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CAP{TULO 9 A relacio terapéutica em Gestalt ‘Transferéncia e contratransferémcia Um pouco de etimologia A Gestalt é uma psicoterapia, Sera verdadeiramente s6 isso? Alguns Bestaltistas sustentam que sim e insistem, por isso, em serem chamados de Gestalt-terapeutas, © nao de praticas! profissionais on gestaltisias — embora falemos de “‘psicanalistas”” ou de “‘psicodramatistas”... Outros, centre os quais me incluo, acham, como Perls, que seria uma pena res. tringir uma abordagem tao rica aos “‘doentes” e falam, assim, de um modo deliberadamente provocador, em “ferapia para normais"”. Mas, de fato, esta a “terapia” reservada aos “doentes”? Que dizer, entao, da obrigatoriedade da terapia para 0s futuros te- Fapeutas? E preciso estar “doente” para tornar-se terapeuta? © que é “terapia’’? E 0 que & um ‘“doente’”? Interroguemos a etimologia — palavra que vem de étymos: “ver dadeiro”. Ela trata do sentido verdadeiro de uma palavra e nfo, como costumam pensar, apenas de sua origem histérica. * therapéia, em grego, significa cuidado religioso, culto aos deuses; dai: respeito pelos pais, cuidados atentos; dai: cuidados com 0 corpo, a toalete; dat: cuidados médicos, tratamentos, 1. No original, pratcien, “pessoa que conhece a prética de uma arte ou de uma técnica" no caso, a Gestal-terapia. Esse termo é amplo, englobando aqueles que stuatn em outtos eampos, com a terapia propriamente dita: por exemplo, aqueles que usam a Gestalt em Instituigdes ou em empresas 143 | | © thérapeutris € uma religiosa (de religare = religar), ou seja, uma me- diadora encarregada de manter uma boa relagdo entre os homens ¢ os deuses, entre a terra ¢ 0s céus, entre a matéria ¢ o espitito.? ° thérapeuticos & aquele que presta cuidados aos deuses ou a um mestre, ou seja, 0 servidor devotado, servigal, 0 cortesao ou o escravo. Como 0 campo semantico de terapeuta nos levou ao “servidor”, vamos a um rapido exame da etimologia desta tiltima palavra: * “Servidor” provém da raiz indo-européia “‘swer", “ser”, ou “wer”, que significa “atengao", atitude basica do gestaltistal O “‘servus”, ser. vidor ou escravo, ¢ encarregado de “‘ob-servare”, ou seja, “velar por”... Assim, portanto, as palavras “terapia’’ e “‘cura"” sao ambas andl gas, ndo a doenca, mas a servico, vigilancia, awareness. © “terapeuta’’, portanto, nio é aquele que fem poder sobre 0 ou- tro, mas aquele que esta em poder do outro, & seu servidor. Estamos fonge do mito médico e paramédico do terapeuta “onipo- tente”, com poder de vida e morte, tanto quanto do terapeuta protegi- lo (aprisionado?) atrés de um canone solidamente sancionado, e que € aquele que “‘sabe"”. Estamos mais préximos do terapeuta gestaltista que € aquele que “ignora” (!), e acompanha na aventura seu cliente, \inico responsAvel por ele mesmo, em sua experiéncia singular ¢ irredu. tivel, andmica e polissémica, ou seja, que nao obedece leis gerais prees- tabelecidas e pode adquirir diversos significados — nao exclusivos entre si— conforme a leitura do proprio cliente, considerado em sua Gestalt particular do momento. Mas, de fato, 0 que quer dizer “cliente”? * 0 “cliente” era, entre os romanos, um cidadao protegido por um “pa tono’” poderoso, dai: aquele que recorre a alguém, mediante retribuigao, 0 “paciente” & aquele que sofre, suporta ou se submete passivamente uma interveneo (6 por isso que evito empregar este termo em Gestalt, Pois nela o “cliente” nunca é passivo). 2.0 “sujeito” (“sub-jectus""), também é aquele que é “posto debaixo””, “‘sub-metido”, subordinado (é, por isso, etimologicamente mais desva lorizado do que 0 “ob-jero”, que € “posto adiante”, “mostrado”!) 2. A seita dos terapeutas fol uma comunidade de monjesjudeus anacoretas de ambos os se305,contemporineos de Cristo, que se dedicavams, em Alexandria (Egito), A exegese ale, sg6riea da Biblia (ou Torah) buscando o significado oculta dos rtose precios: eles exams Portanto intermedidros, mediadores entre Deus ¢ os horscms 144 Talvez, afinal, o gestaltista fique mais ajustado perante: ‘+ um “parceiro”: pessoa com quem estamos associados, com quem con- versamos ou com quem estabelecemos uma relacao? ‘+ um “protagonista’’: ator principal que desempenha 0 primeiro papel numa situagao? 0 envolvimento controlado Pois bem, nao! Nao ha primeiro nem segundo, nada de classifica dos numa relagdo dual auténtica, mesmo que seus estatutos e seus pe- péis sejam diferentes: este € um dos pontos que caracterizam @ © Gestalt terapenta nfo et tolado em seu dominio, murado no silencio imutavel, inacessivel, abrigado em sua fortaleza interiormente Ele tampouco est exposto a todos os ventos, numa empatia oti- cia uma energia inexistente, ou propondo sua reserva de oxigénio Aque- procedendo, nao procura sustenté-lo, justificando-o, Nem procura eli- te, compartilhando essa aventura a dois, numa relacdo de simpatia — que Perls opde, de maneira um pouco caricatural, ao que chama de e77- patia rogeriana ¢ apatia psicanalitica. * a abordagem ‘‘ndo-diretiva"’ de Carl Rogers preconiza a empatia: 0 a psicandlise propde uma atitude de ‘‘neutralidade benevol peitando a ‘‘regra da abstinéncia”’, 0 que mantém uma frustracdo que gio e constitui um ‘‘chamado” mobilizador (de pro-vocare: ‘chamar_ para’). Exemplo: ‘Eu me dou conta de que, hd cinco minutos, nao ou- M45 f ° portanto, a Gestalt estimula a simpatia: o terapeuta esta presente co- mo pessoa, numa relagao atual ‘*Eu/Tu"* com o cliente. Ele desperta awareness deste iltimo para sua inter-relagdo com o meio (que, no ca~ 50, €0 terapeuta) e explora deliberadamente sua prépria contratransfe- réncia como moter do tratamento, Assitn cle se interessa por seu parceiro ¢ esta “‘centrado no cliente” — mas também podemos perfeitamente dizer que esta ‘‘centrado em si mesmo”, atento aquilo que sente pessoalmente, no instante, perante seu arcciro, e sem hesitar em compartilhar com ele, deliberadamente, uma parte do que sente. Paradoxal seria o gestaltista que incentivasse regularmente seu cliente «ser informal, sem nunca fazer 0 mesmo! Ele nao é neutro, pois, mas envolvido, numa autenticidade seletiva, num envolvimento controlado: \erveniente € “ativo”, no entanto, nao “diretivo”! Ele reage e leva a agir; isso quer dizer que interage, embora nao seja ele quem fixa a direcao do trabalho. Assim, como 0 guia de monta- tuha ou 0 espeleologista, ele estd & disposigdo do cliente para acom- panhi-lo no trajeto que este siltimo determina, Nao é ele, o terapeuta, gue empreende (‘ger our of the way" — saia do caminho, lembratia Goodman), mas no aceita qualquer coisa, passivamente, Em suma, seu papel ¢ permutir e favorecer, nio compreender ow fazer: nem preceder nem deter 0 cliente, mas acompanhé-lo, conservan- do sua prépria alteridade, © “catalista’® Ele no ¢ um “‘ana-lista”, dissecando a situagdo para remontar As suas corigens (de ana, em grego, de baixo para cima, ao revés), mas, principal. mente, um “catalista”” — permitindo-me um neologismo — (dle cata, de cima para baixo, da superficie para a profundidade), correspondendo em barteas cinco caracteristicas classicas dos corpos quimicos catalizadores: * ele acelera e amplia as reagdes com sua presenca; > ele age por intervencdes em doses muito ténues; * ele ndo desioca c equilibrio interno, mas apenas permite atingi-lo mais rapidamente; 7 seu poder esta fortemente ligado a seu préprio estado fisico; © cle esta inalter-ido quando a reagao acaba. “Inalterad.s” deve aqui ser entendido no sentido etimoldgico: ele ‘do se tornou “um outro”, pelo contrario, tornou-se mais ele mesmo, 146 descoberto, revelado, gragas a interacdo. Se estiver “‘transformado”, ndo estard ““de-formado”’: terd, sobretudo, uma “forma melhor", uma fi- gura forte, uma boa *Gestalt”” — assim como seu parceiro. final, esse ‘“catalista’” ndo pode ser definido em si; aliés, no mais, do que o cliente: todas as suas reagdes esto ligadas as interferéncias dos dois, e a awareness do terapeuta ndo objetivaré nem wm nem o outro parceiro isoladamente, mas 0 “‘espago transicional”” que os separa e os tune, suas inter-relagdes em rede, nos cinco niveis: corporal, emocional, intelectual, social e espiritual (ou “transpessoal”), numa abordagem sis- ‘émica que privilegia 0 conjunto: ferapeuta-cliente-em-seu-neio-prOxinio- eglobal. A transferéncia Se ainterasto éatuale mitua, como fica, na Gestalt, o problema ~ tdo frealente« controvertido da transferéncia? Inicialmente, conviria ser prudente ao utilizar um termo isolado de seu contexto habitual: “‘transferéncia’” adquitiu um sentido especifico em psleandise, sem divida ¢ abusivo lilo para qualsquer fins. ’A teoria da Gestalt tem enfatizado bastante que "todo ¢ diferen teda soma de suas partes” — cada uma destas 38 faz sentido em tela: 0-40 conjunto — para que haja prudéncia quando se usa este tro Psicanalitico num contexto sensivelmente diferente! Seia Id como for, todos os autores concordam em enfatizar 0 lugat central do enconiro, da relagdo estabelecida entre o cliente ¢ seu tea. ruta: “Nao ha pscoterapia sem encontro” — diz Israel —e ehega a Acrescemtar: “a aplidao para a psicoterapia Se soma t aptiddo para 0 ‘Assnalemos que, em qualquer psicoterapia, esse encontro nao pre- tende modificar as cosas os eventos, masa percepedo interna do cen te dos fatos e seus milipfossignificadas possves claro que as inte vengdes do trapeuta nd pretendem trangformarastwaydo eieror mas a experiéncia pessoal que dela tem 0 cliente. © trabalho psicoteripico Fevorece portanto ma reelaboragdo do sistema pereeptivo individual. Mas essa nova apercepcao de uma dada situagao nao implica, for- gosamente, a hipdtese de mecanismos transferenciais. Rollo May, um dos fundadores do Movimento de Psicologia Humonista, deseeve a8 sim sua posigdo, num artigo de 1958 “0 que acomtece realmente ndo é que o paciente neurdtico “trans ere’ sentimentos que experimentava pela mac ou pelo pai para a mu. Iher ou para o terapeuta. Diriamos que o neurdtico, em certos domi- nios, nunca ultrapassou certas modalidades estreitas e limitadas da ex- periéncia caracteristica da crianga pequena. Em conseqiténcia, poste riormente, ele percebe a mulher ou o terapeuta através das mesmas ‘Ten- tes’ deformadoras e restritivas através das quais percebia o pai ¢ a mac. 147 | Este problema deve ser compreendido em termos de percepcao © de modo de sc relacionar com o mundo. Isso torna iniitil 0 conceito @e transferéncia no sentido de um deslocamento dos sentimentos de um objeto para outro” E cle prossegue, mais adiante: “Para a terapia existencial, a ‘transferéncia’ se situa no contexto ovo de um evento que se produz numa relagao real entre duas pes. Soas. Quase tudo que o paciente faz em relagao ao terapeuta durante uma sessdo de terapia contém um elemento transferencial. Mas nada € “apenas transferéncia’, aritmeticamente explicavel ao paciente. O conceito de transferénicia, enquanto tal, em geral tem sido utilizado como uma conveniente tela proselora, por tris da qual o terapeuta © © paciente se escondem para evitar a situagdo mais angustiante do confronto direto," Em suma, 0 vestigio do pasado nao € negado, com certeza, mas 56 tem interesse tal como se manifesta hoje, no presente, matizado pela situagao particular do momento e pelas posigdes especificas dos perso- agens em relagao, Por isso, o trabalho psicoterapéutico no objetivara apenas atuali- zar as lembrangas enterradas (o porgué), mas também observar as cit- Cunstiincias e as distorgées da relagdo presente (0 como). Enquanto 0 cliente, no mais das vezes, esta fovalizado no contetido de seu discurso ou de sua a¢do, 0 Gestalt-terapeuta se interessa mais pela forma, pelo proceso em curso: notamos entdo entre eles uma inversizo da figura do fundo — assim esquematizada por Jean-Marie Robine: 2 pera qué Polarizado no aqui e agora da relacdo atual, Perls (assim como Ro- ser8) adota uma posi¢ao extremada, manifestamente reativa a certas for. ‘mas caricaturais da psicandlise, e chega até a negar a freqiiéncia e a im- ortancia dos mecanismos transferenciais _ Nao este 0 ponto de vista da maioria dos gestaltistas de hoje: cles ndo contestam a realidade, até mesmo a importncia dos fenémenos 3. May, R, Contributions of existential psychotherapy in existence. Nova York, Basic Books, 3M ps any York, Basie Books, 4 Cf. Juston, D. Le transfert en Gestalt et en psychanelyse. Lille, Pandore, 1990 148 tansferencias, mas se perguntam — e alids divergem — sobre a oportu- nidade de sua exploracdo deliberada. Trata-se entéo, claramente, de uma escolha de estratégia terapéutica, Nao é por me decidir a ir por um caminho que ignoro a existéncia de outros,¢ mas escolho aguele que me parece o mais “operacional”” no momento ¢ menos alienante para o cliente, A neurose de transferéncia © desenvolvimento deliberado de uma “‘neurase de transferéncia””, eemento central no tratamento psicanalitico tradicional, néo deve ser confundido com os fendmenos transferenciais espontaneos, inevitaveis —e indispensaveis — em qualquer relagdo terapéutica. Ora, quando fa- lam de ‘‘transferéncia’” fora do contexto psicanalitico, as vezes mistu- ram esas duas nogies. A propésito disso, leiamos algumas passagens de Sacha Nacht:* --'*A relagdo que o doente estabelecer4 entdo com seu analista se reforgard de forma crescente, mas manteré uma base ambivalente. Ela se desenvolverd, desabrochara progressivamente até preencher por com- pleto o contexto da situagdo analitica. Ela até transbordard esse con- ‘exo paras ora, consent ou nconsietertene prdpiy ce tro da vida da pessoa. A neurose pela qual cla tinha vindo se tratar se detém, pode mesmo desaparece e, em seu lugar, se instala@ chamada neurose de ‘ransferéncia’; ‘a nova doenga substitui a antiga’. ” (Freud), A ltima fase do tratamento psicanalitico consiste na “liquidagdo"” dessa neurose de transferéncia: “Mas — prossegue Sacha Nacht — a evolugo da neurose de transferéncia, infelizmente, nem sempre segue este tracado ideal. Pe~ lo contrario, pode acontecer dela se tornar a principal fonte de difi culdades no esforgo de cura, uma grave complicacdo que pode até comprometé-lo. Ela é, em todo caso, responsdvel, em boa parte, pela duracdo demasiado longa de muitas andlises”. Em principio, a utilizagdo desta neurose de transferéneia visa re- produzir, tornar novamente presente a neurose infantil, para torné-la acessivel ao tratamento. 5. Este ponto de vista abrange tanto a explorapdo da transferéncia quanto a decoditicagao ‘erbal do ineonsciente ou a iterpretapo: estas diversas nogBes nd s20 negadas, as de Ieradamente deixadas em segundo plano. 6 Nacht, 8. La psychanalyse d'aujourd hu. Paris. PUR. 1968. