento mais concreto 14 . O número de fogos,
todavia, não se manteve constante. Em 1802, existiam cerca de 325 fogos (KUZNESOF,

14
Na lista nominativa de 1836, o bairro de Nossa Senhora está incompleto. Num total de 8 quarteirões, os dois
primeiros estão perdidos. É preciso ter em mente esta falha ao observar nossos dados, já que faltam cerca de 400
habitantes de tal bairro.

5
1986, p. 97). Já em 1836 havia pelo menos 400 fogos15 . Mesmo em 1827, quando aconteceu a
queda mais acentuada da população, temos cerca de 323 domicílios 16 nas freguesias rurais.
Desta forma, percebe-se uma diminuição constante no tamanho dos fogos ao longo do século
XIX.

Gráfico 2
Média de habitantes por fogo – 1802/1827/1836
Média de habitantes por

10
8
Penha
6
fogo

NSÓ
4
Total
2
0
1802 1827 1836
Ano

Fonte: 1802: KUZNESOF (1986, p.97-103); 1827 e 1836: CEDHAL, Maços de População,
Capital, 1827 e 1836.

Estas freguesias, ao contrário de outras regiões da capitania/província de São Paulo


que cresceram significativamente no início do século XIX com a entrada de um grande
número de escravos 17 , perderam parte de seus escravos. O número médio de escravos na
população geral caiu de 29% em 1802 para 27% em 1836.

15
É preciso ressaltar novamente que faltam dois quarteirões na lista nominativa de Nossa Senhora do Ó em
1836. Estimando um número médio de fogos, tendo como base os demais quarteirões, faltariam em torno de 60
fogos.
16
Vale mencionar que usamos os termos fogo e domicílio de forma indistinta. Ver SAMARA (1989, p. 25)
17
Campinas é um exemplo notável do rápido crescimento da população cativa. De 1774 para 1829, a população
livre caiu de 71,4% para 38,4%. Ver TEIXEIRA (1999, p.66).

6
Gráfico 3
Quadro Comparativo entre os recenseamentos – 1802/1827/1836: Cativos

800
700
600
500
População

Penha
400 NSÓ
300 Total

200
100
0
1802 1827 1836
Ano

Fonte: 1802: KUZNESOF (1986, p.103); 1827 e 1836: CEDHAL, Maços de População, Capital,
1827 e 1836.

A queda da população cativa resultou numa progressiva redução dos pequenos


proprietários de escravos. Em 1802, 41% dos fogos possuíam pelo menos um cativo
(KUZNESOF, 1986, p. 103), já em 1836, apenas 27% dos fogos ainda mantinham qualquer
cativo. Observando em mais detalhes a distribuição dos escravos entre os domicílios fica
ainda mais evidente esta concentração:

Gráfico 4
Posse de cativos nos domicílios das freguesias rurais paulistanas - 1836
60%

50%

40%

domicilíos
%

30%
escravos

20%

10%

0%
1 2 3 04-10 +10
Escravos possuídos

Fonte: CEDHAL, Maços de População, Capital, 1836.

Logo, 53% dos fogos com cativos tinham até 3 escravos. No entanto, estes
representavam apenas 14% do total de cativos da localidade. Por outro lado, 14% dos fogos
possuíam mais de 10 escravos e 52% do total de escravos. A fazenda do Carmo do Itaim, na

7
freguesia da Penha, era a maior proprietária da região, tendo um plantel de 55 escravos em
1836. O espantoso tamanho desta propriedade fica ainda mais evidente quando comparado
com o restante de seu quarteirão, já que os demais 38 fogos desta localidade possuíam apenas
mais 4 cativos. Mesmo tendo perdido alguns escravos no período estudado, já que em 1827 a
fazenda detinha 62 cativos, esta ainda era a unidade produtiva de maior vulto destas
freguesias. Infelizmente, a lista nominativa não parece indicar com grande exatidão a
produção da fazenda, arrolando, para o ano de 1836, a produção de 50 alqueires de farinha de
mandioca e a criação de 3 bestas mansas. De qualquer modo, fica o indício de que esta grande
propriedade atuava no abastecimento de gêneros alimentícios para a cidade.
Assim como a grande fazenda do Carmo, a família de Vencelau Gonçalves, que vivia
na freguesia da Penha, não tinha condições para ampliar ou mesmo manter seu plantel. Deste
modo, criando animais e plantando mandioca e milho, Gonçalves foi obrigado a vender os
dois escravos que possuía 18 . Parece, portanto, que tanto os pequenos proprietários como os
grandes, sofreram a perda de cativos e recursos no início do século. A diferença é que os
domicílios mais abastados podiam contornar melhor a perda de um ou outro escravo. Já para
um fogo modesto, a perda de um escravo podia resultar numa grande diferença produtiva,
especialmente quando este se torna dependente exclusivamente da mão-de-obra livre 19 .
Tendo os escravos como um indício de riqueza e acumulação de bens, podemos
levantar como hipótese um movimento de retração da economia local em curso neste
momento. Observar a razão de masculinidade entre os cativos pode ajudar a reforçar tal idéia:

Tabela 2
Razão de Masculinidade 1827/1836: Cativos
Negros cativos Pardos cativos
1827 139,6 89,9
1836 132,1 76,4
Fonte: CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827 e 1836.

