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Os Limites do Cinismo

José Jorge Teixeira Mendonça

Na origem da actividade de todo o professor estão as seguintes


perguntas:
O que identifica o ser humano enquanto humano?
Quais as invariantes funcionais do seu agir e que alterações estruturais
são geradas por essas invariantes?
Como situar o humano no seu aqui e agora socio-histórico (geracional e
individual)?
A quotidianidade que enraíza o meu existir é a resposta que eu dou, que cada
um dá, a estas perguntas, quer esteja consciente disso ou não. Existir é existir
com os outros; e a interacção que assim acontece é um dinamismo que rompe
com rotinas, obriga a um revisitar reflexivo do vivido e estimula a criatividade
singular de cada pessoa.
Este facto configura o espaço existencial da actividade docente e confere-lhe
toda a sua dignidade. Ser professor é viver no dia-a-dia esta interpelação que
nos é colocada pela Vida, a qual está sempre a irromper na sucessão das
gerações que vão regenerando a humanidade, dando ao presente o rosto de
um futuro que ganha corpo e densidade em tantas vidas singulares com toda a
riqueza da sua diversidade.
Isto não é teórico nem abstracto. Ao trabalhar com cada turma, um professor
tem de ser um bom observador para poder desenvolver estratégias
pedagógicas que, valorizando a diversidade dos alunos (geradora de conflitos
sócio-cognitivos os quais são sempre o motor do progresso do conhecimento),
permita motivá-los, disciplinar a sua energia orientando-a para tarefas que os
levem a viver a alegria de se ultrapassarem, permita descobrirem-se a si
próprios no esforço metódico de conhecer o mundo pela construção e
desenvolvimento dos seus próprios meios de subsistência e criatividade
intelectual. Mas essa observação não basta; é preciso que o professor mobilize
as suas energias pessoais no espaço lectivo para dinamizar a turma como um
todo, e cada aluno, nas tarefas a desenvolver em cada aula. O professor e
cada aluno não são máquinas de uma fábrica, nem peças de uma máquina

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cujos ajustamentos e programação se definem mecanicamente segundo um
determinismo pré-concebido. Uma aula é um espaço existencial onde a vida
acontece como constante desafio de crescer. E, porque de facto assim é, tem o
professor de simultaneamente estar atento a um grande número de aspectos
que se articulam com as competências específicas da matéria que ensina.
Aspectos estes que têm a ver com variáveis de carácter intelectual, afectivo e
social. Não que o professor tenha de ser, além de professor de Matemática ou
de Português, Psicólogo e Sociólogo. Mas necessita de ter um horizonte de
pré-compreensão que lhe permita entender o significado de determinado
comportamento (individual ou de grupo) no quadro do desenvolvimento pessoal
de um aluno e no quadro do desenvolvimento sócio-histórico das gerações de
forma a poder desenvolver, com todos os alunos, uma interacção que
possibilite e dinamize, em cada um, a passagem a mais além de si-próprio,
consolidando assim a sua identidade em devir. Manter este dinamismo de
crescimento pessoal na actividade docente é uma exigência de todos os dias
que não nos deixa alienarmo-nos em hábitos rotineiros, é um permanente
apelo ao melhor de nós mesmos para estarmos à altura dos desafios da
história que co-construímos. Porém, esta atitude e as competências para
assumir com rigor e determinação estas exigências que nos nascem do gosto
de sermos nós, sendo professores, não surgem por geração espontânea, é
preciso manter um ritmo de trabalho intelectual constante para além do tempo
lectivo. Essas competências também não estão adquiridas de uma vez para
sempre, porque o real é devir e o tempo histórico não é a cíclica e monótona
repetição do mesmo.
Assim não pensa o governo do Partido Socialista. Assim não pensa a Senhora
Ministra da Educação e a sua equipa. O governo do Partido Socialista decidiu
operar uma clivagem na sociedade portuguesa: há os bons portugueses,
aqueles que são do Partido Socialista ou, não sendo, não questionam as suas
decisões políticas; há os maus portugueses que ousam discordar das decisões
governamentais. E a estes imediatamente o Partido Socialista trata de asfixiar
para que tenham medo e não reincidam nas críticas. Não se interroga o
governo do Partido Socialista quanto à hipótese de haver razões válidas para
pensar diferentemente por parte de quem discorda: - se pensa diferente de nós
então é mau.

