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DAVID HARVEY ESPACOS pe ESPERANCA Titulo orgina ‘Spaces of ope David Haney, 2000, Edinburgh University Press, Edinburg ISBN 0-7486-1260-5 Preparacio: Mauricio 8. Leal Capa: Viviane Buano Jronimo Diagramagio: AdemirPorere Revisi ia Lopes Esigaes Loyola Josutas Rus 1822, 341 Ipiranga (4216.000S50 Foul, SP 175511 3388 80 5511 2053 4275, editorialalayola combr vendas@loyala.somn be ‘wo loycla.com.be Teco dco zeros. Mh pare dss apo we RESEE Teron or meer Yome sow ae Teter or acincn undo ftecoi 055) ‘Tre om gator toms ou bane de ad sam porns san o7eas.1s02972.3 4" edigior Fevereiro de 2011 © EDIGOES LOYOLA, Sto Paulo, Brasil, 2004 Capitulo 4 A globalizagao contemporanea Az cenca de vinte anos que “globalizagio” se tomo uma palavra-chave para a organizagéio de nossos pensamentos no que respeita ao funcionamento do mundo. Como e por que ela veio a desempenhar tal papel é em si mesmo uma hist6- ria interessante. Desejo aqui, contudo, concentrar-me nas impli- cages teéricas e politicas da ascensao de tal conceito. Comego com dois conjuntos gerais de questies a fim de destacar 0 que se afigura como importantes mudangas politicas nos discursos (se bem que nao nas realidades) ocidentais. 1. Por que a palavra “globalizagio” entrou recentemente em nossos discursos da maneira como o fez? Quem a introduziu neles, por que ¢ através de que projeto politico? E que im- portincia tem o fato de, mesmo entre muitos “progressistas” ¢ “esquerdistas” do mundo capitalista avangado, palavras bem mais carregadas politicamente, como “imperialismo”, “colonialismo” e “neocolonialismo”, terem passado eres centemente a ter um papel secundério diante de “globali- zacao” como forma de organizar pensamentos e de explorar possibilidades politicas? 2, Como o conceito de globalizagio tem sido usado politica- mente? Terd a adogdo do termo indicado uma confissio de impoténcia da parte de movimentos nacionais, regionais e locais da classe trabalhadora ou de outros movimentos anti- capitalistas? A crenga no termo teré funcionado como uma DesexvoivinenTos GEOGRARCOS DESIGUNIS forte contengao da agao politica localizada e mesmo nacional? Teré a forma de solidariedade até entio representada pela nagio-Estado se “esvaziado” como alegam hoje alguns? Serdo todos os movimen- tos de oposigdo ao capitalismo no ambito das nagdes-Estado e em unidades espaciais nelas contidas engrenagens tio insignificantes da vasta maquina global infernal do mereado internacional que jé nao hé espago para manobras politicas em parte alguma? Vistos clessas perspectivas, 0 termo “globalizagio” ¢ toda a bagagem que a ele se associa se acham profundamente embebidos de implicags politicas que constituem um mau prességio para a maioria das formas tradi- cionais de politica esquerdista ou socialista. Contudo, antes de o rejeitarmos uo abandonarmos por inteiro, é «til submeter a um acurado exame aquilo que 0 termo incorpora e aquilo que podemos aprender, tanto em termos te6ricos como politicos, com a breve histéria de seu uso. es 1. A globalizagiio como processo A globalizagao pode ser vista como um processo, como uma condigsio ‘ou como um tipo espeeifico de projeto politico, Essas diferentes aborda- gens da globalizagZo nao so, como espero mostrar, mutuamente exclusi~ vas. Mas proponho comegar considerando-a um processo. Vé-la assim nao presume que o proceso seja constante nem impede de dizer que ele, por exemplo, entrou num estégio radicalmente novo ou chegou a uma condigéio particular ou mesmo “final”. Do mesmo modo, essa maneira de ver a globalizacao ngo a “naturaliza”, como se ela tivesse surgido sem agentes discerntveis trabalhando para promové-la. Porém, assumir o angulo fun- dado no proceso faz que nos concentremos, em primeira instneia, no modo como a globalizagao ocorreu e esta ocorrendo. O que vemos entao é que algo assemelhado a “globalizagio” tem uma longa presenga na hist6ria do capitalismo. Nao hé diivida de que desde 1492, e mesmo antes disso, a internacionalizagio das trocas e do coméreio estava em pleno florescimento. O capitalismo nao pode sobreviver sem seus “ajustes espaciais” (cf. capitulo 2). O capitalismo tem recorrido repetidas vezes fi reorganizagdo geogrifica (tanto em termos de expansio como de intensificagdo) como soluc&o parcial para suas crises e seus impasses. Assim, ele constréi ¢ reconstréi uma geografia A sua propria imagem e se- melhanga. Constréi uma paisagem geogrifica distintiva, um espago produ- 80 ‘A GLOBALIZAGAO CONTEMPORANEA zido de transporte © comunicagses, de infraestruturas © de organizagées territoriais que facilita a acumulagio do capital numa dada fase de sua his- t6ria, apenas para ter de ser desconstruido e reconfigurado a fim de abrir caminho para uma maior acumulacio num estégio ulterior. Se, portanto, a palavra “globalizacao” significa alguma coisa relativa & nossa geografia histérica recente, é bem provével que designe uma nova fase de exatamente esse mesmo proceso intrinseco da produgio capitalista de espaco. ‘Nao pretendo rever todo o vasto volume de eseritos que tratam dos aspectos espaciais e geogréficos do desenvolvimento capitalista e da luta de classes (mesmo que essa fosse uma tarefa vidvel). Mas julgo de fato im- portante reconhecer uma série de tensdes ¢ conciliagées frequentemente incémodas referentes & compreensfio teérica e politica da dindmica geogré- fica da acumulagao do capital e da luta de classes. Como mostram, por exemplo, a controvérsia entre Lenin e [Rosa] Luxemburgo com respeito & questio nacional, a vasta controvérsia sobre a possibilidade de haver so- cialismo num tinico pafs (ou mesmo numa s6 cidade), 0 comprometimento da Segunda Intemacional com o nacionalismo na Primeira Guerra Mundial ea subsequent oscilagao do Comintern [a Internacional Comunista], por ‘um bom periodo, quanto a interpretagao de seu proprio internacionalismo, ‘© movimento socialista/comunista nunca conseguiu elaborar, nem politica nem teoricamente, uma compreensio adequada ou satisfatéria do fato de a produgéo de espaco ter sido um aspecto fundamental e intrinseco da dindmica da acumulagao do capital e da geopolitica da luta de classes. Um estudo do Manifesto (capitulo 2) indica uma fonte essencial do dilema em pauta, Porque, embora seja claro a busca da dominag&o por parte da burguesia foi ( 6) uma questo sobremodo geogréfica, causa espécie a reversdo quase imediata que ocorre no texto do Manifesto a um relato puramente temporal ¢ diacrénico, Ao que parece, é dificil ser dia- ético quando se aborda o espago, o que na prética leva muitos marxistas a seguir Feuerbach na ideia de que o tempo é “a categoria privilegiada do praticante da dialética, dado que exclui e subordina af onde o espaco tolera € coordena” (Ross, 1988, p. 8). Mesmo a expressio “materialismo hist6- rico”, observo, apaga a importdneia da yeografia, e se venho me empe- nhando nos iiltimos anos para implantar a ideia do “materialismo histé- rico-geografico” € que a mudanga dessa terminologia nos prepara para olhar com mais flexibilidade e, espero, mais coeréneia a significagdo em termos de classes de processos como a globalizacao ¢ o desenvolvimento aL DDrsexvolvimeNTos GEOGRARICOS DESIGUAIS -geografico desigual (Hanvey, 1996). Temos necessidade de maneiras bem melhores de compreender, ainda que nao de resolver politicamente, a tensiio subjacente que opie aquilo que muitas vezes degenera quer numa teleologia temporal de uiunfalismo de classe (em nossos dias representa do pelo triunfalismo da burguesia contido na declaragio do fim