Tabela 3
Razão de Masculinidade por idade 1827/1836: Cativos
1827 0-19 20-59 60+
Penha 78,13 94,67 61,54
Nossa Senhora do Ó 129,58 185,9 200

1836 0-19 20-59 60+


Penha 73 98,5 80
Nossa Senhora do Ó 129 148 92
Fonte: CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827 e 1836.

18
Vencelau Gonçalves encontrava-se registrado no fogo 30 na lista nominativa de 1827 e no fogo 27 do 2º
quarteirão em 1836. A perda acima referida pode ser acompanhada comparando os dados das duas listas.
19
Em 1827, os fogos com até três escravos equivaliam a 18% do total de domicílios locais. Em 1836, este
número caiu para 14%.

8
Vemos que o número de cativas aumentou em relação ao de cativos, especialmente na
faixa etária 20-59 20 . Sabendo que o valor dos escravos era usualmente superior ao das
escravas (BACELLAR, 2001, p.146-147), e que os escravos mais caros eram justamente
aqueles nesta faixa etária, esta diminuição pode significar uma maior dificuldade dos
produtores locais em investir grandes recursos na aquisição de cativos. Assim, “comprar uma
escrava seria talvez, parte de uma estratégia de ampliação ou multiplicação mais acessível
da mão-de-obra forçada, sem recorrer às parcas e difíceis poupanças familiares”
(BACELLAR, 2001, p.147).
Contudo, é preciso ter cuidado com a idéia de pobreza. Mesmo com a diminuição de
seus plantéis, quando comparamos com dados de outras regiões de São Paulo, vemos que sua
situação não parecia excepcionalmente ruim. A porcentagem média de escravos na população
da capitania/província era de 29% em 1828, 28% em 1829 e 27% em 1836 (MARCÍLIO,
2000, p. 105 para os dados de 1828 e 1836; LUNA e KLEIN, 2003, p. 111 para os dados de
1829). Valores quase idênticos aos das freguesias rurais paulistanas.
No entanto, seus percentuais eram bem menores que os encontrados nas regiões agro-
exportadoras. Este é o caso de Jundiaí, região produtora de açúcar, e de Areias, uma das
principais regiões dedicadas ao plantio do café no planalto paulista:

Tabela 4
Escravos na população de Jundiaí 1822/1829/1836
Jundiaí 1822 1829 1836
População livre 4603 5849 5799
Escravos 1249 2084 2206
Escravos na população(%) 27% 36% 38%
Domicílios com cativos (%) 24% 28% 26%
Fonte: LUNA e KLEIN (2003, p. 43)

Em ambas regiões, o crescimento da população cativa parece acontecer de forma


constante, indo até mesmo num movimento contrário ao da população livre. No entanto,
assim como as freguesias rurais de São Paulo, Jundiaí apresentava um alto índice de
concentração de escravos. Em 1836, apenas 26% dos fogos tinham algum cativo, valor pouco
inferior aos 27% das freguesias em questão.
Na região de Areias, num intervalo bastante curto de tempo, a população cativa passou
por um crescimento extremamente acentuado, possivelmente estimulada pela cafeicultura. Em
1836, mais da metade da população desta região era escrava.

Tabela 5
Escravos na população de Areias 1822/1829/1836
Areias 1822 1829 1836
População livre 8470 12403 10588
Escravos 3409 5592 5412
Escravos na população(%) 40% 45% 51%
Fonte: LUNA e KLEIN (2003, p. 71)

20
Sabemos que esta divisão em três grupos etários apresenta certos problemas, no entanto, a dificuldade em
trabalhar com os dados relacionados com a idade nas listas nominativas parece justificar este procedimento. Ver
MARCÍLIO (1973, p. 112).

9
Parece um pouco óbvia a diferença da Penha e de Nossa Senhora do Ó com zonas
produtoras de gêneros exportáveis. Todavia, também existem profundas diferenças na
quantidade de escravos destas freguesias em relação a outras regiões voltadas para o
abastecimento.

Tabela 6
Escravos na população de Cunha 1823/1829/1835
Cunha 1823 1829 1835
População livre 2860 3375 2574
Escravos 1271 1549 1046
Escravos na população(%) 44% 46% 41%
Domicílios com cativos (%) 48% 46% 35%
Fonte: LUNA e KLEIN (2003, p. 90-91)

É surpreendente observar a população escrava de Cunha, comparável aquela


encontrada em Jundiaí, sabendo que o foco principal de sua economia era a produção de bens
alimentícios para a venda em outros mercados, especialmente o Rio de Janeiro:

The market orientation of the Cunha food producers enabled them to make
intensive use of slave labor in producing these products. Most of the farmers without
slaves probably dedicated more of their surplus to subsistence. Few of these non-
slave-owners listed output for sale […]. Slave owners in Cunha with more than 10
slaves produced two-thirds of the corn, pigs, and lard that were marketed. Almost a
third of production came from farms that owned 20 or more slaves […]. What is
impressive about these results is that Cunha was able to sustain and add to a major
slave-labor force on the basis of wealth generated from traditional food crops. In
contrast to Areias and Jundiaí, where coffee and sugar provided the income to
purchase slaves […] in Cunha it was only these very traditional food crops that
served as the basis of the economy. (LUNA e KLEIN, 2003, p.86-87)

Do outro lado, temos Jacareí, também dedicada ao abastecimento local. Sua população
cativa cresceu um pouco no começo do século, no entanto a proporção de escravos ainda era
extremamente reduzida. Logo, esta região parece depender em grande medida da mão de obra
livre e familiar para sustentar sua economia. Assim como as freguesias rurais paulistanas,
Jacareí direcionava parte de sua produção para abastecer os mercados da cidade de São Paulo.

Tabela 7
Escravos na população de Jacareí 1804/1829
Jacareí 1804 1829
População 5154 6882
Escravos 494 1298
Escravos na população(%) 10% 19%
Domicílios com cativos (%) 14% 17%
Fonte: LUNA e KLEIN (2003, p. 94)

10
Tendo em vistas tais dados, não parece possível explicar a dinâmica populacional das
freguesias rurais paulistanas apenas relacionando apressadamente produção agro-
exportadora/crescimento e produção para abastecimento/retração. Em determinadas
situações, como aquela que encontramos em Cunha, economias voltadas para o abastecimento
podiam manter-se dinâmicas e vigorosas, criando condições para a manutenção de plantéis de
cativos significativos.
Deste modo, como entender o aparente declínio econômico das freguesias rurais
paulistanas?
Afinal de contas, a cidade de São Paulo, como indicamos no início desta apresentação,
passava por um processo de urbanização incipiente. Assim, dependia cada vez mais da
produção agrícola de outras localidades para sua própria manutenção. Todavia, ao contrário
do esperado, as regiões que realizavam este abastecimento não pareciam se beneficiar muito
desta situação. As freguesias rurais não tinham condições para investir muitos recursos em
mão-de-obra escrava. E mesmo Nossa Senhora do Ó, a freguesia que apresentava a maior
população escrava deixou Luis D’Alincourt impressionado com o estado de ruína e a pobreza
da população local. A Penha, como vimos nos dados das listas nominativas, poderia estar
numa situação ainda pior do que aquela descrita por D’Alincourt.
Logo, o processo de urbanização da cidade mais do que beneficiar o entorno e as
freguesias rurais, provocou um acirramento das tensões sociais locais e aumentou a pobreza
destas populações. Daí surgem dois problemas. Como ficou claro no caso de Cunha, grande
parte dos bens direcionados ao mercado eram produzidos em unidades produtivas com grande
número de escravos. Se as freguesias rurais não podiam manter seus escravos, podemos
considerar a possibilidade delas, apesar da sua grande proximidade com a cidade, não serem
as principais zonas de abastecimento deste espaço. Logo, quem abastece o núcleo urbano
paulistano? E como acontece este abastecimento?
O segundo problema é um desdobramento do primeiro. Como explicar a retração
econômica das freguesias rurais paulistanas, nas primeiras décadas do século XIX, e sua
dificuldade em articular, eficazmente, suas produções com as necessidades da cidade? Qual a
relação disto com a elevação da Penha e Nossa Senhora do Ó à categoria de freguesia em
1796?
Assim, para compreender de forma mais ampla tal situação é preciso estudar não
apenas o movimento das populações das freguesias rurais, mas as relações entre estes espaços
e seu núcleo urbano. E neste sentido, estudar a atuação da Câmara municipal é fundamental.
O controle dos preços, dos monopólios, dos espaços de comércio e do próprio crescimento
urbano estavam, em certa medida, sob a alçada do poder camarário. Logo, as decisões
tomadas no âmbito de tal órgão influenciavam de forma decisiva a vida econômica da cidade
e do seu entorno. E isso pode ajudar a iniciar novas reflexões sobre os problemas acima
enunciados.

11
Fontes e Bibliografia

Fontes Manuscritas

Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1827.

Acervo CEDHAL, Maços de População, Capital, 1836.

Fontes Impressas

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MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da província de São Paulo:
ordenado pelas leis provinciais de 11 de abril de 1836 e 10 de março de 1837. 3ª ed.
São Paulo: Governo do Estado, 1978.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: EDUSP, 1976.

Actas da Câmara Municipal de São Paulo. São Paulo: Publicação do Arquivo Municipal de
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Bibliografia

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Divisão do Arquivo Histórico, 1977.

BLAJ, Ilana. A trama das tensões: O processo de mercantilização de São Paulo colonial
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BONTEMPI, Silvio. O bairro da Penha. Departamento do Patrimônio Histórico, Divisão do
Arquivo Histórico, 1969.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed.
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TEIXEIRA, Paulo Eduardo. Mulheres, domicílios e povoamento: Campinas, 1765-1850.
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