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Entre os maus portugueses, o Senhor Primeiro Ministro e a Senhora Ministra
da Educação elegeram os Professores. É neste contexto que temos vindo a
assistir, ao longo destes anos, a um ataque sistemático ao corpo docente das
nossas escolas, ataque que começa por considerar os professores
incompetentes em matéria de Educação e/ou gente de má fé cujo objectivo
principal é a defesa de privilégios de classe. Essa é a razão pela qual eles
concluíram não ser possível dialogar nem com os professores nem com os
Sindicatos. E quando acontece, como no último Prós e Contras da RTP1, do
dia 25 de Fevereiro, que a Senhora Ministra da Educação é confrontada com
posições críticas, a resposta e os argumentos da Senhora Ministra não sobem
acima do nível: «Se eu fosse loura…». Infelizmente são muitos os factos que
exemplificam esta atitude ostensiva e persistente de desvalorização dos
professores por parte da Senhora Ministra da Educação e do Senhor Primeiro
Ministro.
Face à crítica, mesmo que devidamente fundamentada, de professores e de
organizações sindicais, a atitude do governo é considerar que os professores
estão a defender interesses corporativos e por tal razão desenvolve uma
campanha de descredibilização dos professores junto da opinião pública. Que
significado têm as afirmações da Senhora Ministra da Educação quando
afirmou que tinha perdido os professores mas conquistado a população? Como
é possível esquecer que os professores também são população? Como é
possível esquecer que os professores também são pais? E sobretudo como é
possível esquecer ou pretender ocultar que a razão de ser da vida de todo o
professor é um trabalho que não é maquinal mas existencial, que os
professores têm como preocupação primeira o desenvolvimento integral do ser
humano e que a sua competência é justamente essa?
O governo, nas pessoas do Senhor Primeiro Ministro e da Senhora Ministra da
Educação, resolveram fazer aquilo a que chamam uma reforma da Escola
assente numa estratégia de hostilização sistemática dos professores
recorrendo a dois instrumentos: a máquina administrativa e a violência
simbólica. O uso da violência simbólica é extremamente refinado mas atingiu
um tal grau de destrutividade que hoje os professores já não podem calar a sua
revolta e exigem respeito pela sua dignidade. A acção da Senhora Ministra da
Educação, apoiada pelo Senhor Primeiro Ministro, feriu gravemente a

