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Eduardo Rocha
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vanialuciadearaujo@yahoo.com.br
Introdução
Filha e mãe. A menina está na escola, o celular tira uma foto dela
com a amiga. Keshia. Abraça-a. Uma menina bacana. Só um pouco
estressada mas tudo bem. A mãe chega do mercadinho, agora faz o café.
Presente e futuro. As costas de uma e de outra são fortes, as pernas
firmes. A mulher caminha pela cozinha. Nessas pernas. Um pouco acima.
Onde antes o desejo, agora a sublimação da tonalidade bem ajustada;
onde antes a dispersão, a procura de um novo tempo, não por causa de
Gerard, mas ao qual Gerard tão bem se adaptará. Jamais entretanto
colocaria outro sobrenome, quando se livrasse desse que como um fardo
carregava. Rose. A água ferve, ela está à mesa. No caderno de receitas,
cobre e recobre o nome. Rose Ponce. Pequenas alegrias libertas de
conceitos arraigados pelo costume. Um melindre se torna catarse, um
gênero outro de destino tecido pelos anjos da vontade aberta. A senhora
Lens é um enigma à beira do sol de verão. Esconde a vida atrás da vida e
tempos adiante.
Sua arte primava pela linearidade, tudo muito certinho. Mas sua vida
era certinha? reta? Totalmente indireta. Sua alma obliqua, suas verdades
sinuosas. E o rapaz com quem iria ao paraíso em olhares distintos, as
coisas transcorreram de um modo imprevisto, naturalmente cheio de
rodeios. Contornos fragmentários sufocam o tédio confortável e a técnica
geométrica. Vendaval que turba as fontes. Matava a perfeição com seus
quadros perfeitos. O quanto é preciso se tornar imperfeito para chegar às
capacidade artística? É que a perfeição não cria, enfada, é preciso se
antes lapidado pela dor e pelo erro. Essa é a graça da vida e a sua
salvação, que provavelmente terá um dia uma outra perfeição como
coroa. Prolepse, diria que nada existia em si que justificasse a
reciprocidade em relação a um homem tão mais jovem, saudável, atrás
de quem as mulheres deviam correr. Não que fosse feia. É que as
estações a haviam sazonado. Assim faz o tempo com as frutas, queimou a
musa dos Cânticos. Estava escrito nas linhas de seus rosto e as carnes de
seu corpo o revelavam. Entretanto é esse tipo de mulher que mais atrai
homens jovens, não as garotinhas. Se não era linda, com sua boca grande
demais e as grossas pernas meio tortas, transpirava o que se deseja
inspirar e deixava os amigos da filha boquiabertos. Agora, o jovem sem
nome daquele primeiro dia por quem cruzaria diariamente em seu passeio
matinal pela praia, aceitou renunciar a ele por uma força ligada à sua
capacidade artística. E era essa a força de seu amor, maior que o próprio
amor assumido, maior que o próprio amor: sua renúncia. Existem tantas
cidades no mundo, pensou, por que o destino o trouxe justamente para
cá? Está tão cansada. Voltará para casa após vê-lo em frente ao hotel.
Está consumida por esse desejo absurdo. Não sabe se é possível mantê-lo
imaginário e fecundar a privação. De resto, não surgiu esse desejo com o
fim não de ser satisfeito mas de inquietar. Ah! É forte demais. Aniquila.
Poderá controlá-lo? Um impulso mais forte que ela? Só poderá descansar
após o apaziguar. Respira fundo antes de olhar o ateliê à sua volta. Meu
Deus, isso não é amor...
Fora não mais que uma troca de olhares, pensou, quando na verdade
nem isso. Mas desde aquele dia em que viu Gerard, absorveu a
perspectiva de toda uma vida. Envolvida por uma paixão da qual se
julgava imune, decidiu que não transgrediria, em nome da paixão, os
princípios católicos dentro dos quais fora educada. A vida estava muito
além da atração física. O desejo adquire o tom da esperança e a senhora
Lens se permite contemplar. Viu no mesmo desejo aquelas coisas que
estavam na vida além e todas de alguma forma residiam na própria
paixão. Havia o amor da natureza, a paz do silêncio, o usufruto pleno do
que se possui, a gestação de um filho. A arte. Então decidiu. Viveria sem o
objeto daquele súbito e inesperado desejo, viveria sem sequer pensar
nele (melhor assim), em sua voz que dirá Muito prazer senhora no almoço
de Michele; em seu queixo, em seu peito, em suas coxas; em seu olhar
que lia os olhos dela, luzes de um farol trazidas à noite pelo oceano que
marulhava à janela. O nariz arrebitado e petulante, de criança mimada.
Conheço o tipo. Mas nunca assim. Pelo menos agora. Um motivo para o
despertar. Um novo tipo de passeio matinal. Sua boca não atrairia a
atenção de qualquer mulher mas Rose, a artista, a artista plástica, a
artista plástica marginal, para ela a umidade assimétrica da borda rósea
refletia o tremor das folhas em uníssono com o seu coração. Por meio da
contemplação oferta a si mesma uma vida vicária que deverá ser sua
serva ao conter as loucuras de uma paixão proibida. Paixão? Outra vez. O
quê? Amor.
