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O diário perdido

do Jardim Maia
© hedra, 
© Luís Marra, 

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Marra, Luís. O diário perdido do Jardim Maia
– São Paulo : Hedra : 
 ----
. Literatura brasileira I. Contos III. Título
-  -

Índice para catálogo sistemático:


. Contos : Literatura brasileira -

Capa: Renan Costa Lima


Revisão: Alexandre Barbosa e Jorge Sallum

Direitos reservados em língua


portuguesa somente para o Brasil

EDITORA HEDRA LTDA.


R. Fradique Coutinho,  (subsolo)
- São Paulo SP Brasil
Telefone/Fax () -
editora@hedra.com.br
www.hedra.com.br

Foi feito o depósito legal.


O diário perdido
do Jardim Maia

Luís Marra

hedra

São Paulo, 


Sumário

O Maia que não é jardim 

O diário perdido do Jardim Maia 

Titanic 

Melancia na cabeça 

Coração de pedra 

A carta que faltava 

Duas Bíblias 

Raskolnikov 

A hora da estrela 

Bingólatra 

Fidelidade 

Até o próximo Carnaval 


SUMÁRIO
O taxista 

O entardecer do fauno 

O tesouro no quintal 

Traição 

Aparecida Aparecido 

O colosso 

O nervo asiático 

O sentido além 

Grande Mãe Conga 

A velha de Barbacena 

Uma pena 

Um simples  

Noel e a nostalgia 

Sangue bom 

Solidariedade 

O sacrifício 

A grande verdade 

Juanito e Vanderson 


Luther King 

O desempregado 

Loucura 

Os seis porquinhos 

A dor no joelho 

Depressão encarnada 

 filhos 

A doença bíblica 

A idade de Cristo 

Uns e outros 

O radialista 

Dona Maria versus família 

Cidade de Deus 

Assalto doméstico 

Berlim–Brasil 


“Quem acha vive se perdendo”

Noel Rosa

“Feliz é aquele que sabe sofrer”

Nelson Cavaquinho
O Maia que não é jardim

Devo um esclarecimento e uma satisfação ao leitor.


Antes de mais nada, uma pergunta esperada: — por que “diário
perdido”?
A resposta é simples: — porque se perdeu!
Mas foi recuperado num lance mais ou menos do acaso. A partir
de um disquete (que se diz por aí back-up) encontrado antes de ser
posto na lixeira ou de permanecer para sempre no esquecimento.
Então vamos lá.
Se o tal Jardim Maia existe mesmo, existe com um porém:
jamais foi jardim e nem tem a pretensão. Sem falar que “maia”
é nome bastante interessante, e não somente porque lembra um
grande romance português e as civilizações perdidas das Américas.
A mim lembra também o Oriente, ou seja, o famoso “véu de
maia”, que dizem ser uma “cortina de aparência” a encobrir outra
suposta realidade.
Aqui no Jardim Maia, no entanto, esse véu, se existe, é dema-
siado fino. Ou nem está presente em casos reais que podem virar
estórias tão vivas e concretas que, contraditoriamente, deixam de
ser apenas estórias. Acabam transcendendo o ficcional e expondo,
com nitidez marcante, o real, escancarando o mundo do dia-a-dia,
que é coisa difícil de se ver de verdade. Daí, talvez, o que estaria
por detrás do “véu das aparências”!
E se há nessas estórias um pouco de invenção alheia, é a pura
e simples realidade da invenção alheia. Eu acredito mesmo que


seja tudo verdade (quase ponho a mão no fogo), porque quem aqui
desabafa quase nada tem a perder. Quem aqui desabafa imita
a flor de lótus no budismo que, dentro do lodo, olha para o céu.
Quem aqui desabafa repete, inconscientemente, o que — na Divina
Comédia — é uma frase comovente de uma alma perdida escutando
sua voz interior, e respondendo, tranqüila, para o mundo: s’i’odo il
vero, senza tema d’infamia ti rispondo.
Mas agora é preciso colocar os pés de volta ao dia-a-dia da
Paulicéia e esclarecer melhor. E uma pergunta se faz presente: —
de que assunto trata mesmo este diário?
Não há respostas finais, mas posso dizer que estão aqui vários
relatos ou depoimentos elaborados como crônicas ou, em alguns ca-
sos, à maneira de contos. São quase confissões que fui selecionando
conforme sua expressão dramática, conteúdo forte, ou modo como
me atingiam. Eu as anotava no embalo de uma emoção muito
viva surgida da relação médico-paciente. E desde o início não tive
a intenção de escrever um livro. Fui apenas arquivando textos e
colocando datas ao final.
O trabalho todo ficou com muitas lacunas, pois esses vários
relatos ou depoimentos livremente comentados de pessoas em ge-
ral bem sofridas (ah, e eu digo bem sofridas que só vendo!) não
compõem, a rigor, um diário, e nem foi esse o objetivo. Mas uma
delicada, sofisticada e até ousada tarefa de escuta foi determinante.
Essa escuta foi por acaso posta a serviço de alguma literatura por
causa de um atendimento médico público em área de gente muito
carente, mas rica de inquietações e provocações criativas.
Eis, portanto, um fio condutor — esta velha medicina de assun-
tos gerais, ciência, confessionário profano, arte cênica alternativa e
algo mais. Eis aí um acesso delicado e permitido para dentro das
arestas, contradições e ambigüidades íntimas do humano! Para não
dizer também abismos e labirintos!
E caso você, leitor, pergunte onde é, afinal de contas, o tal Jardim


Maia, senza tema d’infamia ti rispondo: é tão-somente um lugar
da Paulicéia; é um lugar bem distante da Avenida Paulista, e fica
talvez onde Judas perdeu as botas, e botas quem sabe atoladas numa
baixada em um dos finais da imensa Zona Leste de Sampa.
Mas esse cantinho bastante perturbado e interessante do planeta
Terra, e que nunca foi jardim, possui geografia e goza de irregular
condição urbana. É cheio de pessoas diversas e surpreendentes;
mal abriga um povo brasileiro a viver precariamente concentrado,
esparramado e democratizado pela pobreza; é um lugar recortado
por curvas preguiçosas do Rio Tietê — tão paulistano rio que, peri-
odicamente, espalha águas transbordantes e cria infernos urbanos
de alagamento e charco duradouro.
Em se chegando, porém, ao Jardim Maia e seus arredores, o que
se vê primeiro está meio longe do rio. Nem o rio se vê. Porque não
se chega naquele bairro pelo fim e sim pelo começo, e o que a gente
encontra é a congestionada Avenida Marechal Tito (esta começa
em São Miguel Paulista na famosa Praça do Forró). Depois a gente
sai da avenida e sobe um viaduto chamado Viaduto da China, que
passa ao lado de uma favela.
Na crista do Viaduto da China tem-se uma visão interessante
que daria uma bela foto, artística e não turística. Vê-se ao longe
uma baixada em tom cinzento com o nome de Pantanal — uma
grande área potencialmente alagada à margem desse tão paulistano
Tietê.
Percebe-se, portanto, a partir da elevação do Viaduto da China,
que o Maia e seus arredores configuram um lugar extenso, enorme.
Mas todo o material humano deste “diário perdido” foi captado
num espaço bem pequeno — sala modesta com pequena mesa e
duas cadeiras. Por onde entraram e passaram várias pessoas, sendo
que algumas estão nomeadas — não com seus nomes literalmente
reais mas com nomes que têm apelo semelhante ao dos nomes reais.
A todas essas pessoas dedico esta obra, e caso você, leitor, ainda


queira saber quem elas são, dou vaga resposta. São apenas muitas
donas marias e muitos zés e joões da silva.
Não são gente simples: são gente complexa trazendo mais sur-
presas do que previsibilidade. Não são meros “tipos” e, de perto,
não se deixam reduzir a estereótipos. “Cada um, cada qual”, como
está num rap bem conhecido!
Há inúmeros migrantes vindos de um Brasil que já foi rural.
Há estrangeiros de primeira geração e descendentes de segunda
e terceira geração. Há jovens desgarrados, e uns “manos” bem
estilizados. Sem falar que todo esse povo é muito urbano e está, aos
trancos e barrancos, inserido na modernidade globalizante.
Muitas dessas pessoas — juro — chegam a ser pequenos heróis
das luzes ou das sombras. Suas provocações se dão, grosso modo,
de várias maneiras: um entusiasmo que costuma exceder o limite
sensato; uma humilde nobreza que pode ser de um conformismo
auto-flagelante ou beirar a caricatura quixotesca; uma desobedi-
ência civil com ou sem a malícia de estar fora da lei; um franco
desatino que pode chegar à insanidade ou ao crime.
De qualquer forma, são pessoas que permanecem anônimas
neste “diário perdido”, sem falar que muitas são anônimas perante
seu próprio mundo. Dentre suas obscuras e miúdas façanhas herói-
cas, a principal é — possivelmente — apenas se manterem como
são, ou sobreviverem, resistirem, serem elas mesmas e, ao mesmo
tempo, produto do meio em que vivem mal ou bem adaptadas.
Muitas dessas criaturas esperam visibilidade social e não apenas
benesses materiais. Desejam ganhar ouvidos receptivos para suas
estórias dentro e além de sua aldeia duvidosamente global. Gosta-
riam de deixar de ser estatística grosseira. Gostariam de ser muito
mais do que mera notícia popular televisiva quando, vez por outra,
desgraças públicas atraem a gula da mídia privada.
Ainda posso ir um pouco adiante nestas considerações. Talvez
algumas dessas pessoas gostassem de fazer sua sincera história local.


Mas quase todas carecem de uma boa noção de historicidade. A
comunidade em que vivem, ao menos geograficamente falando,
é vaga e não tem laços sociais nem de cidade de interior, muito
menos de uma polis. A condição periférica dentro da Paulicéia
gigante faz com que muita gente, nesses redutos, caia numa espécie
de “autismo social”, ou caia num anti estético narcisismo de ficar
devaneando, sofrida e contemplativamente, a interioridade de seus
males.
A lembrança dessas pessoas — juro novamente — me emoci-
onou tanto que eu, num certo momento de resgate da memória,
ao revisar admirado aquele arquivo antes perdido, quase desisti de
recuperar um diário que não é bem diário. Eu já ia devolvendo um
simples disquete para o esquecimento, ou para a reclusão, sem data
de encerramento.
Não foi assim, todavia, o que se deu, e o que segue aqui está
de acordo com o que muita gente acredita, conforme frases algo
mágicas: — ah, estava escrito! ah, é o Destino! De alguma maneira,
isso acabou sendo verdade.
Enfim, deixo agora a você, leitor, a tarefa de abrir esse véu que
não é propriamente véu, ou de olhar melhor o que há por detrás de
sua imensa e reveladora transparência.
Se bem que, por detrás do Jardim Maia, bem lá no fundo da
paisagem, quase chegando na linha do horizonte, e antes de algu-
mas ondulações cinza-esverdeadas, São Paulo já não há. É outra
margem do rio.
É também caminho do que, antigamente, foram os sertões, mas
acontece que os sertões, conforme tudo indica, migraram para uma
Paulicéia hoje mais dos maias do que dos andrades.

L.M.
São Paulo, dezembro de 


O diário perdido
do Jardim Maia


Titanic

Ela proclama:
— Minha vida é o Titanic.
Quando viu o filme em casa derramou-se em lágrimas, parou
no meio e não conseguiu assistir mais.
Como assim?
Ela mora no Pantanal e tem uma estória. Começa na Bahia
numa cidade pequena às margens do São Francisco. Onde ela
nasceu e foi criada.
O marido tinha lá suas posses, além de ser bom pescador. Era
também dono de uma roça onde tinha seu rebanho, e lançava rede
no São Francisco. Apanhava tanto peixe que dava pra sustentar
larga família.
Viviam bem até que a pesca declinou. E como eram sedentos de
aventuras, largaram a rede e a roça e foram para Salvador, onde o
marido empregou-se num hotel de luxo na ilha de Itaparica. Ela
— um mulherão exuberante de intensa baianidade — deu-se bem
no convívio com gente importante. Jura que bateu papo com Elba
Ramalho, Pelé, Caetano Veloso e outras figuras mais.
Porém o marido perdeu o emprego, eles voltaram para as mar-
gens do São Francisco, e as coisas desandaram. Primeiro aconteceu
o furto do rebanho, do qual nunca ninguém soube de nada. Depois
aconteceu o caso do Titanic.
Era noite de São João, uma hora da manhã. Queimavam alguns


fogos de artifício. Muitas luzes da cidadezinha estavam acesas. Os
festeiros ainda passeavam ao lado das barracas nas quermesses.
Bem nessa hora eles atravessavam o São Francisco numa
enorme barcaça.
Era quase um navio, onde traziam tudo. Uma mudança com-
pleta: todos os pertences familiares, móveis, criação — porcos, car-
neiros, cães. Inclusive uma vaca, que foi a vilã da estória. Porque,
num certo momento de lúgubre escuridão, um morteiro assustou a
vaca e esta deu um coice que varou uma ripa da barcaça.
Não foi o encontro com nenhum iceberg não, foi a pata de uma
vaca medrosa. A água penetrou lentamente, e o São Francisco é
largo naquele ponto, e é razoavelmente fundo.
Da barcaça todos gritavam para o povaréu que, a custo, percebeu
o movimento frenético das pessoas no meio do rio. A solidariedade
humana funcionou. Muita gente se atirou na água, barcos se mo-
vimentaram céleres e prestativos. Enquanto isso a barcaça foi
inundando até que a proa se levantasse. A barcaça ficou quase de pé
e afundou de vez. Todas as tralhas se foram: mobília, preciosidades
pessoais, mimos, enfeites. Toda a criação, inclusive a pobre da vaca
que, por estar bem amarrada, afogou-se de forma cruel.
Ah, ela suspira e uma lágrima corre numa face aliviada.
Salvaram-se os humanos, a família toda. Os barcos chegaram a
tempo. Quanto a isso, o seu desastre foi um pouco diferente do
outro.
Então neste momento ela faz uma pausa de alívio.
Logo a seguir eu pergunto: — mas como ficou o depois?
Bem, não restou mais a aventura de conhecer lugares bonitos
feito a ilha de Itaparica. Rumaram para Sampa e vieram parar no
Pantanal, que é um lugar que se chama Pantanal porque periodica-
mente inunda com as águas transbordantes do Tietê.
Onde eles estão se virando. Onde o marido, de fazendeiro e
pescador, virou auxiliar de borracheiro.


Moram, porém, em casa de tijolos baianos. Ergueram eles
mesmos as paredes, cobriram eles mesmos a casa. Hoje possuem
até aparelhos eletrônicos, inclusive um vídeo. Tanto que ela pode
alugar o Titanic na videolocadora do Pantanal.
Não conseguiu terminar de ver. Uma inundação de lágrimas a
impediu. E porque — ela insiste em dizer — sua vida foi mesmo o
Titanic.
Ainda mais porque, enquanto o Titanic é diversão para todo
mundo, para ela é cruel menção a uma desdita que talvez pudesse
ter sido evitada no momento em que a pata da vaca medrosa abriu
uma fenda no barco. Ah, se não fosse um simples rojão em noite de
São João! Mas Deus quis assim, e eles tomaram outro rumo.
Hoje estão soçobrando na lama aos trancos e barrancos, e lem-
bram com nostalgia de um tempo de ouro. Da roça e do rebanho.
Das redes piscosas sobre o São Francisco. Do luxo tropical de Itapa-
rica. Da época em que o marido era prestigiado. Ah, bons tempos.
Até chegar ao episódio do Titanic.
Eu respondo assim que na videolocadora deve ter outros filmes
bons. Veja bem, Dona, não é apenas o Titanic. Ela sorri e diz que
numa próxima vez escolherá outro filme.
Pois, quem sabe, as coisas possam melhorar para ela e sua famí-
lia?


Melancia na cabeça

Ao sair do Posto do Jardim Maia vejo um homem negro de bici-


cleta com uma melancia na cabeça. Solta melancia equilibrando-se
enquanto o homem negro simplesmente pedala a bicicleta. Indife-
rente a todos os olhares e a todos os comentários.
Fico em dúvida se ele simplesmente transporta uma melancia
na cabeça, ou apenas se exibe com uma melancia na cabeça. Pela
atitude — pela indiferença que lhe dá um toque de ilusionista
— parece que a melancia solta na sua cabeça faz parte de um ato
natural e também de alguma arte.
Então outra dúvida corre minha cabeça, porque se a melancia
na cabeça do homem negro é um singular ato natural e rotineiro,
isso quer dizer que ele poderia transportar muitas outras melancias
na cabeça, o que não seria natural e ainda seria estranhamente
rotineiro.
Obstinado, eu o sigo até a Avenida Marechal Tito. Subo o
Viaduto da China, que passa ao lado de uma favela. O homem
negro sobe o Viaduto da China com a melancia elegantemente
equilibrada em perfeita posição horizontal.
Eu ultrapasso o homem negro e paro o carro na crista do Viaduto.
Fico esperando. Olho pelo retrovisor até que primeiro desponte
a melancia antes do aparecimento de toda a imagem do homem
negro de bicicleta.
De repente me lembro da minha infância, da professora e dos
meus tempos de escola: esta imagem é análoga à de uma antiga


caravela chegando, ainda longe no oceano, e despontando com o
mastro em primeiro lugar. Uma das provas da redondeza da Terra,
conforme todo mundo aprende, né?!
Quando o homem negro de bicicleta desce o Viaduto da China
eu vou atrás da melancia. E vejo outra prova escolar da redondeza
da Terra: pois é a melancia, neste caso, que desaparece por último.
Sem falar que o homem negro de bicicleta é agora uma espécie
de navegador solitário. Desliza suave por uma tumultuada pai-
sagem urbana. Vira à esquerda na Avenida Marechal Tito. Vai
sumindo no meio de um mar de carros, ônibus e motos. Nada o
abala.
Ainda de longe, pelo retrovisor, eu vejo a melancia solta quase
imperceptivelmente sambando. Melancia se equilibrando na ca-
beça do homem negro de bicicleta. Como se a melancia fosse um
planeta. Como se fosse a Terra nossa. Em ginga e bossa brasileiras,
com tropicalismo e adição de alguma arte oriental ou de alguma
magia de cigano.
Eu pego a Avenida São Miguel, depois a Avenida Radial Leste.
Vejo a silhueta bem conhecida dos arranha-céus do centro de São
Paulo emergindo do fundo do Parque Dom Pedro.
Tudo é rotina paulistana. Tudo é apenas trânsito. Automóveis,
pessoas, a cidade e coisa e tal.
Mas o diabo dessa melancia não me sai da cabeça.


Coração de pedra

Ah, o boêmio voltou novamente.


Ouço a frase no vozeirão do Nelson Gonçalves quando a mulher
fala do outro e do seu retorno.
Esta Dona Maria entra pedindo um calmante. Escancara o
motivo: ele voltou novamente e ela o perdoou; ela permitiu aquela
presença exuberantemente embriagada mais uma vez.
No fundo é só um caso de alcoolismo, ou mais um caso de
alcoolismo. Esta mulher, porém, se arrasa perdida numa selva
de lembranças domésticas em que predominam cactos e espinhos.
Pior: acaba se reconhecendo vencida e alega uma sina, um “carma”
pela frente. Fazer o quê?!
Logo em seguida procura resumir sua postura. Aí fica de repente
calada, os olhos brilham agoniados, a expressão tensiona-se. Algo
está para sair.
Ela aponta para o lado esquerdo do peito sobre uma tampa de
carne e osso que esconde um nobre órgão pulsante.
Prossegue num rompante dramático. Abre os braços e os fecha
em direção ao peito. As mãos, viradas para dentro, mergulham e se
encontram em concha, como que pegando alguma coisa.
— Ah, Seu Doutor, o que eu queria mesmo é arrancar meu
coração.
Vejo Dona Maria como no teatro grego. Há uma tensão dramá-
tica sublime solta no ar. Eu sou o público. Pergunto o que ela faria
com o coração.


Dona Maria emite um grito que tem beleza teatral. Dona Maria
é absurdamente cênica, convincente, verdadeira.
— Eu quis arrancar meu coração e colocar no lugar uma pedra.
Dramaticamente movido por este gesto, é a minha vez de ar-
rancar a caneta de cima da mesa, pegar um bloco de papel e, num
outro gesto, produzir uma receita de calmante. É também uma
maneira de agradá-la e dar a consulta por terminada.
Não ofereço uma pedra maior. Ofereço comprimidos que são
pedras menores. Pois, quem sabe, com este recurso farmacológico,
ela possa conviver um pouco melhor com ele.
Ah, Nelson Gonçalves, o boêmio voltou novamente.