vitorioso da historia), quer numa fragmentagio geogrifica que parece incoerente € incontrolivel, de um lado, ¢ outras formas de luta social travadas nos mais, remotos recantos perdidlos da terra, de outro. Por exemplo, desde que Marx escreveu a esse respeite, tem sido oferecida uma variedade de relatos sobre como o capitalismo tem estru- turado sua geografia (como a teoria do imperialismo desenvolvida por Lenin, a caracterizagao que Rosa Luxemburgo faz do imperialismo como 0 salvador da acumulagao capitalista, a descrigao que fez Mao das contra- digdes primérias e secundérias da luta de classes). Esses escritos foram depois complementados por relatos mais sintéticos da acumulagio do capital em escala mundial (AwiN, 1974), da produgdo de um sistema capitalista mundial (WALLERSTEIN, 1974; ARRIGHI, 1994), da emergéneia do subde- senvolvimento (FRANK, 1969; RobNEY, 1981), da troca desigual (EMMANUEL, 1972) ¢ da teoria da dependéncia (Cannos0, FALErT0, 1979). Com a disse~ minacao de ideias ¢ préticas politicas marxistas por todo o globo (num proceso paralelo de globalizagio da luta de classes), foram produzidos indmeros relatos locais/nacionais de resisténcia as invasdes, as disrupgdes © aos projetos imperialistas do capitalismo. ‘Temos por conseguinte de reconhecer a dimenséo ¢ 0 fundamento geogrificos da luta de classes. Como sugere Raymond Williams (1989, p. 242), a politica esté sempre intrinsecamente presente em “modos de vida” e “estruturas de sentimento” peculiares a lugares e comunidades. O universalismo a que o socialismo aspira tem portanto de ser construido por meio da negociagao entre diferentes exigéncias, preocupagies ¢ aspi- ragGes vinculadas a lugares especificos. Tem de ser abordado por meio do que Williams denominou “particularismo militante”. Ele pretendia designar com essa expresstio 0 candter peculiar e extraordinario que tem a auto-organizagaio dos tra- hathadores... de vineular lutas particulares a uma lula geral de um modo extremamente especial. Ele se propés, como movimento, a tomar real a alegacdo & primeira vista fora do comum de que a defesa e a promogao de certos interesses particulares, adequadamente unificados, sio na verdade de interesse geral (itélicos meus). ‘A GLOBALIZAGAO CONTEMPORANEA Mesino relatos temporais da luta de classes revelam ser territorial mente delimitados. Mas tem havido pouca preocupagiio em justificar as divisées geogrificas em que se haseiam esses relatos. Assim, temos intime- 10s relatos da formagao das classes trabalhadoras inglesa, galesa, alema, italiana, catala, sul-africana, sul-coreana etc., como se os respectivos paises fossem entidades geogréficas naturais, Dé-se atengdo aos desen- volvimentos de classe no ambito de algum espaco circunscrito que, quan- do submetido a um escrutinio mais detido, se mostra como um espago inserido no espago internacional dos fluxos de capital, do trabalho, da informagao e assim por diante, sendo cada um deles composto de grande rtimero de espagos menores, todos dotados de suas préprias caracterfsti- cas regionais, e mesmo locais, distintivas, Quando examinamos com alenedo a aco descrita no magistral relato feito por Edward Thompson em A formacao da classe operdria inglesa, por exemplo, vemos que essa agdo se compée de uma série de eventos altamente localizados muitas vezes unidos espacialmente de maneira bastante frouxa, Pode ser que John Foster tenha tornado as diferengas um pouco mecéinicas demais em sua propria deserigdo, A uta de classes na Revolugio Industrial, mas a meu ver inegdvel que a estrutura de classe, a consciéncia de classe € a politica de classe de Oldham, Northampton ¢ South Shields (leia-se Colmar, Lille, St. Etienne ou Minneapolis, Mobile ou Lowell) foram cons- trufdas e postas em prética de maneiras bem distintas entre si, o que torna as diferengas geogrificas no interior da nagio-Estado algo bem mais ponderavel do que a maioria das pessoas desejaria reconhecer. Esse modo de pensar acriticamente acerca de entidades geogréficas supostamente “naturais” é agora perpetuado em relatos neomarxistas do capital (particularmente os inspirados pela “teoria da regulagéo”) que dao a impressio de que hé versées nitidamente distintas de capitalismo na Alemanha, na Inglaterra, no Japao, nos Estados Unidos, na Suécia, em Cingapura, no Brasil ete. (versées por vezes subdivididas em ordenagées mais regionalizadas como o norte versus o sul na Itélia, no Brasil, na Ingla- terra....). Esses capitalismos distintivos sao ento concebidos como entida- des em competicao entre si numa economia do espago global. Essa concepedo de modo algum se restringe & esquerda. Constitui um procedinento-padrao num amplo espectro de posigées politicas comparar diferentes capitalismos nacionais (japonés, nérdico, alemao etc.), como se fossem entidades dotadas de algum sentido. 8 Desenvowviventos crcRANICOS DESICUAIS Meu argumento aqui nao é caracterizar como errdneas essas distingdes nacionais ou culturais, mas afirmar que se supe facilmente que existem sem reunir nenhuma prova ou argumento em favor desse pressuposto. So, por assim dizer, tidas por certas, quando um pouco de pesquisa mostra serem elas bem mais complexas do que se supde ou to difusas e porosas que tém um caréter altamente problemético. O conceito de “lugar” que Williams invoca revela-se bem mais complicado do que ele mesmo ima ginou. O resultado é uma clara linha de tensio no bojo da maioria dos relatos de mudangas politico-econdmicas. De um lado, temos relatos des- providos da considerago do espago ¢ marcados pela indiferenciagao gcogrilica (a maioria dos quais de cunho teérico em nossos dias, embora ainda sejam abundantes as verses polémicas e politieas, prineipalmente em encamagées direitistas e conservadoras), relatos que entendem 0 desenvolvimento capitalista como um proceso puramente temporal que ruma de modo inexorével para algum destino determinado. Na versio tradicional da esquerda, a luta de classes impele 0 movimento hist6rico para o socialismo/comunismo, tico como resultado (inevitével). Por outro lado, temos relatos geogrificos em que se formam aliangas de classes (0 que costuma envolver uma classe trabalhadora curacterizada por aquilo que Lenin condenou como uma conseiéncia sindical limitadora) para explorar outras aliangas de classes existentes em outras plagas (tendo talvez, como agente uma burguesia compradora). Nesse caso, o imperialismo (ou, inversamente, 2s lutas pela libertagdo nacional ou pela autonomia local) traz a chave do futuro. Supde-se que de alguma maneira esses dois tipos de relatos sejam compativeis entre si. Na verdade, nunca foi tao forte a justificativa tedriea da atitude de ver a exploragao de uma classe por outra como andloga & de uma alianga de classes por outra. E o pressuposto de que lutas para liberar espacos (por exemplo, lutas pela libertacdo na- cional) so progressistas no sentido da lata de classes (tanto para a burgue- sia como para a classe trabalhadora nascentes) néo resiste a uma anélise vigorosa, Ha intimeros exemplos de lutas de libertagao nacional e de classes que se confundem umas com as outras. Que procedimentos usar para desconfundir esse problema? Uma das coisas que a ascensao do termo “globalizagao” & proeminén- cia assinala é uma profunda reorganizacao geografica do capitalismo, 0 ‘que faz os pressupostos das unidades geogréficas “naturais” no Ambito das quais é tragada a trajet6ria histérica do capitalismo terem cada vez a4 A.GLOMALIZAGKO CONTENPORANEA menos sentido (se é que jé o tiveram). Estamos em consequéncia diante de uma