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dignidade da pessoa humana na pessoa dos professores. Há uma atitude
sistemática por parte da Senhora Ministra da Educação que se pode classificar
de terrorismo psicológico: é preciso obrigar os professores a ajoelhar custe o
que custar, há que destruir nos professores a estima de si-próprios, e para
alcançar esse objectivo transforma-se a máquina administrativa em guilhotina
para condenar todos os aqueles que ousam discordar da política da educação
deste governo. Trata-se do exercício teocrático do poder, tipo Ancien Régime,
negando a universalidade da razão. Não importa o retrocesso histórico; importa
sim satisfazer o narcisismo cego e imaturo instalando e consolidando uma
atmosfera de suspeita, de insegurança e de medo que envenena a própria
convivência entre cidadãos.
Isto é tão grave que na actual situação em que a vida quotidiana de muitos
portugueses é marcada pela insegurança face ao dia de amanhã, o Primeiro-
Ministro e a Ministra da Educação usando a arma da intimidação e exigindo
uma obediência cega e uma confiança incondicionada por parte dos
professores enquanto funcionários do Estado, criam situações de verdadeira
alienação em muitas pessoas. Hoje há alguns professores e Conselhos
Executivos de Escolas que têm medo das consequências de dizerem o que
pensam: - se discordarem podem perder o lugar, comprometer a carreira ou
mesmo, se hesitarem ou não cumprirem as ordens socialistas, podem ter a
sorte daqueles que o poder socialista quer decapitar no cadafalso
administrativo. Há mesmo quem se «precipite», e para agradar ao poder
vigente já inclui alíneas de carácter fascizante na grelha de avaliação dos
professores. Perante a crescente onda de contestação, os governantes não se
interrogam sobre as razões de ser de tal facto (bem as conhecem!), usam a
estratégia da supressão da memória: apagar os factos como se nada tivesse
acontecido. Mas não podemos esquecer que hoje como ontem há pessoas cuja
insegurança de vida (no quadro referencial de definição do sentido de vida
próprio de cada um) é tal que, pensando nos familiares que de si dependem e
pensando em si próprio, podem não resistir à força da pressão e manipulação
do exercício perverso do poder hierárquico politicamente controlado, e tornar-
se torcionários administrativos (como os torcionários nazis ou os torcionários
da Pide; evidentemente não usando a violência física; porém a violência
administrativa é suficiente para destruir uma vida e trazer aquela falsa paz de

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que o Partido Socialista tanto necessita para implementar a sua apropriação
absoluta do aparelho de Estado). É absolutamente condenável este ambiente
de desconfiança, medo e suspeita em que vive actualmente o país, por causa
da cegueira obscurantista do Senhor Primeiro Ministro e da Senhora Ministra
da Educação que alicerçam o seu poder na intimidação, condenam a
alteridade, promovem a delação e a vingança como instrumentos de
convivência social. Esquecem-se de que o poder político que exercem não os
torna donos da vida nem da consciência dos cidadãos. Esquecem que o
exercício do direito de crítica é uma pedagogia da cidadania.
Muitas das medidas que a Senhora Ministra da Educação implementou para as
nossas escolas criam a ilusão de uma reforma, mas apenas absorvem as
energias e tempo dos professores com actividades administrativas e
preenchimento de papéis até à obsessão, descurando a importância decisiva
dos conteúdos do saber e desvalorizando o tempo de trabalho efectivo com os
alunos. O tão apregoado «choque tecnológico» não pode fazer esquecer que,
como diz Oliveira Lima Filho, «o computador é um imbecil com a velocidade da
luz». Não se nega a importância da aceleração progressiva das conquistas
tecnológicas, porquanto as máquinas fazem muito do trabalho que os humanos
faziam submetidos aos limites de resistência e aos limites do ritmo do nosso
organismo. É verdade que a técnica nos traz ganhos de tempo e energia; mas
não há técnica que acelere a reflexão, não há técnica que dispense o tempo
necessário para o desenvolvimento da interioridade de cada um. Esquecendo
que os professores são pessoas que trabalham com pessoas, estamos a fazer
da escola uma fábrica de “deficientes artificiais”. Fazendo das estatísticas a
medida única e exclusiva das nossas análises da problemática da educação,
estamos a esquecer que as estatísticas são um, apenas um meio entre outros,
e a recalcar a incontornável dimensão de subjectividade constitutiva da
dignidade do ser humano.
Como é possível que a Senhora Ministra da Educação se relacione com os
professores e com os Sindicatos de professores dentro de um enquadramento
interlocutório que ela antecipadamente delimita instituindo o espaço da
interlocução com estruturas que definem o período operatório concreto do
desenvolvimento intelectual, social e de juízo moral (correspondente ao nível
etário entre os 7 e os 11 anos de idade)? A gravidade desta atitude, que não