A carta que faltava

Acabo de conhecer uma mulher idosa chamada Dona Maria de


Algum Sobrenome Importante. Tem mais de oitenta anos. Lúcida,
entusiasmada, vivaz. Reconheço o seu sotaque da Bahia e fico
sabendo que ela vem da região de Ilhéus, Itabuna.
Conversa vai conversa vem, identificamos conhecidos em co-
mum. Ela então revela ligações com a família Badaró — tão famosa
nessa região —, e me diz que seu marido tinha sido empregado de
uns Badarós durante mais de quarenta anos.
O marido está com noventa primaveras. E apesar do derrame e
de não andar mais direito, ele é, às vezes, lúcido ou, às vezes, revela
estranho comportamento.
Pode ser calmo, conversador, e contar estórias de antigamente.
Pode ser acometido de perturbações, erguer-se brusco da cama,
superar a dificuldade de andar e sair cambaleante e alucinado pelos
becos do Pantanal.
O velho tem acessos ridículos de fúria senil, agride até a própria
filha, ou os cachorros vira-lata. Empunha garfos de cozinha como
se fossem facas. É conhecido por essas esquisitices, é facilmente
contido pelos vizinhos e trazido de volta a seu barraco e à sua cama.
O velho é do tempo dos Badarós. Foi capanga, ou jagunço, que
seja, de um tal Humberto Badaró.
Dona Maria de Algum Sobrenome Importante me fala de laços
de família. Alguns nomes me remetem ao meu passado e, de certa
forma, à minha estória familiar também. Dona Maria fala de


Dominguinhos Badaró, do Sinhô Badaró, e do Coronel Basílio de
Oliveira. Ah, e eu me lembro agora do famoso romance de Jorge
Amado, Terras do Sem Fim, que conta uma guerra entre dois clãs
familiares: os Badarós e os Basílio de Oliveira.
Há muitos anos atrás, numa viagem a Ilhéus, fui parar numa
fazenda dos Badarós e descobri (mais tarde) que aquelas terras
eram as famosas terras de Sequeiro Grande de que trata o romance
de Jorge Amado. Um lugar especial na literatura brasileira porque
foi palco de batalhas na época do Brasil dos coronéis.
Para mim foi um lugar maravilhoso, quente, úmido e verde-
jante. Onde havia bastante diversão. Onde eu, e um primo que é
Badaró, o dia inteiro montávamos cavalos e íamos tomar banho de
rio com os moleques. Era só alegria!
À noite não se tinha muito o que fazer, pois não havia na fazenda
nem mesmo eletricidade. Mas se podia bem papear numa varanda
e espiar as estrelas, a lua. E a gente tinha certas conversas que
seriam como a conversa que tenho com Dona Maria: atiçam a
curiosidade, instigam.
Numa noite, à luz de velas, vasculhei o fundo de um gavetão
na casa grande. Apalpei um maço empoeirado de cartas. Parecia
que não tinham sido mexidas durante meio século. Abri uma carta
amarela e desbotada que dizia respeito a uma tocaia sofrida pelo
Sinhô Badaró. O mandante foi o coronel Basílio de Oliveira. A
carta era do ano .
Achei tudo aquilo simplesmente fantástico, vasculhei mais e
abri outras cartas. Um fio da meada de letras velhas escorria nas
linhas tortas de uma estória longa: as cartas falavam de uma guerra
de família. Mas não consegui chegar a um entendimento final desse
assunto nebuloso, e nem de como aquilo tudo tinha terminado,
enfim.
Reparem que interessantíssimo. É esta Dona Maria de Algum


Sobrenome Importante quem traz os esclarecimentos finais. Aqui
no Jardim Maia. Num encontro casual nesta sala.
A velha desentranha a guerra medonha. Um morticínio, uma
troca de vendettas, sim, meu filho, tudo num clima eriçado de
ódios em que matanças se multiplicavam através de uma canhestra
justiça feita com as próprias mãos.
Mas o final foi surpreendente: Dominguinhos Badaró, irmão do
Sinhô Badaró (e personagem de Jorge Amado), casou-se com uma
filha do coronel Basílio de Oliveira.
Não parece novela de televisão?!
Bem ou mal, o casamento, fosse por amor ou não, teria causado
o final da guerra por acordo e união das famílias. E assim, de um
conluio prazeroso de corpos nasceu Humberto Badaró, patrão do
seu marido, e tio-avô do meu primo.
Ah, e quanto ao marido de Dona Maria — aquele velho furioso
e manso entrevado na cama — ah, Dona Maria me confessa que
ele, hoje, é sombra do passado. Ninguém aqui tem a mínima idéia
de sua verdade.
Na Bahia ele não mandava recado quando estava em vias de
cumprir ordens de cima. Fazia e pronto. Era certeiro e de ação
ligeira. Duro e implacável no golpe. Despachou muita gente para
o outro mundo, mesmo porque não houve apenas aquela guerra, e
aquelas terras, como escreveu Jorge Amado, foram “adubadas com
sangue humano”.
Dona Maria se benze. Suspira fundo. Mal se dá conta de
quantos partiram. Porém tudo isso é assunto do passado, pois
muitos e muitos anos correram até eles dois terem deixado Ilhéus e
para lá nunca mais voltarem. E quando vieram tentar a sorte no
“Sul maravilha” deram de cara com a cidade que mais crescia no
mundo.
Mas quase nada encontraram aqui além do rame-rame duro
da vida. Enfurnaram-se nas proximidades do Jardim Maia, numa


área conhecida como Pantanal, lugar perigoso onde tem toque
de recolher. E fim de estória, fim de conversa. Fim de linha às
margens lodosas do Tietê.
Bem, minha gente, os caminhos deste mundo, afinal de contas,
se bifurcam, se afunilam e se reencontram. Aqui foi a toca final
de um homem velho a quem não conheci ainda; aqui foi o refúgio
de uma mulher com nome pomposo, de uma mulher de maneiras
algo finas — Dona Maria de Algum Sobrenome Importante — a
quem acabo de conhecer.
Ela, remanescente de uma família da região de Ilhéus, Itabuna
que teve outrora muitas posses, muito gado, muitas terras. Ele,
remanescente de um tipo de homem duro e implacável, um tipo
fiel e necessário a cumprir mandos dos poderosos. Um tipo algo
sertanejo que era também um forte, porém forte para garantir a
ordem canhestra do antigo Brasil dos coronéis. Tal como se deu no
curso de muitas outras sagas familiares do passado.
Ah, meus amigos, eu posso bem imaginar que esta Dona Maria
de Algum Sobrenome Importante tenha sido a última carta faltante
naquela pilha de papéis amarelecidos e empoeirados.
Porque foi há um bom tempo atrás, e eu me lembro bem. Eu
era menino. Naquela noite quente, à luz de velas, com o brilho da
lua cheia entrando pelo janelão aberto, no fundo de um gavetão,
naquela fazenda da Bahia, eu vasculhava um mar de estórias e
ainda não sabia como havia terminado a guerra das famílias.
Esta Dona Maria deve ter sido uma das últimas testemunhas
oculares do Brasil dos coronéis. Brasil que, para mim, também é as-
sunto de família. Ou retrato de família que, como dizia Drummond,
“viaja através da carne”.


Duas Bíblias

A vida dele foi salva pela tuberculose! Não duvidem. É um caso


talvez único.
Quem entra é um tipo estranho. Negro, jovem, magro. Recu-
perado de desnutrição outrora muito doentia, ele exibe uma face
chupada e tem um ar taciturno.
Mas o que mais chama a atenção é o fato de carregar duas
Bíblias. É um homem de duas Bíblias, vejam só!
Na verdade é apenas um rapaz vestindo calça vermelha justa
que lhe dá aparência de saltimbanco, de figura de teatro medieval,
curinga ou bobo da corte.
No entanto, as duas Bíblias.
O caso não fica só nisso. A atendente de enfermagem me diz que
ele sofre de “desvio de comportamento”. Logo acrescenta: “desvio
de comportamento religioso”.
Nossa mãe santíssima! Pois a atendente se reporta à estranheza
das duas Bíblias — uma em cada mão — e ao tom proselitista do
rapaz que se arvora a pastor de araque e a tudo atribui interferências
das esferas celestiais, quando não a intervenção de um Deus Jeová
diretamente nos seus assuntos pessoais.
Então vem a estória mesmo.
Ele foi internado num sanatório em Campos de Jordão para
tratamento de uma tuberculose que, ao que tudo indica, foi deveras
complicada. Ele ficou lá mais de um ano e comeu o pão que o diabo
amassou.


Depois que retornou ao Jardim Maia explodiu uma desavença
familiar com um primo. A desavença foi decidida na bala. Ele
levou a pior no início porque o primo lhe desfechou quatro balaços,
e ele foi hospitalizado e tal e coisa.
De repente ele me mostra um raio-x de tórax que trouxe por
conta própria. De início, eu constato que seu pulmão direito foi
“comido” quase totalmente pelo famigerado bacilo de Koch.
(Mas, para bom andamento da estória, preciso abrir parênteses
para uma curta explicação, caro leitor. É assunto médico, e é o
seguinte: devido à atelectasia e à fibrose que se instalam como
seqüelas da lesão produzida pela tuberculose no pulmão direito,
o coração do nosso amigo foi deslocado de sua posição habitual à
esquerda para ficar quase que totalmente à direita.)
Volto agora ao caso, quando, neste exato momento, o rapaz
aponta, no raio-x, um projétil alojado no peito. Ah, observo um
detalhe deveras interessante, e impressionante: o projétil está no
lugar onde deveria ficar normalmente o coração, e o rapaz faz
questão de esclarecer esse detalhe gesticulando, dramático, com as
duas Bíblias.
Ah, ele me lembra um ilusionista, um homem de circo! E
resume: o primo mirou no coração, mas este não estava em seu
lugar. Graças à tuberculose!
Não me diga!? Eu imagino a estupefação do primo mau, que —
diga-se de passagem — está bem guardado atrás das grades.
Neste momento o paciente dá um sorriso, ergue as duas Bíblias
num gesto de triunfo. Fala numa voz suave e angelical. Fala numa
voz pastoral sobre intervenções divinas em sua pessoa.
Eu olho bem para ele e pergunto a meus próprios botões: as
calças vermelhas apertadas que lhe dão ares de um curinga medi-
eval, ou de saltimbanco de circo antigo, bem, essa indumentária
escarlate — digamos assim — seria um detalhe algo provocador,
ou mesmo perverso?


Fico em dúvida. Será que ele deseja especular com um elemento
ambiguamente diabólico à sua volta e à sua espreita!? Será que
as duas Bíblias cairiam como um complexo peso divino? Será que
entrariam em cena como estranha dualidade para garantir uma
proteção completa contra domínios inferiores!?
Ele acrescenta alguma luz à minha dúvida e, depois, resume
tudo, decisivo.
Foi o Diabo quem fez o primo lhe desfechar um balaço no
coração. Mas Deus é grande e Deus lhe deu a doença para que esta
afastasse o coração do seu lugar à esquerda para ficar à direita. O
Diabo mirou no alvo. Errou. Deus venceu.
Aí penso nas duas Bíblias: uma do lado esquerdo e outra do lado
direito.
Quando ele vai embora é engraçado olhar para uma figura
ímpar: magro, negro, alto, teatral, com um volume de cada lado.
Lembra um equilibrista. Lembra um ator de uma antiga trupe
mambembe.
Sua vida é marchar na corda bamba. Ou andar no fio da navalha.
Mas faz sua cena! Então palmas para ele!
Ele está vivo graças a um acordo estranho entre o Bem e o Mal!
Eu imagino que, na loteria da existência, ele seja mais feliz do
que Jó. Ao menos não padeceu tanto. O acordo durou menos tempo
e ele foi logo poupado. Jó foi mais bode expiatório que ele, e Jó não
carregava duas Bíblias.


Raskolnikov

Há momentos em que é melhor silenciar.


Palavras ficam suspensas no ar. Ou são desnecessárias. Mas
podem, no entanto, raras, abrir uma larga cortina diante da vida.
Sendo assim, o assunto é Dostoiévski: Crime e castigo.
Em outros termos, recebo uma visita de Raskolnikov.
Há muitos Raskolnikovs pelo mundo. Este é da Zona Leste de
São Paulo, e do Jardim Maia.
Nem sei bem o que dizer. Faltam-me palavras. Ou, talvez, não,
e eu queira somente fazer o registro sucinto da emoção perturbada
de um momento.
Quem tem olhos que veja, quem tem ouvidos que escute.
Pois eu acabo de constatar que ele é um Raskolnikov, embora
seus crimes sejam mais variados e seu perfil careça da sofisticação
literária do outro Raskolnikov.
Ademais não se trata apenas de uma velha usurária julgada
imprestável por quem se julga superior. E, de resto, a concretude
dos fatos na mixórdia pantanosa dos arredores do Jardim Maia não
valeria, quem sabe, uma página de Dostoiévski. Mesmo que São
Petersburgo tenha sido construída sobre um pântano por Pedro, o
Grande.
Mas este, agora à minha frente, sendo pequeno, e este, sendo
Zé, e daqui, é uma alma devorada pela culpa. E também assassino.
Embora, meus irmãos camaradas, ele tenha caráter, feito Ras-
kolnikov.


A hora da estrela

Nada mais fora de moda do que a frase: “Freud explica”. Mas já


foi moda. Digo melhor: já foi frase revolucionária, o último cri de
quem estaria por dentro dos avanços de alguma ciência da mente.
Mas aqui, na periferia e no Jardim Maia, as coisas vêm defasadas
no tempo e no espaço. Até um “Freud explica” que ouço hoje de
uma mulher — a quem vou dar um nome — Macabéia.
Macabéia é uma senhora madura, baixa, atarracada, muito
falante e branquinha. É ótima vendedora. Faz tremendo lobby
com seus sabonetes que perfuma com ervas naturais. É profissional
obsessiva, porém cativante, sedutora.
De repente, ao dizer a frase “Freud explica”, Macabéia quer se
referir a um fato comum da vida: gente que fala mal de gente mas
que quer ser igual à gente mal falada. E conforme ela bem explica,
é tudo muito simples.
Macabéia conta o caso de uma moça que trabalha numa loja
aqui na vizinhança. É uma moreninha muito bonita e assanhada
que “fica na dela” enquanto dança sozinha. Mas a moça não dança
feito dançarina comum, Seu Doutor. Dança feito odalisca egípcia!
Ah, não me diga!
Pois é mesmo, ela dança toda solta e sem nenhuma vergonha.
Na verdade — e como o povo costuma dizer — ela “não está nem
aí”! Nem no Egito e nem no Jardim Maia! A moça está sempre
viajando lá longe. . . no mundo das estrelas.
Eis então que passa em frente à loja uma certa Dona Maria


marchando para casa com uma sacola de feira. Pois veja o senhor,
Seu Doutor. E Macabéia vai mostrando como é que a tal odalisca
egípcia adora exibir-se para olhares estranhos enquanto se diverte
adoidada rebolando em seu palco particular. Como faz todos os dias.
Dona Maria pára, olha, pensa um pouco e fica indignada ao ver
a mocinha. E por que fica indignada, Seu Doutor?
Macabéia recorre à sua psicologia de banca de jornal. Vira
psicanalista de ocasião. Argumenta que Dona Maria, na sinceridade,
quer ser a outra, a dançarina. E porque não pode ser, fala mal dela.
Elementar, né?!
Puxa vida! Essa psicologia é simples como uma cesta básica!
Nem Freud teria sido tão claro! Mesmo que ele até possa explicar
(será?)!
Ouço agora uma risadinha sarcástica de Macabéia, e me ponho
a imaginá-la a observar Dona Maria que, por sua vez, observa a
menina que dança feito odalisca egípcia. Penso num filme, num
filme de Fellini talvez.
Macabéia prossegue.
Pois é básico, Seu Doutor! O senhor entende, né? Sim, claro que
entendo. Perfeitamente. É o óbvio. É o bê-a-bá. É como dois mais
dois são quatro e como feijão e arroz se encontram no prato.
Macabéia retira-se triunfante como se tivesse acabado de fazer
uma defesa num tribunal, ou como se tivesse acabado de pregar um
sermão decisivo.
Macabéia segue até a porta. Carrega seus sabonetes dentro de
uma sacola de feira. Deixa um rastro sedutor de perfume no ar.
Perfume que, conforme ela revela agora antes de bater a porta,
tinha vendido à mocinha dançarina.
A tal odalisca egípcia? — eu observo, com o ar da graça.
Macabéia acrescenta, sem o ar da graça, que a odalisca egípcia
mesmo só começa a existir a partir de alguma hora tardia da noite.
Ah, não me diga!


Ah, sim, quando Macabéia espia o céu pela fresta da janela,
coloca uma música baixinho, e fica sozinha e à vontade consigo na
solidão do quarto.


Bingólatra

Me fala, baixinho, de um vício. Eu ouço, a princípio, algo parecido


com “pico”. Ah, então seria cocaína, pico e pó injetado na veia?
Não, ela diz outra palavra. Eu entendo: “bingo”.
Li a respeito dos bingólatras. Já existem muitos nesta São
Paulo onde casas de bingo proliferam. Algumas luxuosas, enormes,
com escandalosas luzes coloridas e oferecendo gentilezas altamente
sedutoras.
A mulher é, pois, bingólatra. Na verdade trata-se de depressão
severa. Tudo nela é depressão: postura, voz, atitude. A história é
até um pouco típica: perdeu a vontade de viver, não dorme direito,
não come direito, fica sozinha o tempo todo, não quer sair. Enfim,
depressão. Porém com um aspecto curioso: a mulher preserva a
compulsão pelo bingo.
E não é somente uma questão de esperança de riqueza através
dos lances jogados contra o acaso. É vício mesmo, pois o bingo a
absorve o tempo todo e é a única coisa que a tira de uma modorra
imensa.
Por isso ela confessa já ter ficado mais de dez noites sem dormir
em casa. Às vezes quase dorme acordada nas casas de bingo quando
permanece lá a noite inteira jogando seus últimos trocados.
Na alta madrugada — magérrima, pálida, olhos encovados —
ela cochila, cochila, até que algum segurança a convida a se retirar.
Ela é despejada no meio da Paulicéia no início da manhã. Va-


gueia, toma café numa padaria e espera a hora de abrir o bingo —
aquele mesmo ou um outro.
O bingo é o sorvedouro de seus bens. Ela já chegou a torrar
cinco mil reais em três dias de um dinheiro que recebera de uma
herança. Mesmo objetos da casa são vendidos, ou penhorados para
gerar dinheiro para o bingo. Mesmo comida é transacionada para
o bingo.
Ela é uma figura realmente depressiva. E é uma mulher com
hábitos um pouco finos. Trabalhou no ramo de moda e viajou à
Europa algumas vezes. Tem um resto de maneirismo artificial
denotando afetação de pessoas acostumadas com público de luxo. É
toda etiquetada, porém restam nela apenas ecos do passado. Hoje
ela está desbotada, reduzida a cinzas. Sua marca pessoal surge na
sinceridade contumaz com que ela relata, cinicamente:
— Bingólatra.
A família? Uma estória triste. O marido morreu há pouco. Um
filho morreu há muitos anos, adolescente. Sobraram alguns filhos
ingratos e já grandes. Um deles, desempregado, se droga e enche a
casa de companheiros de vício. Ela ainda é obrigada a tolerar tudo,
e escuta horrores do rapaz.
No auge da solidão doméstica ela tem o hábito de conversar
não com os vivos mas com os mortos. E não é delírio, alucinação
ou conversa de centro espírita. Ela toma algumas fotos, as dispõe
em série e entabula a conversação. Faz do conjunto de fotos um
pequeno altar e monta uma peça. Puro teatro doméstico. Do
absurdo.
Seria ela um caso peculiar? Talvez, porque devido à depressão
não se espera que ela se atire tão obsessiva na faina diuturna da
jogatina e em casas onde as pessoas ao menos fingem que estão
felizes, riem, bebem, fazem algazarras!
Seria ela uma estranha exceção? Não sei. Sei apenas que, para
ela, tudo é um jogo. Portanto, tudo pode ser acaso. E se tudo pode


ser vaga obra do misterioso acaso, imagina-se que ela mal seja
notada — magérrima, sequinha — entrando e saindo de todas as
casas de bingo no centro de São Paulo.
Com um agravante: ela já vem se percebendo paranóica. Tem
impressão de que todas as pessoas dizem horrores: — Olhem, lá
vai o palito desnutrido, lá vai a viciada sumindo até ficar invisível.
Porque todas as pessoas pressentem, à boca pequena, que ela será
esmagada, ou irá evolar-se, ou será tragada numa máquina de jogo
como uma ficha ordinária. Ou será varrida sem querer e atirada
em algum caminhão de lixo.
Mas será que não notam a sua presença?! Quase ninguém. A não
ser o segurança que a prende pelos braços e, meio educadamente,
lhe dá um suave pontapé na bunda ao raiar da manhã paulistana.
Não adianta, ela volta feito bumerangue. Mesmo carregando a
mais intensa depressão, e mesmo carregando uma imensa fissura
de recuperar perdas cada vez maiores apostando desesperadamente
contra o acaso.


Fidelidade

Ela parece ser imensamente recatada. Quase uma muçulmana


tradicional, embora cristã. Usaria até um véu cobrindo o rosto, véu
que não está presente, mas estaria, sob outras circunstâncias!
Delicada, ela tem voz sumida e macia. Tímida, ela principia a
falar a respeito do marido, a quem acompanhou até a morte depois
que um câncer lhe castigou por anos a fio.
Como se estivesse fazendo uma confissão religiosa, ela começa
o seu discurso proclamando que, a partir do início do relaciona-
mento com esse homem, tudo na vida dela seguiu os costumes dos
ancestrais.
Casaram-se no Nordeste, ela com dezenove e ele com vinte um.
Fizeram muitos filhos. E quando o marido ficou fraco de sexo, ela
passou a nunca falar nada deste assunto. Conformava-se.
Ela admite que, antes de casar, jamais houve beijo, jamais uma
carícia maior, jamais um toque físico além de um leve roçar de
dedos, e sob supervisão. Depois de casada sempre fizeram cerimônia
um perante o outro. Jamais se despiram juntos, mesmo dormindo
no mesmo quarto. Viam-se sempre vestidos.
A reprodução da espécie tem sido, porém, pródiga. Para tanto
não é e nunca foi preciso a nudez: basta a semeadura no orifício
disponível. Roupas, afinal de contas, não atrapalham. E quando a
barriga crescia as roupas cobriam o ventre.


Assim o tempo passou, e ela jamais conheceu outro homem e
jamais irá conhecer. Ao marido, tudo perdoa. Não ousa proferir
um ai contra sua fraqueza de sexo. Credo! Até esconjura qualquer
pensamento sobre o assunto. Pois se lembra da educação conforme
os ancestrais. Ela não pode falar nada contra o desejo do outro, e
nada a favor do seu desejo.
Olho bem para esta mulher. Eu a vejo como uma presença
humilde e antiquada dentro da sala — magra e delicada, a blusa
apertada na gola feito roupa de crente, a saia longa. É quase como
se ela fosse vista mesmo com o véu, com o purdah muçulmano que
nela ficaria até adequado.
Eu ainda imagino outro efeito especial: o fantasma do marido
seguindo a tiracolo na lembrança dos momentos finais após anos
a fio, em que — conforme ela diz agora — o marido foi se es-
vaindo até o ponto em que parecia, Seu Doutor, uma geléia, ele
esparramado na cama, os ossos se quebrando feito polvilho, ele todo
amolecendo cada vez mais numa flacidez sem fim.
Pois é como se o marido inteiro perdesse a firmeza sertaneja
e fraquejasse com o passar do tempo, é como se naquele homem
murchasse o vigor antigo, é como se o corpo dele, como se uma
parte mais especial dele, a dureza dele, carecesse de existir.
Mas ela vai embora firme sem entoar um suspiro, sem entoar
um ai. Porque da fraqueza do marido — credo — não poderia
jamais se queixar. Foi educada para certos silêncios. E jamais
conheceu outro homem na vida. Jamais irá conhecer outro.
Eu me distancio um pouco como se carregasse uma câmera. Eu
olho através da câmera imaginária e me pergunto: seria ela uma
Eurídice que, no avesso do mito, procuraria um Orfeu?!
Quem sabe! Pois ao olhar para trás ela é que passaria a ser —
tão cênica no drama de si mesma — apenas um véu desejado ou


faltante, enquanto ele, sombra, estaria desfeito por inteiro e seria
como o próprio Hades, isto é, em grego, o não-visível.
Como se ele — que já foi homem rijo e forte — acabasse de
pingar gota a gota para dentro de um vaso, ou se esvaísse disforme
e cada vez mais amorfo para dentro de um buraco negro, e sumisse
no meio de outro universo.


Até o próximo Carnaval

Ele é negro, muito pobre, e tem um ar esmolambado. Alguém o


imaginaria mendigando. Alguém diria que ele tem ares de vícios,
de cachaça. Fuma muito, toma lá seus tragos, mas não é nenhum
bebum caricato.
Tem uma ferida crônica no pé, uma postura de humildade, e
um certo receio ao falar. É bastante educado.
A família? Ele e a mãe, sendo que ela, aos setenta e cinco anos,
cata latinhas por São Paulo arrastando um carrinho pelas ruas.
A mãe trabalhou quase trinta anos no Parque Dom Pedro la-
vando carros, e foi quando teve e criou seus filhos: quatro homens,
com dois homens. Nenhum filho conheceu qualquer um dos pais.
Mas a mãe foi Mãe Coragem na labuta.
Ele tem lembranças que vão longe e passam por vários pontos
da Paulicéia. A mãe costuma lhe dizer que, quando ele era bem
pequenininho ficava numa caixa de sapatos. Imagine só, este homão
de hoje! Ah, e ele acha isso tão engraçado! E se lembra, quando já
era mais crescidinho, de ter ficado em caixas maiores, também de
papelão, onde a mãe o deixava enquanto lavava carros.
Ele fala dos irmãos. Dos quatro resta ele, o caçula. E pela
cara que ele faz deduzo que os destinos dos demais irmãos foram
reservados. De fato.
A mãe teve o primeiro filho, que longo tempo atrás ficou doido
varrido por alguma doença na cabeça, e lá se foi para o manicômio


de Franco da Rocha, onde permaneceu dezessete anos. Então, de
repente, morreu, sabe-se lá como.
Teve um segundo filho, que era tranqüilo. Um dia amanhe-
ceu estrebuchado na cama. Sofreu um ataque. Disseram que foi
apoplexia.
Teve um terceiro: assanhado, folgazão, brincalhão. Por isso, lá
pelas bandas do Parque Dom Pedro um carroceiro cismou que ele
teria se metido a besta com sua mulher. Foi encontrado varado por
oito facadas.
A mãe, uma negona velha, tem sobressaltos medonhos pelas
mortes dos três filhos ocorridas em curto espaço de tempo. Ela
vela pelos restos mortais colocados em gavetas humildes: dois no
cemitério de Vila Formosa e um no cemitério de Vila Cachoeirinha.
A mãe fica nervosa e inquieta tentando juntar três ossadas numa
gaveta melhor, mais decente, para depois colocar tudo devidamente
debaixo da terra.
Mas neste momento ele faz uma pausa e desvia um pouco o
assunto para o mal da perna. Depois muda de novo o assunto e fala
de um outro lado da mãe.
Pois é, Seu Doutor, minha mãe é conhecida porque é passista de
Escola de Samba, sai na Gaviões da Fiel todo ano na ala das baianas.
Com setenta e cinco anos. Ela apareceu até na televisão.
Eu fico imaginando a saga daquela mulher, que, bem nova,
viera da Baixada Fluminense para trabalhar duro em São Paulo
e criar os filhos. Ela deveria ser neta ou bisneta de escravos. Eu a
imagino acompanhando sempre o ritmo e o balanço dos carnavais.
Quero então saber desde quando ela é passista, dançarina de
Carnaval. Ele balança a cabeça. A estória dela não é bem aquilo
que eu estou pensando. Tudo aconteceu a partir das mortes dos três
filhos. A mãe quase enlouqueceu, mesmo que já estivesse velha,
com quase setenta anos.