oportunidade histérica de aprender o emaranhado que marea a geografia capitalista, de ver a produgao do espaco como momento consti- tutivo da dindmica da acumulagao do capital e da Iuta de classes (em oposigao a algo derivativamente construido a partir dele). Isso nos ofere- ce a chance de nos emancipar dos grilhdes que nos prendem a uma espa- cialidade oculta que tem tido 0 poder opaco de dominar (e por vezes con- fundir) a l6gica tanto de nosso pensamento como de nossa politica. Per- mite ainda que compreendamos melhor que lutas entre classes e interlu- gares com muita frequéncia se interpenetram, e que o capitalismo pode muitas vezes conter a luta de classes por meio de uma estratégia de dividir para governar aplicada a essa luta. Ficamos entéo com mais eondigdes de compreender as contradigdes espagolemporais inerentes ao capitalismo , por meio dessa compreensio, de melhor especular sobre como atacar 0 elo mais fraco a fim de langar pelos ares os piores horrores da tendéneia capitalista de destruicdo violenta, ainda que “criativa”. Como agir nos termos desse programa, tanto em termos te6ricos como politicos? Ha sem diivida claros sinais da propensao a considerar as implicages te6ricas das territorialidades em mudanga e das reterritorializagoes. Uma virtude essencial do Anti-Edipo de Deleuze e Guattari, por exemplo, foi assinalar que a tertitorializagao ¢ reterritorializagaio do capitalismo 6 um processo incessante. Mas aqui, como em tantas outras propostas, a virtude da reespacializagao do pensamento social ocorreu a expensas de rupturas parciais e por vezes radicais com formulagdes marxistas (tanto te6ricas como politicas). Em minha obra, tenho buseado mostrar que hé formas de integrar espacialidades a teoria e A prética marxistas sem recorrer a pro- posigées centrais necessariamente desestruturadoras, embora no curso de tal integraco surja efetivamente todo tipo de modificagées tanto da teoria como da pratica, Permitam-me pois resumir os principais elementos dessa minha argumentagéo. Comego pelas proposi¢ées mais simples que consigo encontrar. Certas tensdes se acham presentes em todo relato materialista do processo de circulagao do capital e de organizagao do processo de trabalho para os fins da extragio de mais-valia. Essas tensdes afloram periédica e inevitavel- mente como intensos momentos de contradigéo hist6rico-geografica. DrsenvoivienT0s GEOGRIFCOS DESIGUNS Em primeiro lugar, o capitalismo esta sempre movido pelo impeto de acelerar o tempo de giro do capital, apressar o ritmo de circulagao do ea- pital ¢, em consequéncia, de revolucionar os horizontes temporais do desenvolvimento. Mas s6 lhe € possfvel fazé-lo por meio de investimentos de longo prazo (por exemplo, no ambiente construfdo, bem como em infra- estruturas elaboradas e estiveis de produgao, consumo, troca, comunica- Ges € coisas desse tipo). Além disso, um importante estratagema para evilar crises reside em absorver 0 capital sobreacumulado em projetos de longo prazo (por exemplo, as famosas “obras péblicas” langadas pelo Estado em momentos de depressio econdmica), o que reduz 0 tempo de giro do capital. Hem eonsequéncia uma extraordindria gama de contradi- ges a circundar a questo do horizonte de tempo no qual funeionam dife- rentes capitais, Em termos histéricos, € 0 momento em que estamos no é excegao, essa tensiio tem se registrado por meio das contradigbes entre o capital monetéiio e financeiro (nos quais o giro é hoje quase instantaneo), de um lado, ¢ os eapitais comerciais, de manufatura, agrério, da infor- mac&o, da construgio, dos servigos e do Estado, Mas é possivel identifiear contradigdes entre facgdes desses capitais (entre o mereado de moedas e ode agées, por exemplo, ou entre proprietirios fundidrios, ineor-poradores € especuladores). Ha todo tipo de mecanismos de coordenagao de dind- micas de capital que funcionam em ritmos temporais diferentes. Contudo, 0 desenvolvimento desigual de tempos e temporalidades de giro, do tipo produzido pela recente implosio de horizontes temporais num forte setor financeiro, pode eriar uma compressio temporal indesejada profunda- mente desgastante para outras faegies do capital, incluindo, é claro, 0 encarnado pelo Estado capitalista. O horizonte temporal imposto por Wall Street simplesmente néo tem como compatibilizar-se com as tempora- lidades dos sistemas sociais e ecolégicos de reproducao de modo respon- sivo. E nfio é preciso dizer que o acelerado tempo de giro imposto aos mercados financeiros 6 ainda mais desgastante para os trabalhadores (envolvendo sua seguranga no emprego, sua formacao profissional etc.) € para o mundo da vida da reprodugio socioecoldgica. Nos dltimos vinte anos, esse ponto de tenséo tem ocupado lugar central na economia politica do capitalismo avangado. Em segundo lugar, o capitalismo sente-se impelido a eliminar todas as barreiras espaciais, a “aniquilar 0 espago por meio do tempo, como diz Marx, mas s6 pode fazé-lo por meio da produgao de um espago fixo. 86 A GLOBALIZAGIO CONTEMPORANEA Logo, o capitalismo produz uma paisagem geogrilica (de relagdes espa- ciais, de organizagdo territorial ¢ de sistemas de lugares ligados por meio de uma divisdo “global” do trabalho e de fungées) apropriada a sua pré- pria dinamica de acumulagio num momento particular de sua hist6ria, simplesmente para ter de reduzir a escombros e reconstruir essa paisagem geografica a fim de acomodar a acumulagao num estigio ulterior. Hé nes- se processo alguns aspectos discerniveis: 1. Redugies do custo ¢ do tempo de deslocamento no espago tém sido uum foco continuo de inovagao teenolégica, Estradas, canais, vias fér reas, forca elétrica, automéveis, transportes aéreos comuns ¢ a jalo séo fatores que tém liberado progressivamente o deslocamento de mer- cadorias e de pessoas das restrigSes impostas pelas friegées da dis- tancia. Inovagées paralelas no sistema postal, no telégrafo, no rédio, nas telecomunicagGes ¢ na Internet levaram o custo da transferéncia de informagGes (se bem que nao de infraestruturas e terminais) para perto de zero. 2. A construgio de infra-estruturas fisicas fixas destinadas a facilitar esses deslocamentos, assim como a darsuporte a atividades de produ- gio, de troca, de distribuigao e de consumo, exerce uma forga bem distinta sobre a paisagem geogréfiea. Ha cada vez mais capital embu- tido no espago como capital-terreno, capital fixado na terra, criando uma “segunda natureza” e uma estrutura de recursos geograficamente organizada que inibe cada vez mais a trajet6ria do desenvolvimento capitalista. A ideia de alguém desmantelando de alguma maneira as infraestruturas urbanas de Téquio-Yokohama ou da cidade de Nova York da noite para o dia e comegando tudo outra vez é simplesmente ridicula. O efeito disso é tornar a paisagem geogréfica do capitalismo cada vez mais esclerética com o passar do tempo, criando-se assim uma enorme contradigao com a crescente liberdade de movimentos. Essa tendéncia se acentua ainda mais na medida em que as institui- ‘ges de lugar passam por uma forte articulagéo e em que as lealdades com relagao a lugares (¢ com as qualidades espectficas estes) passam ser um importante fator da ago politica. O terceiro elemento é a construgdo da organizagio territorial primor- dialmente (mas nao de modo exclusivo) por meio do poder estatal de » regular o dinheiro, a lei e a politica, bem como de monopolizar os meios de coereao e de violéncia de acordo com uma vontade territorial DeseNvowviMeNTos GEOGRAFICOS DESIGUNS (calgumas vezes extraterritorial) soberana, Hi naturalmente inme- ras tcorias marxistas do Estado, muitas das quais se deixam levar a ‘um grau insalubre de abstraco com respeito & histéria e A geografia que faz parecer que Estados como 0 Gabfio ¢ a Lihéria se acham em pé de igualdade com os Estados Unidos ou a Alemanha, teorias que nao conseguem reconhecer que a maioria das fronteiras entre Estados do mundo foi estabelecida entre 1870 ¢ 1925. Na Europa, havia em 1500 mais de 500 unidades politieas, reduzidas a 23 por volta de 1920, Em anos recentes, esse niimero passou a 50 e poucas, haven- do varias ameagas de secessao. A maioria dos Estados da mundo s6 se tomnou independente depois de 1945, ¢ muitos deles esto buscan- do desde entio se tomar nagées (mas isso se aplicou historicamente 4 Franca e ao México da mesma maneira como a Nigéria ou a Ruan- da em época recente). Assim, embora seja certo que o Tratado da Vestfilia estabeleceu pela primeira vez.em 1648 o prinejpio de acor- do com o qual Estados soberanos independentes, cada um dos quais, reconhecendo a autonomia ¢ a integridade territorial dos outros, devem coexistir no mundo eapitalista, 0 processo de territorializacdo do mundo de acordo com esse prinejpio levou varios séculos para chegar a termo (acompanhando-se de grande grau de violéncia). E 08 processos que originaram esse sistema podem com a mesma faci- lidade executar sua dissoluedo, como alguns comentadores alegam que éde fato o que vem ocorrendo em decorréncia das agbes dle orga- nizagées supranacionais (como a Unido Europeia) ¢ de movimentos de autonomia regional no Ambito das nacées-Estados. Em suma, temos de compreender o processo de formagao e dissolugao de Estados em termos dos instaveis processos de globalizacéio/tervitorializagao. ‘Vemos entéo um processo de territorializago, desterritorializagao e reterritorializagdo agindo de modo continuo ao longo da toda a his- t6ria geogrifica do capitalismo (esse foi um dos pontos fundamentais reforgados por Deleuze ¢ Guattari no Anti-Edipo). Armados com esses conceitos, podemos, ereio, compreender melhor 0 proceso de globalizagao como um proceso de produgao de desenvolvi- mento temporal e geogréfico desigual. E, como espero mostrar, essa mu- danga de linguagem traz algumas sauddveis consequéncias politieas, libertando-nos da linguagem mais opressiva e restritiva de um processo onipotente e homogenizador de globalizacao. 38. A GLosALizaGAo CONTEMPORANES 2. Mudangas recentes na dinamica da globalizagio Com isso em mente, permitam-me yoltar ao possivel sentido do termo “globalizagio” ¢ ao motivo de ele ter adquirido um novo atrativo, tornan- do-se por isso téo importante ultimamente, Destacam-se quanto a isso quatro alteragbes: 1. A desregulamentacdo financeira comegou nos Estados Unidos no co- mego dos anos de 1970 como reagio forgada a estagflagéo que ento ocorria no nivel doméstico e ao colapso do sistema de comércio e troca internacional de Bretton Woods (em larga medida como decorréneia do crescimento descontrolado do mercado do eurodélar). Considero importante reconhecer que a onda de desregulamentagao financeira foi menos uma estratégia deliberada concebida pelo capital do que uma coneessio a realidade (embora alguns segmentos do capital te- nham vindo a se beneficiar bem mais do que outros). Bretton Woods também tinha sido um sistema global, de modo que 0 ocorrido no caso da desregulamentagao financeira foi a passagem de um sistema global hierarquicamente organizado ¢ largamente controlade pelos Estados Unidos a outro sistema global mais descentralizado, coor- denado pelo mereado, sistema que tornou bem mais voléteis as con- digGes financeiras do capitalismo. A retérica que acompanhou essa mudanga (cuja ocorréncia se deu por meio de varias etapas a partir de 1968, mas de modo particular entre 1979 e 1985) estava voltada para a promogio do termo “globalizago” como uma virtude. Em meus momentos de maior cinismo, pego-me a pensar que foi a imprensa financeira que nos induziu a todos (e me ineluo ai) a pensar em “glo- balizagio” como algo novo, quando tudo néo passou de um artificio publicitério destinado a tirar o maior proveito possfvel de um ajuste necessério do sistema financeiro internacional. Coincidentemente, a imprensa financeira vem hé algum tempo acentuando a importancia da regionalizagao dos mereados financeiros, com a esfera japonesa da coprosperidade, o NAFTA e a Unio Europeia como os blocos ébvios de poder — por vezes denominados “a Triade”, Alguns, em que se incluem até promotores da globalizacio, tém alertado para o fato de a“reagio” & globalizaco, cuja forma principal sdo os nacionalismos populistas, ter de ser levada a sério ¢ de que a globalizacéo corre 0 risco de se tomar “um trem sem frei que destr6i tudo & sua passa~ gem” (FRIEDMAN, 1996), DesenvowisenTos GEOGRARICOS DESICUAIS 2, As ondas de profunda mudanga tecnolégica e de inovagao e melhor de produtos que vém varrendo o mundo desde a metade dos anos de 1960 oferecem um importante objeto a toda pesquisa que enfoque as transformagées recentes da economia mundial. Claro que houve uitas fases semelhantes de inovagao tecnoldgica na longa historia precedente do capitalismo. As inovagdes tendem a ocorrer de mans agregadla (por uma variedade de razies frequentemente sinergfsticas). ‘Temos sem dtivida vivido nos tiltimos tempos um tal perfodo concen- trado de mudangas. Mas o que pode haver de mais especial agora € 0 ritmo ¢ o grau de transferéncia e imitagdo de tecnologia entre as, no interior das, diferentes zonas da economia mundial. Parte disso tem a ver com o coméreio global de armamentos, mas a existéneia de elites, educadas e com formacao cientifica capazes de absorver ¢ adaptar conhecimentos e procedimentos tecnolégicos em qualquer e em todo lugar tem alguma relagéo com a rapidez. com a qual novos produtos e tecnologias se difundem mundo afora (o problema da profusao nuclear 6 um indicio disso). Por esse motivo, muitos neste momento julgam que a inovacdo ¢ a transferéneia tecnolégica galopantes constituem a forca mais singular, e ao que parece inexordvel, de promogao da globalizagao. 3. Osistema da mfdia e das comunicagies e, sobretuco, a chamada “re- volugao da informagio” produziram algumas mudangas importantes, na organizagdo do consumo e da produgio, bem como na definigao de desejos e necessidades integralmente novos. A “desmaterializagao do espago” no campo das comunicagies, que é hoje o estagio avan- cado a que se chegou, teve como origem o aparelho militar, tendo no entanto sido apropriada imediatamente pelas instituig6es financeiras epelo capital multinacional como meio de coordenar suas atividades instantaneamente no espago. O efeito foi a formacio do chamado “ci- berespaco” desmaterializado em que podem ser processados alguns tipos de transagdes importantes (primordialmente de cunho financeiro ¢ especulativo). Mas ocorreu também de assistirmos na televisio a revolugdes ¢ guerras em tempo real. 0 espago € o tempo da midia ¢ das comunicacées implodiram num mundo em que a monopolizagao do poder dos meios de eomunicagao vem se tornando um problema cada vez mais grave (a despeito de proclamagées da democratizagao libertéria propiciada pela Internet). A GLOBALIZACAO CONTEMPORANES A ideia de uma “revolugéo da informagao” esté intensamente presente na vida de hoje, sendo com frequéncia vista como a alvora~ da de uma nova era da globalizagio em que a sociedade da informa- Go reinaré suprema (ver, por exemplo, Castes, 1996). E féeil exagerar a importincia disso. A novidade de todos esses elementos causa espécie, mas 0 mesmo ocorreu com a