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ENSAIO INTRODUTÓRIO

Tipologias no estudo quantitativo das cartas de alforria no Brasil do século XIX: escolhas e olhares

Priscilla Santos

As tipologias são usadas para organizar/classificar possibilitando uma quantificação Estudo


sistemático de tipos, método utilizado pela arquitetura, biologia, antropologia ou lingüística, é também
ferramenta útil para levantamentos no campo da história quantitativa. Serve, se valendo de modelos
matemáticos, ao processo de reconstituição do passado, tomando a parte pelo todo – numa certa
extrapolação – sendo probabilístico; unidades homogêneas e comparáveis, toda série é marcada por
seu caráter repetitivo.

Nenhuma metodologia é inocente, prega François Furet1 a respeito da feitura da história


quantitativa. O agrupamento dos tipos semelhantes dentro da fonte serial selecionada irá contar de
uma escolha que, consciente ou inconscientemente, está a serviço das hipóteses e dos questionamentos
do historiador. A formação de grupos de dados que serão contrapostos a outros grupos – sempre num
sentido antitético ou excludente a respeito de seus traços principais – é a revelação do olhar do
pesquisador sobre seu tema. Nesse sentido, aplicar nos estudos quantitativos realizados sobre as
cartas de alforria no Brasil essa ou aquela opção tipológica ficará implicado, automaticamente, expor
seu posicionamento ante o universo escravista; uma discreta profissão de fé.

Nesse pequeníssimo ensaio introdutório, procurarei fazer o levantamento de algumas


tipologias utilizadas para a análise da sociedade escravistas buscando identificar seus ângulos de visão
e, por conseguinte, que questões supõem. Os trabalhos levantados se referem ao século XIX não
importando a região ou o recorte temporal usado. A decisão sobre quais autores seriam analisados foi
arbitrária estando condicionada às produções que despertam meu interesse e a disponibilidade de
textos ao momento em que escrevo.

Dois grandes modos de análise: a questão do ônus como núcleo das abordagens

O método classificatório escolhido pelos autores que analisam quantitativamente as cartas de


alforria possui, eles mesmos, sua tipologia. Os dividirei – inocentemente – em dois grupos quanto a
escolha dos CONJUNTOS RAÍZES a serem trabalhados: os que partem das pagas e gratuitas como
universos numéricos particulares e os que consideram a tríade pagas, gratuitas e com condição de
serviço como universos particulares sendo geralmente onerosas tanto as pagas quanto as que
exprimem condição de serviço.

1 FURET, François Oficina da História. Lisboa, Gradativa Publicações. s/d

1
A discussão está centralizada na questão do ônus engendrado ou não pelas manumissões.
Percebo que tradicionalmente é instrumentalizada a proposição feita pelo jurista Perdigão Malheiro
em A Escravidão do Brasil onde ficam distintas duas formas de liberdade: a onerosa e a gratuita. Por
onerosa seriam entendidas as alforrias entregues mediante uma compensação monetária e como
gratuita, como já está indicado, sem compensação monetária. Utilizei o termo ―tradicionalmente‖, mas
se, ao invés dele, fosse posto ―imemorial‖ não seria algo tão estranho (embora academicamente
deselegante); digo com isso que, mesmo fundamentados nessa clássica proposta de Malheiro, os
trabalhos tipológicos não contam nem com um debate nem com uma justificativa autoral
minimamente satisfatória para a escolha.

Métodos

Trabalhar o estudo dos tipos de manumissão a partir da proposição de Malheiro implica em um


ângulo de observação onde fica privilegiada a questão monetária nas negociações para obtenção da
liberdade. Longe de mero economicismo, a solução tipológica PAGAS e GRATUITAS atenta-se para as
possibilidades de formação de pecúlio seja através do trabalho, da articulação de parentes, amigos e
irmandades, de esmolas, trapaças e etc, bem como a de perceber o peso da contrapartida monetária
naquela sociedade e sua relevância+significado na obtenção de uma carta.

Implícita nessa escolha pode estar a discussão sobre a pobreza e a abastança no Brasil Imperial,
sobre as práticas cotidianas do mercado, sobre a importância do ressarcimento pela perda da
propriedade entre outras.