Foi quando ela resolveu ir para a avenida e sambar as quatro
noites de Carnaval. Passou a fazer isso todos os anos.
Ele jura que a mãe é o máximo. A mãe é a única que roda sobre
uma perna só. Literalmente, ela roda a baiana sobre uma perna
só. Sempre explosiva, exuberante, fazendo loucuras na avenida.
Esbaldando-se como se quisesse oferecer aos mortos uma home-
nagem de alegria fazendo carnavalescamente apagar um pouco
a memória. Até que chegue um próximo ano. Até um próximo
Carnaval.


O taxista

Ele é taxista há mais de vinte anos. Vem de Pernambuco, do agreste.


Homem de temperamento impulsivo, meio louco, atirado, corajoso.
Meteu-se em várias aventuras. Passou por momentos radicais.
Quando criança, lá no Nordeste, tombou de uma laje, ficou três
meses em coma e recuperou-se com a face meio deformada: um
olho mal se fecha, o outro é quase fechado. Mas a face assimétrica
não assusta.
Hoje ele é homem pacato e com jeito bonachão. Apenas manca
um pouco, claudicante.
A estória que conta agora é a seguinte. Ele pegou um casal
no metrô Tatuapé: um gringo argentino que falava portunhol e
uma moça brasileira que pouco falava. Seguiram para os longes de
São Mateus. O argentino comandou o taxista para entrar em um
conjunto habitacional até chegar num beco sem saída, lugar ermo.
Era fim de crepúsculo. Ninguém nas ruas. O gringo colocou um
casaco de couro, sacou a carteira e pagou a corrida. O taxista viu
um brilho estranho nos olhos do gringo. O gringo sacou um trinta
e oito e, em bom portunhol, anunciou: assalto. O taxista saiu do
carro lembrando-se que tinha outro trinta e oito grudado na perna
pouco acima da bainha da calça.
Naquele instante o taxista fez um movimento suspeito, coisa
mínima. O gringo encostou o trinta e oito contra o corpo do taxista
e disparou. O que seguiu foi muito rápido. O taxista ficou de
repente com um lado meio paralisado, sangue jorrava do orifício


de entrada da bala, e o momento, ah, o momento era como se uma
cascavel tivesse caído ali no burburinho de uma disputa.
Pois o taxista me fala de uma agonia da morte, coisa súbita,
quando o gringo aproximou o trinta e oito do seu ouvido e ele se viu
no quase-quase do lado de lá, e era novamente a agonia, a cascavel,
o sangue jorrando.
Era tudo ou nada. O raciocínio do taxista foi instantâneo. Se
o seu braço direito estava meio paralisado, ele usou o esquerdo,
esqueceu o trinta e oito na perna, e rápido agarrou o trinta e oito
do gringo.
Cena caótica, dois homens engalfinhados, uma arma saltitava
no meio. O primeiro tiro disparado ficou perdido. O tambor rodou,
tudo era confusão, e um movimento do braço esquerdo do taxista
fez o cano apontar contra o peito do gringo que estertorou e caiu,
balaço varando o peito. O homem mordeu o chão e expirou. Tudo
rápido, rápido, rápido, muito louco.
O taxista confessa ter buscado coragem no momento em que
viu a morte: era mesmo tudo ou nada e ele decidiu entrar no jogo.
E naqueles ermos de São Mateus, sem vivalma na rua, alguém de
longe e do alto de um edifício viu a cena e chamou a polícia, que
logo chegou.
O taxista estava caído, sangue escorria pela sua boca, vomitado,
porque a bala lhe tinha perfurado o intestino. Colocaram o taxista
no carro de polícia, fizeram reanimação, tocaram para o hospital
onde ele chegou entre a vida e a morte e foi imediatamente operado.
O depois foi árduo, com burocracia e desconfiança. O delegado
embaçou, todo cismado. Questionou a versão do taxista. Mas este
não tinha passagem, era conhecido na praça há vinte e dois anos. O
argentino tinha várias passagens, quase todas por roubo e muitos
roubos foram cometidos contra taxistas. Ele era um especialista
nisso.
O taxista dá graças a Deus por estar andando, mesmo que sua


vida tenha rodopiado e ele sobreviva de uma mísera aposentadoria.
E, para falar a verdade, ele nunca soube dizer direito como aquela
reação foi possível. Ou como o cano se virou contra o bandido, ou
como o feitiço se virou contra o feiticeiro. Mas devia ser a danada
da visão da morte, Seu Doutor. A cascavel caindo, despencando no
cenário.
Ele foi possuído, possuído pela fúria. E foi tudo rápido, rápido.
Ah, ele se lembra bem. De repente o gringo esticado morto
no chão. Ele aos poucos desfalecendo. Aquele lugar ermo em São
Mateus. A sirene da polícia. Golfadas de sangue jorrando. Pouco
tempo antes aquele gringo claro, de cabelos claros e bem vestido,
tinha entrado no táxi com uma mulher. Nunca ele poderia prever.
Ele se despede e dá graças a Deus por estar vivo e andando,
ainda que claudique. A bala está alojada na sua bacia, e quem sabe
um dia seja retirada, quem sabe fique lá para sempre.
Mas ele jura que foi tudo verdade e, ao que me parece, deve ter
sido mesmo.
Pois há momentos feito esse, de loucura, de radicalidade, em
que a manutenção da vida fala mais alto. É como se a cascavel —
a cobra, a peçonha, a brutal e atávica animalidade — caísse sobre
nós e nos fizesse uma transformação animal. Em minutos, em
segundos, tudo é decidido não por nós e sim pelas sutis mãos dos
deuses ou das entidades que, de longe, nos façam vigilância.
O taxista versus o gringo, round único, morte no primeiro assalto
a favor do taxista. Quanto ao outro, seria talvez o décimo assalto.
Quem ergueu o taxista da arena foi um policial. E naquela
hora já havia público. Pois de longe umas luzinhas se apagaram
no conjunto de apartamentos quando a viatura se foi com a sirene
ligada.


O entardecer do fauno

Riobaldo, esse vai ser o nome.


O relato de Riobaldo flui como um poema. Brasileiríssimo,
baiano e nordestino.
Hoje ele é um velho, se é que pode ser assim considerado: se-
tenta e poucos anos, com ares de bem menos, pele curtida feito
couro velho.
Imagina-se nele um antigo vaqueiro dos típicos, desses que
corriam campos ferrando gado aos berros harmônicos e fazendo
elegantes gingadas. Lá pelos sertões.
Eu diria: Riobaldo é um pouco do que resta do sertanejo de
Euclides. Pois eu sempre busco o sertanejo de Euclides da Cunha, e
cada um dos possíveis sertanejos de Euclides da Cunha aproxima-se
cada vez mais do que seria um arquétipo brasileiro do sertanejo,
com sua força que se multiplica e se transfigura desde a força física
até a resistência passiva de gente retirante sertanejando nos sertões
de Sampa.
A história de Riobaldo poderia ser — em caso de uma transpo-
sição lingüística — um l’après-midi d’un faune. Vejamos melhor.
Até os setenta anos ele conservou aquele ímpeto do macho que,
na cultura brasileira, faz a alegria da monta sobre o bicho fêmea.
Eis uma velha estória que também pode ser, para muitos, a vida
como ela é. E se o Brasil é desse jeito no imaginário de homens
sertanejos e nordestinos, há um momento de l’après-midi d’un


faune em que o declínio traz reflexões. A todos os machos, não
necessariamente nordestinos ou sertanejos.
Para ele o sexo na “terceira idade” anda muito tenso. O sexo
está sendo um desfilar ansioso e apressado de corpos rapidamente
despidos em cubículos de periferia. Porque da primeira mulher —
temperamental que só vendo — ele separou-se velho, depois de
ter doze filhos, mais de cinqüenta netos e alguns bisnetos. Livre,
porém, continuou seu afã de cama: ora uma neguinha, ora uma
branquinha, uma mulatinha; em geral jovens ninfetas de subúrbio.
Riobaldo, no entanto, vem se tornando cada vez mais circuns-
tancialmente exigente da carne da próxima. Seu corpo tem, cada
vez mais, gostos particulares. Para dizer a verdade, seu corpo, hoje,
é obrigado a ceder, a aceitar incômodas razões íntimas que con-
trariam a obsessão do fauno. Há um motivo fisiológico: sua carne
impõe condições de desaquecimento que sua cabeça lamenta e, ao
mesmo tempo, sua cabeça manda ordens para inflamar o apetite
que seu corpo também lamenta.
Não dá para esconder. O fogo da carne começou a declinar,
ainda mais quando a graça de suas pequenas corre o risco de desa-
parecer por causa de certos aromas inconvenientes, ou por causa
de detalhes corpóreos bestas que esfriam o apetite. O fauno, de
repente, desanima — para não se dizer uma outra palavra bem
popular, é claro.
Mas o que há de interessante não é isso. É todo o restante da
estória de Riobaldo. Justamente porque quase não há estória, é tudo
a mesma coisa porém bem contada. Eu diria quase uma Odisséia
brasílica, a começar com o ferrar do gado próximo às barrancas do
São Francisco, e depois com Riobaldo enveredando rumo ao 
paulista.
Onde Riobaldo trabalhou como metalúrgico na popular
Volkswagen. E na época conheceu ninguém mais ninguém menos


que o nosso Lula, muito antes de ser Lulalá. Os dois comeram na
mesma mesa, tomaram cachacinhas nos mesmos botecos!
Riobaldo recorda com brilho nos olhos aquele seu histórico
encontro pessoal e trabalhista. Logo a seguir resume: hoje ganha
míseros duzentos e poucos reais por mês, e o outro é presidente da
República. Mas ele — mesmo no l’après-midi d’un faune — sempre
foi otimista, e um excelente contador de estórias. De estórias reais.
Por isso prossegue, prolixo e bom conversador.
Ah, seus doze filhos não deram muito trabalho não. E esta
ninhada com rótulo de dúzia nem é escadinha, Seu Doutor, é “serri-
nha”. Nasceram todos na Bahia e vieram de uma só vez de ônibus.
Riobaldo foi o pioneiro aqui em São Paulo, chegou bem antes e
montou um boteco em São Miguel. Depois se deu conta de que não
seria profissão decente. Mas ainda tinha um boteco quando recebeu
a mulher na rodoviária junto com a “serrinha”. E lembra que
alugou dois táxis para trazer a ninhada e mais alguns agregados
para São Miguel.
Riobaldo recapitula uma saga familiar. Eu imagino, pois, as
gerações no tempo e no espaço. Primeiro o vaqueiro sertanejo de
Euclides. Depois os filhos que se apaulistaram. Depois os netos que
se apaulistaram ainda mais.
Os filhos foram criados no estoicismo dos sertões. Todos pediam
a bênção ao pai, nenhum desviou da rota e enveredaram sendo
trabalhadores. Hoje são pais de família e bons reprodutores, porque
Riobaldo tem mais de cinqüenta netos.
Quanto aos últimos, são de novíssima geração: molecotes, meni-
nos e meninas, manos e minas cheios de piercing, cabelos aloirados,
gel e o escambau. Mas nem todos seguiram retos caminhos. Os
tempos são outros, e há os desviantes. Riobaldo tem dois netos
na cadeia. Acha que eles fizeram por merecer. Se bem que é a
velha tentação da cidade grande, amigos de ocasião chamam para


qualquer correria! São Paulo também é um mundo de perdição, né,
mano?!
Enfim, Riobaldo — melancólico, crítico e reflexivo nesse l’après-
midi d’un faune — levanta a sua moral do passado. Depois aponta
energias que se vêm lentificadas numa saga de cópulas desde os
sertões. Sem falar que ele tem suas opiniões: o macho cujo membro
não mais se ergue está morto.
Segue uma pausa nervosa e um terror suspenso no ar, e que
desaba flácido, ou feito galho seco quebrado! Mas Riobaldo não dá
o braço a torcer e nem o restante. Conta mais estórias e proezas,
finge não sentir uma tristeza que parece diluída no imaginário de
suas estórias. Afinal de contas, ele ferrou gado nas barrancas do São
Francisco, foi amigo do presidente da República e se fez um grande
macho reprodutor.
Mas, a cada dia que passa, ele olha para o membro e o membro
é mais exigente porque preguiçoso, não sendo mais o do garoto
sedento por orifícios quentes e úmidos sem muita discriminação.
Riobaldo então se ergue da cadeira. Busca se conformar. Sofre
porque — conforme diz — aqui neste mundo nunca se carece de
sofrer. Mas é um forte duro na queda.
Ao se despedir, ele resume: o homem, Seu Doutor, tem começo,
glória e declínio. Eis a estória do macho. A quem estava habituado
a ferrar gado e ousou toda uma caminhada rumo a Sampa, algum
dia chegaria para que estivesse por se aposentar.
Esta é a estória de Riobaldo, vaqueiro dos sertões de Euclides
da Cunha.


O tesouro no quintal

É um velhinho pernambucano com delírios persecutórios. Não tem


onde cair morto. Julga-se, porém, dono de um baú de dinheiro
enterrado no quintal.
Berra da janela atacando a quem chama de maloqueiros, ban-
didos, nóias. Num mundo de violência ele é vítima por opção. E
vitupera quixotescamente contra o mundo enfrentando seus moi-
nhos de vento. Sancho Pança é um seu possível alter-ego.
O velhinho tem olhos vivos, é magro, comprido e agitado. Rom-
pantes de criativa lucidez ainda lhe tomam quando ele refuta o que
os familiares dizem a respeito de suas idéias.
Mas ele é direto em sua proposta: quer ser vítima de um seqües-
tro. Talvez relâmpago, desses que pipocam por aí feitos por amado-
res.
Ele confidencia, esbugalhando os olhos e fazendo uma careta
maliciosa, que o seqüestro seria a única forma de demonstrar um
tesouro no fundo do quintal!
O raciocínio correspondente é de uma lógica impecável: —
os bandidos jamais fariam o seqüestro se o tesouro não existisse.
Vejam só! Eles, os bandidos, não dão ponto sem nó. Portanto, se
cometerem o delito o tesouro começará a existir. Demonstração por
redução ao absurdo.
Os familiares do velhinho negam o tesouro mas já começam a
temer o seqüestro. Daí os familiares pensam melhor e ficam com


certas dúvidas. Afinal de contas, a propaganda não é mesmo a alma
do negócio?
Segue-se um espiar daqui, um espiar dali. E o velhinho continua
a andar estranho no quintal. Capengante e claudicante. Dando gar-
galhadas homéricas. Berrando impropérios quixotescos. Olhando
além do muro. Desafiando a todos. Gritando:
— Seus bandidos. Venham.
Como um Tio Patinhas, vez por outra ele mergulha numa
espécie de piscina. Cai sobre a terra imunda de detritos e bosta de
galinha, machuca-se e chora que nem criança mimada. Acodem
cachorros, gatos, galinhas e crianças.
Os familiares continuam espiando de dentro da casa. E resta
ao velhinho pernambucano apenas o consolo de provocar e tor-
cer obsessivamente pelo almejado seqüestro. Sua grande e única
esperança. Sua prova secreta.
Pois seria a vez da demonstração da sua tese.
Sem falar que é ele quem paga para ver!
E ele, bem lá no fundo, nunca escondeu nada.
Ele é apenas um velhinho pernambucano.
Mas eu sei que ele tem, no mínimo, um diagnóstico enterrado
dentro de si. . .


Traição

Na época GS tinha quatorze anos e vivia com a família. O pai,


caminhoneiro, era alcoólatra e um ser ausente que, ao chegar em
casa, fazia cenas inesquecíveis: investia furioso sobre a mãe e os
irmãos de GS. Estupidamente autoritário e arrogante.
GS chegou a uma conclusão: dar um basta no pai.
Um dia chamou a mãe de lado e declarou que ela não apanharia
mais. Enchendo-se de coragem, pediu à mãe que se retirasse e
enfrentou a fera embriagada. Que rugia palavras ferinas e caçava a
mãe anunciando porradas.
GS fez um sermão e proclamou a independência da mãe. Ingê-
nuo e ousado, ele também se fez crítico rigoroso dos hábitos etílicos
paternos com teimosia de menino turrão. Depois deu as costas.
Esqueceu-se, porém, que o pai andava armado. Quando GS se deu
conta do perigo recebeu três facadas. Nas costas.
Foi socorrido por um irmão. Passou um mês no hospital entre a
vida e a morte. O pai não tomou conhecimento da sorte do filho e
continuou sua vida miserável.
GS virou menino de rua durante cinco anos. Planejou a morte
do pai na forma de um homicídio premeditado que, no entanto,
descartou na prática. Iniciou no caminho das pedras. Virou usuário
de crack, e não demorou que se tornasse dependente químico. Mas
a fumaça do crack não lhe trazia prazer ou euforia. Trazia-lhe
certa “normalidade psíquica” sempre que ele era tomado por uma


profunda inquietação. Ao descer aos abismos de si mesmo fumava
pedra e ficava “normal”.
Há um mês o pai de GS morreu. De câncer. Depois de quinze
anos o filho retornou para casa e encontrou o pai no leito de morte.
A cena foi clássica, dessas que aparecem em cinema, em novela.
O velho, na agonia final, pediu luz: trouxeram um clarão oblí-
quo que iluminou o rosto do pai e do filho. GS, perturbadíssimo,
ficou confuso, tremeu, e achou que ia ter um desmaio. De repente
pediu perdão ao pai, e o pai expirou quando murmurava alguma
coisa.
Para GS tudo continuou sendo culpa, culpa, culpa.
Ele então começou a pensar muito na morte. Virou um obce-
cado por ela. Pegava droga na biqueira, fechava-se num quarto
e imaginava um túmulo. Mas ao fumar não tinha a impressão
de que enlouquecia: pelo contrário, achava que estaria voltando
ao “normal”. Então se drogava cada vez mais compulsivamente,
a culpa reaparecia e ficava sistematicamente endividado com os
traficantes.
GS resolveu incitar seu próprio extermínio. Um certo traficante,
que era um pouco seu amigo, reagiu com pruridos morais. Parou de
lhe vender droga e proclamou, indignado, que costumava mandar
matar “nóias” sem valor, mas não queria eliminar um pai de famí-
lia. GS foi comprar em outra boca de gente desconhecida. Acionou,
de novo, sua roleta russa.
Nesta altura eu decido “cair de pau” em cima desse pedido de
perdão. Reajo indignado. Digo que considero sublime o perdão,
até de forma cristã. Pode-se perdoar ao inimigo, pode-se perdoar
a todo ato torpe e hediondo, até ao gesto homicida. Mas o perdão
cabe quando não há covardia. Não se pode pedir perdão a outrem
se é esse outro o criminoso.
GS sabe disso e ao mesmo tempo GS não sabe.


Pois reparem vocês: abram os olhos e vejam como o cego Ti-
résias. Após as três facadas GS arquitetou por muito tempo o par-
ricídio. No entanto, a dor do ato hediondo seria insuportável. Ali
havia o temor de uma maldição, como se ela viesse de uma esfinge
enfurecida. Porque na figura de um pai criminoso e monstruoso
existe também a figura sagrada que nos atormenta a todos.
GS sucumbiu feito uma vítima que, submissa ao extremo pe-
rante o algoz, ergue-se da punição e beija o malfeitor. GS fez uma
transmutação maluca da Culpa e assumiu uma dívida alheia.
Veio-lhe, porém, a consciência num momento de iluminação
contaminado pela fúria das Erínias. GS percebeu que carregava
o pai dentro de si e queria matá-lo. Atormentado, cedeu à força
do ódio. Mas fez um julgamento de si próprio. Foi juiz, promotor,
advogado de defesa e também júri. E como houvesse dois lados, e
os dois lados empatassem, GS deu a si mesmo o voto de Minerva.
O veredicto: culpado.
Quando GS sai a caminho das pedras, não carrega tão-somente
uma faca espetada nas suas costas. É o autor das facadas. É um
grande bode expiatório que desce aos próprios infernos.
Ele é o anti-Orfeu, e não lhe resta nenhum amor a nenhuma
Eurídice. Resta a anti-pedra alquímica, a pedra da qual sai a
fumaça tóxica da loucura. Fumaça, porém, que é um estranho
e absurdo “remédio” para lhe trazer não a euforia, não a fissura
adoidada ou a viagem da nóia, mas a condição “normal”. Ou para
lhe trazer uma paz maldita.
Pois enquanto GS tenta inútil e loucamente “curar-se” com a
cocaína inflamável da pedra, ele continua a encenar a roleta russa
de sua própria existência. E é sempre o pai na berlinda: na hora da
morte ou em qualquer dia e naquele dia.
GS, pensativo, fixa os olhos no infinito. Depois desabafa, inten-
samente dramático.


Ah, é sempre aquela conversa medonha, aquele momento exato
e inocente de um pequeno guerreiro distraído — em que ele, GS,
moleque vacilão de quatorze anos, mano, virou as costas e. . . Ele
também, a partir daquele dia, foi morto a traição.


Aparecida Aparecido

O nome é Aparecida Aparecido. Depois ficou sendo Aparecida


Aparecido Sereno.
Segundo a própria, o nome dela é uma síntese mística e alquí-
mica. É uma combinação dos elementos macho e fêmea, de tal
maneira que dessa combinação resulta o Sereno.
É o que ela afirma com seriedade. Mas logo dá uma risadinha
tímida. Alega que tudo começou com o pai que tem sobrenome
Aparecido e quis fazer da filha uma pessoa duplamente aparecida.
Ademais ela acha que não pode haver no mundo outra Apare-
cida Aparecido. Talvez uma Aparecida Aparecida.
Resta a ela a reflexão e a seriedade digna da mais pura filosofia
oriental e, talvez, ocidental. Mas é justamente por tudo isso que ela
faz um apelo à fusão dos opostos.
Num tom de mistério admite que, afinal de contas, o Sereno
representa uma totalidade indivisa de uma perda de alguém dentro
de alguém.
Resume assim: na sublimidade da união dos opostos, resta, é
claro, o Sereno.
Até parece lógico, né?! De qualquer maneira Aparecida Apa-
recido tem fino senso de humor. O pai jamais o teve. Quis a ela
aparecida demais, filha de alguém que tinha Aparecido por sobre-
nome.
Mas no final das contas foi o marido quem lhe deu o Sereno.
E só faltaria ao marido chamar-se Aparecido! Em todo caso, o


marido foi um aparecido oportuno que pôs um final na contenda
desencadeada por um nome ambivalente, andrógino e hermafro-
dita.
Esse outro, o cara-metade, o de sobrenome Sereno, fez sumir,
no amplexo do sexo, o dilema.
Dilema aparecido criado pelo capricho de um pai obcecado por
aparecidos e aparecidas.
Aparece cada uma!


O colosso

Não é apenas uma gorda, e se eu disser “hipopótamo” trata-se de


uma figura de linguagem, de uma metáfora, mas estaria próximo
da verdade. Com malícia inclusa e maldade não-intencional, ela
pesa como um hipopótamo. Na verdade é uma pobre diaba. Doente
mental.
Curto e grosso, o diagnóstico provável seria oligofrenia e psicose
orgânica. É também um retardo que a acompanha desde a infância,
desde que ela se entende como gente, se bem que ela nunca se
entendeu como gente.
Tem quarenta aninhos e duzentos quilinhos. A gordura pre-
domina nos quadris e membros inferiores e não tanto no tórax e
membros superiores. De tal maneira que ela parece se erguer de
um imenso pedestal, de uma imensa base feita de carnes e banhas.
E as pernas são grossas feito o tronco de uma árvore. As nádegas
imensamente volumosas.
Para trazê-la ao Posto alugaram uma perua Kombi que cobrou
preço de carreto. Pudera! Tiveram que esvaziar os bancos. Ela
não entra em carro comum. Por pouco não tiveram de trazê-la em
caminhão erguida com guindaste!
Uma coitada, uma pobre diaba. Infantil e regredida. Mal
pronuncia nomes de familiares, não é capaz de formar uma frase.
Vive a fazer movimentos repetitivos. É explosiva de uma energia
caótica. Ansiosa, ela fica sempre balançando a cabeça e o tronco. Os
braços se erguem como que procurando algo a que se agarrar.