novidade da ferrovia, do telégrafo, do automével, do rédio e do telefone em sua época. Esses exemplos anteriores so instrutives porque cada um deles, A sua maneira, alterou 0 modo de funcionamento do mundo, as possiveis formas de organizagéo da produgio e do consumo, de condugao da politica, assim como as maneiras pelas quais as relacdes sociais entre as pessoas podem ser transformadas, em escala cada ver mais ampla, em relagées sociais entre coisas, E fica claro que as relacées entre trabalhar e viver, no ambiente de trabalho, no ambito de formas culturais, estio de fato mudando celeremente como reago A tecno- logia da informagao. E digno de nota o fato de esse ser um compo- nente essencial do programa politico direitista dos Estados Unidos. A nova tecnologia, disse Newt Gingrich (que tem por conselheiro Allvin Toffler, cujo utopismo direitista tem por tinica e exclusiva hase aideia de uma revolugao de informacao, a “terceira onda”), é ineren- temente emancipatéria, Mas para libertar essa forga emancipat de seus grilhdes politicos é essencial buscar instaurar uma revoluggo polftica para desmantelar todas as instituigdes da sociedade industrial, a “segunda onda” — regulagao governamental, Estado do bem-estar social, instituigées coletivas de negociagao de salérios ¢ assim por diante. Nao podemos passar ao largo do fato de se tratar de uma ver- so vulgar do argumento marxista segundo o qual mudangas nas forcas produtivas determinam as relagdes sociais ¢ a hist6ria. Nem ignorar © forte tom teleolégico que marca essa retérica de direita (lalvez melhor capturado na famosa afirmagio de Margaret Thatcher: “no hi alternativa”), . O custo eo tempo do transporte de mereadorias e pessoas também fizeram aflorar mais uma dessas mudangas de ocorréncia periédica na hist6ria do capitalismo. Liberou-se todo género de atividades de restrigdes espaciais precedentes, permitindo répidos ajustes de loca- lizagao da produgao, do consumo, de populagées ¢ assim por diante. Quando se vier a escrever a histéria da globalizagao, essa simples DrsevowviMenTos GrOoGes#tCos DESIGUAS mudanga no custo da subjugagao do espago poderd ser considerada bem mais importante do que a chamada “revolugao da informagao” perse (ainda que na prética haja entre as duas mudangas uma relagéo intrinseca). Talvez seja discriminatério considerar esses elementos separada- mente, porque, no final, é provavel que a maior relevancia incida sobre as relagbes sinengisticas entre eles. A desregulamentagao financeira, por exemplo, néo poderia ter ocorrido sem a revolugao da informagio, e a transferéncia de tecnologia (que também se alicergou fortemente na revolu- Go da informagao) néo teria feito sentido sem uma facilidade bem maior de circulagéo de mercadorias ¢ de pessoas por todo 0 mundo. 3. Consequéncias ¢ contradigdes ‘As quatro mudangas do processo de globalizagao foram acompanha- das por alguns outros fatores importantes que talvez sejam mais bem pensados como derivados das forgas primérias em agio. 1. Alteraram-se as formas de produgao e de organizagao (em particular do capital multinacional), ainda que muitos pequenos empreendedo- res também tenham aproveitado novas oportunidades, fazendo abun- dante uso dos custos reduzidos do transporte de mercadorias e de informagées. A produgo em outros locais que nao a sede da empre- sa, que tivera infcio nos anos de 1960, tomou-se de stibito bem mais geral (cla alcangou a esta altura, com uma vinganea, mesmo 0 Japao, na medida em que a produgao esta se transferindo para a China ou outras Sreas do Sudeste Asistico). Seguiram a fragmentagao geogréficas dos sistemas de produgao, das divisées ea isso a dispersio e do trabalho ¢ das especializagées de tarefas, embora o mais das vezes emmeio a uma crescente centralizagio do poder corporativo por meio de fusdes, assungies agressivas de controle ou acordos de produgao conjunta que transcenderam as fronteiras nacionais. As corporagées tém mais poder de controlar o espago, tornando lugares individuais bem mais vulneréveis aos seus eaprichos. 0 aparelho de televisio global e 0 carro global tornaram-se um aspecto cotidiano da vida polftico-econdmica. Tomou-se corriqueiro encerrar a produgao num dado local ¢ inieié-la em algum outro — algumas operagoes procuti~ 92 [A CLOBALIZACAO CONTENPORANEA vas de larga escala mudaram quatro ou cinco vezes de lugar nos, Ailtimos vinte anos. . A forga de trabalho assalariada global mais que duplicou nos éltimos vinte anos (ver capitulo 3). Isso ocorreu em parte como decorréncia do répido crescimento populacional, mas também pela inclusdo de uma parcela sempre crescente da populagéo mundial (particularmente das mulheres) na forga de trabalho assalariada em Bangladesh, na Coreia do Sul, em Taiwan ¢ na Africa, bem como, ultimamente, no ex-bloco soviético © na China, por exemplo. O proletariado global alcanga hoje némeros inéditos (o que sem divida acendeu uma forte centelha de esperanga em todo olhar socialista). Mas passou por uma radical feminizago, além de ter se tornado geograficamente disperso, culturalmente heterogéneo e, portanto, bem mais dificil de organizar ‘num movimento trabalhista unificado (ef. o capitulo 3). Nao obstante, 0 proletariado global também esté vivendo em condigées de exploragao bem maior, no agregado, do que ocorria hé vinte anos. . A populacao global também tem passado por alteragées. Os Esta dos Unidos tém agora a maior proporgio de membros naseidos no exterior desde os anos de 1920, ¢ embora se envide todo género de cesforgos para evitar a entrada de emigrados (as restrigdes sio agora bem mais rigorosas do que 0 foram, por exemplo, no século XIX), parece impossivel interromper os fluxos migrat6rios. Londres, Paris e Roma sao hoje cidades com um niimero bem maior de imigrantes do que costumavam ser, 0 que torna a imigeagio um assunto em mais relevante em todo o mundo (incluindo o préprio movimento operdrio) do que em qualquer outra época (mesmo Téquio se vé &s voltas com esse proceso). Do mesmo modo, a organizagio dos trabalhadores ou a instituigdo de uma politica coerente de oposic&o ao eapitalismo, dada a considerdvel diversidade étnica, racial ¢ religiosa ¢ cultural, também gera problemas politicos espeeificos que as nagSes-Estados, em geral ¢ 0 movimento socialista em particular nao tém tido facili dade para resolver. A urbanizagao assumiu as raias de uma hiperurbanizagio, especial- mente a partir da década de 1950, tendo o ritmo de urbanizagao so- frido uma aceleragao que originon uma grande revolugio ecolégica, politica, econdmica e social na organizagao espacial da populagao mundial, A proporeao da populagao global em erescimento que vive nas SES Desexvoiviventos GEOGRARCOS DESICUAIS cidades duplicou em trinta anos, e observamos atualmente macigas concentragées espaciais de pessoas numa escala até agora julgada inconeebivel. Vém se formando cidades e sistemas urbanos mundiais (como os que surgem, por exemplo, em toda a Europa) que tém tido riépidos efeitos de transformagao no funcionamento da economia politica global. Os centros urbanos ¢ suas regides metropolitanas tomaram-se entidades competitivas em mais importantes na econo mia mundial, com todo tipo de consequéncias politicas e econdmicas. . As alteragdes na territorializagio do mundo nfo tém simplesmente como causa o final da Guerra Fria. O elemento que talvez tenha mais importincia é a mudanga do papel do Estado, que perdeu alguns (mas nao toclos) dos poderes tradicionais de controle da mobilidade do capital (particularmente do financeiro e monetério). Por conseguin- te, as