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Revista de MorfologiaUrbana (2019) 7(1): e00035 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
A evolução do traçado urbano e o desmonte de um bairro fluvial 2 / 29
para o transporte de pessoas, mas ativa para pormenorizados, que revelem o rebatimento
transporte de cargas, em escala regional, e da configuração estrutural exposta, de macro
ativa para transporte de pessoas em escala escala, para uma escala local. Esse é o ponto
metropolitana – linhas de trens e metrôs – de partida desse trabalho.
mas não em escala urbana, no sentido de
modais intermediários e menores, como, por Descortinar da colina da Penha
exemplo, um bonde de outrora ativo na A presença da água engloba todo o território,
atualidade será chamado de Veículo Leve integralmente. Neste sentido, a bacia
sobre Trilhos – VLT; e uma malha rodoviária hidrográfica pode ser considerada como uma
multiplicada e predominante, tanto para o unidade fundamental, pois permite toda uma
transporte de pessoas quanto de cargas. compartimentação do relevo, ao mesmo
De modo emblemático, essa sucessão de tempo em que possibilita uma visão trans-
temporalidades específicas que atuaram na escalar do território. Assim, em primeiro
formação da São Paulo Contemporânea foi lugar, temos uma escala macro, na qual o Rio
esmiuçada primeiro por Langenbuch (1971) Tietê se destaca como o principal elemento
e, mais recentemente por Franco (2005). estruturador do Estado de São Paulo (Figura
Porém, de uma perspectiva mais abrangente, 1), e, do mesmo modo, da Região
é o trabalho de Botechia (2017) o que melhor Metropolitana de São Paulo – RMSP (Figura
enfatiza a sobreposição de temporalidades do 2). A bacia do Alto Tietê, por sua vez, uma
traçado a começar pela ancestralidade das divisão física do território, sobrepõe-se,
trilhas indígenas. Doravante, de uma parcialmente, ao limite político-administrativ
perspectiva histórica, observamos que a da RMSP. É nesse quadro que surge, de
estruturação do traçado de São Paulo se dá, forma singela e ao mesmo tempo central, a
primeiro, na perspectiva de um urbanismo de bacia do Tiquatira, na região da Penha.
colinas (Costa Lobo, Simões Jr. 2007), O primeiro descortinar da colina da Penha na
quando as principais rotas e caminhos de história da colonização portuguesa do
tropeiros se estabelecem por meio de linhas planalto paulista se dá no contexto das
de cumeada e platôs intermediários de boa missões jesuíticas e bandeirantes. Localizada
declividade, muitas vezes sobrepondo-se a como um entreposto do sítio histórico de São
trilhas indígenas, enquanto que os núcleos Paulo de Piratininga e os assentamentos
urbanos coloniais buscaram instalar-se, coloniais de Nossa Senhora da Conceição dos
sobretudo, em áreas altas, entre os quais Guarulhos, à norte, e São Miguel do Araraí
muitos topos de colina. Depois, num segundo (Figura 3), à leste, a ocupação da Penha se
momento, com a instalação da malha inicia como um urbanismo de colinas de
ferroviária, fundos de vale e áreas de várzea e tradição luso brasileira (Costa Lobo, Simões
planícies recebem, conforme “demanda”, a Júnior, 2012, p. 17-18).
implantação de uma malha ferroviária,
criando as bases para aquilo que poderia se Entre os séculos XVII e XIX, a colina se
chamar de “urbanismo de fundo de vale”. tornaria caminho obrigatório para
Finalmente, num terceiro momento, uma bandeirantes, tropeiros e viajantes que se
malha rodoviária se instala como que deslocavam entre São Paulo, Vale do Paraíba
indistintamente e de modo diverso, tanto e Rio de Janeiro. A condição de lugar de
como rede de infraestruturas metropolitanas passagem transformaria a colina em pouso
quanto tecidos locais, ocasionando o para os viajantes, com serviços de comércio e
espraiamento de manchas urbanas e a aluguel de animais de carga e montaria,
consolidação da chamada Região hospedagem, alimentação e fornecimento de
Metropolitana de São Paulo. É esse território viveres. O desenvolvimento dos núcleos
que a pesquisa vai adentrar. originais da cidade de São Paulo – Penha,
Freguesia do Ó, Santana e Pinheiros,
De modo geral, o quadro teórico aqui exposto complementares e concomitantes ao centro
buscou delinear um objeto de estudo que se histórico, teve por aspecto comum este fator
encontra entre a natureza e o artifício, de atração propiciado pela disposição de
entendidos aqui como a relação entre relevo, equipamentos de serviços diferenciados,
hidrografia e traçado urbano, sendo que, para ainda que fossem considerados modestos
o caso específico de São Paulo, existe uma (Langenbuch, 1971, p. 128).
lacuna, quando de estudos mais
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Figura 1. Estado de São Paulo: hidrografia, Bacia do Alto Tietê e malha estrutural (fonte: autores, a partir
da sobreposição de fontes diversas).
Figura 2. Bacia Alto Tietê, Região Metropolitana de São Paulo. Bacia do Tiquatira (fonte: autores, a
partir da sobreposição de fontes diversas).
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Figura 3. Freguesia da Penha, entre São Paulo e o aldeamento de São Miguel do Ururaí (fonte: autores, a
partir da sobreposição de fontes diversas).
De todo modo, até meados do século XIX, a qual o centro velho de São Paulo foi um
Penha era um bairro rural, um aglomerado de ponto de inflexão urbano, estruturado em
pequena população, com algumas casas de função de um espaço regional e vinculado a
taipa ao redor de uma capela (Figura 4), uma produção predominantemente agrícola
algumas vendas e serviços, e separada da no uso do planalto paulista. A implantação da
Vila de São Paulo por uma distância de ferrovia ocasionou uma valorização dos
aproximadamente dez quilômetros – um dia terrenos das áreas de várzea, razão pela qual
de viagem no lombo da mula. E para além do a Penha adquiriu um caráter economicamente
pequeno núcleo existiam lavouras e estratégico ao integrar este novo circuito de
pastagens, onde se desenvolvia uma prática desenvolvimento imobiliário, chegando
agropastoril de subsistência. O excedente mesmo a ter um ramal exclusivo (Figura 5).
dessa produção, “cana de açúcar, algodão,
Com a ferrovia e os bondes, as relações
vinha, trigo, mandioca, milho, café,
comerciais entre o centro e o bairro da Penha
hortaliças, entre tantos outros, e criar gado
se intensificaram: a produção de
bovino, porcos, aves, equinos” (Jesus, 2006,
hortifrutigranjeiros das chácaras da colina
p. 82), era comercializado com o centro da
chegava aos mercados do centro de São
Vila de São Paulo.
Paulo por trens e bondes. Para grande parte
A partir da segunda metade do século XIX, da população, o bonde era o transporte
durante o período imperial (1822 – 1889) o prioritário, pois ia do topo da colina até o
indutor histórico fundamental da centro da cidade, ao contrário do trem,
consolidação de São Paulo foi a implantação situado no sopé da colina e que só chegava
da ferrovia estadual. A São Paulo Railway até o bairro do Brás. À medida que a relação
Company, configurada pelo conjunto de centro - bairro se intensificava, os sistemas
equipamentos de infraestrutura ferroviária em produtivos locais se alteravam: a agricultura
solo paulista, foi inaugurada em 1867, familiar deu lugar à assalariada e as chácaras
significando uma vitória sobre o obstáculo foram progressivamente loteadas, forçando a
constituído então pela Serra do Mar, e no
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migração dos espaços de cultivo para áreas especial o comportamento dos rios, maior
mais distantes. será o aproveitamento urbano que se poderá
realizar. Esta formulação foi explicitada no
Plano de Avenidas proposto pelo engenheiro
Francisco Prestes Maia, em 1930, que
paulatinamente passou a direcionar as obras
de intervenção urbana, uma vez que ele
também foi prefeito de São Paulo,
governando entre 1938 e 1945. Este Plano
teve por princípio um sistema radial de anéis
concêntricos a partir do centro histórico de
São Paulo, pautando a expansão do traçado
viário em função do crescimento urbano.
Figura 4. Rio Aricanduva e Colina da Penha, Porém, a escolha desse modelo rodoviarista
1817 (Aquarela: Thomas Ender) (fonte: Acervo implicou, na prática, um estrangulamento das
Memorial da Penha de França). áreas de várzea, e vai impactar
profundamente a região da Penha, lançando
as bases para a transformação do território,
antes predominantemente rural, em urbano e
metropolitano.