Por vezes ela é mansa, por vezes muito agitada. Mesmo paqui-
dérmica e, portanto, lerda, ela tem agilidade relativa, o que a torna
um furacão destruidor. Para contê-la são necessários vários homens
fortes.
É preciso bastante cuidado com a sua pessoa. De tão simplória
e infantil, ela tem rudimentares idéias a respeito dos seres vivos.
Mas um gesto de cólera seu pode ser muito forte para um pobre
vivente. Humanos e não-humanos que se cuidem.
Certa ocasião ela estrangulou um cachorro com uma mão. Brin-
cando, brincando, e um pouco zangada. Nem se deu conta da morte
do cachorro. Em outras ocasiões gatos costumam ser esmagados
contra as paredes.
Ela mora na casa do cunhado, que ganha quatrocentos e
cinqüenta reais por mês e desespera-se em ter que alimentar uma
fome voraz, gigantesca.
Ela não é carnívora. É onívora como o ser humano em geral.
Nem se pode tachá-la de destruidora. Ela brinca, brinca, porém
sempre girando ansiosa num movimento de balanço do corpo, os
olhos faiscando, imersa no labirinto caótico daquilo que nem é
loucura organizada. Apenas energia a esmo, sem rumo. Inocente.
O cunhado chora as mágoas. E confessa: o que deseja é aposentá-
la para que, com o rendimento exíguo da aposentadoria, tenha
como alimentar a cunhadinha. Sim, a cunhadinha! Ela é conhecida
pelos diminutivos.
Pois a menininha não é fácil não. E a cena da chegada dela
dentro da Kombi lembra cena de circo. Vejam bem!
Ou imaginem mais. Ali dentro da Kombi uma montanha hu-
mana deve estar passando uma mensagem. A mensagem fala de
uma certa voracidade primitiva e indiferenciada. Fala dos gigantes
das telas de Goya! Fala da fúria dos titãs e da fúria de seus tortos
rebentos!


Ou será que fala simplesmente daquilo que o ser humano co-
mum também é quando todo um aparato dito superior não está
presente!?


O nervo asiático

A queixa é dita na frase: “Os bicos-de-papagaio estão mordendo o


nervo asiático”.
São bastante comuns diversas formas de fantasia com o corpo.
Há exemplos históricos. Os gregos antigos foram os precurso-
res da palavra histeria, que vem de hysterós, significando útero.
Imaginava-se o útero correndo os corpos das pessoas quando as pes-
soas (no caso, as mulheres) fossem acometidas por crises nervosas
que, de alguma forma, correspondiam ao que hoje podemos chamar
de “ataque de nervos” ou, quem sabe, crise histérica. Portanto, estar
histérica significa etimologicamente ter o útero correndo adoidado
pelo corpo.
Os pacientes muitas vezes dão um sentido animista ao corpo.
Esse é o mesmo sentido que os médicos costumam encarar com
indiferença e frieza.
Mas vamos à queixa dela.
Se essa queixa referente ao “nervo asiático” diz respeito a um
assunto puramente médico, pode-se simplificar o problema de um
ponto de vista clínico e dizer que a paciente sofre de dores nas
costas, nos quadris e, talvez, nas pernas.
No entanto, observem como ela interpreta.
Nela tudo está vivo, tanto na geração quanto no alívio da dor. Os
“bicos-de-papagaio”, medicamente chamados de osteófitos, passam
a ser animados, mordem até, embora quem bique não morda. E
mordem quem? O “nervo asiático”.


Já ouvi muitas referências ao “nervo asiático”, vulgo nervo
ciático. Bastante gente prefere o “asiático” porque soa melhor.
Implica uma geografia do corpo, em franca analogia com o corpo
do mundo inteiro.
Vejam: os americanos, no Iraque, estão bicando outra parte do
mundo. Estão bicando uma certa nervura asiática, porque o local no
corpo do mundo em que os falcões americanos estão empoleirados
é o Oriente Médio.
Quando a paciente se refere aos “bicos-de-papagaio mordendo
o nervo asiático” ela povoa seu corpo de seres fantásticos, numa
orquestração de atitudes que podem destoar no embalo da dor
quando uma harmonia corpórea teria se quebrado por sucessivas
bicadas.
Vejam ainda: os papagaios da mulher estão bem empoleirados
e quietos. De repente ficam perturbados e resolvem “morder” o
“nervo asiático”. Este, coitado, estava lá sossegado em seus asiáticos
caminhos.
No imaginário popular o corpo é bem vivinho da silva. O
modelo médico e científico pode ser rigoroso quanto ao método,
mas perde em riqueza de figuras e animações. No imaginário
popular o corpo é um conjunto de corpos, ou de seres diminutos,
com pulsões e caprichos, determinações e estranhezas.
E o espírito? Bem, o assunto é corpo mesmo. No entanto,
por mais que a civilização tenha contribuído para “desanimar a
natureza” (desanimar é tirar a alma), a natureza continua animada.
Então pergunto: o nosso modelo científico de pensar o corpo
humano, e reduzi-lo a um certo mecanicismo, não seria apenas um
modelo dentro muitos!?
Calma, leitor, não me julgue mal! Não estou empunhando a
bandeira do “nervo asiático” e nem insisto que osteófitos sejam
papagaios que mordam. Mas tudo isso acende uma centelha de
imaginação, ou, quem sabe, instiga um deboche criativo em cima


da sisudez da ciência. O fato é que as pessoas têm sensações, o corpo
é vivo, a imaginação é larga e as palavras estão aí para formarem
figuras de linguagem. Dane-se um pouco a verdade científica em
prol da fantasia!
Sendo assim, nada impede que outros “nervos asiáticos” possam
surgir dentro da geografia bizarra do corpo humano. Nada impede
que outras estruturas, antes anatomicamente frias, não possam se
revelar cheias de vida, pensantes, até autônomas.
O corpo fala, representa-se a si mesmo. Eis aí um modelo
interessante! Até mesmo para a medicina!
E vocês, que também têm corpos animados e acreditam que
têm alma, concordariam com tudo isso?!


O sentido além

LC tem quase trinta anos. É cego há oito. Tudo aconteceu assim:


de repente a escuridão total. Ele enxergava e ficou cego.
Como? Tiro.
A gente imagina que ele tenha sido da bandidagem ou coisa
que o valha. Mas a estória não é essa não.
Aconteceu na Bahia, em Teixeira de Freitas.
Desde os quinze anos LC trabalhava em circos. Perambulava
pelos sertões como ajudante de palhaço e fazia malabarismos. Era
um nômade: ágil, lépido, cheio de vida. Conheceu uma moça de
quem gostou e namorou. A moça tinha outro e hesitou entre os
dois. Ficou com LC.
Não é necessário dizer muito. O outro teve ciúmes e coisa e tal.
O ódio lhe subiu à cabeça. Um dia LC não viu mais o mundo, nem
o circo, nem a moça, nem o céu, nem o verde, nem nada. O tiro foi
de cartucheira e os chumbinhos lhe vazaram os olhos.
LC veio para Sampa e tentou tratamentos que deram em nada.
Hoje tem vaga esperança de que lhe seja implantado um olho
mecânico, ou alguma maravilha tecnológica que faça quase um
milagre. Ninguém tem coragem de dizer que não há mais jeito.
LC me visita junto com outro rapaz que deve ser parente, ou
apenas guia de cego. LC é educado e sincero. Fala com voz mansa,
suave, mas não deixa de revelar que, a partir do instante da es-
curidão total, ele passou anos revoltado com a vida. Não aceita o


ocorrido, desespera-se, mesmo que tenha se tornado músico e bom
contra-baixista, mesmo que tenha noções de braille.
LC me pede, de início, laudo médico para carteira gratuita de
ônibus. É humilde e pouco exigente. Depois pede psicólogo, ou
alguém que trabalhe seu desespero. Sem saber o que dizer, eu
pergunto do outro, do adversário, do que deu o tiro. LC responde
que não sabe do destino do outro, nem se ainda é vivo.
Eu então percebo que a grande questão não é ódio ao outro, não
é vingança. O horror é o fato instantâneo do apagamento da luz.
A gente vê os ceguinhos por aí e mal imagina o que há por
detrás da cegueira. Tantas estórias!
Bem, os que nascem cegos já vêem o mundo no escuro e o
constroem dessa maneira. Há os cegos no fim da vida, doentes,
velhos e se desligando do mundo. Há também a cegueira trágica
de Édipo e a cegueira sagrada de Tirésias.
Mas o que pensar deste rapaz cheio de vida, vibrando seu corpo
no mundo do circo, atirado no amor e na paixão, quando, de repente,
lá vem o adversário infame doente de ciúme e ódio? A gente se
pergunta se existe uma ordenação do universo, se tudo segue uma
lei, assim feito a tal “lei do carma”. Porque não dá para aceitar.
Ah, não devo me esquecer de contar um fato importante: bem
no final da entrevista eu, de repente, sem nada avisar, estendo
minha mão para apertar a de LC. O gesto ocorre num momento
não anunciado. Nada é dito a respeito da mão que é estendida
espontaneamente. Não há aviso sonoro.
Mas no tempo exato em que minha mão é estendida, numa
sincronicidade notável, a mão dele também se dirige em direção
à minha. Ah, é claro que alguém pode dizer que normalmente as
pessoas se dão as mãos no final das conversas. Isso, todavia, nem
sempre ocorre, e ademais não há um instante exato para que o ato
de estender as mãos aconteça.


Porém agora, nesta sala, tudo ocorre como se as mãos fossem
amplamente vistas. Ao menos vistas por ele.
Eu peço que LC tire os óculos escuros: mas o que eu vejo são dois
orifícios opacos, duas chagas medonhas, horrorosas, dois buracos de
bala. Não, não há olho algum, por ali não passa nenhum feixe de
luz.
Eu mando que ele coloque os óculos escuros de volta e aperto
carinhosamente as mãos dele. Meus olhos ficam úmidos.
E ainda dizem que só existem cinco sentidos!


Grande Mãe Conga

É uma negona alta, forte, olhos brilhosos. Verte entusiasmo na voz


também forte. Mas tem humildade, um quê de timidez, até mesmo
certo toque ingênuo.
Introvertida apesar da postura ostensiva em tamanho e expres-
sividade, ela rompe assunto contando sua vida sem acanhamentos.
É contundente ao falar da infância. Tinha uns sete anos quando
lhe apareceu uma figura de um outro plano da vida: a Grande Mãe
Conga.
A menina acostumou-se com Grande Mãe Conga e logo conver-
sava no quarto com ela. Mas houve problemas. A mãe a surpreendia
em solilóquios vazios e pensava o pior: ela estaria louca ou teria
alguém suspeito no quarto.
Não. Ela jura que via Grande Mãe Conga à sua frente. E ela
jura que a partir daquele tempo fez-se um laço, um pacto entre ela
e Grande Mãe Conga.
A mãe jamais aceitava. Batia na menina porque tinha pavor de
entidades do outro mundo. A menina insistia.
E tinha mais coisas. A mãe bebia muito. Era, como se diz por aí,
uma alcoólatra. Mas a menina a tirou do alcoolismo. E foi através
dos recados da Grande Mãe Conga.
A mãe sempre negava as mensagens, porém começou a ficar
impressionada e parou de beber. Hoje é falecida, e se um dia
revelara — medrosa e com reservas — a sua gratidão à filha, nunca
deu o braço a torcer quanto à participação da Grande Mãe Conga.


A negona alta e forte de olhos brilhosos não faz parte de nenhum
culto. Não vai a centro de umbanda, candomblé ou mesa branca.
É uma solitária. Tem sua própria religião centrada em Grande
Mãe Conga. E me revela, orgulhosa, que Grande Mãe Conga
lhe disse várias vezes que só Deus pode fazer nossa consciência,
que centro algum faz isso, nenhum orixá, nenhum espírito de
luz, ninguém. Grande Mãe Conga é, enfim, a mediadora de uma
grande mensagem para ela desde menina, e faz dela uma lutadora
anônima, uma espécie de Joana D’arc.
Grande Mãe Conga é para lá de enorme. Extravasa de si mesma.
Não tem limites no espaço. Tanto que ela, quando pequena, perdia-
se na intimidade de Grande Mãe Conga como se estivesse viajando
pelo seu corpo etéreo no meio do infinito!
A negona é expressiva, algo dramática. Impõe-se por sua grande
presença, e se diz muito prestimosa. Também se diz vidente, profe-
tisa, áugure a seu modo. Tem orgulho de seus feitos heróicos.
Uma vez sentiu perigo no ar, saiu correndo pelas ruas do Jardim
Maia e encontrou dois homens brigando. Entrou no meio e evitou
que um deles fosse assassinado. Foi a mão invisível e precisa de
Grande Mãe Conga.
A negona é solitária e solidária a seu modo. Revela-se a si
própria às escondidas, porém sempre acompanhada, e desde os sete
anos de idade, por Grande Mãe Conga.
Ah, vejam bem, meus irmãos! Eu estive pensando em uma per-
sonagem para minha estória do Édipo que pensei adaptar quando
fui fazer um trabalho sobre teatro e literatura na favela do Pantanal.
De repente eu descubro, ah, eu descubro ao menos um — o
meu Tirésias.
Seria o caso?! Não há lá necessidade de que seja um cego comum.
Há muitos Tirésias mundo afora, nem todos com glamour. Há
muitos anônimos. E para ser Tirésias basta uma condição: ver.
Grande Mãe Conga que o diga. . .


A velha de Barbacena

A velha de Barbacena tem muitas lembranças de Barbacena. De


muitos anos atrás. O sotaque mineiro está preservado e com tiques
elegantes de uma aristocracia rural decadente. Porque ela mantém
um tom senhorial. Eu diria que ela é uma espécie de velha despó-
tica a curvar-se, entretanto, humilde, depois de tantos açoites do
destino.
Ela parece em tudo humana demais, tem brilho intenso nos
dois olhos. Mas um olho se abre enquanto o outro se fecha; um
pisca e o outro despisca. É engraçado, curioso!
Ademais, ela anda pendida, encolhida e manca. Os cabelos são
branquinhos. Cheia de rugas, ela ainda faz caretas dando gingadas
no corpo.
De repente conta um pouco a estória de sua vida.
Os irmãos se perderam pelo mundo, quase todos mortos. Ela
está praticamente sem ninguém. Tem apenas uma irmã entrevada
morando na mesma Zona Leste, mas a doença faz as duas muito
apartadas. Moram quase uma infinitude uma da outra.
A velha de Barbacena manca nos caminhos da vida. Acorda e
dorme, faz faxina com dificuldade, cozinha seu arroz com feijão.
Tem rompantes amargos a respeito da sua existência na Terra,
enquanto inveja a parentada que partiu deste mundo. Mas logo
retoma a alegria de uma mineirice nostálgica de Barbacena e fala
feito uma proprietária de terras lá em Minas Gerais.
Ah, quem sabe ela venha mesmo de uma família de posses, de


alguns Andrades e Ribeiros dos sertões mineiros que teriam vivido
em casas grandes e teriam muito espiado, gulosos, a longitude de
suas terras!
No frigir dos ovos e da manteiga a velha de Barbacena faz parte
dos que conjugam o verbo no passado e no imperfeito: ah, pois, eles
tinham! E é através dessa conjugação imperfeita que os olhos dela
brilham úmidos de saudade e melancolia. Ah, eles tinham!
Mas, se ela tem lembranças pessoais ou familiares de algum
tempo de ouro, ela é de uma revolta mansa aqui no Jardim Maia. E
em tudo proclama sua desdita, ainda mais quando se pende, senil,
sobre a bengala, os olhos tremendo, e uns olhos que piscam e des-
piscam alternados. Sim, é engraçado, ainda mais com a boca torta
semi-aberta. Boca espumante entre rugas em discreto movimento,
e toda ela eloqüente.
Ah, esta velha, ah, esta velha é como alguém que ainda, e apesar
de todos os pesares, não abrisse mão do passado senhorial. Afinal
de contas — pergunto-me — haveria algum mistério restante
na velha de Barbacena? (Barbacena que é, como dizem, cidade
pequena porém absoluta.) Não mesmo. Acho que não há mais
mistério algum.
Pois só rindo. E é rindo que a velha de Barbacena sai da sala:
mancando, pendida, bamboleante, quase dançarina!
Vejam: ela está agora num palco. Neste momento faz sua
comédia séria. É um bobo da corte de si mesma. É ator, público e
cena. Caminha rindo-se da vida. Rindo, rindo!
Quase gargalhando e com o acompanhamento de bengaladas
nervosas. Com medo de desabar sobre o solo, virar uma nuvem de
poeira e desaparecer para sempre deste mundo.


Uma pena

Elza torna-se de uma simpatia ímpar quando descobre que eu falo


alemão. Há tempos ela vem tentando praticar seu alemão do oeste
do Paraná, cada vez mais esquecido, pois ela não tem com quem
falar este idioma no Jardim Maia.
Elza me parece industriosa, mostra um sorriso de leve ironia,
porém carrega certa ingenuidade. Também carrega um toque
distante de romantismo alemão. Romantismo, aliás, decadente,
e quem sabe vindo com os pais, tão pequenos e já atravessando
o Atlântico, fugidos da Alemanha na época da Primeira Guerra
Mundial.
Elza é feito uma Dona Maria dona de casa. Tem, no entanto,
um perfil germânico. Tem ares de camponesa, se é que essa palavra
se ajusta no texto, por falar de um tipo remanescente da cultura
européia distante.
Elza é glutona. Adora falar de seus queijos, de seus Wursten.
Seu alemão curioso vem mesclado e alternado com português. É de
um cantar diferente. Caipira alemão brasílico.
Uma imagem recorrente é sempre evocada por Elza: o pai. Este
morreu aos noventa e tantos anos e viveu razoavelmente bem a
vida. Também trabalhou muito. Sofreu. Teve três casamentos, dois
com mulheres descendentes de alemães e um com uma mulata
brasileira. Além de outras aventuras, é claro. E era um velho calmo
que, nos últimos anos, pensava na vida descansando num banco de
jardim numa cidadezinha do oeste do Paraná.


Esse lugar Elza julga ser a cidade mais bonita do Brasil. Ou,
quem sabe, do mundo! Por quê? Tudo planinho, parece um tabu-
leiro cheio de árvores e canteiros de flores. É de uma calmaria que
só vendo. É de uma paz que ninguém imagina. Apenas gente loira
e de olhos azuis, só gente alemã, só Volks.
Antes, alguns anos atrás, sempre que ela lá chegava o pai a
esperava na pracinha diante da estação rodoviária. Meio espraiado
num banco de jardim e usando um chapéu de tirolês com uma pena
de papagaio.
Elza admite que essa pequena cidade é de uma beleza ariana
em terra brasileira. Tudo tão limpo, tão organizado. Tudo tão
cheio de fartura. Elza promete que trará para mim de presente,
daquele lugar, e numa próxima vez, um pouco de Wurst ou algo
mais gostoso de comer.
Elza recorda. Sempre que volta daquela cidadezinha ela tem o
costume de olhar para trás e, desde alguns anos, imagina como se
estivesse vendo aquele chapéu de tirolês com a pena de papagaio.
Sente então uma agonia. Mas é uma mulher madura e equilibrada.
Tem controles e, mais uma vez, afasta a agonia. E, mais uma vez,
pensa com alegria no pai vivendo bem nos campos e cidades do
Brasil. Refestelando-se nos seus três casamentos. Sem falar nas
aventuras outras — ah, ela nem tem coragem de entrar em detalhes
— pois o pai era descarado quando andava com suas mulatas. Ele
adorava esta terra.
E se o pai viveu muitos anos, foi no fim da vida que ele, sozinho,
procurou aquele tabuleiro limpinho no oeste do Paraná, cheio de
árvores e de gente de olho azul. Onde mora o sonho de Elza.
Elza, no entanto, admite que uma única coisa perturba o sonho,
e ela não gosta de ficar pensando naquilo. Então faz uma pausa, um
silêncio incômodo e, antes de prosseguir em seu discurso, hesita em
dar continuidade ao assunto e muda um pouco o foco da questão.
Ah, Seu Doutor, de resto, é como se aquele lugar permanecesse


sempre igual a si mesmo: eterno, cheio de flores, cheio de árvores
das quais despencariam frutos, o clima perfeito. Um lugar como
qualquer um imagina: intocável e, portanto, imutável.
Uma lágrima solitária despenca, e Elza se lembra quando, a
cada viagem, volta as costas àquele lugar.
Ela está na estação rodoviária dentro do ônibus. O ônibus sai.
Contorna uma pequena praça. Ela faz o sinal da cruz diante da
igreja. O ônibus passa ao lado do mercado. As casinhas limpas e
bem arrumadas vão rareando. Surgem campos verdejantes e uma
terra vermelha. Ela pega a estrada no Paraná para voltar a São
Paulo e ao Jardim Maia.
No momento final da visita Elza apenas ri timidamente diante
de mim. É um riso distraído e distante. A seguir, sempre glutona,
ela fala dos seus doces, queijos, do seu Wurst, de outros quitutes do
interior. Depois segue embora para casa como se fosse qualquer
Dona Maria do Jardim Maia.
Mas dá uns passos para trás e resolve confessar com franqueza o
que a perturba. Antes hesita um pouco, torna-se mais tímida. Ah,
é pois uma coisinha besta. É a pena verde de papagaio, Seu Doutor.
Na verdade uma coisinha esquisita que ela não suporta. E que, sem
lhe sair da memória, continua ali pousada sobre a imagem do pai
com o chapéu de tirolês. É uma cisma que não lhe sai da cabeça. É
quase uma mancha nunca removida. Uma obsessão.
Mas. . . uma pena!
Ah, pena que ela sempre carrega, pena que ela sempre carregue
— quase imaterial porém pesada — quando ela volta daquele lugar
ainda sonhando seu tabuleiro limpinho e perfeito sobre uma terra
nua espraiada onde, no entanto, habitam papagaios.
Onde — conforme já disseram há muito tempo no embalo de
um romantismo não alemão e sim brasileiro — tem palmeiras e
canta o sabiá.