operagies do Estado passaram a ser disciplinadas pelo capital monetirio e financeiro num grau inaudito. O ajuste estrutural e a aus~ teridade fiscal tomaram-se a dominante, ¢ o Estado de certo modo viu-se reduzido ao papel de descobrir maneiras de criar um clima favordivel aos negécios. A “tese da glohalizagao” assumiu feigdes de um potente instrumento ideolégico de ataque aos socialistas, aos defensores do Estado do bem-estar social, aos nacionalistas ete. Quando o Parti- do Trabalhista briténico foi obrigado a sucumbir as exigéncias do Fundo Monetério Internacional de implantagao da austeridade, evidenciou-se que havia limites 4 autonomia nacional relativa & politica fiscal (condigao a que também os franceses passaram a atender a partir de 1981). Logo, o bem-estar em favor dos pobres foi em larga medida substitufdo por subvengées ptblicas ao capital (a Mercedes-Benz receben recentemente um quarto de bilhao de délares em subvengées — o equivalente a um subsfdio de 160 mil délares por emprego prometido —, num pacote oferecido pelo estado norte~ americano do Alabama para persuadi-la a instalar-se ld). Mas nada disso signifiea que a nagio-Estado tenha sido “esvazia~ da’, alegagao de autores como Ohmae (1995). A fim de fazer funcio- nar a atual vaga do neoliberalismo, o Estado tem de penetrar ainda mais intensamente em certos segmentos da vida politico-econdmica ¢ tomar-se ainda mais intervencionista do que antes (0 thatcherismo foi em certos aspectos altamente intervencionista). De igual forma, a nagio-Estado também continua a ser uma das prineipais defesas A cLobauizacéo CoNTENPORANEA Contra 0 poder predatério do mercado (como tém reafirmado os fran- Geses descle 1995). Ela 6 igualmente um dos recursos essenciaie de staque” & globalizagio que apela ao nacionalismo populist, A reteritorializacao nao parou no nivel da nagdo-Estado, Tem hhavido uma proliferagdo de insituigées globais de gerenciamento da economia, clo ambiente e da politica, assim como os blocos regionais (como NAFTA e a Unido Europeia) em escala supranacional, havendo ainda fortes processos de descentralizagéo (por vezes coneretizados vel mudanga nas escalas de apreensio, organizagao ¢ administragao da economia mundial. » Mas, enquanto os Estados individuais perderam parte de seus po- deres, 0 que denomino democratizagio geopolitics tem criado novas oportunidades. Aumentaram as dificuldades do exercicio de um poder Aiseiplinador de uma poténeia central sobre outeas poténeias, assim ane aumentaram as facilidades para que poténcias periférices ce telador © um cinico”. Porém, como Marx observa, surge entio uma forte antinomia: embora qualitaivamente “o dinkeiosase conhega limites a sua eficacia”, os limites quantitativos ao dinheiro nas maos Inelhor do que outros. Loge, o contole do trabalho tornemen nan ‘Mesto ideol6gica vital no ambito do argumento da slobalizagao, 96. DrsinvowiMenTos crogsAnicos DESIGUAS pondo mais uma vez na defensiva os argumentos socialistas tradicio- nais. Territérios autoritérios ¢ relativamente homogéneos, organiza- dos de acordo com prinejpios corporativistas — como Cingapura, Hong-Kong e Taiwan — sairam-se irdnica e relativamente bem mama época em que o neoliberalismo e a liberdade de mercado passaram supostamente & ser ainda mais a norma, Mas havia e continua a haver limitagées & consequente dispersdo do poder econdmico capitalista entre nagées-Estados, dado que uma autoridade central dotada de ponderavel poder politico e militar (nesse caso os Estados Unidos) ainda oferece o guarda-chuva sob o qual pode ocorrer uma dispersio seletiva do poder econdmico. ‘A “globalizacdo” gerou aparentemente um novo conjunto de proble- mas politicos ¢ ambientais globais. Digo “aparentemente” porque nao esté inteiramente claro se esses problemas so novos ou se se trata em vez disso do fato de nos termos dado cada vez mais conta deles devido a propria globalizagio. Por exemplo, convivemos ha muito tempo com temores disseminados e episodicamente intensos de um desequiltbrio entre populagio e recursos — 0 fantasma de Malthus, por assim dizer. Tem no entanto aumentado a percepgio, particularmente a partir da publicagao pelo Clube de Roma do relatério Os limites do crescimento em 1972, do esgotamento da flexibilidade antes conferida pela manutengao de vérias fronteiras abertas ao de~ senvolvimento econémico, & migragao, A extragdo de recursos ¢ A instalagdo de recursos antipoluigao. O rapido aumento populacional global, a escalada da poluigao e da geragiio de residuos, a degradagio ambiental e uma modalidade de crescimento econdmico muito prodiga, sendo inequivocamente destrutiva, com relagdo ao uso de recursos nao renovéveis e renovaveis criaram toda uma série de preocupagoes globais. Adicione-se a isso o reconhecimento de que consequéncias ecol6gicas amplas (¢ por vezes globais) podiam decorrer de atividades em pequena escala (por exemplo, o uso local de vérios pesticidas como 0 DDT [Dicloro Difenil Tricloroetano]), bem como de que a escala ascendente do uso de combustiveis fésseis tem exacerbado as mu- dangas climaticas, ou entdo de que a perda de habitats e da biodi- versidade tem softido aceleragio, ¢ fica claro que a questao ambien- tal vai assumir proeminéncia nas preocupagées globais de maneiras até agora no vivenciadas. Hé por assim dizer uma translagdo das preocupagées ambientais tradicionais (por exemplo, acerca do ar © A GLONLIZAGIO CONTENPORANEA da ggua limpos, da conservago das florestas ¢ de ambientes vitais saudaveis) da escala local (com frequéncia urbana ou regional) para uma escala mais global. 8. Hé por fim o espinhoso problema da relagio entre os processos bé- sicos que esbocei e a preservagio ¢ a produgio de diversidades culturais, de modos de vida distintivos, de circunstincias linguisticas, religiosas e tecnol6gicas particulares de modos de produgio, de tro- cae de consumo nao capitalistas ¢ capitalistas. Também no tocante a isso jé havia uma longa geografia histérica de intervengGes, interin- fluéncias e transferéncias culturais, mas a eseala e o grau desses fluxos (a julgar pelos volumes do fluxo de informagées ou dos desloca- mentos de milhdes de turistas, para néo mencionar a circulagio de artefatos especiais, mereadorias e tecnologias pelo globo) sugerem uma nova fase de interpenetragao cultural (caracterizada pela rapidez ¢ pela volatilidade), com importantes consequéncias sobre as formas de pensamento e compreenséo, 0 problema é contudo espinhoso porque é simplesmente demasiado simplista vé-lo como um mero movimento rumo & homogeneidade na cultura global mediante a troea de mercado. Hé abundantes sinais da existéncia de todo género de contramovimentos que variam da propaganda da diversidade cul- tural como mercadoria a intensas reagées culturais influéneia homogeneizadora dos mereados globais ¢ estridentes afirmagées da vontade de ser diferente ou especial. Claro que nfo ha coisa alguma drasticamente nova nisso, exceto talvez o fato bruto de que o mercado global implica que raros sejam os locais ora infensos a influéneias do mercado. A reformulacdo do mapa das culturas humanas da terra segue um ritmo semelhante. A busca do arraigamento geogrélico ‘as numerosas invengdes da tradigao que ocorrem indicam ser esse um campo dindmico da atividade humana cuja dindmica se processa de maneiras um tanto imprevisiveis. Creio no entanto que também inegavel que tudo isso tem sido fortemente movido (ainda que em diferentes diregdes) pelos impulsos da globalizagao capitalista, 4, Sinais dos tempos Podem-se formular duas grandes