Foi esse tipo físico. O jeito simples, o porte, e alguma outra coisa
que ele não saberia dizer mas transpirava daquele corpo. Chamou a
atenção de Gerard ao despontar na praia quando chegava à cidade,
acalentado até então apenas pela exuberância da natureza ao redor.
Talvez pudesse ter ali evitado esse destino. A senhora Lens se cala diante
dele, à porta. Ela acabou de chegar e perguntar por Michele. Não, não
havia como evitar. Esse destino está à janela dos ônibus. Sente no rosto o
vento e a chuva que batera contra o vidro durante a noite. Está do lado
errado. Com desconforto se acomoda à poltrona. A vida pulsa na solidão
tempestuosa. Logo tudo parecerá um sonho. Um desatino atemporal.
Quando acordou de manhã, o ônibus deixando estrada e mais estrada e
mais estrada para trás, um sol tímido se arriscava em finos feixes.
Espíritos do ar se alimentam dos pensamentos dos passageiros e
depositam em suas mentes a conjetura que não saberão definir. Gerard
emprestou às existências ocultas a força de sua esperança. O ônibus
encosta na rodoviária, na verdade a pequena marquise da loja de venda
de passagens. Um olhar estrangeiro. Ponto a ponto de referencia, se
exalta em arroubos próprios de pessoas em lugares novos. Dava Celba
por definitiva em sua vida. A visão fugidia do vulto que tanto seria amado
iniciou o processo do renascimento do Deus feminino por quem, na beleza
do céu agora de súbito entrevisto entre dois prédios, havia na
adolescência se apaixonado.
Chegara enfim.
A senhora Lens
Como Rose estava? Era bom ouvir a voz de Silvia. Há quanto tempo.
O que tem feito? Silvia queria falar do que gostaria de fazer. Quero te ver,
ir a Celba. A senhora Lens respondeu animada que, claro, lhe daria muito
prazer. O George não vai achar ruim? O George não vai achar nada.
Quando Silvia estava pretendendo viajar? Um pouco antes da exposição.
Quando você vai para os Estados Unidos? Poderiam ir juntas. Sim, iriam
juntas. E as coisas? Iguais. Você precisa tomar uma decisão. Não era nada
trágico. Ele a maltrata? Maltratá-la seria estar consciente de que ela
existia. Silvia se pergunta como Rose pôde casar. A senhora Lens
pensava que o noivo era apenas um homem rude. E pensou que poderia
dar um jeito nisso, que podia ensiná-lo. Bobagem, as pessoas não
mudam. Quem dera ele fosse de fato só um homem rude. E a menina?
Está bem de saúde. Sabe como são os adolescentes, disse a senhora
Lens. O que esperar deles exatamente? Silvia podia imaginar? Fui ter uma
conversa ela, achei que estava exagerando na maneira de se vestir, com
biquínis minúsculos, shorts enfiados e... – A senhora fala como se eu
fosse uma predadora — dissera Michele na ocasião. – É exatamente o que
está parecendo! – Fale pela senhora, mamãe! Silvia lembrou que elas
também haviam sido adolescentes. Faz tempo... Nem tanto. A senhora
Lens estava feliz. Para quando devia esperá-la? Segunda à tarde? Tudo
bem. Assim terei mais tempo, disse a senhora Lens. Michele estará na
escola e George no trabalho. Será bom rever você, disse Silvia. Tenho
novidades. Alguém? De certa forma. Como assim? Quando chegasse,
conversariam. Mas você sabe, adiantou Silvia, que eu tenho um
computador em casa. Vadia... Silvia dissera que ia comprar um para
trabalhar! Lidar com homens é um trabalho exaustivo. A senhora Lens
pensava que a amiga os tivesse deixado de lado. Como Silvia disse, é um
homem apenas de certa forma.
Deixa-os, Michele.
Michele não se envergonhava. Dava graças por ter um lar e não ser
maltratada como tantas meninas de Celba sem chance sequer de
brincarem de médico, já nas ruas atendendo a anúncios, trocadas por
droga quando não por comida, violentadas por autoridades e
caminhoneiros, viciadas em crack, grávidas, mortas. Michele sabia se
defender. Liane escorria pela toalha, os vira de longe. Tinha certo orgulho
de Michele, a menina que Liane mesma fora um dia.
Ele podia imaginar quem ela encontrara num ônibus em São Braico?
Keshia, sem esperar resposta: a própria princesa. De ônibus, imagine.