Em 1930, mesmo ano em que se apresentou o
Plano de Avenidas, foi realizado o
levantamento cartográfico do município nas
escalas 1: 20.000, 1: 5.000 e 1: 1.000,
realizado pela Societá Anonima Rivelamenti
Aerofotogrametrici – SARA Brasil, empresa
italiana com sede em Roma, que venceu a
Figura 5. Palacete Rodovalho, Igreja da Penha e licitação para execução do trabalho (Mendez,
ramal ferroviário, 1905 (fonte: Acervo Memorial 2014). Tal registro destacou-se, na época,
Penha de França). como um marco da conquista aérea – com
inovações no campo da aerofotogrametria,
constituindo uma técnica precisa na
A consolidação do sistema de bondes na
demarcação de limites e evidenciando a
cidade de São Paulo se deu quase que
justaposição entre relevo, hidrografia e sítio
simultaneamente conjunta a outro modal de
urbano (Figura 6), conforme afirma
transporte, o ônibus. Em 1935, já havia 62
Ab’Saber:
linhas municipais, número superior ao de
linhas de bonde. A chegada deste modal teve Tais séries de cartas constituem a
impacto direto na expansão da ocupação documentação mais importante existente para
urbana da Zona Leste de São Paulo, com o estudos geomorfológicos de pormenor, já que
ônibus ligando a Penha ao Centro de São apresenta escala suficientemente grande para
Paulo e a Guarulhos, Vila Esperança, Vila que se possam referir e delimitar detalhes do
Matilde, Jardim Popular e São Miguel relevo regional que forçosamente escapariam
Paulista, estruturando relações funcionais à representação em cartas de escala menor,
entre os “subúrbios-estação” (Langenbuch, tais como níveis de baixos terraços fluviais.
1971, p. 228). Além disso, trata-se de cartas topográficas
que guardam especial interesse para a análise
Paralelamente ao estabelecimento de um
das relações entre os elementos topográficos
“novo tempo” proporcionado pela ferrovia,
e a estrutura do organismo urbano (2007
os projetos de intervenção nos cursos d’água
[1957], p. 57-58).
da bacia hidrográfica do Alto Tietê podem
ser observados desde o final do século XIX. Ao mesmo tempo, esta cartografia apresenta
Este conjunto de intervenções nos cursos a riqueza da hidrografia na época, onde a
d’água e nas áreas de várzea como um todo maioria dos rios, com os meandros então
consistiu numa formulação que pressupõe inalterados, dava suporte a outros tipos de
que quanto maior desempenho técnico destas ocupação, como atividades agrícolas, de
áreas, no sentido de minimizar as pesca, olarias etc, e compunham com o
interferências do sítio precedente, em relevo um quadro de justaposição entre os
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Figura 7. O Plano de Avenidas e o traçado sobre o Mapa SARA Brasil - 1930 (fonte: autores, a partir da
sobreposição de fontes diversas).
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Figura 11. Atividades Econômicas nas várzeas do Tietê na região da Penha, 1941 (fonte: autores, a partir
da sobreposição de fontes diversas).
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Figura 22. Elaboração da base cartográfica de Figura 23. Lâmina 1: hipsometria, hidrografia e
2015 - procedimento de adição (fonte: autores). bacia do Tiquatira, 1930 (fonte: autores).
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Quadro 1. Matriz analítica da Hidrografia - inserção e situação das nascentes (fonte: autores).
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Quadro 1. Matriz analítica da Hidrografia - inserção e situação das nascentes (fonte: autores) (cont.).
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Figura 31. Nascente Ponte Rasa 01 (fonte: Google Street View e autores).
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Figura 32. Situação 3:– Complexa: Foz do Tiquatira (fonte: Google Street View e autores).
Figura 33. Situação 5 – Inusitada: Viaduto Cangaíba (fonte: Google Street View e autores).
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Figura 34. Situação 9 – Complexa: Colina da Penha (fonte: Google Street View e autores).
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Figura 35. Tábua com as quarenta e nove situações de conflito na rede de infraestruturas metropolitanas
(fonte: autores).
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Figura 36. Tábua com as trinta e cinco situações de conflito entre nascentes e tecidos locais (fonte:
autores).
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