Um simples 

Quando este PM vai tirando fora seus apetrechos agressivos eu o


vejo se humanizando. Sai o colete à prova de balas, a pistola, as
balas. De repente, o homem.
É um rapaz simpático de uns vinte e poucos anos com uma
queixa comum de mal no corpo. É um habitante da periferia,
mestiço como quase todos os brasileiros. Vem da fonte comum
dos jovens pobres do Brasil. Não fosse PM seria simples trabalha-
dor, malandro, bandido, ou sei lá quem. Perambularia com ou
sem emprego pelas quebradas, poderia ser vítima de PMs ou de
bandidos.
Conversamos sobre polícia. Conversamos também sobre cinema.
Ele me diz ter ficado impressionado com Cidade de Deus. Puxo
então assunto para um ponto crítico que é a relação da polícia com
a comunidade nessas áreas onde o bicho pega. Ele parece atinar
para com a questão. Que é crucial, terrível.
Porque nessa praia tudo é muito contraditório. Os PMs são re-
crutados da massa do povão e podem se antagonizar com essa massa
mercê da ideologia recebida nos quartéis. A PM tem vínculos com
o antigo governo militar, algumas lideranças são mesmo fascistas.
E não há dúvida de que os PMs defendem interesses de classes
dominantes. Não há dúvida de que ganham mal. As tentações são
grandes. A corrupção rola doida. Pior: o fosso entre a PM e o povão
é alimentado por um ciclo vicioso de violência.
Um simples PM é um ser atravessado no orgulho da comuni-
dade, mas ele é parte dessa comunidade e é, ao mesmo tempo,

distante. Pode ser heroicamente acolhido e pode ser traidor. Nesse
impasse surgem conluios e alianças. Por outro lado, a violência
atrelada ao poder pode ser fonte de prazer suspeito de crueldade.
Isso vale tanto para os PMs quanto para os fora da lei. Os PMs
sentem-se corporativos e, é claro, têm a proteção do poder oficial.
São, no entanto, povo. Mas, com muita freqüência, têm parentes
bandidos.
Eu brinco com este PM desaparelhado. Pego na mão o seu colete
à prova de bala. Coloco dúvidas sobre o poder daquilo. Apalpo pro-
jéteis e faço perguntas técnicas. De repente todas estas bugigangas
me parecem brincadeira de moleque.
O simples PM é apenas um menino. Com seu corpo pardo,
mulato ou moreno — o que se queira. Com sua negritude ou
semi negritude, ele está aqui do meu lado. O sorriso dele é franco.
Lembra o malandro que se picou para a façanha oficial e decidiu
ficar do lado da lei.
Ainda falando de cinema, eu recomendo a ele outros filmes
— Pixote, ou então Carandiru. Afinal de contas, há uma obscena
realidade perpassando a relação da polícia com o povão neste Brasil,
não é verdade!?
Ele hesita em responder, e depois parece concordar um pouco.
Pois todos sabemos da crueldade e dos horrores por debaixo do
pano, ainda mais nos redutos dos esquecidos. Mas há que se refletir
sobre essa realidade, e também fazer um pouco de filosofia e poesia
das agruras do mundo. Daí o cinema, a arte. Mesmo aqui, numa
sala de curativo, estamos falando um pouco sobre arte.
Enquanto um simples PM se veste ele vai se transformando.
Vai ficando sisudo. O colete à prova de balas, lhe pesa, talvez um
pouco na consciência. As balas são presas cuidadosamente à cintura.
A pistola vai-se embora pendurada e levemente balançando como
símbolo de poder.
Tudo é cênico: parece cinema. E assim, bem aprumado, ele se
despede. Olho firme para ele. Tenho impressão de que ele vai fazer


uma continência. Faz saudação comum. É gentil e formal. Mas
tenho certeza de que ele voltará e novamente assumirá um papel
mais humano sem aqueles apetrechos.
Eu fico com uma vaga nostalgia de escrever uma estória da saga
anônima de um simples PM no meio do fogo cruzado da periferia.


Noel e a nostalgia

Na mesma semana chega o Noel. Que tem nome de músico e é,


supostamente, músico. Dizem que toca bem violão e cavaquinho.
Faz algum tempo me falaram que ele era um tipo meio sinistro.
Havia estórias no seu entorno, sim, que seria da malandragem e
coisa e tal.
Quando o vi pela primeira vez, vi um quase espectro. Tuber-
culoso pobre, mal cuidado, fumador inveterado e com possíveis
outros vícios. Quase reduzido a pó. No entanto, sabia preservar
uma postura. Era de fato meio malandro, mas tranqüilo, aparente-
mente calmo, de poucas palavras no início e, depois, dono de uma
loquacidade reservada.
Noel tem duas famílias, e com vinte e três anos apenas. Na
verdade não largou de uma mulher para ficar com a outra. Mantém
as duas e uma penca de filhos.
A primeira mulher tem uma cara de coitada, de dona de casa,
apesar de novinha; a segunda é uma negra bonita de chamar aten-
ção, posuda ao lado do Noel que enverga camiseta surrada, bermuda
e arrasta sandálias havaianas.
Eu faço questão de comentar que o nome dele está caprichosa-
mente ligado a uma época musical. Mas a conversa envereda agora
não para música, e sim para doença, precisamente no embalo do
romantismo da tuberculose — doença interessantíssima, literária,
artística. Eu digo que, a despeito da cura química, o bacilo do Dou-


tor Koch não passou isento de uma malfadada e charmosa fama
através da história da humanidade.
Noel tem ouvidos atentos a essa doença romântica. Guarda,
porém, uma dúvida cruel, porque algum espírito de porco lhe
sussurrou que o seu mal seria incurável.
Eu reajo indignado: ainda existe essa crendice?! Existe sim!
Pois tenho que desentranhar do baú a estória médica do mal
da tuberculose, e tenho que ser iluminista, racional, ser a favor da
medicina positiva e defender a revolução dos antibióticos. Depois
volto a falar a respeito de arte. E sendo Noel músico, cito o exemplo
do Noel Rosa.
Olhe bem aqui, mano, ele é parecido contigo: magrelo, fino,
espigado, tamborilando sobre caixa de fósforos em mesa de bar,
pedindo uma média que não seja requentada, devaneando suas
letras, e avançando sua. . . genialidade. E o Noel, Noel, se foi com
vinte e seis aninhos de idade. Hoje, no entanto. . .
Noel fica com olhos brilhando. Confessa que adora Noel Rosa,
mas ainda não tem bom conhecimento de toda essa época da música
brasileira. Tem por essa época uma nostalgia porque acha que havia
letras e músicas mais geniais do que hoje. Feito a música de Cartola,
Pixinguinha, Lupicínio Rodrigues, Nelson Cavaquinho, e de tantos
outros. Noel até se esquece do mal da tuberculose, põe de lado suas
dúvidas sobre o destino humano e me pergunta se eu conheço uma
fonte de saber sobre aquela época antiga.
Eu fico devaneando. Dou sugestões. Mas. . . que engraçado, né?!
Neste momento eu enxergo o Noel feito um tipo popular carioca, ou
um tipo fluminense inserido na cultura boêmia do Rio de Janeiro
em sua época de ouro.
Vejam! Ele seria perfeito para figurar numa rodinha, lá em Vila
Isabel, do lado do próprio Noel Rosa. Mesmo trajado do jeito dos
manos daqui existe um algo mais nele — uma serenidade ativa, um
descaramento criativo, um epicurismo brasileiro, um doce cinismo,


uma sensibilidade que rima e batuca mesmo sem batuque. Ah, isto
seria uma pulsação brasileira, um fenômeno nosso!
Noel tem praticamente a mesma idade do PM. Vem do mesmo
caldeirão comum. O ar malandro talvez tenha a ver com atividades
escusas em becos e quebradas. E Noel é todo mistério com suas duas
famílias. É todo contraditório porque mal se cuida e tem muita
intensidade de vida ao se entregar à boemia. Ao mesmo tempo
Noel é simples demais ao se conformar com a sorte.
Ah, digo mais: por alguns momentos ele me parece assim. . .
uma letra de samba encarnada. Noel não de sapato branco, e sim
Noel de sujas havaianas. Saído das quebradas festivas de Vila Isabel
para morar aqui no Jardim Maia. Prova de que a nostalgia move
a vida, e que os anseios dos homens, como dizia Buda, são como a
flor do lótus que, no lodo, olha para o céu.
Nada me diz, enfim, que este menino não seja uma re-edição de
gente outrora perdida em embalos românticos do passado. Nada me
diz que ele não seja um sonhador de um outro Brasil. Suspirando,
feito o outro Noel, à mesa de um bar e à cata de um samba feito
passarinho solto. Tirando de suas lembranças mais lembranças
feito samba de raiz. Como quem acha e vive se perdendo. Como
Cartola, e tirando de outra cartola — de muitas e muitas cartolas
— pérolas do interior de seu mundo humilde e pobre.
Um paciente de tuberculose que, à diferença de Noel Rosa, pode
ser salvo hoje pela química. Química que ajuda muito, mas não dá
samba!


Sangue bom

O nome dele, nesta crônica, continuará sendo Hermes, o mensa-


geiro, para os gregos. Ou Mercúrio, para os romanos.
É que, por vezes, meus irmãos, é bom não ser sutil. Ou: por
capricho de momento, não quero ser sutil. Quero roubar a você,
leitor, um pouco da surpresa de lhe adivinhar o nome.
Mas vou dar um apelido a ele. E minha primeira escolha agora
é chamá-lo de “Sangue Bom”, embora ele tenha vários outros
apelidos a serem adivinhados ou criados!
Este Hermes Sangue Bom viveu quinze anos no Rio entre Cas-
cadura e Madureira. Lembra um carioca, até pelo sotaque. É um
homem ágil, prolixo. Tem um ar adolescente, apesar da idade. E a
voz — na tonalidade macia do Rio — é meio enrolada, e ele parece
algo embebedado.
Ele se revela obreiro de uma igreja evangélica. Tem ímpetos
discursivos. Parece estar num púlpito. Ou, por vezes, é amalan-
drado, desses que vivem ambiguamente a vida e, no apuro do
momento, fingem falso descaso pela própria vida e estão de olho na
oportunidade que passa.
A trajetória dele é uma tessitura de pequenas aventuras e des-
venturas. Sempre esteve em trânsito. Morou em vários estados,
teve muitos ofícios, conheceu o Brasil inteiro, mas parou no Rio e
quase virou carioca.
Foi lá que começou a dar uma de pastor free-lancer. Fala muito
em Deus e dispensa aos irmãos da hora toda essa lenga-lenga que


repete Deus a cada momento. E ainda fala de brumas e luzes
dividindo o mundo dos pobres seres humanos que estariam ou não
do lado de Jesus e tal e coisa.
Mas não é um fanático. Seria apenas um mensageiro como,
aliás, ele se considera. E retém um toque do malandro. Até mesmo
carioca. E o malandro — convenhamos — carioca, paulista ou
baiano, relativiza a vida, põe uma maciota entre o bem e o mal,
porque se aproveita dos dois e é os dois.
Ele também — diga-se de passagem — é paciente, e está curioso
em saber a respeito do seu sangue.
É que as pessoas, por aqui, adoram falar sobre qualidade do
sangue. Mas se iludem com exames quando querem saber toda vez
seu tipo de sangue, se é A, B ou C, se está bom, médio ou ruim.
Como se o sangue fosse parecido a leite vendido na padaria.
Ah, o homem se lembra que o sangue dele é O negativo. Eu
digo que é normal, bom ou, talvez, vantajoso. Ele me pergunta: —
Se é O negativo, vai continuar sendo? — Pois é evidente! Isso não
muda numa pessoa, mesmo após tantas aventuras e desventuras
por este mundo afora e depois de se ter morado quinze anos entre
Cascadura e Madureira!
Ele devaneia se não seria pela “firmeza” do seu sangue que
sempre o chamavam de “Sangue Bom” nos subúrbios cariocas!
Afinal de contas, ele se dá com todos e, se é obreiro da igreja, não
dispensa o convívio com a malandragem. Está sempre disposto a
qualquer parada em qualquer lugar. Faz todo tipo de troca. É pau
pra toda obra. Mensageiro, obreiro e, portanto, “Sangue Bom”.
Eu comento — de passagem — que se ele fosse mais novo seria
um “mano firmeza”. Ele ri e diz que é um “mano firmeza”, e por
que não!? E como ele ainda transborde de entusiasmo, eu lhe digo
que entusiasmo é uma palavra muito interessante. Vem do grego e
significa “ter Deus dentro de si”.
Hermes, ou então, “Sangue Bom” neste caso, sai da sala satis-


feito. Sai contente por ter seu sangue sempre o mesmo e circulando,
apesar das intempéries da vida e apesar de ter morado quinze anos
entre Cascadura e Madureira.
Por fim declara-se, com sotaque carioca lascado:
— Sou um entusiasmado.
E vai se embora porque está sempre em trânsito.
De repente eu vivo um sonho acordado.
Fico com uma súbita impressão de que este homem, que agora
se despede, quer levantar vôo, mas ele é apenas um homem sim-
ples da periferia (da Zona Leste de São Paulo) e segue caminho à
vontade como se tivesse indo para a praia (na Zona Sul do Rio de
Janeiro).
Ou então, como se estivesse levando algum recado por aí, da
mesma maneira como eu estou dando o meu recado e você — leitor
e possível mensageiro — poderá dar o seu e até escolher algum
outro apelido para ele!


Solidariedade

É idoso, magérrimo, meio corcunda. Entra com um tipo que chama


atenção: eu diria um transformista, porém imensamente decadente.
Tipo andrógino,cuja androginia se dissolve em pastas e tintas resi-
duais e cujas rugas lhe dão um ar de cansaço crônico.
O cabelo longo é preso atrás. Os seios despontam com saliência
devido a um resto de silicone. Os pés são grossos e cascudos, en-
fiados em sandálias rústicas onde brilha em cada unha um toque
esmaecido entre o róseo e o carmim.
Entrevejo pai e filho! Ah, certamente uma família problemática.
Um homem velho e conservador com um filho travesti! Pior:
travesti decadente, bicha velha, ou coisa parecida. Imagino a via
crucis familiar de aceitação de uma condição dessa monta.
Depois caio do cavalo. Não há qualquer parentesco entre este
homem mirrado e seco, entre este velho pobre e frágil e a criatura
estranha que o acompanha.
Eis aí, a seguir, o resto da estória.
Bem, não me importam os nomes deles. Acabo de saber apenas
o seguinte: o homem andrógino e decadente, com as tinturas escor-
rendo, o seio levemente avantajado em peito de macho e as feições
algo envelhecidas não é filho ou parente desse outro homem velho.
Não. É apenas vizinho de bairro.
Solitário um e solitário outro, os dois não têm ninguém no
mundo, e acho que nunca tiveram. Produziu-se então uma solidari-


edade humana. O que tem ares de travesti passou a acompanhar o
outro por uma simples questão de caridade.
Revejo meus pensamentos e minha cara quase desaba de vergo-
nha.


O sacrifício

Assim que o rapaz entra na sala eu penso que ele deva ser bandido
ou tenha estória de bandido: paraplégico, fisionomia das vias tortas,
rosto amassado, feições tensas, pesadas. Mas tudo isso é apenas
aparência. Ou então, aquilo a que se dá o nome de preconceito.
Trata-se de uma delicada questão familiar.
Seis balas lhe tinham varado o tórax e o abdômen a partir de
uma mera discussão com o próprio irmão. Verdade que o outro
estivesse alcoolizado, mas não parece ter sido somente esse o motivo.
Foi também maldade, raiva, explosão, ou falta extrema de educação.
O rapaz está manso demais. Eu é que fico inquieto e inconfor-
mado, pois quero saber se houve intenção reparadora à agressão
sofrida. Ao menos isso, sei lá.
Ele diz que consultou a mãe, a grande mãe, a velha, e a velha
ruminou pensamentos, vomitou palavras e disse, com muita deter-
minação, que ele tinha sim direito à vingança. Se quisesse, poderia
fazê-lo. No entanto, ela sofreria junto a mesma sina. Então o rapaz
recuou e a velha, matreira, pôs fim ao ato vingador com a oferenda
da auto-imolação.
Este rapaz, na verdade, não é bem rapaz. É homem feito, tem
filhos. O irmão também é homem feito, tem seus filhos. Este rapaz
que não é bem rapaz é fatalista quanto ao curso do destino e diz
que “ficou no prejuízo”. Fazer o quê?! Conforma-se. Agora resta
esperar, aguardar em imensas filas hospitalares para obter uma
outra cadeira de rodas, aguardar passivamente o dia de amanhã.


Eu não ouso questionar o resto da estória que, por certo, oculta-
ria detalhes inacessíveis. Nem posso saber exatamente o que houve
antes entre ele e o irmão. Teria havido um passado cabeludo de
ódios contidos? Mas isso não interessa, e sim o desfecho, quaisquer
que sejam os antecedentes.
O fato é que, neste caso, impera um fatalismo realista demais.
Ao menos é o que parece. Mas será isso mesmo? E quem sabe a
velha tenha sido sábia e previdente!
Então começo a perceber nas entrelinhas! Ah, sim, pois aquela
mãe deveria estar antecipando o perigo da consumação de mais uma
tragédia. Portanto, a grande lição seria aprender com o passado,
não vingar e tocar a vida no embalo dela mesma.
Lembrando aqui que, por vezes, os seguintes dizeres se aplicam à
vida comum: “Deixe fazer, deixe estar, o mundo vai por si próprio”.
Mas o assunto não é economia, embora haja uma imensa escassez
neste lugar. E como no Jardim Maia quase tudo é muita pobreza,
resta o esperar e o aguardar que alguém dê uma recompensa.
Uma coisa, porém, é certa: um crime nessas bandas pode ser
fruto de um momento de destempero. A oportunidade vil puxa o
gatilho da arma fácil. E a velha genitora, a grande mãe, de gênio
difícil, parece ter compreendido. O rapaz que não é bem rapaz
também. Quanto ao irmão, não sei.
O rapaz paraplégico diz que não fala do irmão e com o irmão.
Prefere o silêncio e o esquecimento. E nem sabe se o outro está
arrependido. Não se importa e não quer saber.
É que a mãe — o senhor sabe, né? — afinal de contas, a mãe
sacrifica-se muito por ambos os meninos, desde a época de meninos!
Para não dizer, sinceramente — ah, o senhor entende, né? —
para não dizer que a mãe é uma fortaleza. Ela é, e cada vez mais,
um grande colete à prova de balas. Mas ninguém é perfeito. E não
se falou mais no assunto.


A grande verdade

Há tempos eu não via uma face tão desolada de uma mulher que
eu diria “decomposta”. Não por estar aos pedaços, não por es-
tar se fragmentando fisicamente, mesmo que esse fragmentar-se
fisicamente seja, ao menos em parte, verdadeiro.
Eu diria “decomposta” por ela trazer um semblante ampliado
de desolação, indiferença e apatia. Mesmo tentando se corrigir com
um sorriso amarelo. Pífio.
Os médicos afirmariam: “Ah, é apenas depressão”. Talvez, mas
depressão é termo algo técnico, e aquela mulher é tudo menos
tecnicamente transparente à arte médica. Não é apenas um caso de
depressão.
Bem, só depois de algum tempo a história dela vai saindo das
brumas numa voz monótona e baixa. Assim ela formula suas
queixas. E no curso da consulta segue o de sempre: anamnese e
exame geral.
Sim, ela é doente do corpo! Vejo isso também no raio-x. Meu
olhar observador desliza pela coluna vertebral quase “desabando”:
vértebras meio coladas, umas deslizantes sobre as outras, o pretume
da porose óssea. Ela sofre de um processo degenerativo.
E com apenas cinqüenta anos, casada, e uma filha de quinze. O
marido está desempregado há dois anos. A filha freqüenta escola
pública. A renda familiar é pouco mais que zero. Mas ela aguarda
que uma decisão burocrática lhe dê uma ridícula aposentadoria.
Esta mulher trabalhou muito tempo numa indústria, muitos


anos atrás. Numa distração perdeu um dedo. Ganhou uma inde-
nização que recebe pontualmente todos os meses: quarenta reais.
Ainda enfrenta uma fila enorme no banco, que dura o dia todo.
Ela não consegue ficar na fila porque a coluna vive desabando
e as dores são horríveis quando ela permanece um pouco mais de
tempo em pé. Daí põe sua menina na fila. A menina fica lá o dia
inteiro. Ela chega de mansinho, toma o lugar da filha e apanha no
caixa a fortuna de quarenta reais.
Vivem mais de caridade do que de bicos. Vivem também de
esperança. Ela procura conformar-se e diz estar tudo bem. Abaixa
a cabeça e admite que tem repetido as palavras “tudo bem” consigo
mesma, à toa.
No entanto, de repente vem nela um momento fulminante de
autocrítica. Surge algo novo na consciência. Parece tratar-se de uma
reversão de crenças. Súbito ela contraria o que vinha pensando até
então. Desacomoda-se. Proclama-se uma inconformada. Declara-
se infeliz.
Eureka! Eis uma constatação simples, o óbvio. Mas ela não
tinha se dado conta do fato. É quando ela nota que seria ridículo
dizer que “está tudo bem”. E a partir de um momento crucial
ela é tomada por uma inquietação a contrariá-la no bom sentido,
pois percebe que não mais busca muletas de consolos bobos, de
esperanças vãs.
Ainda bem que ela não sucumbe a uma outra doença, que é a
hipocrisia atacando certos sofredores quando estes negam o peso
monstruoso da realidade e acreditam em ídolos vazios e em palavras
vazias. Ou acreditam que a vida seja um “estado de espírito”, ou
acreditam que a vida seja cumprir “fórmulas” — a exemplo de
“fórmulas de sucesso” e de soluções comerciais de “auto-ajuda”.
Parece que não é mais o caso desta mulher: ela acaba de se ver
de verdade! Ela é agora o anti-Narciso!
Ah, e sem dizer, meus leitores, que há gente neste mundo que,


no lugar desta mulher, continuará teimosamente se proclamando
“feliz”; como se essa “felicidade” fosse obrigação ou imposição
social; como se houvesse, por detrás dos horrores comezinhos da
existência, a substituição disso por realizações virtuais que cada ser
humano conseguisse alcançar conforme seu capricho. Ou acessar
conforme sua vontade. Ou comprar no Shopping conforme um
simples e puro desejo consumista.
A mulher sai satisfeita porque desabou, sincera. Revelou-se a
si mesma. Deu a si própria um banho de realidade. Passou a se
enxergar anti-narcísica em seu espelho partido. E se ela vê agora
uma imagem de desolação, essa imagem é muito diferente de antes,
quando ela apenas se apegava, obstinada, a uma auto-imagem de
auto-comiseração e ilusão.
Porque antes a dor camuflada era seu falso e ridículo prazer.
Depois uma alegria relativa começou a surgir na percepção correta
da dor. Ela aprendeu que um sofrimento ignorante estava sendo o
seu maior apego. Antes ela estava anestesiada de si mesma. Sonhava
consolos na espera de uma salvação. Vivia a pescar migalhas virtuais
na loteria cruel da vida.
E se a tão concreta coluna vertebral vem desabando, e se ela
sempre teve dores, até pouco tempo atrás ela ainda achava que
precisava esperar o tempo passar. Ainda achava que devia continuar
sorrindo bestamente. Estava numa inconsciência boba. Numa
ignorância.
Então, uma sinceridade contundente revelou-se como um cami-
nho para uma felicidade possível num mar de sofrimentos. Melhor:
foi um despertar, um novo começo! Sem esperanças vãs.
Felizmente esta mulher proclama perante si mesma uma grande
verdade que ela sente nas entranhas.
Porque, meus irmãos, a luta contra o sofrimento não se dá no
apelo à ignorância, que, aliás, não liberta ninguém. A luta contra


o sofrimento se dá quando se olha de frente a grande verdade. Ao
menos a grande verdade de cada um de nós!
Isso é conhecer os caminhos, isso são as sendas do Mestre. Diga-
se, pois, de passagem: isso lembra a grande lição proposta por
Sidarta Gautama, o Buda.


Juanito e Vanderson

Juanito e Vanderson são rapazes negros do Jardim Pantanal.


O termo jardim deve ser pura gozação. Diga-se, a propósito
deste canto do mundo, o oposto: são áreas de alagamento, bolsões
de favela, charcos de lama, bosta e restos em decomposição.
Juanito e Vanderson são filhos de uma empregada doméstica.
Não conhecem o pai, o que não é novidade alguma por aqui.
Juanito entra na sala com atitude hostil. Tem dezoito anos.
Aparenta mais. Tem olhar de rebeldia e, ao mesmo tempo, de
indiferença. Despreza um pouco seu interlocutor.
Por momentos eu me vejo na posição daquele que é visto como
um estranho: um ser oposto por classe e privilégios, ainda mais
com meus olhos azuis e minha pele clara.
Juanito transmite uma atitude largada. Pudera! É um rapaz
vivendo ao léu, afundado nas quebradas do Pantanal, sem eira nem
beira. Sem perspectivas e nem emprego.
Um pouco constrangido, eu pergunto se ele e o irmão Vanderson
conhecem entidades, associações de classe, clubes, ou sei lá o quê.
Nada conhecem. Vivem o marasmo do anonimato pobre na orla
periférica. Como muitos e muitos. E sua história de ausência
paterna e de mãe doméstica é comum. São, de alguma forma,
manos da Zona Leste. Têm ginga, maneirismos e roupas que
seguem o modismo simples da confraria dos manos: bonezinho,
bermuda, camiseta, havaianas, óculos escuros com brilho e cor.


