gagueira sempre foi uma desordem sobre a qual recaí- 1) Como os Bannock-Shoshoni não tinham uma palavra para
A ram muitos mitos. Essa força para atrair mitos prova-
velmente se deve à importância que a humanidade atribui ao ato de se comunicar. Um dos mitos bastante di- gagueira, eles não poderiam diagnosticar e repreender as crianças que exibiam a condição. Não ter uma palavra para gagueira evitaria, portanto, o diagnóstico e impediria que os fundidos sobre a gagueira é que ela seria uma desordem con- pais rotulassem seus filhos com a condição. finada apenas ao mundo ocidental, em função da elevada 2) Os Bannock-Shoshoni “exerciam muito pouca pressão so- importância da fala em nossa cultura, sendo quase inexisten- bre as crianças para falar” (Ibidem, p.494). Esta ausência de te em outras sociedades. Hoje se sabe que a verdade é outra. pressão era vista como uma menor tensão sobre a criança Um por cento da população mundial gagueja e a condição para falar fluentemente. Dessa forma, os pais não tentariam afeta todas as etnias e culturas igualmente. Podemos verifi- apressar prematuramente o desenvolvimento normal da fala car isso através do variado conjunto de palavras que as dife- e assim a gagueira do desenvolvimento não ocorreria. rentes culturas usam para descrever a gagueira. Na Etiópia, a A ausência de gagueira entre os Bannock-Shoshoni per- palavra do idioma amárico (língua oficial da Etiópia) que maneceu incontestada na literatura médica por algum tem- significa gagueira é mentebateb. No Japão, usa-se a palavra po. Contudo, em 1983, um artigo publicado na revista Jour- domori. Os turcos dizem kekelemek. Todas as culturas orien- nal of Speech and Hearing Research desfez o equívoco de Sni- tais e ocidentais reconhecem a desordem e têm palavras para decor. Gerald Zimmerman, professor de fonoaudiologia da descrever a gagueira. Universidade de Iowa, e seus parceiros de pesquisa relataram É didaticamente interessante mostrar o quanto é recente que os Bannock-Shoshoni tinham no mínimo 17 termos para o entendimento da gagueira como uma desordem que afeta referir-se à gagueira. Entre eles estavam: kyctanni, que signi- indiscriminadamente todas as culturas. De 1937 a 1939, fica “gaguejar”; pybyady, que significa "ele gagueja"; nican- John C. Snidecor, chefe do departamento de fonoaudiologia nugi/na, que significa "ele gagueja cada vez mais" e assim da Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, entrevistou por diante. Snidecor nunca chegou a entrevistar nenhum mais de 800 membros da tribo indígena Bannock-Shoshoni, Bannock-Shoshoni que gaguejava, porque a gagueira era es- situada na reserva de Fort Hall, em Pocatello, Idaho (EUA). tigmatizada na cultura da tribo e por isso os índios jamais Snidecor também obteve dados de mais de 1.000 outros ín- haviam apresentado ao doutor qualquer pessoa que gagueja- dios Bannock-Shoshoni e sua pesquisa "não conseguiu encon- va. Zimmerman e sua equipe relataram que os Bannock- trar um só índio 'puro-sangue' que gaguejasse" (Snidecor, Shoshoni “se sentiam constrangidos por ter em suas famílias 1947, p.493). Além disso, ele relatou que a língua da tribo pessoas que gaguejavam” (Zimmerman, 1983, p. 316). Parte não possuía nenhuma palavra para gagueira. Sua conclusão desse constrangimento e estigma resultava de uma lenda fol- foi que os Bannock-Shoshoni não gaguejavam. clórica dos Bannock-Shoshoni “que atribuía a causa da ga- A conclusão de Snidecor foi publicada no jornal Quarterly gueira a uma gestação mal concebida, fruto de um desempe- Journal of Speech, em 1947. Esta data é quase tão importante nho sexual fraco de casais inexperientes” (Ibidem, p. 317). quanto suas descobertas, porque na década de 1940 havia Portanto, como uma derivação de sua contraparente ociden- uma teoria popular sobre as causas da gagueira do desenvol- tal (a teoria diagnosogênica), a teoria dos Bannock-Shoshoni vimento, e os dados de Snidecor — dando conta de que os também atribuía a gagueira aos pais, só que com uma insti- Bannock-Shoshoni não gaguejavam — ofereciam suporte a gante pitada folclórica de sexo e paixão. essa teoria. A teoria diagnosogênica finalmente foi invalidada à me- A causa proposta para a gagueira do desenvolvimento dida que foi se tornando evidente que a gagueira do desen- que estava em voga em 1940 era a “teoria diagnosogênica” volvimento não decorria de recriminações paternas pressio- da gagueira. Os defensores dessa teoria acreditavam que a nando a criança para falar fluentemente. Agora, com os ín- gagueira começava quando os pais erradamente “diagnosti- dios Bannock-Shoshoni oficialmente incluídos na lista, sabe- cavam” seus filhos como crianças gagas. Por esta teoria, os se que cerca de 1% de toda a população mundial gagueja — pais erravam não apenas uma, mas duas vezes. Primeiro, ao o que representa 60 milhões de pessoas atingidas pela ga- diagnosticar erradamente como gagueira disfluências nor- gueira em todo o mundo. mais que as crianças tinham enquanto estavam aprendendo a falar. E depois, ao reforçar o erro inicial com outro, adver- REFERÊNCIAS tindo seus filhos para controlar a gagueira. Essas advertên- cias — não importa quais fossem — seriam vistas pela crian- Snidecor JC. Why the Indian does not stutter. Quarterly Journal of Speech (1947); 33:493-95. ça como uma prova de rejeição. A criança então tentaria re- conquistar a aprovação de seus pais tentando falar fluente- Zimmerman G et al. The Indians have many terms for it: stut- mente. Isso causaria tensão na criança e a tensão levaria ao tering among the Bannock-Shoshoni. Journal of Speech and Hea- ring Research (1983); 26:315-18. desenvolvimento da gagueira patológica. Há dois elementos na pesquisa de Snidecor sobre os Ban- *Nathan Lavid é médico, estudioso da gagueira e autor do livro Understandig nock-Shoshoni que dão suporte à teoria diagnosogênica: Stuttering (Compreendendo a Gagueira).