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tem outra legitimidade senão a da força do cargo, é que ela só reconhece
espaço de afirmação à heteronomia, tratando os professores como crianças
que nunca deveriam sair do estádio intermédio do desenvolvimento em que ela
entende devem estar acontonados para não prejudicarem a sua acção. Muito
concretamente a contradição na qual a Senhora Ministra está entrincheirada é
a própria negação dos objectivos da educação: - a educação é a passagem da
heteronomia à autonomia na harmonia de todas as dimensões da
personalidade, mas a política do Ministério da Educação consiste em negar o
exercício da autonomia que é, em si mesma, o telos da actividade educativa.
Há um amadurecimento das pessoas, dos grupos, das instituições que exige
tempo, esforço, trabalho metódico e contínuo. Não se pode recuperar num dia
o atraso de um mês. Seria como o doente que tem de tomar um antibiótico
todos os dias; não o fez, e para recuperar o tempo perdido resolve tomar todos
os comprimidos do frasco num dia. Põe em risco a sua vida em vez de
recuperar. A temporalidade das instituições não tem o ritmo da temporalidade
dos grupos, nem tem o ritmo da temporalidade dos indivíduos. Esquecer isto é
enveredar por caminhos de destrutividade cujas consequências não se podem
evitar e uma delas é justamente a de obstaculizar a verdadeira transformação
da realidade.
Somos professores, conscientes dos desafios da hora presente. Não podemos
admitir que, a tudo o que acima foi referido, se acrescente a atitude superficial
daqueles que criticam os professores, não de forma fundamentada e rigorosa
mas adoptando atitude análoga à dos críticos da filosofia na Alemanha do
século XIX e que Hegel referiu magistralmente:
«Em relação a todas as ciências, artes, aptidões e ofícios vigora a convicção
de que, para possuí-los, é preciso um múltiplo esforço de aprendizagem e
exercício. Ao invés, no que se refere à filosofia, parece dominar agora o
preconceito: se quem tem olhos e dedos e a quem se dá couro e ferramentas,
nem por isso se torna capaz de fazer sapatos, cada um entende filosofar
imediatamente e apreciar a filosofia, porque possui na sua razão natural a
medida para isso, como se não possuísse igualmente no seu pé a medida de
um sapato. Parece que a posse da filosofia se coloca justamente na carência
de conhecimentos e de estudo e que aquela acaba onde estes começam.»
HEGEL - Fenomenologia do Espírito. Prefácio.

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E ainda:
«Na medida em que a filosofia só reivindica o pensamento para a forma
própria do seu empreendimento, e na medida em que todo o homem por
natureza pode pensar, surge, em virtude desta abstracção (…) o contrário
daquilo que foi mencionado agora mesmo como queixa a propósito da
ininteligibilidade da filosofia. Esta ciência experimentou muitas vezes o
desprezo no sentido em que mesmo as pessoas que nunca se preocuparam
com ela, exprimem a ideia presunçosa de que entendem logo à primeira vista
aquilo de que se trata em filosofia e são capazes (…) de filosofar e de emitir
juízos sobre ela. Reconhece-se que é preciso ter estudado as outras ciências
para as conhecer, e que é apenas em virtude de um tal conhecimento que se
está autorizado a fazer um juízo sobre elas. Reconhece-se que para fabricar
um sapato, é preciso ter aprendido e ter-se exercitado nisso, embora cada um
possua no seu pé a medida de referência para isso, e possua mãos e, nelas, a
aptidão natural para a tarefa exigida. Somente para o próprio acto de filosofar é
que um tal estudo e um tal esforço não seriam exigidos.» HEGEL -
Enciclopédia das ciências filosóficas. I – A ciência da lógica, §5.
Muitos falam da Educação, da Escola e dos professores com uma
inconsciência e por vezes mesmo com uma altivez que podem enganar os
incautos, mas não resistem a uma análise aprofundada e que tenha como
ponto de partida uma atitude de boa fé.
É lamentável que o governo do Partido Socialista, pela mão do seu Primeiro-
Ministro, da Senhora Ministra da Educação e da sua equipa tenham resolvido
fazer da Educação o lugar de uma luta política com armas que negam a boa
educação e que negam a Educação.
Porto, 2 de Março de 2008

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