Indo trabalhar. Faz-se silêncio e depois, sorrindo ao olhá-la, Gerard diz que
ela uma menina madura. Imagine. Apenas leio os jornais de domingo. Sim
gostava do que qualquer jovenzinha normal costuma, de dançar e
paquerar, estudar e chocolate, pensar em sexo e projetar o futuro,
festinhas e orkut. Blog era um outro nome para o diário que Anne Frank
consagrara, DVD era ainda cinema. Por outro lado, a inquietação típica. O
desejo de se apaixonar, o medo de ter filhos, de não saber combinar as
roupas, de espinhas, do peso. A vergonha de ser diferente, a ignorância
quanto às doenças sexualmente transmissíveis apesar de toda
informação. Até mesmo o velho conflito de gerações. Senhorita, aonde
você vai? Ia onde todas iam, fazia o que todas faziam. Em casa tentava
ter a vida interior da qual fugia na rua e sozinha no quarto chegava a
meditar. Gerard a olhou mais demoradamente quando ela se distraiu com
uma mariposa. Uma boa menina. Ao menos parecia. Mas do que
realmente gostava, o que a emocionava? Ah. Adoro música e pintura,
minha mãe é pianista e estou começando. A mãe de Michele é pintora, faz
quadros lindíssimos. E você?
Aproxima-se do grupo.
Michele diz Ainda bem que vou estudar em São Braico no ano que
vem.
Gerard se viu no pai dela. Não deveria ser tão mais velho.
Compartilharia decerto certas vivências. Quem sabe gostasse de xadrez.
Pensava a respeito quando a viu...
– Meu pai chegou. Está uma fera com você, e com razão.
Ele a perdoará por tê-lo usado assim, por fugir do atrevimento dos
impulsos, negando-se exceto para a contemplação, não lhe concedendo
o cumprimento da promessa – negando-lhe o regaço por restringi-lo à
imaginação e recusar um prazer mais pleno que aquele contato casto.
Um dia se lembrará de um rapaz que amou sem esperanças e
justamente por essa impossibilidade amou como jamais. Gerard era
naquele tempo um rapaz cuja timidez com as mulheres só era menor
que o desejo delas, amar estava além de sua capacidade. Só conseguia
amar o que não conhecia, como o fundo do mar ou a Patagônia. Era
assim uma forma de se manter só e viver o que acreditava ser a
verdadeira vida, de alguma forma estranha ligada aos computadores. O
meu amor equilibra-se sobre minhas fraquezas, sofre as vaidades,
torna-se virtuoso – não exatamente mas ao menos não egocêntrico em
demasia. As grandes revelações da vida, poucas, vinham em
retrospecto. Tanto amava a evocação quanto a perspectiva, mais que a
experiência. Um solitário. Enfim, as coisas mudaram. O que deveria
fazer? Entregar-se a alguém daquela forma? Entregar-se ao amor que
nascia, proibido pela sentença de Michele, Meu pai já chegou? A senhora
Lens permite-se um olhar de esguelha. É um homem bonito, nem tanto,
mas muito simpático, vestindo jeans e uma blusa azul clara de malha.
Ninguém ali ainda sabe mas ele não costuma usar outro tipo de roupa.
Há uma sombra sob seus olhos e luz em seu sorriso.
Quando era bem jovem, esse tempo passou, Gerard costumava ser
arredio a festas. Uma ou outra em tempos que não se podiam mais dizer
recentes nem que geraram boas recordações, mesmo quando havia
alguma satisfação aparente. Agora se deixa levar pelo encantamento
desses rituais de olvido. Nada de que deva se jactar quando partir e à
sua cabeceira alguém perguntar o que fez de sua vida. Se não era mais
assim tão jovem, adquirira a contrapartida de acreditar e sofrer sem
revolta. Há uma sombra em redor dele, embora ali o zéfiro de seriedade,
fidelidade, a aura de um ser digno de confiança. Sim, os ouvidos
escutavam mais que o chuveiro, discerniam o futuro, como um átimo de
crepúsculo que não se repetirá. Ereto ele olha o céu, seus braços
pendem sem porquê, braços mortos pois não podem abraçá-la. Que
coisa piegas, pensa. Portanto não deveria se sentir bem, portanto
deveria retomar seus modos, ser sóbrio, controlar esses sentimentos
patéticos; fora afinal contemplado com a nova vida, por que poria tudo a
perder? Na varanda, um maiô branco estendido ao lado do vestidinho
com que a senhora Lens entrara. A voz de Keshia. Puxa, olha as glicínias
que sua mãe plantou! Parecem sinos purpúreos, milagres. Aquelas
mesmas mãos geraram semelhante vida de um vermelho tão vivo, sim,
como o sangue. Não, não era alguma coisa nova. Mulheres ocupavam
uma parte determinante de seus pensamentos. Entretanto agora, no
silêncio súbito trêmulo como as roupas do varal, exultante como as
gloxínias, folga em formar os novos homens que dentro dele nasceriam
pelo resto de sua vida à sombra da mãe de Michele, ornados de risinhos
que se perpetuariam como despedidas, como os últimos acordes de
cada movimento das sinfonias.
– Conheço Gerard.
Difícil saber como essas coisas acontecem. Gerard saiu um dia sem
nada na mente além da rotina de seus passeios matinais. Alguém escuta
os nossos pensamentos? Podem ser modificados exteriormente ao longo
da ação planejada? É quase científico: mantenham o dia igual e irei me
adaptando. Acrescentava idéias a suas reflexões naturais a cada passo da
caminhada. Todavia como imaginar? A solução. Respirar fundo, se
endireitar. Há novas turistas nesse trecho da praia e mais além as jovens
de sempre. Basta para que passe para haver sinais no calção. Hoje
especificamente há uma certa estabilidade nessa beleza. Longe ainda,
num ângulo lateral, Gerard se faz perguntas. Quem seria ela? Conforme
se aproxima verifica pelo suor que está cerca de meia hora de exposição.