interrogagées acerca dessas ten- déncias, Embora todos reconhegam, creio, as mudangas quantitativas ae DesexvoivinenTos GEOGRAMICOS DESICUNS ocorridas, o que de fato precisa ser debatido 6 se essas mudangas quan- litativas so, quando consideradas em seu conjunto, pronuneiadas e si- nérgicas © bastante para nos levar a uma era qualitativamente nova de desenvolvimento capitalista que requeira uma revisio radical de nossos conceitos tedricos ¢ de nosso aparelho politico (para no mencionar nos- sas aspiragées). A ideia de que esse 60 caso 6 assinalada primordialmente por todos os “pés-” que vemos ao nosso redor (por exemplo, pés-indus- trialismo, pés-modernismo).. Assim sendo, houve uma transformagao qualitativa a partir dessas mudangas quantitativas? Minha propria resposta é um “sim” qualificado a essa pergunta, seguido imediatamente da assergao de que ndo houve ‘uma revolugao fundamental do modo de produgao e das relagdes sociais ale vinculadas e de que, se hé alguma real tendéncia qualitativa, seu rumo € no sentido da reafirmaco dos valores capitalistas do inicio do século XIX associada a uma inclinagao tipica do século XX1 no sentido de jogar todos (¢ tudo que possa ser trocado) na érbita do capital, ao mesmo tempo que se tornam grandes segmentos da populaggo mundial perma- nentemente redundantes no tocante dindmica bésica da acumulagao do capital. E nesse ponto que entra em cena a forte imagem, reconhecida e ao mesmo tempo temida pelo capital internacional, da globalizagao con- temporinea como “um trem desgovernado espalhando a destruigio”. Ou, como observa um conservador descontente como John Gray (1998), em- bora “a Utopia do livre mercado global nao tenha cobrado um prego em vidas da maneira como 0 fez 0 comunismo”, “com o passar do tempo ela pode vir a rivalizar com ele no sofrimento que inflige”. Se 0 argumento em favor da ocorréneia de uma mudanga qualitativa limitada tiver de ser levado a sério, o problema residiré em como reformu- lar tanto a teoria como a politica. E é aqui que minha proposta de mudanga de linguagem, de “globalizacdo” para “desenvolvimento geogréfico desi- gual”, tem mais a oferecer. Condigées desiguais oferecem abundantes oportunidades de organizagio e aco politicas. Nao obstante, trazem igualmente dificuldades particulares (por exemplo, sobre como lidar com as tensdes da diversificagdo cultural ou das abissais desigualdades de renda entre regides pobres ¢ ricas). A compreensio tanto das potenciali- dades como das dificuldades erucial para uma reformulagao de uma politica adequada. ce A CLORALIZAGAO CONTEMPORANEA E contudo nesse ponto que a questéo da globalizag&o como projeto gcopolitico explicito tem de ser enfrentada, Hi quanto a isso duas caracte- risticas principais que operam em conjunto a fim dar ao recente impulso rumo ao aprofundamento da globalizagao sua forma e seu tom peculiares. A primeira é 0 fato sombrio de que a globalizacdo é sem diivida o resulta- do de uma cruzada geopolitiea empreendida pelos Estados Unidos (com alguns notéveis aliados, como a Grd-Bretanha no perfodo tatcherista). Tra- ta-se, como alegarei adiante (ver 0 capitulo 5), de uma cruzada ut6pica que tem sido objeto de constantes eriticas tanto de radicais eomo de con- servadores (cf. a recente alianga esquerda-direita no ataque ao papel do Fundo Monetério Internacional como organismo de regulagio das econo- mias mundiais). Porém, a globalizagio como processo est desde 1945 centrada nos Estados Unidos. Ela simplesmente nio teria acontecido da maneira como ocorreu sem que os Estados Unidos tivessem servido tanto de forga motriz como de agente supervisor do proceso como um todo. E isso se traduziu também numa confusao entre necessidades ¢ formas de operagao (métodos empresariais, culturas corporativas, tradigdes do direito, da lei e da democracia) norte-americanas e requisites globais. E dificil nao ver que, ao longo dos anos, os Estados Unidos com frequéncia pensaram localmente ¢ agiram globalmente, muitissimas vezes sem sequer se dar conta do fato. A resposta & pergunta “quem introduziu a globalizagéo no programa?” 6, portanto: os interesses da classe capiltalista em agio por meio da politica externa, militar € comercial dos Estados Unidos. Mas os Estados Unidos nao teriam tido condigées de impor as formas de globalizagéo que chegaram a nés sem o abundante apoio de uma am- pla variedade de grupos ¢ lugares. Muitas facgdes da classe capitalista mundial tiveram um grau maior ou menor de contentamento em se ali- nhar as politicas dos Estados Unidos e trabalhar no ambito das protegdes militares e legais norte-americanas. Em alguns casos, onde assumiram controle do governo, elas puderam dar seu apoio, embora muilas vezes com bastante engenhosidade local (vem-me aqui a mente a Franga de De Gaulle), ao esforgo de fazer parecer que estavam resistindo & extensao geral das relagdes sociais capitalistas tal como promovidas pelos Estados Unidos. Em outros casos, ¢ aqui se destaca o Japao, houve tanto uma resposta a globalizagdo como uma administragéo dela de uma maneira distintiva, voltada para criar um competidor ao modelo norte-americano de progresso econdmico. Mas mesmo af havia uma ampla aceitacio do Sh DiseyvotiMeNTos GEOGRAHICOS DESICUAIS argumento da globalizagao como algo necessério A sobrevivéncia nacional. Mas o caso japonés no foi peculiar. E, de certo modo, é importante per- ceber que a globalizagao foi sendo construida em parte por meio de uma ampla variedade de agentes (particularmente govemos de nagées-Estados) que pensavam localmente e agiam globalmente de uma maneira que em nada diferia da ago dos Estados Unidos como a poténcia hegeménica que movia as engrenagens do processo como um todo. A relevincia primordial de todas essas mudangas para a esquerda & que a posigio relativamente privilegiada das classes trabalhadoras nos paises capitalistas avangados tem sofrido forte degradagio com respeito as condigdes do trabalho no resto do mundo (essa transicao é percebida de ‘maneira mais flagrante no ressurgimento das empresas com mio de obra semiescrava como forma fundamental de organizagao industrial em Nova York e Los Angeles nos iiltimos vinte anos). O segundo elemento relevan- te 6 que as condigées de vida no capitalismo avangado tém sentido com toda a intensidade o golpe dado pela capacidade capitalista de “destruigio criadora”, que levou a uma extrema volatilidade as perspectivas econdmi- cas locais, regionais ¢ nacionais (a cidade que passa num dado ano por ‘uma enorme expansio éa mesma que no ano seguinte sofre uma depressio econdmica). A justificativa dos neoliberais para tudo isso 6 que a mio oculta do mercado vai agir em beneffcio de todos, desde que haja o mini- mo possivel de interferéncia do governo (e deveriam acrescentar — porém nfio costumam fazé-lo— do poder monopolista). 