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ey ay. *t Yad OhUNTG Bash é HISTORIA DA LIPTERATURA PORTUGUFZA BERNARDIM. RIBEIRO 0 BUCOLISMO THEOPHILO BRAGA PORTO 4 LIVRARIA CHARDRON Casa editora SUCERSSORES LELLO & IRMAO 1897 Tudles 0 diestos reservato, PRELIMINAR © livro publicado em 1872 com o titulo Bernardim Ribeiro e os Bucolistas, foi agora fundamentalmente reescripto, abandonando as hypotheses laboriosas com que procurava desvendar a vida do poeta, para dar-lhe o colorido da realidade historica, mettendo em obra recentissimas descobertas. Mudar de ideias diante dos factos positivos e na prose- cucio desinteressada da verdade scientific ou historica, nio péde considerar-se uma ver- satilidade, essa chaga deprimente dos cara- cteres contemporaneos, tao deploravel na accio politica, e quasi indigna nas aprecia- edes moraes; 6 uma simples ratificag&o de fa- ctos em beneficio dos que estudam. Constitue este livro um documento das minhas fedra- ctationes, tomando esta palavra no seu sen- tido originario, quando ella, como diz Renan: - indicava o trabalho do auctor retomando as suas obras passados annos e accentuando as modificagdes que Ihe inspirava 0 progresso do seu pensamento. » Se o livro de 1872 teve © dom de provocar interesse pela vida de 3ernardim Ribeiro apenas com hypotheses plausiveis, impendia-me o dever de substituir essas hypotheses pela realidade dos factos descobertos por outros investigadores mais felizes. Consolam-me estas retractacdes; es- creve Renan, com a sua grande nitidez de linguagem: .O excellente habito das Pefra- ctationes, que tao ingenuamente praticava a antiguidade, ja nao esté nos nossos costumes litterarios; esta critica de si proprio, que, com um pouco de sinceridade produziria tan- tos fructos para o auctor e para o publico, seria considerada no nosso tempo como um requinte de vaidade, e o escriptor que tal se permittisse expiaria indubitavelmente a sua eandura pelo golpe que dava na sua propria auctoridade. O dogmatismo theologico levou- nos a uma ideia tio acanhada da verdade, que todo aquelle que nio se impuzer como doutor irrefragavel arrisca-se a tirar a si pro- prio todo o credito perante os seus leitore-. O espirilo seientifieo, procedendo por delica- das aproximacoes, fixando pouco a pouco a verdade, modifieando sem cessar as suas fér- PRELIMINAR VIE mulas para leval-as a uma expressiio cada vez mais rigorosa, variando os seus pontos de vista para nada omittir na infinita com- plexidade dos problemas que apresenta 0 uni- verso, 6 em geral pouco comprehendido, e passa por uma confissio de impotencia ou de versatilidade.~ * Antes de conhecermos a opi- nido de um tal mestre, fizemos sempre o sa- crificio agradavel da nossa infallibilidade ao mais remoto vislumbre de wma verdade, con- forme fomos adquirindo o methodo scientifico. V Enules d Iistoire religicusc. Preface, p. Tl, BERNARDIM RIBEIRO O BUCOLISMO A independencia da realeza ou 0 estabele- eimento da dictadura monarchica no seculo xv, além das suas profundas consequencias so- ciaes, determinou importantes modificacdes nos phenomenos mentaes e estheticos. Annul- lada a nobreza como poder senhorial, ficou reduzida a elemento parasitico da cérte, vi- vendo das doacées régias e da intriga pala- ciana. A poesia tornou-se wm passatempo cor- teziio, um meio de parecer bem no pago, um divertimento para lisongear as damas, uma improvisacéo banal e nunca uma expressio verdadeira do sentimento. Eis explicada a exuberancia dos poetas fidalgos, que diverti- ram os serdes do paco nas cortes de D. Joao 11 e de D. Manoel, e as férmas inexpressivas de um lyrismo pessoal, e das satyras ou apodos sem elevacio moral, que enchem o grande Cancioneiro yeral de Garcia de Resende. 2 HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA Ao comegar do seculo xvi, por effeito da descoberta do caminho transoceanico da India, pelo desenvolvimento da riqueza publica e do genio da especulacao mercantil desenvol- vido pelas expedicgdes maritimas, tudo contri- buiu para fundar a preponderancia social de uma classe media. Basta observar em Portu- gal a manifestacao das formas dramaticas, e como ellas coincidem no comeco do seculo com a expansiao da vida burgueza. Esta trans- formagio organica da sociedade portugueza do seculo xvi reflectiu-se na poesia: em pri- meiro logar o entranhado animo do lucro absorveu a attengio dos que cultivavam sem intuito as férmas metricas, e s6 se occuparam da poesia as verdadeiras vocagées, os que néo podiam resistir ao impulso espontaneo da inspiragao e 4 necessidade de communicar o sentimento intimo. O numero dos poetas torna-se incomparavelmente diminuto, e esses poucos, sdo talentos que se inspiram de um sentimento profundo, tornam-se individuali- dades que se impdem e pairam sobre o seu tempo. As queixas banaes de outr’ora, sao gritos da realidade; soffrem com verdade, por que se acham deslocados, pobres genios platonicos, em uma época de chato mercanti- lismo. A sua linguagem tem uma tristeza vaga, que nao 6 o queixume das normas tro- badorescas, que subsiste nos Cancioneiros pa- lacianos, mas a melancholia, que inspira a arte moderna. E emquanto vémos os poetas dos serdes do pago, cujas obras ainda figuram no Cancioneiro de Resende, debandarem nas ar- madas da India, para a exploracao das ricas capitanias, vémos destacarem-se como os mais BERNARDIM RIBEIRO 3 apaixonados e incomparaveis lyricos Bernar- dim Ribeiro e Christovam Falcio. E entre estes dois phenomenos capitaes, a crise vio- lenta em que D. Joao 11 estabeleceu em 1483 e 1484 a sua dictadura monarchica, e a avi- dez do mercantilismo das viagens da India, que Bernardim Ribeiro surgiu e renovou o lyrismo portuguez. No seculo xvi a poesia portugueza fluctua entre as f6rmas sympathicas 4s cértes penin- sulares, ou o gosto das coplas de Cancioneiro, e a perstigiosa corrente litteraria de imitacaéo da antiguidade classica, que nos vinha da Ita- lia. Egualmente fortes estas duas influencias, uma pelo costume e distinccio palaciana, a outra pela auctoridade dos eruditos, contra- balangaram-se e erigiram-se em duas escholas poeticas, até certo tempo inconciliaveis. A pri- meira, que se caracterisa como bucolica, man- teve por uma preferencia exclusiva o metro octosyNabo ou de redondilha, e todas as f6r- mas estrophicas da poetica hespanhola; a se- gunda, denominada Fschola italiana, ado- ptou o metro endecasyllabo e as férmas usa- das por Petrarcha, associando 4s impressdes pessoaes as maximas moraes de uma superior contemplacio, e tambem as vagas idealisacées do amor platonico. Os poetas bucolicos eram fortificados pela tradigdéo medieval e nacio- nal; as velhas formas trobadorescas e sicilia- nas das Pastorellas revivesciam confundin- do-se com as formas populares dos Villanci- cos e com as Vigilias ou Autos hieraticos, como vémos nas Eclogas de Juan del Encina, contemporaneo de Gil Vicente e de Bernar- dim Ribeiro. Porém a f6rma bucolica, elabo- 4 HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA rada por Gil Vicente pelo desenvolvimento dos Villancicos, apparece no seu esplendor nos .tufos hicraticos com que aquelle genio funda o Theatro portuguez. Apropriando-se da férma trobaduresca da Pastorclia, Bernardim Ribeiro desenvolve o Villancico popular na férma brilhante das Eclogas, e naturalmente foi levado 4 creacaio da Novella pastoral, uo conhecer as narrati- vas italianas misturadas de prosa e verso, e as novas /clogas imitadas de Theocrito e Vir- gilio. O antagonismo das duas Escholas esta- beleceu-se pelo aferro da imitacio servil; a Eschola italiana naio chegou a popularisar- se, e fortes com esta sympathia do vulgo 6 que se impuzeram ao gosto do seculo XVI os Poctas da medida velha, Egual antagonismo se observa no theatro, entre os Autos nacio- naes e a Comedia classica, e mesmo entre a Epopéa e 06 Romance historiado. Estudamos aqui uma poesia de cérte, como completando o quadro da formacio do Caneioneiro geral de Resende e dos Poetas palacianos que a cul- tivaram no primeiro quartel do seculo XVI; mas ha um caracter novo, uma faisea que tudo anima e transforma—a inspiracio do amor. Conhecidas as causas sociaes que tornaram memoraveis os serdes da cérte, e a influencia que estes exerceram sobre os poetas fidal- gos e sobre a formacao dos Cancioneiros qui- nkentistas, falta relacionarmo-nos com esses sinceros. apaixonados, que emquanto os seus contemporaneos se afogavam com as rique- zas da India e Brazil, cantavam com toda a verdade da sua alma, e se deixavam enlou- quecer ou morrer de amor.

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