Monumento estirado. Esse sorriso é de alívio. Com que então não estou.
Como nos velhos tempos. Não pode se mexer agora mas tem de dar um
jeito de se ajeitar. Gostoso e constrangedor. Olhou o céu, o sol, o reflexo
nas águas. Um espairecimento banal que deve aliviar, pelo menos
momentaneamente. Seria trágico, ou irônico, justo agora ter de desviar o
foco. Querer a ação ou a contemplação, nada de meio-termo? Nossa, dá
para acreditar na lisa grossura dessas coxas? A velha vida se apossa dele
como jamais. O que é isso? Boas pessoas, pessoas normais não pensam
assim. Nunca será duro demais consigo mesmo, o pervertido.
A mãe pensa como a filha viverá com aquele novo corpo em uma
cidade como Celba. Sentara-se à mesa envidraçada da sala de jantar para
fazer umas contas, após apanhar números e máquina de calcular no
aparador, em liberdades de musselina e sandálias. Acende-se com o
clique da lâmpada. Sente paz. Capaz de transmiti-la. Gerard, que se
mostrava tão eficiente em computação e por meio dela em projeções e
custos, almoxarifado e planilhas, apresentações, não podia ajudá-la,
trabalhar com ela? Morde a maça que acabara de pegar.
Gostaria de poder fugir do lugar comum, mas não podia. Iria dizer os
adjetivos cabíveis, mas disse apenas: Quando ela chegara? O lapso que
liberou por fração de segundos o seu olhar, ela usou-o para certificar-se
do desejo desencadeado. Michele – e Gerard ainda estava por sofrer tudo
o que a isso estava ligado – mantinha-se senhora da situação nos mínimos
detalhes, senhora inclusive o próprio desejo que a queimava.
Essas coisas. A idéia que ela teve, sair e dormir na praia. Ele ter
alongado a caminhada além do limite que se impusera. Limite que aliás,
pensou, ninguém impõe. É como se ela estivesse esperando. Se vou
chamar isso seja lá do que for, ainda assim terá sido desse jeitinho. Como
tia Silvia dizia, o que tem de acontecer acontece. E aí, para sempre a
coincidência agira num sentido inverso. Olha Gerard eu não sou virgem.
Olha Gerard sou dona do meu nariz. Que bobagem. É mesmo uma
menina. Não sabe nada. De qualquer modo, um dia saberá. Quem sabe
entenda então as entranhas dessa dor que encaminha. Dor que
encaminha? Aí ela dirá que Gerard além de tão estranho é muito
dramático; que assim acabará enlouquecendo.
Acabarei.
Mais, ela quer mais, do mesmo modo que ele quer. Mal sabia.
Querer, querer de verdade, jamais ele quis. Estão no mesmo movimento,
perseguindo um gozo que se afasta quando julgam alcançá-lo (não é esse
o segredo?). Se Gerard as vezes parece mais perto, Michele o ultrapassará
e aí chegará antes. O caminho percorrido não deixa duvidas. Isso é
felicidade? Insistem na corrida frenética. Felicidade. Como se dissesse Eu
sei que você ama minha mãe e eu amo o meu pai, isso nos faz iguais, nos
dá esse direito de tentar. E se ele dissesse Michele não é certo, seria uma
grande hipocrisia. Então o que nos impede de gozar? Estão quase. Depois
poderemos se for o caso nos culpar.
Eduardo pede perdão. Diz que não sabe o que deu nele. Posso
compreende-lo, diz a senhora Lens. Apenas gostaria que isso não se
repetisse mais. Não, é claro. Ele dá a palavra. “Só queria dizer que”, a
senhora Lens espera que ele complete, A senhora é atraente demais, mas
ele diz A Michele chega por volta de onze e meia”. Frustrada a senhora
Lens agradeceu e o despediu.
E pior, a terrível beleza de seu sorriso triste. Rose, a rosa, uma rosa
sarcológica como diria o professor Delano (com quem Michele se
encontrou duas vezes em São Braico) porque se tratava de uma mulher
de tecidos musculares e partes esponjosas, mas era como se tratasse de
uma cálice de tolerância, corola de ternuras, uma flor até no nome. Sem
contar – pensou Gerard com as mãos nas anquinhas de Michele – as
carnes fartas, prontas para serem classificadas pelo toque do amor de um
homem, o amor de Gerard.
Quem sabe uma cidade intermediária, nem metrópole nem vila, com
vantagens de ambas. Abre essa esperança. Um dia de tamanha claridade.