0 efeito disso é fazer que avioléncia e a destruigdo criadora do desenvolvimento geogréfico desigual (por exemplo, atrayés da reorganizagdo geogrifica da produgéo) sejam sentidas amplamente tanto nas terras natais tradicionais do capitalismo como em outros lugeres, em meio a uma extraordingria tecnologia da abas- tanga e do consumo conspicuo que é comunicada instantaneamente a todo mundo como um conjunto potencial de aspiragdes. Nao admira que os proprios promotores da globalizagao tenham de levar a sério a condigiio de “contra-ataque”. Como dizem os promotores de longa data da globalizagao Klaus Schwab e Claude Smadja— organizadores do influente Férum Eco- nomico Mundial de Davos (citados em FrtepMan, 1996): A glohalizago econdmica entrou numa fase eritica. Um contra-ataque cada vex mais forte a seus efeitos, especialmente nas democracias industriais, est4 ameagando causar um impacto destrutivo na atividade econdmica e na estabilidade social de muitos paises. O estado de Animo dessas demo- A.GLOBALIZAGKO CONTEMPORANEA cracias esté mareado pela impoténcia ¢ pela ansiedade, o que ajuda a explicar a ascensio de um novo tipo de politico populista. Essa situagio pode facilmente ensejar a revolta. Por volta de 1999, Schwab e Smadja (1999) ainda estavam buscando com urgéncia maneiras de dar & globalizagéo um rosto humano. Recor- rendo a uma ret6rica que em certos aspectos faz eco & dos zapatistas (ver adiante), eles escrevem: Temos de demonstrar que a globalizag&o néo 6 apenas um codinome para uum foco exclusivo no valor das ages a expensas de toda outra considera- <0; que o fluxo de bens e do capital nao se desenvolve em detrimento dos segmentos mais vulneriveis da populagao ¢ de alguns padres humanos © sociais aceites. Precisamos conceber uma forma de enfrentar o impacto social da globalizacdo que nao seja nem a expansiio mecéniea de progra- mas de bem-estar social nem a aceitacdo fatalista de que vai se ampliar @ hiato entre os beneficidrios da globalizacdo e aqueles que nao conseguem reunir os recursos necessarios av atendimento dos requisitos da integragao no sistema global. Ou como conelui John Gray (1998, p. 207): «+ estamos prestes a entrar ndo na era de abundancia projetada pelos advo- gatos do livre coméreio, mas numa época tragica em que as forgas andrqui- cas do mercado ea redugio da disponibilidade de recursos naturais langam Estados soberanos em rivalidades ainda mais perigosas... A competigio no mercado global e a inovagio teenolégica entraram numa interagéo que nos ofereceu uma economia mundial andrquica, Tal economia esti fadada a ser um campo de ponderéveis conflitos geopolitices. Thomas Hobbes ‘Thomas Malthus séo melhores guias do mundo que o laissee-faire global ceriou do que Adam Smith ou Friedrich von Hayek; um mundo em que ha 20 menos lantas guerras e tanta escassez quanto as benevolentes harmonias da competicao. O fato de um comentador conservador como esse terminar por assumir exalamente a mesma posigdo analitica da derivada de Marx (ef. meu livro Limits to Capital, caps. 12 ¢ 13, ou GretveR, 1997) chama sem davida a atengao, Fortes correntes de reagao & globalizagio do livre mercado vém se estabelecendo (cf., por exemplo, os textos de um eminente especulador/ financista capitalista como George Sonos, 1996). O movimento socialista tem de configurar uma maneira de usar essas possibilidades revolucionérias. Ele tem de se contrapor aos miltiplos Desenvowmenos cEocRsficos DESAI nacionalismnos populistas de direita (como o defendido por Pat Buchanan nos Estados Unidos), muitas vezes associados com apelos declarados a um fascismo localizado (Le Pen na Franga ou as Ligas Lombardas na Itélia) O minimo que o movimento socialista tem a fazer é concentrar-se na cons trugéo de uma sociedade alternativa socialmente justa e ecologicamente sensivel. Mas para aleangar esse fim 6 necessério que ele aceite como dadas as atuais condigdes da globalizagio € o coro erescente de exigen- cias de sua reforma e seu controle. Tem sobretudo de aprender a cavalgar as fortes ondas do desenvolvimento geogréfico desigual que toram tao precéria e diffcil a organizacao popular e das bases. Se é preciso que os trabalhadores de todos os pafses se unam para combater a globalizagao da burguesia (cf. capftulo 3), eles devem encontrar maneiras de ser tio flexiveis no espaco — em termos tanto da teoria como da prética politi- cas — quanto a classe capitalista tem mostrado ser. Hé uma maneira dil de comecar a pensar nisso. Pergunte em primei- zo lugar: onde podemos encontrar lutas anticapitalistas? A resposta é em toda parte. Nao hé uma regido do mundo em que nio se possa encontrar manifestagdes de raiva e de descontentamento com respeito ao sistema capitalista, Em alguns locais ou entre alguns segmentos de uma populacéo, os movimentos anticapitalistas se acham firmemente implantados, “Parti- cularismos militantes” localizados (volto & expresso de Raymond Williams) esto em todos os lugares, dos movimentos de milicias das florestas de Michigan (boa parte delas violentamente anticapitalista e anticorporativa, a par de racista ¢ exeludente) a movimentos de pafses como 0 México, a India e o Brasil, que militam contra os projetos de desenvolvimento do Banco Mundial, passando pelas incontéveis “agitagées do FMI” que tém ocortido em todo o mundo. E hé muitos casos de luta de classes em anda- mento mesmo nas patrias da acumulagao capitalista (como as extraordindrias inrupgdes de militéneia na Franga no outono de 1995 e a greve vitoriosa dos trabalhadores da UPS, nos Estados Unidos, em 1997), 0s intersticios do desenvolvimento geogréfico desigual ocultam um verdadeiro fermento de oposigao, a qual contudo, ainda que militante, permanece com frequéncia particularista (por vezes num grau extremo), costumando ameagar convergir ao redor de movimentos nacionais ex- cludentes ¢ nacionalistas-populistas. Dizer que a oposigio é anticapita~ lista no é portanto dizer que seja necessariamente pr6-socialista. Fal- tam a sentimentos anticapitalistas de ampla base uma organizagéo e uma oz a | A CLOBALIZACAO CONTEMPORANEA expressiio coerentes. As manobras de um dado movimento de oposigio ou | de protesto podem confundir e por vezes se opor as de outro, o que faci- lita sobremaneira aos interesses de classe capitalistas a ago de dividir e governar sua oposigao. Uma das forgas histéricas do marxismo tem sido seu compromisso com a sintese de diversas Iutas cujas metas sio miltiplas ¢ divergentes num movimento anticapitalista mais universal. A tradigGo marxista tem aqui uma imensa contribuigio a dar, pois é pioneira no tocante aos ins- trumentos por meio dos quais identificar pontos comuns em meio a mul- tiplicidades e diferengas (mesmo que, em algumas ocasides, tenha absor- vido com demasiada rapidez estas (ltimas naqueles). O trabalho de sintese das miiltiplas lutas hoje existentes tem de ser permanente, pois os eampos ¢ terrenos em que essas lutas se travam, ¢ as questdes a que respondem, esto em perpétua mudanga, acompanhando as alteragdes da dinamica capitalista € das condigées globais associadas. A frase de Raymond Williams acerca da “defesa e promogo de certos interesses particulares, adequadamente unificados” como mancira de fomecer bases ao “interes se geral” é portanto a tarefa essencial a ser empreendida. A partir da inspiragdo dessa tradicao, tentarei destilar alguns argumentos que parecem particularmente aplicaveis & atual conjuntura. Dos coRPOS DAS ESSOAS POLITICAS NO ESIC CORAL ideia de comparagiio com algum padrao exterior. Era considerada “uma forma de visio da esséncia de todas as coisas” percebidas pelos senticl ¢ pela mente. Essa visio de significados e proporgées interiores era jul- gada fundamental no atingimento de uma clara percepgao das realidades gerais do mundo e, em consequéncia, vital para levar uma vida harmoniose e bem ordenada. Nossas coneepgdes modemas, como assinala Bohm (1983). perderam essa sutileza, tornando-se relativamente grosseiras ¢ mecdnicas, embora parte de nossa terminologia (por exemplo, a nogao de “medida” na miisiea e na arte) indique um sentido mais amplo. A ressurreigdo do interesse pelo corpo nos debates contemporineos de fato oferece, dessa maneira, uma bem-vinda oportunidade de reavalia-

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