Juanito tem um olhar esquivo e desanimado que sugere certa
desilusão. Ou falta de perspectivas.
Mas pouco a pouco eu os vou conquistando. Eles começam a
perceber que não sou o que aparento ser. Tenho familiaridade com
o mundo deles, conheço os seus dilemas. Por isso eles ficam tocados.
Aí eu toco na ferida deles. A ferida não é novidade alguma: é a
velha questão da identidade, do querer pertencer a algum grupo.
O Vanderson resume que só restam campinhos de várzea en-
lameados para peladas de fim de semana. Existem muitos manos
bons de bola, mas todos já são realistas o suficiente para não acalen-
tarem sonhos de se tornarem craques com salários milionários.
Vanderson, que é o mais velho, tem vinte e quatro anos e com-
pleição atlética. É mais afável e mais equilibrado. Sua vida é dura:
trabalha sem carteira assinada como segurança no Brás, ganha
muito mal, e tem dores nas costas. Juanito prefere agora o silêncio.
Parece ficar girando pensamentos em um negativismo só.
E ao se falar em entidades que agrupam as pessoas, eu lembro
que, lá nas várzeas pantaneiras, sobra mesmo o Narco e o bangue-
bangue dos bandidos. É onde o bicho pega.
Ah, nesse momento Juanito integra-se na conversa, deixa a
indiferença de lado. Tenta opinar diante da tentação da carreira no
Narco. E admite a presença de uma tentação constante. É que a
maioria dos colegas e amigos faz parte de gangues.
Falando direto: são manos traficantes e ladrões. Eles se viram
ao Deus dará na frágil perspectiva de estarem mancomunados com
chefões e chefinhos. Juanito reconhece que lá, onde ele mora, só
existe este tipo de liderança.
Quando Juanito e Vanderson vão embora a despedida tem um
calor especial. Eles saem contentes pela minha solidariedade. Eu
consigo fazer uma ponte. Aqui, nesta sala, eu e estes dois rapazes
negros fazemos uma reunião tão humana, tão universal!
E como conversamos, afinal de contas, sobre os dilemas de todos


nós. Juanito faz considerações a respeito do crime que valeriam um
documento sociológico. O menino filosofa a respeito da vida. Eu
aproveito o ensejo para filosofar também.
Pois eles deveriam encontrar o velho caminho do auto-
conhecimento. Deveriam estar refletindo se o mundo é ou não o
mundo que se vê e crê na aparência dos sentidos. Afinal de contas,
existe algo além ou não? Grande dúvida. E eles já deveriam estar
compreendendo que há símbolos e que o Pantanal simbólico chega
a ser quase todo o mundo. Pois estamos neste mar de lama e, por
vezes, olhamos para o céu. Metáfora quase igual à da flor de lótus
do budismo.
Eles, enfim, vão-se agora. Vieram por insistência materna. Têm
queixas banais. Mas saem compartilhando velhas questões que são,
afinal de contas, as mais importantes.
O homem vive de pão e filosofia. Não importa se no Pantanal
ou nos verdadeiros jardins, que são a antítese do Pantanal. Mas em
qualquer lugar do planeta as agruras espetam na alma a necessidade
de dar sentido às coisas, inclusive dar sentido ao vácuo que cada um
tem dentro de si.
Vácuo externo quando alguém se sente um nada na roda imensa
do mundo. Vácuo interno quando não se pensa e não se reflete.
Felizmente, estes dois rapazes negros do Jardim Pantanal mantêm
a capacidade de reflexão. Ah, eu percebo que neles ainda vive uma
sede de cidadania, um élan civilizatório perdido. Dessem a eles
oportunidades e seriam muito além de manos perdidos a jogarem
bola em campos enlameados e a viverem tentados pela carreira do
crime.
Agora sim eu entendo o tédio de Juanito. Um tédio que extra-
pola a condição jovem e adolescente. Eis o seu lado bom e também
um pouco do seu sofrer. É um pouco sua consciência de se ver
jogado no mundo. Não jogador de bola. Apenas bola chutada por
outros de quem ele nem vê a face.


Luther King

Ele se chama Luther King e mais um sobrenome bem brasileiro. É


de uma negritude absoluta, careca rapada, estilo dos manos. Alto,
não muito forte. Ou, então, seria até forte. Está em tratamento para
tuberculose, e conta as mágoas.
Aos vinte e oito anos já é maduro de corpo, embora tenha
atitudes de um garotão crescido. Falsamente circunspecto, Luther
King é, de fato, um desses caras que levam a sério os dilemas da
existência, tem dúvidas cruciais, e uma delas é sobre seu futuro que
parece não existir.
Para o mercado de trabalho Luther King é aparição aleatória
como tantos outros luther kings. Faz lá suas romarias atrás de
emprego, despeja currículos. Toma conduções, vai ao centro da
cidade.
Vira e mexe está de volta reunido no campinho com a turma
de sempre — os manos, a rapaziada do conceito ou não tanto do
conceito, uns e outros no barulho ou no nada, ali de tocaia na vida
banzando.
Luther King avalia que uns trinta por cento deles estariam se
virando do jeito que não é certo, mas se viram. Isto é, assaltam ou
fazem serviços para o Narco. Uns trinta por cento fazem, uns trinta
por cento querem fazer e não têm coragem e iniciativa, uns trinta
e tantos por cento são parte dos que a sociedade vê como gente
direitinha, né mano?, gente certinha.


Luther King fica ali no limbo. Negríssimo, ele sabe ser vítima
do preconceito, principalmente da polícia que vive parando sua
gente e às vezes chega descendo o cacete antes de perguntar. Pois
Luther King cresceu na várzea, na perifa, nos bolsões aqui do Maia,
perto do Pantanal.
Ele me conta coisas cabeludas sobre o Pantanal. Sabe como é,
né?! Existem os manos de cá e os de lá. Ele, o Luther, não se arrisca
além de certos limites, porque está tudo territorializado, não existe
esta liberdade burguesa de ir e vir. Espias controlam entradas e
saídas. Tem gente desconfiada em todo canto.
Vira e mexe metem bala mesmo, o cadáver vai boiar no Tietê
ou fica deitado na rua de terra junto ao esgoto a céu aberto. Lei do
cão, mano, como o Luther me fala. E tem mais: Luther King já
perdeu uns manos, gente que cresceu com ele. No meio tinha uns
mais ousados, tipo firmeza, que partiram cedo para a coisa ruim e
deram de cara com o mundo, principalmente com a polícia. Muitos
viraram presunto e pronto.
Luther King abaixa um pouco a cabeça, em silêncio. Segue
agora uma pausa maior enquanto eu olho para um Luther King
circunspecto que dá a impressão de matutar consigo mesmo.
Pois vejam bem, meus amigos. Ele é tímido, introvertido, parece
ameaçador pelo tamanho, tem um olhar fechado, mas no fundo é
uma pessoa doce. Vive a se questionar sobre que caminho tomar.
Filosofa sobre os caminhos do crime: ser ou não bandido, eis a
questão, to be or not to be.
Luther King rumina pensamentos. Coloca os fatos na balança.
É racional feito Hamlet. Mas também é pego pelo caráter e entra
em contradição como certos personagens de Dostoiévski. Aponta
uma lógica escusa que leva os manos a saírem roubando porque
não têm oportunidade nenhuma. Porém Luther King também
entende que este mundo do crime é uma guerra de lobos num


mundo de espertos e otários dentre aqueles todos que se julgam
muito malandros e muitas vezes — saca essa — não são.
Eu tento dissuadi-lo dizendo que ele não tem vocação para
essas quebradas, não tem perfil. Pois cuidado com as ilusões dos
caminhos fáceis. Mas eu admito que tudo isso é meio papo furado,
eis a verdade. Quem sou eu para apontar caminhos?! Mas posso
ser sincero ao dizer que até respeito quem mostra a vocação para
o crime, para a contravenção, sim, aqueles que parecem trazer do
berço ou da convivência um gosto antecipado por burlar a lei, a
polícia, os que alardeiam um gosto de viver perigosamente de cano
na mão, ou traficando, fazendo o diabo.
Mas os luther kings da vida não são bem assim. Ruminam na
dúvida. Muitos caem, tombam, ou se fodem de verde amarelo
tragados no dragão da maldade organizada ou do sonho fútil de
ganhar dinheiro fácil. Por outro lado, não há como negar a força
econômica deste submundo do crime, contravenção e companhia.
Onde há jovens manos que fazem carreira, e uns poucos “ven-
cem” e — sabe como é que é, né? — depois retornam perante
seus iguais já um pouco diferentes. Com roupa de grife, moto zero
bacana, meninas que se penduram nele, cachorras, mortas de tesão.
Sim, uma festa, que nem precisa de carreira de pó no embalo do
prestígio daquele que, fora da lei, desafia sistema e o escambau.
Ele pode ser tido como um vencedor, e muitos, até os relativamente
honestos, o respeitam e o admiram.
Mas o Luther é apenas um pouco reflexivo, e um pensador al-
ternativo. Segue com suas idéias da hora, e provavelmente não irá
escolher carreira de bandido, embora tenha plena capacidade para
cometer mil assaltos na imaginação e se multiplicar em heterôni-
mos possíveis que sejam alter-egos — pobres alter-egos — de um
homem jovem, negro e honesto.
Luther King se levanta, ganha altura. Sua negritude vê-se


imponente, sua careca vê-se também imponente. A face é meio
dura, talhada, a expressão forte. Carrega a si mesmo pelo corredor.
Mais parece adolescente que homem. Ensaia a si próprio sendo
homem.
De qualquer maneira, Luther King tem o livre-arbítrio, tem a
dúvida básica entre o bem e o mal, dúvida de todos os que vivem
nesta sociedade chamada humana, com um toque ainda terrível de
Brasil atual. E nesta Paulicéia sem emprego e oportunidade, onde
uma juventude mofa de apatia e ensaia, pelos cantos e vielas, uns
terrores que assaltam outros que consideram o Brasil apenas um
país que dá oportunidade a todos!


O desempregado

Falar por aqui a respeito de desemprego é falar de assunto de todo


dia. Também é falar do que não tem graça, nem brilho, nem
inovação. Porque é uma trágica pasmaceira o que se vê nessas
bandas.
A cifra é assustadora e aumenta. São tantos jovens e adultos
jovens banzando, andando ao léu, pensando em nada e na vida que
mal sonham e não têm. Desempregados, enfim.
Ouço a cada dia um drama. Quase todos repetitivos. Feito o
drama de um homem nordestino, quarenta e poucos anos, pai de
duas crianças.
Ele é um desses poli-trabalhadores que se viram por aí, ou
seja, fazem “bicos”. E todos são misto de ajudante geral, pedreiro,
encanador, eletricisa etc. São trabalhadores braçais sem serem
especialistas. Detêm um conhecimento de generalidades de coisas
feitas à mão. São proletariado em estado crítico de reserva.
Até aí, porém, nada de extraordinário aconteceu. Justamente
por isso: nada aconteceu. Apenas o homem resolve se abrir.
Levanta-se. Emociona-se. E faz sua cena sem pieguice, sem drama-
lhão e sem novela mexicana.
É um discurso da dor. Lágrimas jorram sobre a pele do rosto,
pelos lábios, pelo queixo, pingando. Ele faz sua confissão de deses-
pero e não faz mais do que expor uma realidade que há três anos o
cutuca e o inferniza.
Homem simples e de esperteza voltada para atividades manuais,


ele está acostumado a vários tipos de serviço. Mas as portas se
fecham. Sem falar que há milhões iguais a ele. Todos estão ávidos
por algum servicinho. E não se pode dizer que não façam concessões.
Alguns, como ele, estão dispostos a tudo. Varreriam valetas imundas,
limpariam esgoto, não se importariam em carregar bosta, merda.
(Lembrando, por sinal, uma piada: a dos otimistas que alardeiam
a disponibilidade da merda e dos pessimistas que lamentam não
haver merda para todos!)
Mas não se pode dizer que, lá no fundo, ele seja um vagabundo,
ou queira apenas empregos especiais. Ele não procede assim. E as
lágrimas jorram e ele me confirma que está disposto a tudo, Seu
Doutor, porém não acha nada.
E as lágrimas continuam a jorrar.
De repente o homem faz sua cena mais dramática: num exercí-
cio de moralismo menor, ele descarta possibilidades radicais, como,
por exemplo, roubar. Ele me parece sincero. Pois há um impedi-
mento forte: uma questão de religiosidade e também, quem sabe,
de não ter vocação para o crime.
Pedir é difícil. A gente tem orgulho próprio, não é verdade?
Também não é simples mendigar, é preciso jeito, é preciso lábia.
O homem acaba se mortificando. Envereda numa baboseira
política e ideológica de pessimismo ingênuo. Joga toda a política e
todos os políticos numa só cumbuca. Nada presta, ninguém presta:
nenhum governo, nenhum sistema.
Ficam as sombras onde os demônios rolam à solta, e no apuro da
revolta de um homem só o mundo é mundo cão mesmo, e o homem
é apenas lobo do homem. No entanto ele vê uma riqueza paulistana
à sua volta, vê o mundo largo cheio de encantos e pensa em muita
injustiça. Preso em suas contradições, dilacerado entre visões e
vidas opostas, ele vê horror naquilo que se denomina sociedade
humana.
Sobram sinceridade, lágrimas e dor. Pior: a retórica deste


homem, por motivo do desespero, dá com os burros n’água. Ele
mal argumenta como muitos por aí que, feito ele, descambam
para o niilismo político e para a incompreensão da dinâmica da
sociedade. Ele mal argumenta como muitos por aí que enveredam
para a religião e ficam esperando tudo de Deus, e que Deus é que
tem e pode dar. Acontece que Deus tem intermediários altamente
suspeitos neste mundo, e esses intermediários são pessoas, talvez,
que costumam ter melhores oportunidades na terra. Ainda mais
na selva capitalista do Brasil, e na Paulicéia.
Mas o homem agora já está chorando menos. Ele limpa a face.
Prepara-se para ir embora. Parece que vai sair da sala cheio de um
pessimismo atroz, incapaz de compreender o mundo em que vive.
E querem vocês, leitores, saber de uma coisa? Ele vai sair desta
sala com uma ponta de inveja dos que têm sucesso. Ah, se fosse
ele a ter tido sucesso; se fosse ele a entrar aqui bem vestido e com
maneirismos comerciais; se fosse ele a entrar de colarinho branco
(até mesmo um colarinho modesto e surrado), ele poderia ser mais
um que alardeia a Deus e ao mundo que todos os desempregados
são apenas vagabundos, que sempre houve emprego, e que só existe
gente com ou sem vontade de trabalhar.
Esse outro tipo de homem realizado e relativamente sortudo —
um tipo bem vistoso que, devido a uma simples contingência, não
entrou hoje nesta sala e não está aqui no momento — esse talvez
não esteja tão distante deste outro homem que está aqui, e agora,
em carne e osso e acaba de chorar feito criança. Porque esse último
é o avesso de uma mesma moeda!
Sim, meus amigos, construímos o mundo a partir daquilo que
nos bafeja a sorte, de acordo com aquilo que nos reserva a oportu-
nidade de estar vivendo em cada canto deste mundo. Também de
acordo com o que existe e está disponível para nós. Ou conforme a
materialidade do mundo.


Dizem, porém, que há algo mais! Que existe a providência, o
destino e coisa e tal!
Quem sabe um dilema entre Marx e Jesus, com um toque de
Buda no meio.


Loucura

Ele é exuberante, loquaz, e super dramático. À primeira vista deixa


perceber aquilo que, mais no fundo, dizem por aí ter o seguinte
nome: loucura.
Se bem que exista muita coisa louca relativa neste mundo de
Deus! Quem não sabe disso!? Mas a agonia deste homem deve ser
a loucura comum, e esta vem no embalo de um papo abundante de
emoções atravessadas.
Curioso: ele fala muita gíria, dá uma de malandro, aponta
otários, escolhe bem as palavras e tem um certo tino das coisas.
Homem prático, não deixa de ser também um teórico do mundo.
Homem nada modesto, ele se diz, dentre outras peripécias, dono
das organizações Globo e de várias outras organizações do império
das telecomunicações.
E como não podia faltar na estória, é um perseguido. Por fan-
tasmas? Não: O inimigo é uma tal , espécie de polícia genérica
kafkiana. Ou então ele é perseguido pelos “home”, quer dizer, por
tipos metrancas surgidos com pistolas no meio da negra noite.
Para ele existe nas redondezas uma “Organização” abstrata
onipresente revestindo-se de matizes múltiplos policialescos. Dan-
tescos. E é sob mira da “Organização” que ele corre torto na vida.
De vez em quando ele fala com tanta lucidez que causa espanto.
Dá palpites inteligentes a respeito do seu tratamento. Tece consi-
derações curiosas sobre remédios e posologias. Vibra em conversas


variadas sobre saúde no entusiasmo de um descompasso até meio
coerente.
Magro, elétrico e quase negro, ele é um tipo machucado pela
vida. Carrega, porém, humor infantil, naïf, próprio dos chamados
loucos, próprio dos clowns, dos bobos da corte.
Bem. . . se ele tem família? Tem, sim, e mal e porcamente mora
em cômodo isolado numa casa até grande, dos pais, junto com uma
penca de gente: irmãos, tios, cunhados, cunhadas, sobrinhos etc.
O pai sempre afirma: ele é um vagabundo nato, nunca foi
louco coisa nenhuma pois, de pura esperteza, vive às custas alheias.
Outros familiares endossam essa opinião. O pai sempre repete
isso, e uma vez, quando um cunhado havia perguntado a esse pai
o que achava realmente do filho, o velho vomitou estas palavras,
enquanto derramava cachaça e avançava em goles sucessivos:
— Que morra. Quero que o desgraçado morra.
Mas quando o velho está no embalo de goles moderados de
cachaça, ele é menos intempestivo. Aí pensa diferente e entra em
contradição. Desconsidera o desejo de se livrar do vagabundo, do
imprestável ou, quem sabe, do supostamente louco que costuma
vir com uma saraivada de pensamentos lúcidos dentre muitos desa-
tinados. Fica até com um pouco de pena, logo apagada com mais
goles de cachaça.
É que o pai há tempos vem urdindo plano de alugar o cômodo
onde vive o filho. Seria uma renda preciosa a mais que, por menor
que seja, faz falta neste mar de miséria. Por isso o pai fica nervoso
com a perda do cômodo a ser alugado, e se enfia pelos cantos,
soturno, protestando contra uma ocupação de espaço imobiliário, e
ainda fechando a cara para aquele que já foi um menino estranho
e hoje tem trinta e poucos anos.
O pai não se cansa de olhar, irritado e fulminante, para quem
de início era quieto e ficou meio palhaço, loquaz e intempestivo. E
que por vezes teatraliza a vida, com brilho ou franco desatino, ao se


proclamar rei obsessivo do mundo e sem ter medo quando está no
embalo das asas do delírio.
O pai passa então ao largo do filho pensando maldades. Ah, por
que lhe foi nascer esse maluco vagabundo?!
Diagnóstico final: esquizofrenia paranóide. Com nuances bas-
tante esclarecedoras, ou seja, tramas macabras e a tal polícia gené-
rica kafkiana. Sem falar que a  está na sua cola, e ele vive um
filme de Hollywood de suspense e terror.
Mas não devemos nos esquecer também de que, enquanto ele
se refestela no universo lúdico e televisivo dos exercícios delirantes
e acusa, em si mesmo, a paranóia, qualquer um logo perceberá que
a paranóia dele tem estória.
Teria mesmo, caro leitor?!
Pudera! O louco tem que ter muita razão em ser tão perspicaz
a ponto de ter identificado e vivido um papel que tem tudo a ver
com ele próprio no dia-a-dia. O louco é um ator inconsciente de ser
ator. O louco, portanto, deixa de ser ator. Sua peça é a própria vida
revivida de maneira delirante, ou alucinante!
Ainda mais quando um demônio familiar sai e entra pela porta
de um teatro que não é teatro; ainda mais quando esse demônio
volteia num cômodo imundo e mal arrumado, pigarreia, resmunga,
e guarda, em silêncio interno, uma certa frase destinada a ser
vomitada mais tarde no embalo de sucessivos goles de cachaça.
Pior ainda: frase que a loucura dele antecipa, e que alguma voz
interior martela obsessiva na sua cabeça!
— Que morra. Quero que o desgraçado morra.
E tem mais: se a  com seus “homes” e suas metrancas avança
soturna pelos becos lamacentos do Pantanal, ele, o rei das teleco-
municações, ele, o dono da Globo, se defende ao sentir-se numa
imensa Central de Produção quando lhe vêm poderes especiais e
ele “tem a força”.
Ele então se glorifica. Produz seu programa e o comanda, e até


o assiste em casa como se o programa fosse um Big Brother de si
mesmo. Com uma vantagem adicional: ele se vê numa tela mágica
permanente, em qualquer lugar pode ligar e desligar o aparelho, e
dá uma demonstração de que pode haver ganho secundário cruel
vindo da loucura!
No entanto, apesar de todo o extraordinário poder que ele alar-
deia a Deus a ao mundo, ele é suficientemente lúcido para admitir
sua imensa fragilidade, meus irmãos! Pois ele confessa ficar enco-
lhido no seu cômodo imundo, eternamente inadimplente daquele
mísero cômodo. Enfiado num castelo no ar, fiador inútil de si
mesmo, pagando aluguéis com a moeda do temor e do terror. E
sempre com um medo horrível da polícia genérica kafkiana, medo
que talvez, e nesse caso familiar, não tenha e nem possa ter o nome
de loucura.
Porque se trata de um relâmpago medonho de lucidez no fundo
da escuridão. . . um relâmpago vindo dele, de sua mente, ou —
como outros diriam — de sua alma.
Eta vida loka!