O sol nas ruas de uma cidade grande estaria filtrado por árvores e
portanto não seria tão opressor. O sol no quintal de uma casinha num
arrabalde simpático. Está nesse quintal. Os passos nas folhas secas. O
reflexo das folhas verdes. Uma brisa no mato. Deixei-a em casa dormindo
e vou comprar pão assim cedinho. O trânsito dessa cidade não é caótico
mas deve-se ter cuidado ao atravessar a rua. Cheiro de pão. Estalidos do
papel de pão. Eis a vida de um lugar assim, o amanhecer em um lugar
assim, fazendo esvoaçarem os sentidos, serenando aquela que dorme em
casa enquanto saio de mansinho oculto pela penumbra de um prédio nem
alto nem baixo, pelo corredor nem estreito nem largo e então a entrada
do prédio, a entrada de um prédio nem luxuoso nem simples demais.
Talvez assim tivesse uma vida, uma vida de verdade e não a que os
sonhos me permitem apenas no recôndito deles, se ela quiser, e quer, e
fica o pensado por não pensado, um mês e meio depois estavam casados
e Gerard para o resto da vida oficialmente ligado à senhora Lens, livre
para aproximar-se e vê-la se aproximar sem fazê-la adúltera, porque
agora pode beber nas fontes da cidade de Deus sem sujá-las e tem a
impressão que agora todas as coisas estão em paz.
Louco...
Mas ela seguiu adiante beijando sem se importar com o sabor que
emanava ou com o jardim futuro nem com o que Gerard estava pensando.
A entrega que supõe o amor a atravessava.
Eis a bauínia. Sarita saberá e mandará recado, que tome muito chá.
O perfume das acácias será igualmente terapêutico um dia. E aqui um
movimento não muito diferente de qualquer movimento cotidiano. As
portas da casa, como você vê, nunca estão fechadas. Tem seus
inconvenientes – a entrada de mariposas, mosquitos e morcegos, por
exemplo – mas quem se importa se tudo tem seu preço e naturalmente a
liberdade. Essa porta de cerejeira escurecida com retângulos verticais e
um no centro, na horizontal, trabalhados com esmero que a senhora Lens
admirou longamente na primeira visita na qualidade de sogra. Que
surpresa boa, entre, vou chamar Michele. Nesse dia ela se adiantou no
limiar com uma graça menos espontânea que a corriqueira; mas eram
discerníveis como sempre a simplicidade e o decoro. Então, mãe, o que a
senhora achou? nem parece aquela casa não é? Fiz o capucino que você
gosta, vamos para a mesa. Michele apresentará a disposição dos
aposentos na casa e dos móveis nos aposentos e das coisas nos móveis –
a senhora Lens se impressionou com a televisão enorme pois nunca vira
uma TV de tela plana. Também olhou com quase espanto para o fogão de
acendendor elétrico, autolimpante. Tudo bem que não é nenhuma
novidade pra você, filha, mas pra mim é como se tivesse sido inventado
ontem. Então Michele se lembrou com quem estava falando. É que a
senhora sempre teve empregada, e nós tão cedo não. Tão cedo. Quando
Gerard estiver sem emprego e morarem na casa da senhora Lens, a
velha empregada os servirá. Obrigado, Sarita. Era um prazer.
Perfeito.
Victor se rende. Pede que ela continue. Assim. Eles não mereciam,
George e Cati não mereciam a dor de Victor. Não pare.
É uma noite limpa, linda, é uma Celba de paz que eles vêm pela
janela da pousada. Poucos minutos desde a saída da casa dos Lens. Era
um desejo verdadeiro e turvo que compreendia a idéia de consolo mais
que de satisfação e dificilmente poderia portanto satisfazer. O que são
afinal um para o outro? Mas com o efeito do corpo dela é abrasador,
enganam mesmo aquelas roupas escuras que usa. O inferno espreitava
quando dentro da bruma suave um portão rangendo se abriu. Eram
dedos finos e hábeis, de quem digitava bem, de doutora competente. Na
madrugada sombria agora a língua fria como o mar de Celba. Ele, triste
ainda e pelas revelações extenuado, sentiu o bloco esquecido forçando o
bolso, enquanto gemia. Súbito um outro barulho, uma porta. Se assusta.
Ao discernir os vizinhos de quarto se pergunta por que está assim
alterado, são apenas alguns minutos ainda, não mais que alguns minutos.
Gerard fora receber o Fundo de Garantia, viu quando subiram. Não sabia
como se sentir a respeito. Maquinal, à porta do apartamento. Chegou a
encostar o nó do dedo na madeira. Não houve uma batida.
Ainda fascinado (talvez não como no primeiro dia) por seja lá o que
fosse que cercava a senhora Lens, algo não puramente físico mas que
existia por causa do corpo dela, onde está agora que contempla não mais
o ideal proibido mas a deficiência do próprio ideal, não comovente como
antes? Se a inspiração depende do que é material, a inspiração, a mais
imaterial das coisas, tudo passa a ser questionado, num mundo ou no
outro. Você amou, é verdade, foi tocado daquela forma pela visão da
mulher, porque representava libertação da visão de mulheres – e agora o
que significa? Esse vazio. Vê com indiferença a graça (sim, ainda
perceptível) no olhar e nos modos da senhora Lens. Como se registrasse
essa beleza para um outro ser, que por acaso o habitasse; mas se desejos
do visível são carência de criatividade, o desejo do visível que buscava
Michele nos escritos de Silvia estão representados agora na própria
Michele, no desejo dela a que Gerard sucumbia.