Carlo Guimarães Monti é um dos adeptos dessa classificação e se insere nos trabalhos atuais
que utilizam o termo pleno. Estudando os casos de Mariana, ele explica seu método:

As cartas de alforria constituíram um sistema de liberdade representado por várias formas, mas
basicamente se considera a alforria em dois grupos: um no qual há um ônus econômico e outro
em que isto não ocorre, mas não significa que algum tipo de compensação deixava de ser dada ao
senhor. Quando não ocorreu ônus econômico, a alforria é considerada gratuita — 38,79% ou
135 cartas. [...] A alforria gratuita em alguns casos impunha condições ao futuro liberto (17,77%
das cartas) [...]. As condições impostas ao alforriar um escravo eram normalmente expressas
por serviços, que são 50% das condicionais, o restante é relativo a uma variedade de
exigências. Em alguns casos as alforrias condicionais por serviços definiram a tarefa a ser
cumprida, assim como o tempo que o liberto ficaria à disposição do seu ex-senhor, o que poderia
se estender até a morte de quem deu a alforria. [MONTI, 2001, grifos meus]

Buscando resolver as estrapolações à qual essa escolha dual fica sujeita, José Roberto Góes
desdobrou-a em subtipos que dessem conta das alforrias INCONDICIONAIS e CONDICIONAIS. Essa

2
última, ato contínuo, se desdobram em outras categorias SERVIR e OUTRAS CONDIÇÕES. A solução
de Góes é justamente o ponto de interseção entre a classificação de Malheiro, inútil para nosso hoje ao
não conseguir abarcar a complexidade daquele processo histórico; a marcação das diferenças dos tipos
PAGAR e SERVIR deixam ver uma sutil análise do pagamento como não sendo simplesmente ônus,
mas parte mecânica e naturalizada do regime, mercado enfim. O ônus estaria em servir, pagar é
simplesmente parte do jogo, assim como não pagar o poderia ser.

Natureza das cartas de alforria no Rio de Janeiro (1840-1871)

Incondicional

Cartas gratuitas Prestar serviço

Condicional

Outra condição que não a


de servir

Incondicional

Cartas pagas Prestar serviço

Condicional

Outra condição que não a


de servir

[GÓES, 2006, p. 526]

O segundo grupo é igualmente inspirado por Perdigão Malheiro, a diferença de sua abordagem
está em levar o conceito de ônus para além do pagamento monetário colocando também os usos do
trabalho daquele pretendente à liberto como uma carga, um prejuízo. É assim escolhem para a análise
os conjuntos CARTAS PAGAS PLENAS, GRATUITAS PLENAS, COM SERVIÇO. Por ―plenas‖ são
entendidas as manumissões onde se deve pagar ou não, simplesmente, sem nenhuma (outra) condição
onerosa.

Para sucesso dos fins quantitativos, ficam excluídas dessa modalidade as cartas que expressam
uma condição perceptivelmente não-onerosa para o escravo como educação e cuidados à saúde.
Infelizmente essa ressalva tão essencial escapa a alguns autores: Mary Karasch (1987) afirma que

A alforria condicional exigia certos serviços de um escravo, com freqüência até a morte do dono
[...] Somente se cumprisse a condição de prestar serviço bom e leal até a morte dono é que o
escravo ou escrava receberia a liberdade. Até mesmo donos jovens libertavam condicionalmente

3
escravos, para garantir um serviço obediente durante toda vida. Os documentos revelam que
muitos escravos serviam durante anos sob alforria condicional. [KARASH, 1987, p.459 e 460]

E segue especificando algumas outras modalidades de alforria condicional, todas


perceptivelmente maléficas aos pretendentes à liberdade. Na Tabela 11.11 de ―A vida dos escravos no
Rio de Janeiro‖, encontramos a forma gráfica de sua tipologia:

Forma de Alforria
Leito de Morte
Condicional
Incondicional
Comprada
Autocomprada
Comprador Desconhecido
Por Terceiro
Ratificada
Duas ou mais
Desconhecida

[KARASCH, 1987, p.460. Tabela adaptada]

Pode-se depreender da escolha da brasilianista que as condicionais possuem apenas uma única
espécie – o grupo não se desdobra em subtipos como acontece com a análise das pagas – e que seu
caráter, como fica claro no texto, é sempre desvantajoso.

A mesma conclusão e a mesma omissão é encontrada em trabalhos recentes, como o de Márcio


Jesus Sônego:

Para uma melhor análise dos tipos de alforria, foram feitas as seguintes tipologias: alforrias
plenas pagas, em que o próprio escravo comprava sua alforria, ou pagas por terceiro, em que
outra pessoa comprava a alforria do escravo; alforrias plenas gratuitas, concedidas sem ônus ou
condição, e alforrias condicionais, em que o alforriado ficava obrigado a prestar algum tipo de
serviço ao senhor. [...]