Os seis porquinhos

É um homão quase negro, um tipo sertanejo como deviam ser os


tipos sertanejos retratados por Euclides da Cunha. Forte, alto e
estranhamente calmo. Exibe um olhar penetrante que eu diria
algo hipnótico.
A estória não é de doença comum. Ele nem se queixa de doença
comum, e começa seu depoimento falando da vida. Vem do Piauí,
da zona rural, onde ainda tem um pai com oitenta e tantos anos que
mora sozinho num sítio na companhia de vacas, bezerros e porcos.
O velho teve vários filhos espalhados no mundo. Nos anos
cinqüenta veio para São Paulo um pouco a pé e um pouco de barco, e
tomando todas as conduções que podia. Na época chegavam muitos
retirantes. Muitos morriam no caminho. Dava muita doença.
Enfim. . . o velho chegou, mas um dia se decepcionou, voltou
para sua terra e lá permaneceu.
O homão — o filho — este não, está aqui.
Ele fixa os olhos sobre minha pessoa. Uns olhos hipnóticos.
Sou tomado por uma passageira impressão de que ele está longe.
Além do Piauí!
Pergunto qual é o problema que lhe aflige.
Com serenidade implacável ele diz: “Sou doente mental”. E ele
o diz com fluidez extraordinária, quase de forma beata.
Eis que o homão sertanejo me confidencia cinicamente estas
palavras: “Sou um psicopata”. Eu fico sem graça, tenho até vontade
de rir. O homão continua calmo, suave, e me confessa ser um


“psicopata” porque pode ter súbitos desejos, e caso venham, de
verdade, os súbitos desejos, eles devem ser cumpridos. Por exemplo:
matar uma pessoa ou estuprar uma mulher.
Eu tremo nas bases, mesmo que o homem esteja totalmente
calmo. Sigo investigando, contorno a questão e pergunto se, em
alguma ocasião, ele seguiu a fundo na consumação de um súbito
desejo. Ele nega, educado, mas logo acrescenta:
“Ah, quanto ao desejo de matar, aconteceu uma vez lá no Piauí,
no sítio.” Ele era criança.
Uma porca deu à luz a seis porquinhos, e ele não sabe dizer por
que teve o desejo de exterminar os porquinhos. Foi estrangulando
um a um, a cada dia, sem que ninguém soubesse. Eliminou toda a
ninhada, e aquilo ficou na sua cabeça. De vez em quando ele fica
encafifado.
Ah, e quanto a alguns outros desejos, quando já morava em São
Paulo uma vez teve desejos por uma moça que lhe atirava a gula do
sexo. Ele queria tomar a moça para si, possuí-la ou, simplesmente,
estuprar.
O homão sertanejo concebeu um plano. Pensou muito, e apenas
pensou num quartinho apropriado, numa espécie de jaula. Ficou
matutando. Quase executou o plano enquanto o desejo o vinha
tomando, e cada vez mais o vinha tomando. Então ele teve uma
crise de nervos: passou sete noites sem dormir e, no final, pediu
ajuda.
Eu fico agora me perguntando: esta estória é coerente?
De alguma maneira ele recria uma fábula horrenda, a do mons-
truoso colecionador de borboletas e seres humanos. Enquanto isso
sua mente reage contra pensamentos terríveis e manifesta um freio
que um psicopata verdadeiro talvez não possua.
Eu fico matutando. Ele olha estranhamente para mim. Há um
silêncio na sala. Cria-se um hiato incômodo. Eu penso que ele
acaba de negar, pela estória, que é inapelavelmente comandado


pelo impulso. E eu me pergunto se não é estranho que ele seja
psicopata?! E no caso de ser, ele se exporia dessa maneira?!
Caso este homem seja parecido, por exemplo, com algum perso-
nagem sombrio de Dostoiévski, exercitaria a si mesmo na imagina-
ção do crime?! Ou, quem sabe, ele deseje, lá no fundo, ser psicopata!
Ou então, eu me pergunto de novo: será que sua parte satânica foi
despertada quando ele exterminou a ninhada da porca?
Isso me lembra o Nelson Rodrigues, da peça Os Sete Gatinhos!
Vejam, meus irmãos, como o ser humano é profundamente teatral!
Todos adoramos fazer o papel de psicopata! E este homem, talvez,
por via de uma licença decorrente de algum transtorno mental, dá-
se ao luxo de incursionar ingenuamente na imaginação nebulosa
de feitos terríveis.
Mas não haveria aí algum disfarce?
Ao final da conversa o homão sertanejo se confessa muito per-
turbado. Admite estar num beco sem saída. Declara lutar contra
si mesmo e confirma ter tido apenas um único grande desejo de
verdade cujo ensaio foi o episódio em que ele estrangulou, um a um,
sem saber por que, e estrangulou, movido por um vago capricho,
toda a ninhada da porca.
Depois o homão explode: Ah, que horror a lembrança que lhe
vem agora! Que horror o que ele fez! Porque ele confessa estar
sendo tomado por um sentimento de que nada sentiu.
Nada, nada, nada. . .


A dor no joelho

A solidão é um tema recorrente, meus amigos. Nada mais universal,


nada mais comum. A solidão tem matizes, nacionalidades, sutilezas.
Enfim, a solidão é um grande tema.
Mais uma vez entra nesta sala a solidão. Numa pessoa que não
parece solitária porque é loquaz, mas de uma loquacidade forçada.
Meio gordinha, sorridente, face rugosa, envelhecida precoce. O
sotaque caipira é do interior de São Paulo. Nasceu em Guaratin-
guetá nos anos quarenta. Aos vinte casou com um piauiense e veio
para a Paulicéia. Há três anos o marido se foi dessa vida. Nunca
tiveram filhos.
Enfim, lá está ela, sozinha no mundo, vivendo numa casinha
nesta periferia do Jardim Maia.
Não importa agora seu nome exato, mas lá vai um outro gené-
rico: Dona Maria. Pois há tantas e todas são donas marias.
Esta tem uma dor no joelho que vem de anos, desde que levou
um tombo. Mas quando eu faço um exame físico não observo nada
de errado na perna ou no joelho. Então me pergunto: esta dor
estaria exagerada, ou supervalorizada? Talvez porque Dona Maria
acalenta a dor há tanto tempo, ocupa-se dessa dor o dia inteiro,
dorme com ela, sonha, tem pesadelos, acorda com a dor. Cuida da
dor até quando se distrai um pouco de dia ao conversar com alguma
alma na vizinhança. E conversa com outras donas marias, ou com
qualquer pessoa, porque vizinhos são muito faladores em todos os
lugares do mundo, e esta Dona Maria também é faladora.


Mas quando chega a noite tudo fica vazio. Ela faz café, toma vá-
rias xícaras, vê todas as novelas, vê os filmes da madrugada e depois
tomba no sono ajudada por um comprimidinho de fenobarbital
porque é epiléptica. O remédio produz um sono largo, e ela acorda
ao raiar do dia. Vem a dor, mas ela cochila, depois vem a manhã, o
sol, e aparecem as vizinhas novamente, e felizmente aparecem.
E se a dor a distrai da solidão, a dor cede agora ao papo ameno,
porém volta no fim da tarde, recrudesce à noite e amortece após o
comprimidinho e o sono.
Nada existe no horizonte além disso. Nenhuma vida social,
nenhum parente. Ninguém mais íntimo. Ela diz que, quando
morrer, os vizinhos arrombarão a porta para arrancá-la de sua
funesta imobilidade. Pior: ela teme que ninguém irá se aperceber.
Apodrecerá ignorada e será enterrada como mendiga.
Dona Maria suspira mas logo brinca, fica vivaz e ri, toda caipira,
carregando nos erres o sotaque de Guaratinguetá. Eu a encaminho
a um Centro de Idosos para atividades sociais. Digo que lá existem
bailes para a terceira idade. Ela hesita em admitir que teme arru-
mar um namorado. Acha que nenhum “gatão” se interessaria por
ela, aquele molambo. E ri de novo.
Ah, eu imagino que Dona Maria tenha sido assanhada nos
velhos tempos. Teria sido também uma sonhadora. Quando jovem
teria tido muita vitalidade e suspirado — como tantas menininhas
na época — por seus ídolos famosos. E apesar de esconder e até
de reconhecer uma depressão (pudera!), Dona Maria guarda uma
altivez para com as vicissitudes da vida. Acalenta, afinal de contas,
para balizar essa rotina, a cadência circadiana de sua dor no joelho.
Dor a marcar um sinal de alarme a cada dia, para que ela,
distraída e olhando para o joelho, não se perca com uma consciência
de estar absorta no nada, não se perca na modorra de estar apenas
e tão-somente encerrada numa pequena casa insignificante da
periferia de São Paulo.


Pois ela sente-se toda, em protesto e em lamento, neste joelho
doloroso. Ela cuidará indefinidamente desta dor para que esta dor
continue, vida afora, a dar sentido à sua própria existência. Como
se ela, periodicamente, se desse uma pancada no joelho e dissesse,
para si mesma: ah, eu estou viva! Não feito Michelangelo quando
feriu o seu Moisés e exclamou — parla. Pois, neste caso agora,
trata-se de uma quase estátua de pedra que golpeia um ser humano
de carne e osso.


Depressão encarnada

Juro que nunca tive a oportunidade de ver, cara a cara, a face mais
profunda, hedionda e tenebrosa da depressão.
Acabo de ser chamado para atender alguém lá fora que não tem
condições de entrar. Imagino um idoso paraplégico. Encontro uma
menina de dezesseis anos grávida.
Ela sofre de tuberculose nas meninges e está caquética feito re-
fugiado de campo de concentração. Mas deve ter sido uma menina
bonita, e ainda tem meiguice e graça numa face que, antes de se
mostrar decomposta, carrega uma inocência que se transformou
numa lividez aterrorizante.
Ela não sai do carro porque simplesmente não consegue an-
dar. É, no entanto, lúcida e tem olhos de quem compreende as
coisas. Executa certas ordens, como, por exemplo, abaixar o pescoço.
Porém se recusa a falar. Permanece com a expressão vazia, baça,
tristíssima.
O pai alega que a gravidez foi desejada por ela e seu namoradi-
nho de quinze anos. Quando, porém, ela se viu grávida, enveredou
em tristeza profunda. Logo pegou tuberculose, e tuberculose na
cabeça, nas meninges.
O namoradinho foi embora de São Paulo com a família. O
pai dela está meio indiferente e parece não perceber o que ocorre.
Quando eu pergunto se a gravidez da filha foi bem acolhida, ele diz
que sim. Ele não atina para o que ali existe de sério. É um inocente.
Para ele não é uma criança quem está naquele ventre.


A menina passa o dia todo com aspecto catatônico. Faz neces-
sidades nas fraldas. Parece não ter disfunção motora e sim uma
imensa fraqueza, depauperação. Quase caquexia. Que lembra pa-
ralisia, mas não é. É depressão gravíssima. Pois se a menina não
anda é por recusa da vontade e não por incapacidade de mexer os
músculos.
Lá no fundo dos labirintos da mente ela busca a imobilidade.
Ah, então eu me pergunto se ela parece um defunto? É verdade,
parece sim. Mas sua pele suave e sua expressão traindo beleza
apesar da facies de profundo sofrimento têm qualquer coisa de
sagrado, de ritualístico. E se todo esse conjunto é uma expressão do
horror, eis aí um horror que produz em mim o fascínio de ver uma
criatura obsessivamente determinada a afundar no indiferentismo
gritante da recusa a tudo.
Ela é um exemplo vivo porém quase morto de um momento
trágico em que o ser humano pode querer ser, consigo mesmo, um
herói às avessas, e entrevê, no jogo da morte, uma esperteza e uma
sabedoria das sombras que alguns — os otimistas iluminados —
não conhecem.
Sabem por quê? Porque — coitados — eles se julgam imortais.


 filhos

Mineiro, ele é um tampinha e fala com aquele jeito maneiro, suave


e meloso de Minas. Tira um chapéu surrado e faz mesuras de
antigamente. Eu penso no Brasil de antigamente. Ah, esta periferia
é uma colagem de épocas deste país. É um desfile Brasil.
O homem destrambelha a contar sua estória de vida. A princí-
pio sem novidade: início na roça, capinar, malhar de sol a sol, as
explorações de sempre da parte dos poderosos. Depois São Paulo,
Jardim Maia, e fica-se aqui entalado e perdidão na selva de pedra.
No entanto, este homem carrega um grande orgulho: fez trinta e
três filhos. E o número trinta e três tem para ele uma faceta sagrada,
talvez meio cabalística. É ponto final ritual de uma produção que,
segundo o velho, deu-se não apenas com uma mulher.
Penso agora que ele tenha se casado duas ou três vezes. Não:
casou-se uma vez só.
A esposa legítima, que pariu vinte e três, só fez parir na vida.
Até que um dia teve uma “congestão”, deu um grito, desmaiou
e pifou. Lá no interior de Minas não havia médico, e a morte da
mulher foi aquele fim de linha mesmo. Um trem complicado, sô!
Mas não tinha mais jeito, uai!
Os outros filhos foram produzidos por “muieres particulares”.
Debaixo da moita, sob galhos de mamoneiras e de outras plantas.
Foram dez que faltavam para completar o cabalístico número trinta
e três. E o velho não é maçom, não é pneumopata e nem tão
aficcionado à idade de Cristo. Mas gosta do número trinta e três.


Eu quero saber quantos são hoje. Ele responde com aquela
gingada de Minas, a voz suave, conformista: — Ah, são nove apenas.
Depois fala da saga familiar de tantos rebentos recolhidos por Nosso
Senhor Jesus Cristo, que é um agricultor carregando uma rede, ou
um rastelo, a apanhar almas nos campos do mundo.
Bem, os de morte morrida foram muito cedo nas quebradas
rurais dos sertões de Minas, esvaídos em diarréias e tosses. Os de
morte matada acabaram seus dias em becos na periferia, no meio
de tretas, alvo de inimigos ou de pérfidos justiceiros, ou então, alvo
da polícia. Houve ainda acidentes, afogamentos, atropelamentos.
Porém o velho é um conformista perante a ordem do universo.
Filósofo de araque e meio malandro, ele faz mesura de antigamente
antes de colocar o chapéu no encerramento da consulta e concluir
que a vida é bela mas carece saber viver, Seu Doutor. Ainda mais
para enfrentar as lidas do milagre de passar o mês com um salário
mínimo.
E viver para cada dia direcionar os olhos nos caminhos da me-
mória sobre toda uma vida permeada pelo número trinta e três e
pelo recolhimento de almas para o outro mundo.
Recolhimento sagrado que subtraiu vinte e quatro de trinta e
três. Ah, mas por isso mesmo ele produziu muitos meninos, para
que sobrasse abundância de carne viva ao seu redor.
Haveria nisso, talvez, alguma sabedoria de araque, se não esper-
teza mineira, aquele jeitinho do come-quieto. Uai!


A doença bíblica

É um hanseniano sem pruridos e preconceitos que façam jus à


época nefanda da “lepra”. É um homem sorridente e aberto que
não esconde as seqüelas clássicas de uma doença avançada que lhe
amputou as pontas dos dedos das mãos e dos pés.
Não tem vergonha, nem receios, e fala abertamente.
Hoje é tranqüilo. Criou bem os filhos. Ademais, fez o trata-
mento completo para hanseníase e teve alta.
Sua história é interessante e algo curiosa. Nascido em Minas
Gerais, na Zona da Mata, adquiriu a doença aos sete ou oito anos
de idade. Não dentro do ambiente familiar, e sim porque trabalhou
como auxiliar de sapateiro.
Ele possui bom senso de observação. Revela que o sapateiro
tinha marcas nas mãos, um rosto estranho, e uns dedos faltantes.
O sapateiro sempre martelava com a mão mutilada, e ele, menino,
usava o mesmo martelo e também outros instrumentos em comum.
Eu raciocino como este paciente: o contágio deve ter se dado ali,
como ossos do ofício.
O fato é que, aos dezoito anos, quando fez o serviço militar em
Juiz de Fora, já tinha a doença. Aos vinte e sete anos começou a
perder extremidades. Demorou para que fizessem o diagnóstico, e
o tratamento instituído não foi, a princípio, correto. Ele continuou
com a doença ativa, avançando.
Foi quando conheceu sua mulher, e seu futuro sogro soube do
mal maldito e se indispôs violentamente contra ele. Naquela época


em Minas Gerais havia fazendeiros que mandavam incendiar as ca-
sas dos leprosos. Ou mandavam matar os leprosos, ou os mantinham
dentro das casas enquanto as chamas devoravam tudo. Ninguém
tolerava a doença bíblica. Queriam desinfetar-se dela a qualquer
custo, a ferro e fogo.
Ele viveu uma saga heróica para se casar. Sua mulher foi de
grande coragem, romanticamente brava. Atravessou — solidária —
penúrias e anátemas, maldições e ameaças. Ele escapou de intentos
incendiários e de outras ameaças de morte. Do diabo, enfim.
Hoje ele é uma raridade médica e exemplo ambulante de seqüe-
las de uma doença milenar depurada, felizmente, de seu entorno
mistificador de horror e maldição.
Ele suspira de alívio pelo heroísmo arriscado. E lembra do
sapateiro naquela cidadezinha do interior de Minas, que escondia
por certo a doença maldita. Ele, menino, entrou de gaiato na
cadeia epidemiológica de transmissão por via — vejam bem — da
exploração infantil!
Hoje ele é portador de uma deficiência relativa, mas vive bem
o cotidiano da vida e, acima de tudo, não teme falar a respeito do
assunto delicado do passado. Apenas usa sempre o termo “mal de
Hansen”, ou hanseníase.
Ao que tudo indica, aquela doença que ele teve lá em Minas
Gerais, aquela doença definida pelo contexto social de fobias e
maldições, não era a hanseníase mas a velha lepra.
Ah, sim, pois este homem é um exemplo interessante a nos
mostrar como as doenças são modificadas com o tempo mediante a
palavra, a expressão, o conceito e, também, o preconceito.
Não quero negar, caro leitor, que existam os agentes causadores
das doenças e as marcas físicas dos males do corpo. Mas a doença
mesmo só se completa, só é o que ela é, ao ser constatada, ao ser
explicitada no meio social. O doente se torna de fato doente no
cadinho complexo de relações entre o ser humano enfermo e seu


entorno social e através da rede de signos que definem quem é
doente e por que é.
Nesse sentido, nós podemos nos imputar um mal, ou ele pode
nos ser imputado. Porque uma coisa é o bacilo do mal de Hansen,
um bacilo inocente que cumpre sua sina biológica e tem prefe-
rências por certos locais do corpo humano. Outra coisa é o ritual
macabro que, desde tempos bíblicos, cercou aqueles que seriam
portadores do mal mais maldito — relegados aos antros dos lepro-
sários, envoltos em trapos no fundo de grutas, entrando nas vilas
com sininhos para avisar os normais e saudáveis.
— Ah, lá vem ele. Corram.
Aperto a mão do homem, aquela mão que tem dedos faltantes.
O homem sorri e vai embora.


A idade de Cristo

Quando ela fala as primeiras palavras percebe-se que é mineira da


gema. Me confirma a origem: Alfenas, sul de Minas.
É uma velha com muita vida e muito amargor. Espécie de
amálgama de emoções desencontradas. A mineirice lhe adocica a
voz e dá a ela uma ligeireza e suavidade no trato. Ela convence seu
interlocutor, ainda mais quando fala das mazelas da existência.
Como muitas mulheres por aqui, foi grande parideira. Mas tem
autocrítica ao confessar-se arrependida de ter botado tanto menino
no mundo pra sofrer. Ah, se pudesse não teria feito! Mas naquela
época não havia pílula, os homens eram mais ignorantes do que
hoje, e as mulheres idem. Sim, e apesar da suposta sabedoria dos
nossos ancestrais rurais. Tudo balela!
Da penca de filhos são três machos e dez fêmeas. Dos machos
Deus levou dois: o primeiro, aos trinta e oito anos, de aids; o
segundo, aos trinta e três anos, de morte matada.
A mulher desmorona sem precisar cair, os olhos ficam eloqüen-
tes e da boca jorram palavras muito fortes:
— Pois é, Seu Doutor, eu tenho um vazio dentro de mim que
nada enche.
E me conta a estória desse filho que faleceu na idade que ela
rotula como sendo “a idade de Cristo”. Com um porém: o fato
deu-se no dia acreditado do nascimento do Cristo, ou seja, Natal.
O rapaz tinha caso com a viúva de um policial, mulher me-
xeriqueira e terrível com quem vivia às turras. Iam dos céus aos


infernos. Ele defendia o seu lado machista e costumava dar por-
radas na mulher. Mas de repente ele ficava manso e tudo voltava
ao normal, para depois recomeçar outro ciclo de infernos. Assim
viviam.
Houve certamente episódios terríveis que jamais seriam revela-
dos. O clima esquentou. Então, no bairro, montaram uma armação
para matar seu filho.
Pois bem, na noite de Natal, ele se dirigiu à casa da tal mulher-
zinha para pegar seu presente, ah, vejam só, para pegar um simples
presente. Aquilo foi a isca. Quase chegando meia-noite deu-se a
fatalidade. A arma foi colocada na mão de um menino de quatorze
anos, que fez o disparo.
Foi assim. Seu filho ergueu as mãos segurando um embrulho
que acabara de ganhar da mulherzinha. Mas o presente que ele
iria dar a ela estava entre as pernas, como ele costumava fazer
com embrulhos. A última posição dele vivo acabou sendo de mãos
erguidas. Desse jeito ele tombou. O corpo, rígido, ainda manteve
tal postura na chegada da polícia.
A mulher de Alfenas não se conforma porque seu filho tinha
pedido uma trégua, uma pausa entre os infernos. E era noite de
Natal.
A cada dia, ao chegar em casa, ela vê tudo vazio. Apesar de
ter onze filhos restantes, com um macho apenas vivendo do outro
lado da rua. E ela ainda tem marido que, depois do acontecido,
desfigurou-se na sua integridade de homem velho. Aposentado,
vive de uma miséria de duzentos e poucos reais. E também, feito ela,
guarda um grande vazio. Porém o velho encontra uma maneira de
se distrair. Cria porquinhos na margem imunda do Tietê. Passa lá
manhãs e tardes vendo os bichinhos chafurdarem na lama, olhando
as águas poluídas, imaginando que a paisagem seja a paisagem bela
das cercanias rurais de Alfenas.


Assim se passam o trabalho e os dias. Sem teogonia! Com agonia
apenas! E é o caso de se perguntar: e agora, José?!
Ah, ela derrama-se numa confissão prolixa no embalo do pala-
vreado manso da mineirice. Confessa que a morte do outro, pelo
vírus da aids, dá para entender melhor. Mas o da morte matada,
não. É pois um vazio que não se enche.
Ah, nem que toda a água do Tietê pudesse ser derramada dentro
dela. Ainda mais porque era noite de Natal e ele tinha a idade de
Cristo. E recebeu o tiro quando correu para dar um presentinho e
pegar um outro presentinho que teria sido dado por aquela a quem
— entre ódios e amores, na porrada e nos carinhos — ele também
amou à sua rude maneira.


Uns e outros

Gosto de humanos especulares nos seus encontros e desencontros.


Que não sejam espetaculares e sim especulares. No sentido de
serem opostos, antitéticos ou, talvez, complementares. Não feito
Cosme e Damião, não como Cástor e Pólux, unidos e companheiros.
Mas até feito Deus e o Diabo na terra do sol e também em São
Paulo que não é mais da garoa.
Nem importa o nome do primeiro ser humano que chegou, e
nem o do segundo.
O primeiro tem setenta anos e parece muito menos. Nordes-
tino, quem sabe típico, e pernambucano, veio para São Paulo nos
anos cinqüenta e foi um pouco de tudo: ajudante geral, pedreiro,
encanador, pintor etc. Trabalhou na fábrica Nitroquímica nos seus
belos tempos, na época do “finado Getúlio”. Lembra-se de quando
o “finado Getúlio” morreu e que houve vários dias sem trabalho.
Este homem é durão, saudável e firme. Como muitos trabalha-
dores, ele mal e porcamente filosofa a respeito da vida. Romantiza o
passado e compara tempos pretéritos aos atuais. Diz meias verdades
e meias mentiras.
Pois então, Seu Doutor, quase tudo por aqui era mato. Havia
uma jardineira — vulgo ônibus fordeco — fazendo o trajeto de São
Miguel até à Penha. Caminhava-se légua sem ver vivalma. Havia
polícia que matava bandido quando bandido se metia a besta. Hoje
tem bandido matando polícia.
Pergunto ao homem o que ele acha do “finado Getúlio”. Ele


responde que no tempo do “finado Getúlio” havia dois partidos:
o  e o partido dos militares. Mas ele não sabe dizer o que
realmente pensa do “finado Getúlio”. Fala apenas das faixas negras
de luto, do clima de tensão e de revolta.
Este homem é um remediado hoje em dia. Fez lá sua vidinha,
seu pé-de-meia. Seu patrimônio são os filhos: quatro homens e
quatro mulheres criados em outro tempo, num tempo que ele diz
ser “dos militares”, quando havia ordem, havia lei, e filho pedia a
bênção a pai e pai podia dar cintada em filho. Não como hoje que
filho anda matando pai e depois falam que é “de menor”, tudo é
perdoado e fica por isso mesmo.
Pois reparem vocês na cosmovisão deste homem: o mundo é
dicotomizado em bem versus mal, bandidos versus mocinhos. Há
uma ordem no universo que se corporifica nos milicos, e a época
dos milicos teria sido uma época de ordem para criar filhos.
Este homem me parece um lutador solitário. Seria como muitos
que vieram do norte do Brasil tentar a vida em São Paulo, ainda
mais nos anos cinqüenta quando não havia desemprego em São
Paulo.
Bem, o discurso do primeiro trabalhador se esgota aqui, meus
amigos. Depois é a vez de ouvir o outro, que nasceu no Ceará e
também chegou à Paulicéia nos anos cinqüenta. Está empregado há
vários anos numa fábrica em Guarulhos, tem prestígio, estabilidade,
contenta-se com o que tem. Não me fala em militares, nem em
dicotomias do tipo bandidos versus mocinhos; fala na vida como ela
é, analisa o mundo de ontem e hoje, vê esse desemprego monstro.
Lá na firma onde trabalha todos os dias amontoam-se centenas
de pessoas atrás de serviço. Algumas choram implorando oportuni-
dades. Algumas insistem, para isso, em dar em troca até os filhos.
Algumas pessoas estão simplesmente com fome. E ele, cearense
paulistano, não hesita em mandar uns pobres diabos comer na can-


tina da firma. Chega até a driblar o patrão, que olha com censura
para essas caridades.
Ele afirma saber o que é fome. Porque lá no sertão do Ceará
nunca havia tomado nem leite de vaca. E não me fala em filhos lhe
pedindo a bênção, e nem em cintadas nos filhos, e não me fala que
naquele tempo era tudo muito bom e bonito, nem que havia verdes
campos bucólicos em São Miguel. Ele é realista e humanista.
Ah, eu diria que ele é sensível e anti-romântico. Assim verte
sua fala acolhedora e solidária, embora o outro também o tenha
feito. Embora cada qual — cada um dos dois — tenha sonhado um
pouco o mundo: um com a ordem e o poder; o outro com a justiça e
a distribuição.
Estaria eu falando de uma dupla especular?
Bem, São Paulo é selva urbana e terra de oportunidades, minha
gente. Muitos retirantes aqui chegaram ou chegam para lutar e
serem vencedores. Para isso codificam o mundo para que o mundo
tenha sentido. E se constroem seus valores, estão conscientes de
que na luta da vida há o bem e o mal, e que, nesta luta, há os
supostamente escolhidos e os supostamente rejeitados.
O discurso do primeiro homem aproxima-se daquilo que se
poderia chamar de pensamento de direita, até mesmo de um pen-
samento algo fascista. Seria a ideologia extremada dos que buscam
sucesso e acham que o mundo é feito para quem luta e trabalha. O
resto que se dane.
O segundo homem tem um pensamento que se poderia chamar,
talvez, de esquerda. Ele subverte, contraria, busca uma distribuição
dos bens, socializa, quer alguma forma de igualdade. E também
abdica de si mesmo solidarizando-se com os oprimidos.
Reparem melhor. O primeiro homem tem nostalgia dos que
têm poder — os opressores! O segundo incorpora a nostalgia dos
faltosos de poder — os oprimidos!
Ah, mas não é verdade que estou falando apenas de dois tipos


de migrantes nordestinos que vieram para São Paulo? Acho que
sim e, como diz o título da um rap dos manos aqui da periferia —
“cada um cada qual”.
São Paulo é um pouco construída por muita gente mutuamente
contraditória. Daí pergunta-se: estamos falando de seres espe-
culares por terem imagens sociais ao contrário, ou por estarem
socialmente dispostos uns contra os outros?
Talvez as duas coisas. De qualquer maneira, entre eles há os que
fazem saques contra o exíguo pote de ouro da existência, e há os que
nesse mesmo pote depositam mais. Quase todos são anônimos. E,
se mutuamente especulares, não são nada espetaculares! De longe,
iguais; de perto, não são normais!
Todos descem na rodoviária às margens do Tietê e somem na
cidade grande. Uns e outros assim, há muitos anos, na Paulicéia
procedem.


O radialista

O nome é Wilson Furacão. No entanto, é homem calmo. Usa


óculos fundo-de-garrafa, e é um velho de aparência não tão velha.
Porém carcomido pelas adversidades e por hábitos antigos. Hábitos
certamente de boemia: mulheres, outras diversões e companhia.
Wilson Furacão arrasta uma perna inchada cheia de varizes e
úlceras. A perna — proclama de cara — é seu peso adicional e
também a cruz que carrega. Mas a despeito dessa adversidade ele é
homem que trabalha fazendo bicos.
Tem seus expedientes. É imensamente comunicativo, loquaz,
fala pelos cotovelos, e ainda tem um entusiasmo juvenil que, por
detrás dos olhinhos miúdos, o torna quase uma figura cômica,
saltitando em comentários ágeis sobre a vida.
A profissão: radialista. Conhece tudo do rádio, tudo da era do
rádio. Também foi jornalista e teve contato com o pessoal da 
dos velhos tempos que não são tão velhos, lá nos anos sessenta e
setenta. Na época da Jovem Guarda, da Bossa Nova, do samba de
raiz, do Tropicalismo.
A vida de Wilson Furacão é locução, é o encanto do radialista
que não mostra a cara e se esconde fazendo outros imaginarem o
mundo através da palavra e sem a imagem. Triunfo do rádio que,
ao contrário da televisão, permite brechas à criatividade humana.
Wilson Furacão é também entusiasta da novela de rádio, e dos
grandes programas de auditório que tinham mais magia do que a


devassada televisão. Isso porque o rádio é modesto, e suas ondas
invisíveis, não carregando imagem, percorrem todo o Brasil.
Conversamos muito. Seguimos além de assuntos comuns e
amenos. No embalo do bate-papo Wilson Furacão lamenta as
chagas, acha isso horrível mas, enfim, é a vida.
Ele resume bem o seu dilema: apesar das chagas ele se vira,
trabalha sem perder a linha, e continua a falar bastante da época
do rádio.
No embalo da conversa, eu de repente me lembro de uma pessoa
especial que conheci nos meus tempos de adolescência. Essa pessoa
era um ícone do rádio brasileiro — Enzo de Almeida Passos. Minha
família freqüentava seu sítio em Atibaia e, certa vez, eu ajudei o
Enzo e minha avó a organizar uma festa beneficente.
A festa contou com a presença da fina flor da música popular
brasileira na época. Ah, eu não consigo me esquecer do primeiro
cantor anunciado por aquela figura inquieta e fascinante do Enzo:
era o Jair Rodrigues, e tão novo! Depois vieram muitos outros, como
se estivessem saindo da cartola de um mágico: Noite Ilustrada, Luiz
Vieira, Taiguara, e tantos mais.
Eu digo a Wilson Furacão que Enzo de Almeida Passos foi
mesmo um grande homem do rádio. Eu o admirava muito porque
ele tinha a magia, a magia do rádio. Eu queria ser igual a ele.
Lembro que, enquanto o Enzo anunciava o show, os artistas
saíam de uma espécie de limbo, no bom sentido, como se a presença
física de corpos humanos complementasse o que, no rádio, seriam
apenas vozes. Mesmo que aquele tempo já não fosse mais a era do
rádio, e sim da televisão.
Wilson Furacão treme nas bases. Fica estático e com um ar
incrédulo. Fica fora do ar. Nem pode imaginar que este médico,
no Jardim Maia, que agora está à sua frente, conheceu, quando
adolescente, um homem que foi seu ídolo.
Wilson Furacão esquece as chagas, esquece a perna inchada,


esquece as dores. Põe sua cruz pessoal de lado. Remete-se a suas
memórias. Escancara o peito, expõe o coração e remove algum
peso, ao contrário daquela Dona Maria dramática que desejava
uma pedra dentro do peito.
Wilson Furacão historia-se. Vê-se menino. Vê-se adolescente
em farras, bebendo, jogando. Vê-se nas lidas doces da vida. Tem
como professor Enzo de Almeida Passos.
Ah, como a perna dele acaba melhorando!
E como, para todos os efeitos, ele sai da sala bem medicado!


Dona Maria versus família

Neste canto do mundo, mulher que apanha de marido é caso infi-


nitamente mais complexo do que o chavão machista que enaltece,
com malícia e sacanagem, aquela que, sendo esposa de malandro,
supostamente gosta de apanhar.
Até você, Nelson Rodrigues, ficaria espantado neste Jardim
Maia, onde as mulheres apanham na rotina familiar.
Pois é um tal de falar que o marido bebe como se bebesse água,
e do marido entrar em casa espancando mulher e filhos. E esses
maridos não costumam ser malandros. Costumam ser míseros po-
bres diabos tortos na vida, olhando de viés um mundo que reputam,
com inveja contida, como sendo o mundo dos malandros.
Hoje acaba de aparecer mais uma vítima. Como sempre, é uma
Dona Maria que não precisa ter de fato esse nome. Porém ela chega
com a mesma fala das anônimas donas marias, o mesmo olhar pífio
de resignação perante as vicissitudes da vida. A mesma esperança
vã e boba nesta medicina sem recursos, positivista e, por vezes, tola,
que dá remedinhos duvidosos e manda fazer examezinhos de pouca
importância.
Dona Maria tem uma estória que eu diria gongórica, embora
seja o mesmo repeteco ad nauseam: o marido sempre encheu a cara
etcétera e tal. Daí inchou, amarelou e pifou de cirrose. Sobraram
Dona Maria e um filho, este último um rebento inchado de pinga
que, sendo ainda chamado de “garoto”, perambula pelo mundo


feito cachorro vira-lata e já tem trinta e quatro anos de idade. Uma
vergonha!
Dona Maria faz um gesto de mulher dura, um gesto viril, talvez
para compensar o medo e a resignação que mostra de início. Insiste
em dizer que o filho, depois de morto o pai, virou um bicho solto.
Pois esse bicho — para não dizer esse filho ingrato — bate nela,
avança sobre ela. Mas Dona Maria aprendeu a avançar também no
filho. Qual é?! Tá pensando o quê? É no braço! Na porrada! Ela se
defende com bravura.
Dona Maria, agora, mostra-se um pouco melancólica. Diz ainda
que tem uma filha que, há nove anos, mora no interior e não dá
notícia. Outra desgarrada neste mundo, filha ingrata. E aí Dona
Maria revela algo pior: nos velhos tempos apanhava dos três — do
marido, do filho e da filha. Então começou a reagir.
Eu fico imaginando que Dona Maria tenha desenvolvido resis-
tências, ou seja, técnicas de artes marciais domésticas. Adestrou-se
certamente a este canhestro modus vivendi e operandi intra fami-
liar: família que dá e leva porrada unida permanece unida, né?
(Nelson Rodrigues, aí no além, meu irmão, que o diga!)
Pelo jeito segue tudo mais ou menos assim. O filho de trinta e
quatro anos — o “garoto” — perambula pelo mundo feito cachorro
vira-lata, ou até mesmo feito cachorro louco. Vai muito ao centro, à
“cidade”, aquele antro da perdição onde Dona Maria acha que só
existem drogas e putas. Pior: o filho recusa-se a ficar junto ao seio
da mãe que o sustenta e o alimenta. Sem falar que ele também é
daqueles que “bebem porque é líquido”!
O pior é que, depois da morte do marido e do afastamento da
filha, o “garoto” é (quase) o único a manter a tradição familiar
machista.
Por isso Dona Maria sente-se uma toureira das Espanhas ao
investir contra o “garoto” enfurecido. E faz questão de mostrar
essa faceta quando me lança um olhar bravo na saída da sala,


contrastando com o olhar depressivo e apático com que, há pouco
tempo, entrara.
Vê-se perfeitamente. Ela anuncia os dias que virão! Na certa ela
irá ter com o “garoto” para lhe dar novas lições de moral. Dona Ma-
ria irá aperfeiçoar cada vez mais sua coragem para enfrentamentos
marciais domésticos.
O filho deverá estar retornando de suas perambulações pelos
antros de perdição da cidade grande. Estará chegando da Babilônia
paulistana para ouvir domésticas preleções apocalípticas!
A mãe irá lhe puxar as orelhas. Mandar-lhe um sermão às fuças.
Ou sentar porradas naquele que é seu atual pudim de pinga! Pois
ele, o filho marmanjo, ele o “garoto”, é o pai cuspido e escarrado.
Ora vejam!
Mas Dona Maria, apesar dos pesares, é boa dona de casa. Boa
cozinheira. Boa arrumadeira. Faz tudo. Põe tudo em ordem. E
precisa comandar com pulso firme. Caso contrário a união familiar
correria o risco de se esfacelar de vez, feito um bolo caseiro que
tomba, ou feito gelatina de morango tremendo, tremendo, sam-
bando mais que rebolado de crioulo doido e se espatifando contra o
solo.


Cidade de Deus

Pode-se prescrever além de remédio comum. Por exemplo: um


filme. É este o caso, e a receita: Cidade de Deus.
Nada pio, nada religioso. É aquele filme brasileiro que grita a
violência na periferia. No entanto, o fim terapêutico acaba sendo
curioso.
Vejo à minha frente um menino de dezoito anos, negro, in-
trovertido e tímido. Usa óculos. O jeito é meio intelectual e até
sofisticado. Sério e compenetrado. Mas tem devaneios costumeiros.
E quer brincar, namorar, como todo menino normal.
Ele sofre de tremores que, conforme meu escrutínio analítico,
surge do temperamento e da introversão aprisionada dentro de um
refúgio de medo e timidez. Porque ele está cercado de periferia
violenta, em volta de sua casa e na escola. Onde não acontece uma
guerra feito no filme Cidade de Deus, mas é tudo próximo de uma
guerra.
Ele parece pacato, indiferente ao meio em que vive. Seria
mesmo verdade? Não. Puro engano. Ele busca um precário refúgio
em si próprio, fica horas diante do computador, ou da televisão.
Adora criar jogos virtuais, desenha, gosta de vídeo-game. Mas se
defende com um aumento ainda maior da introversão. Busca uma
interioridade frágil que o isola do mundo e parece revelar, nele
próprio, um lado criativo. O corpo, todavia, cobra um preço, a mente
também. Surgem tremores estranhos. Eu tento quebrar as defesas
apontando caminhos para que ele compense sua introversão com


atividades que o extrovertam. Para que ele saia do casulo, supere
os medos e a timidez. Não é fácil.
Tenho que apelar para um calmante que corta um pouco os
tremores. Mas não é solução definitiva. Falta a correção final, ou
pelo menos estar a caminho dela.
Ele está bastante defendido dentro do que se poderia chamar
sua neurose. Proclama-se calmo, embora não o seja. Proclama-se
acomodado, e realmente é. Tensamente acomodado. O mundo
corre lá fora e ele fica ensimesmado lá dentro. Parece, por vezes,
um velho. Com apenas dezoito anos.
De repente eu penso no filme Cidade de Deus.
Vocês conhecem o Buscapé?!
Buscapé é este menino. Até fisicamente. Buscapé é o moleque
tímido e um pouco medroso que vive dentro de um inferno, e olha
para esse inferno de lutas ensandecidas com certa gula de conhecer
e participar. Mas recua, não se envolve. Daí resolve participar
pegando uma câmera fotográfica. Passa a ver o mundo pelo olhar
da câmera, dá um distanciamento, busca uma neutralidade de
observador externo. Típico da introversão. Pois introversão pode
ser olhar distanciado para fora e aproximado para dentro. O olhar
pela câmera tem muito de introversão, mesmo que se derrame
sobre o mundo. Buscapé é um introvertido, feito esse menino.
E repare, leitor: nem sempre se prescrevem antídotos para
amenizar os males do corpo ou da alma. Por vezes se prescrevem
não elementos opostos, mas iguais. O intuito é provocar para o
bem. Na medicina existe uma lei dos iguais no suposto caminho
das curas.
Então, cinicamente, prescrevo o filme. Digo a este menino que
ele deveria se encontrar em Buscapé e com Buscapé. Pois nunca vi
ninguém tão parecido.
Olhem vocês, imaginem os dois lado a lado: ambos jovens,
negros, pobres, criativos, desejosos de romper uma casca — ambos


neuróticos. Buscapé treme diante do drama bélico à sua volta. Esse
outro também, até quando suspira por uma menina na escola.
Torço para que o encontro deste menino com Buscapé provoque
um efeito terapêutico. Afinal de contas, não se pode facilmente
psicanalisar aqui na periferia. E dar apenas remédio não é a melhor
idéia. Daí o filme, o Cidade de Deus. Quem imaginaria sequer que
esse filme pudesse ser prescrito, para ser visto uma vez por semana
durante três semanas!?
Eu torço para que esse encontro de iguais produza uma fagulha
de consciência. Torço para que um olhar compartilhado sobre um
mundo problemático produza um efeito terapêutico. Quem sabe
uma oportuna catarse!
Em resumo: este menino também precisa, à sua maneira, de
uma câmera! Mesmo que tome emprestada a de Buscapé.


Assalto doméstico

Novamente o tema é a violência e alguns equívocos a ela associados.


O que se tem por aí, muitas vezes, pode ser clichê, aquela estória
(nem sempre verdadeira) de luta de classes, a cidade dividida entre
a perifa proletária e o centro burguês, arrastões contra o Centro e
os Jardins, neguinho no farol da Rebouças com a Brasil roubando
Rolex de bacana. E tudo isso aparece estilizado em letra de rap.
Ainda diverte, mano!
Pois acaba de vir mais um caso. Acontecido no Jardim Maia.
Uma moça saía de casa para trabalhar às cinco e pouco da
manhã. Chegaram dois ou três tipos suspeitos num carro: assalto.
A moça, infelizmente, não teve aquela reação mais racional que se
pede num momento desses. Teve pânico, saiu correndo, e levou um
tiro na nuca.
Foi tudo rápido. Nunca descobriram quem foi. Dizem que são
de bairro adjacente, ou até do próprio bairro. O caso deu em nada.
Neste instante eu vejo a mãe da moça na minha frente. O
sofrimento é estupidamente sincero. Vê-se nos olhos fundos da
mulher. Ela vela dia e noite pela filha, que está em cima de uma
cama paralisada do pescoço para baixo. É filha única, tinha feito
uma faculdade e estava para fazer a segunda.
A moça costumava sair da casinha simples bem vestida. Não
tinha pompa, não andava de carro, não portava Rolex, e não estava
no farol da Avenida Rebouças com a Avenida Brasil.
O crime foi, como tantos e tantos outros, anônimo e sem qual-


quer estardalhaço de mídia, como sói acontecer nos crimes que
ocorrem em lugares badalados ou que envolvem gente importante.
Mais uma vez insisto na tecla: o problema da violência é com-
plexo, e devemos ter cuidado com chavões que proliferam por aí.
Devemos ser críticos de gente que quer tudo explicar, que lança mão
de sociologismos simplistas e quer equacionar a violência apenas
como luta organizada na sociedade. Quase tudo balela.
O crime não é tão organizado como se pensa. Muitos ladrões
roubam no local onde vivem. Pobre rouba pobre, sim senhor. Robin
Wood mora longe e é personagem da floresta de Sherwood. Nem
tudo o que reluz é ouro. Nem todo rico parece rico, e muito pobre pa-
rece remediado o suficiente para ser assaltado. Não existem tantas
organizações de bandidos como imaginam pessoas mal-informadas.
Existe, é claro, o crime organizado, que de tão organizado envolve
até ministros, deputados, polícia e coisa e tal. Mas há muito crime
desorganizado, caótico e surpreendente. E há muitas ações hedion-
das de pobres-diabos que são free-lancer nos meandros obscuros do
mal e companhia.
O fato é que a mulher — mais uma Dona Maria no mundo —
se me apresenta dilacerada. Insone. Depressiva. Ela e o marido. E
não têm recursos, não podem pagar enfermeiros. O mal está lá, a
moça vegeta.
A mãe se perde no horror do fato acontecido. Faltam-lhe socio-
logismos e psicologismos para explicar a dor com alguma elegância.
Ela e o marido estão diante da coisa nua e crua. Que alguns chama-
riam de fatalidade e outros de azar.
Mas resta o consolo religioso, e é nesses momentos que devemos
dar valor, sim, ao consolo religioso. Sem falar que as pessoas deva-
neiam, têm pensamentos estranhos, místicos: ah, quem sabe a bala
não tenha vindo ao acaso!
Pergunta-se: haveria uma lei carmática, um desígnio por mais
horrendo que seja?!


A mulher retira-se estupidamente desolada. Eu olho para as
paredes. Penso que não há como dar à cena a estética de uma
tragédia grega. Pois onde estariam os heróis? Onde estariam os
anti-heróis? Onde a espada de Nêmesis? Que entidade das trevas
teria exigido tão horrendo sacrifício?
Em resumo: não há muito o que falar. Aqui o mito grego não
chega e não basta. E eu apenas confesso: neste momento não me
sinto nem mago e nem sacerdote o suficiente para lidar com isso.
No entanto, a gente quer sempre explicar, né? Mesmo que seja
a barbárie, mesmo que seja a mais pura e hedionda barbárie.


Berlim–Brasil

Quem a vê nada diz de especial. Tem sobrenome húngaro do


marido. Mas é filha de alemães. O pai nasceu em Berlim. A mãe
também. Ela nasceu no Brasil, em , em São Paulo. Não sabe
dizer exatamente quando os pais vieram da Alemanha. Ao que
pude deduzir pela história familiar, vieram no final da década de
vinte.
É obesa, sofre de artrose e tem olhinhos azuis. A pele é muito
clara e manchada de sol. Ela parece uma matrona de cinema
europeu. Mas é uma mulher do subúrbio aqui do Jardim Maia, e
uma outra Dona Maria. Nada mais.
Ela se perde nos labirintos da memória ao diluir fatos antigos
nos recentes. Entende um pouco alemão, mas quase nada fala.
Apenas palavras íntimas como pai, mãe, irmão, além de formas de
cumprimentar e de se despedir.
Ela não tem idéia da história do mundo, da história da Europa,
da história da Alemanha. Aos poucos, porém, eu vou montando e
explicando um quebra-cabeças, ou seja, como é que, dentro do pano
de fundo da história, surgiu esta criatura no mundo — um bebê do
sexo feminino nascido em mil novecentos e trinta e quatro: ela.
Para tanto, lembro alguns fatos antecedentes.
Houve a Primeira Grande Guerra. Depois o Tratado de Ver-
salhes, que impôs duras condições a uma Alemanha que perdeu
a guerra. Seguiu-se um desemprego monstruoso, uma grande pe-
núria. Surgiram profundos movimentos sociais, polarizaram-se


movimentos trabalhistas. Organizou-se o famigerado Partido Naci-
onal Socialista. Era uma época de caos, confusão, inflação gigante.
Daí eu esclareço que a estória da família dela se encaixa no
resto da estória do mundo. E como eu estou aqui, no Jardim Maia
— e bem ao lado dela — posso ser geograficamente didático. De
repente viro professor. Estou numa sala de aula.
Mostro caminhos que partem de uma periferia até chegar em
alguma região central, não mais da cidade de São Paulo e sim do
planeta. Imagine um mapa — eu digo com entusiasmo. Ela se
lembra da escola, regressa no tempo, e tem uns doze anos. Eu então
vou colocando uma ordem na sua memória.
Ela conheceu o pai. Ele tinha sido soldador em Berlim. Jovem
operário, completou vinte anos quando se casou. Na Alemanha não
havia trabalho, e foi quando ele ouviu falar de um país chamado
Brasilien. De repente estava no navio. Num belo dia de sol viu pela
frente o porto de Santos e a Serra do Mar.
Depois aconteceu a mesma história. São Paulo sempre acolheu
a todos, e não sei por que cargas d’água ele veio para a Zona Leste,
e para o Jardim Maia.
O pai já se foi, há muito tempo, a mãe também. Hoje ela é
sozinha. O marido, descendente de húngaros, já se foi. Ela não tem
ambições. Quer apenas um remédio para melhorar as dores nos
joelhos. Quanto ao resto, é tocar a vida.
Quando ela sai, mal posso me dar conta de seu trajeto de história
pessoal e familiar. Penso com meus botões: se não fosse a Primeira
Guerra Mundial e o Tratado de Versalhes, quem sabe ela nunca ti-
vesse nascido. Ou teria nascido e seria, hoje, uma alemã aposentada.
Ganharia um salário decente, seria também um pouco obesa, teria
as mesmas dores nos joelhos e um bom plano de saúde. Viveria
confortavelmente em Berlim sem falar uma palavra de português,
e nunca teria ouvido falar no Jardim Maia.
Mas eu sei que esses outros trajetos não seriam soluções alterna-


tivas para uma estória de vida que, neste caso, é singular como cada
estória de vida é singular. Esses outros trajetos seriam apenas jogo
da imaginação! Além disso, como disse Buda, se tudo é sofrimento
— não importando se em Berlim ou no Brasil — tudo é existência,
experiência e realidade, e tudo pode ser “Véu de Maia”, sem choro
nem vela, mesmo no Maia sem jardim. . .


Adverte-se aos curiosos que se imprimiu esta obra nas oficinas da gráfica
Vida & Consciência em  de janeiro de , em papel off-set  gramas,
composta em tipologia Walbaum Monotype, em plataforma Linux
(Gentoo, Ubuntu), com os softwares livres Gimp,
LATEX (classe octavo),  e .

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