O homem que foi bom com ela no princípio não haveria de ser
indiferente com o que se passava agora com Joana. Na verdade, achava
um pouco de exagero dela, pois sua aparência não estava tão má assim,
em noutra ocasião não a dispensaria assim, mas é melhor pagar logo esse
médico antes que se visse enredado numa situação constrangedora de
enfermidade. A julgar pela consulta, estava certo. Estranha terapia de
carícias e a ordem de um desnudamento incompreensível para leigos. Mal
sabe o doutor o quanto ela escolada em qualquer tipo de fantasia, porém
não assim, quando deposita o que resta de esperança de vida em mãos só
dispostas a usufruir de seu corpo como quaisquer outras.
A vila está luminosa depois de dois dias de chuva que não refreava o
entusiasmo dos turistas em final de temporada. A senhora Lens os escuta
indo para a praia, separados um grupo do outro por uma posição dos
ponteiros e um movimento de luz na janela. As cores nos quadros retém
novidade. O azul é mais frio, é aromático, o vermelho não tão quente faz
sonhar. O que se mostrou além da sonolência após o almoço não passou
de uma nuance mal desenvolvida (quando o amor parece repetir o enfado
dos desamores), não chega a supor um tempero especial na refeição que
com Gerard partilharia depois do sexo, a fantasia de tão real chega a doer
como doem os machucados quase curados em lugares do corpo
tendentes a batidas, e por isso jamais saram. Não podia evitar a visita da
filha com o marido e sonhar não é mais tão fácil e as vezes sequer
desejável. O que se mostrou além do estrépito noturno da rodovia recua
ante a noticia do bebê. Talvez traga, como a própria Michele um dia, um
pouco de alegria à sua existência silenciada. Quem sabe um neto
ajudasse também a suportar a tragédia de Silvia, em grande medida sua
tragédia também.
Quando uma palavra cala dentro dela, Oh meu Deus, supôs que não
ia suportar, que péssima hora para passar mal, mas era um luxo a que
não podia se dar, ter um troço em tal momento, então deixa pra lá, pensa
no dinheiro que precisava tirar do caixa eletrônico. E soube enfim que,
quando a noite houvesse descido, estaria tudo terminado, ou quase. Não
parava de pensar na criança. Um filho, pensava; um filho. Alguém mais
para ignorar o sentido da vida, para buscar o inalcançável e perguntar
inutilmente. Pensou como se sentiria acerca de tudo aquilo quando na
manhã seguinte acordasse. Até porque perplexa esteve sentada na
cadeira do quarto em absoluto desconforto que agora cobrava seu preço
em câimbra. Gerard? O marido que não a incomodava. Então por isso.
Que amasse sua mãe, os homens são assim mesmo, ela o pode admitir,
argumentou consigo mesma. Mas sua mãe corresponder aquele
sentimento sujo, era impossível. E como Joana, uma puta vulgar, seria a
escolhida para a confissão? Nessas paredes sujas, nesse lugar infecto.
Viajou então pela profundeza de seus sentimentos e em todos viu sexo e
morte. De súbito a vida subiu a tona. Ei-la ali, mulher perante mulher,
refulge de vida enquanto a escuta. Jamais esteve entre semelhantes
segredos, nunca lhe pareceram atraentes. Eis a vida de que se nutre o
tempo. Eis a vida. Foi então que derramou a primeira lágrima.
– Oi Eduardo. Entre. Mas não diga que esteve aqui na frente de Dona
Rose, ela pensa que Michele vai dormir aqui hoje.
Mas que ele por favor apenas esperasse um instantinho que ela ia se
trocar.
Naquela noite, isso Michele não sabia com certeza mas podia
imaginar, George possuiu a senhora Lens e lhe disse palavras de amor,
prometeu mudar e ser um bom marido, fora a bebida, a maldita bebida...
A senhora Lens fez que acreditou e na verdade gostaria de acreditar, mas
a bebida não modifica a essência das pessoas.
Após ter sumido um tempo enorme, voltou a ser ouvido o barulho do
mar. Ao sul da foz, onde antigamente traficavam escravos, negocia-se
cocaína em casas humildes. Quando acorda pela manha, há silencio na
casa. Michele, menina de seus oito anos, saiu com seu cão pela praia,
esta mesma praia, mas não havia vento como agora, pois as manhas da
vila esqueciam-se no mar parado num espelho. A roupa ainda não tirada
dos varais tremulava, estalando como uma fogueira. Não pudera a
senhora Lens figurar de sublimação todo seu sentimento por Gerard. Tal a
limitação da vontade diante do destino básico. Malgrado suas teorias,
seus sonhos de uma arte melhor, à medida em que era empurrada para a
vida do genro, da qual abdicara ele os prazeres, ela mais se entregava,
qual um afogado que não tem mais forças para lutar contra a correnteza.