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Tipos de alforria na cidade de Alegrete (1832 a 1847)

Tipos de alforria

Alforrias plenas pagas


Alforrias plenas
gratuitas
Alforrias condicionais
A tabela mostra que 21,73% das alforrias foram pagas, 33,33% gratuitas e a grande maioria
(44,92%) condicionais, ou seja, o escravo alforriado continuava a prestar serviço ao senhor de
algum modo. [SÔNEGO, 2007, p. 147 e 148. A tabela foi adaptada, grifos meus]

Indo com mais delicadeza à análise, Manolo Florentino propõe, em sua tipologia tripartida, a
separação das cartas cujo teor não necessariamente tratam de um malefício ao escravo filtrando as que
tem por condição expressa prestar serviços ao senhor – independente de por quanto tempo ou a quem.
Demarca assim sua posição sobre as possibilidades: algumas condições são claramente onerosas, mas
as que podem não ser (como as OUTRAS CONDIÇÕES de Góes) não devem entrar na contagem, não
são úteis ao seu olhar.

Distribuição (%) dos tipos de cartas de alforria, Rio de Janeiro (1789-1864)

[FLORENTINO, dez 2002, p. 19]

Em trabalho sobre a escravidão no alto sertão baiano, na região do Rio de Contas, Kátia Lorena
Almeida chegou a uma tipologia de tons um pouco diferentes das já faladas até agora.

O senhor, além do pagamento, podia impor condições. Por sua vez, tais condições não se
resumiam a um acordo monetário, implicando, outrossim, em um acordo de lealdade e
fidelidade por parte do escravo. Distinguiremos estes tipos de alforria em ―pagas condicionais‖ –
quando, além do pagamento, o senhor estipulou uma condição a ser cumprida – e ―não-pagas

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condicionais‖ – quando não houve ônus financeiro para o escravo, mas este seria obrigado a
cumprir uma condição qualquer para concretizar a alforria. Assim, o senhor podia negociar a
liberdade de um escravo com a contrapartida de serviços, por um prazo de tempo determinado
ou durante toda a sua vida. [ALMEIDA, 2007, p.166]

Graficamente expressa sua ideia:

Pagas Incondicionais
Onerosas
Não-pagas
condicionais
Pagas condicionais
Gratuitas
Não identificada
Com esse panorama
básico em mãos, fica aparente que a tipologia montada por Góes é uma espécie de retomada ao
tradicional/imemorial paradigma de Perdigão Malheiro que, em contato com a tipologia baseada no
pagamento e no serviço como prejuízos, digamos, óbvios aos alforriantes, formulou uma síntese que é
ferramenta versátil para os mais diversos olhares que se inventem. Traz ainda o bônus de passar ao
largo da vala estatística comum onde se jogam os que só percebem a escravidão como um período
onde só o mal subsiste2.

2
Um incompreensível exemplo disso, e que ponho mui respeitosamente, é o de Gabriel Aladrén que, trabalhando vastamente
com os escravos nas paragens do Sul, declara: em minha opinião todas as alforrias eram onerosas para os escravos.
[ALADRÉN, 2009, p.46]

6
ALADRÉN, Gabriel Liberdades Negras nas Paragens do Sul. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.

ALMEIDA, Kátia Lorena Novais Da prática costumeira à alforria legal. Bahia

FLORENTINO, Manolo Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista: notas de pesquisa. Topoi
nº5. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002,

FURET, François Oficina da História. Lisboa, Gradativa Publicações. s/d

GÓES, José Roberto. Padrões de alforrias no Rio de Janeiro – 1840/1971. In: FRAGOSO, João;
FLORENTINO, Manolo [et. al.] (orgs). Nas rotas do Império. Vitória: EDUFES, Lisboa: IICT, 2006.

MONTI, Carlos Guimarães Por amor a Deus: o processo da alforria dos escravos de Mariana (1750-
1759) In: Revista do Centro Universitário Barão de Mauá, v.1, n.1, jan/jun 2001 .

SÔNEGO, Marcio Jesus Ferreira Cartas de Alforria em Alegrete (1832-1847) Biblos, nº22. Rio Grande
do Sul, 2008.

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