Não podia mais e tomou-se de diferente animo, fez-se madura como no
físico. Sua luminescência é a daqueles que se santificam. Pela primeira
vez desde que conheceu Gerard, passa a se preocupar com ele, com sua
saúde, com seus sentimentos, gostaria de saber como ele superava
aquela situação. Falava muito em Deus; estava Deus o fortalecendo? Um
primeiro pretexto, iria visita-los e, quando Michele os deixasse a sós, diria
as palavras.
Ela responde. Diz que está com pressa, deixou muitas tintas
expostas. Mas se Michele deixou recado, é provável que tenha mudado de
idéia, que volte logo. Ele aproveita. Por que ela não espera um pouco?
Realmente estou com pressa... A desculpa morreu na boca da senhora
Lens quando sentiu o pingo da chuva. Concedeu. Entrando, agradeceu as
flores que ele enviara no seu aniversário. Foi só uma lembrancinha, ele
disse, e ela e arrematou sem pensar, por alguma estranha associação de
idéias: Lembra do dia em que chegou? Como poderia esquecer? Eu vi a
senhora pela janela do ônibus, confessou. Uma flor, pensou, olhando os
cachos pendentes da primavera, que luziam. Uma flor — deixou escapar,
constrangido e realizado.
— As flores estão destinadas ao sacrifício por alguns momentos de
beleza... O que sequer é meu caso — disse a senhora Lens, enrubescendo.
Havia qualquer coisa em seu rosto, assim serena e triste. Ela mesma
o sabia mas nunca pôde nunca constatar. Mas constatava que acabara de
mudar. A paz intromete-se nos nervos sem memória. Embora amasse
tanto Gerard, esse amor – uma força trazida intacta desde que a gerara,
por sua muita renúncia – carregava a alegria incomparável do desapego.
O amor saía de si e voltava para si mesmo, para sua fonte e ali, no
coração da senhora Lens, dissiparam-se as nuvens e ela pela primeira vez
na vida conseguia ver. Por terem assim coincidido afeto e circunstância,
as feições de Gerard eram as feições mesmas da vida, da liberdade, e
assim ela se tornara o que era de fato, atingira o fundo de si mesma. E
era a calma, o adágio, a simplicidade, ansiando uma outra parte para
partilhar esses bens adquiridos. Gerard a olhava sem esperar resposta.
—Obrigado, mas não... não sou bonita e não se fala mais nisso.
Por que ainda a olhava assim? Não era mais preciso, ela se
entregaria. Ainda bem, pensou ela, escovara os dentes e fizera bochecho
antes de sair.
Mas o tapa no genro negou tudo quando, ela sentada no sofá, ele
aproximou os lábios dos seus,.
Dali, ela se dobra contra o sofá e a mão procura sua face e uma
outra tentativa se faz, menos afoita, e dessa vez o beijo aceito são as
folhas ao vento lá fora, e de novo o mar, sempre, e agora o céu. O calor
dos universos estava no alento que descia pela garganta da senhora Lens.
Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça. Mas conseguiu falar. Sou velha
pra você.
Não importa o que faça ou como o faça, ela irá adorar e será aquilo
que ela desejou.
Boca e língua e mão, um puxãozinho que não pretende o que parece.
Confiados dedos passeiam ao redor dos tempos arrepiados, ali
encontrarão o necessário aconchego. Ecos de vozes imaculadas que se
repetem porque se aproximam derramam-se pela colina branca e
imensurável, lembram sons de uma esperança remota que ressurge e
insiste, atravessa os limites e procura, invade, feita perspicaz umidade
mais e mais arguta. Tão cedo, ela pressente, não deixarão de se fazer
ouvir. Ela está agradecendo a Deus. Mas por que não se conheceram
antes?
Quem sabe então fosse outra história, e nada do que sentir saudade
no final.
Esse perfil do rosto quase mostra um sorriso, esse perfil do seio não
confessa a idade, o mamilo é a ponta de um de seus pincéis novos.
Corpos femininos são com facilidade conduzidos. Um aperto másculo, ela
não chegara a imaginar essa parte. Vira-se. Ah. Sobe insonháveis alturas;
o frio do vidro da mesa também é sensual; não sei que horas chegarei em
casa. Avisou Sarita? Gostaria de ver o rosto de Gerard agora. Ele precisa
abrir-lhe as pernas um pouco mais, precisa afastar só um tantinho dessa
renda, nem precisará usar as mãos. Ela gostou do tom desse esmalte. Ali
está uma parte de seu rosto. Amor... Ele parece realmente não ligar que a
calcinha não seja nova, na verdade é bem surrada. Mas ela se lembra
quando comprou, se está assim usada é justamente porque a adora. Sim,
um homem especial.
Uma das pedras no peito banhada pelo mar; do outro lado, o monte
coberto pelas nuvens ralas – ondas que se agitam em malha.
Que palavras são essas? Deixe que ele as entenda com sua boca e
interprete com sua língua. Quatro dedos dentro e o polegar por fora da
calcinha. Ele precisa antes que ela, e não ele. Sente-se mais que amada,
idolatrada quase. É quase impossível imaginar como quem pode desfrutar
da rigidez de Michele se interessaria por sua mãe de modo tal. Mais tarde
ele contará de seu ciúme de George e definitivamente ela não poderá
entender. A primeira vez que Michele, recém nascida, buscara o seio da
mãe, encontrou dificuldades. Era de manhã e, olhando a menina, pensou
que era feliz. Seus cabelos eram como fogo na colina. Ah se ele não se
demorasse tanto assim... Todavia, a idéia era precisamente essa.
Agora quer que ela levante? Que ponha a perna sobre a mesa? Que
grite assim e se transtorne a esse ponto? Não, nunca poderia imaginar, o
amor é um tipo de profecia. Dedos entrelaçados na textura azul, profunda
e terrível, e o oceano e os caminhos incendiados de pôr-do-sol e o
tamarindeiro bem na frente da pousada, ali por onde outros adolescentes
usam todos os artifícios para serem notados e suas inquietações
acalmadas por um período curto e irritado e – ah – agora ele quase a pega
no colo pelo instante da mudança, ela ajuda com as palmas na serenidade
do carpete, e sim ela levantou e pôs a perna direita sobre o vidro da
mesa, ele pára um pouco como se estivesse diante da decisão mais
importante de um grande projeto. É noite. Ela permite, cora, evita olhar
para ele, porque tanto prazer tem de ser algo errado. Ele prefere não
passar ainda pelo portão e olhar ainda antes da mureta o pátio do recreio
e da morte.
Seja como for, partilham a terra que ser humano algum enfrenta de
peito aberto; passeiam pelos jardins com as suas histórias, sob o mesmo
céu com sonhos diferentes, caminham por semelhantes praias como se
estivessem expulsando todas as demais do vasto mundo. Ele de bocas,
tato, arte e orientações; ela junto à gavinha que, em suspenso, recolhe
ventos e chuva mas espera ainda a estação. Ele de conexões velozes
transportando as informações sem palavra, embora “amor, amor” esteja
gritando; ela dos elos, do balouçar das ramas submersas, das grandes
auréolas, da ponta túmida – sim, retiram do mundo todo excesso.
E ele, sensível, faz com que ela própria, com a própria mão,
mantenha o mundo preparado, enquanto finalmente se despe de qualquer
ardil. Ela entende. Deixara-se cair nesse inesquecível carpete, sentada,
agora se ajoelha e não vacila, não se detém por falso ou verdadeiro
pudor. Chega afinal o seu momento. Ele merece. Merecemos. E
naturalmente se faltava algo para que o mar crescesse mais, ali está à
janela, cheio, pleno e de luares transpassado.
Quisera que dali ela não se movesse mais, a mais bela imagem que
se congela. O olhar distante encontra o alivio que alguns chamam
felicidade. Merkur Bay. O navio atracara no dia anterior. Quando um outro
navio atracar terá se consumado a esperança? Imerso no verde dos olhos,
Gerard batiza-se. O pijama possui um quê pictórico; fica melhor assim,
emprestado. Perderia no decorrer da vida aquele deslumbramento? O
coração dentro do peito batia bendito. De volta, sentada na beira da
cama, o pé esquerdo apóia-se sobre o assoalho. A senhora Lens se
permitiu espreguiçar. Vidros batidos, escuros. Um recorte de janelas qual
o de igrejas. Cada casa com seu poste e cada poste com seu relógio de
luz. Então conheceu a solidão, quando soube que jamais estaria só de
novo, o quanto fora sozinha.
Disparos.
A mulher está estendida sobre o sofá, muito magra, pálida, podia ver
o caminho das veias azuis. Abeirando-se da cama, Gerard sentou-se.
Murmurou o nome dele com o fio de voz que lhe restava. Por que o amor
deve morrer?
O quê?
– Seu amor.
Como uma mulher pode ser amada assim e morrer? Eu não quero
morrer, diz. Ela quer estar para sempre com Gerard... Pediu que ele lhe
prometesse...
Que à meia noite dos dias 31, quando estiverem festejando o ano
novo, à beira mar ele levante o pensamento para ela no momento da
passagem, mesmo que esteja com outra. Oh não, não é justo. Ele não
pode ter outra...
Com ou sem o contágio, já lhe dissera, ele não lhe sobreviverá muito
tempo.
É por demais piegas. Keshia realmente acha que sim e diz isso ao
avô. É irreal, disse mais, uma coisa assim, quero dizer, esse tipo de
declaração e de pacto. Fazia anos que esperava por aquele dia, quando
por fim recebeu o recado e foi visitá-lo. O senhor Aleksander olhou-a
compassivamente. As coisas tinham de ser desse modo. Só essa solene
intensidade de vida e de arte que os dias de hoje tornaram piegas,
inconcebível, permitiam não enlouquecer. Na verdade, ele nem precisaria
ter dito isso.
A felicidade...
Ela pede que ele não a olhe dessa maneira. Que parta.
— Ficarei.
Apertou-lhe as mãos.
Onde estão?
Em casa.
As petúnias floriram?
Uma lástima que houvesse descoberto tão tarde que um jardim é tão
eficiente terapia.
E os beijinhos?
Gerard sorri.
E a caliópis?
—Nossa casa...
—Nossa casa.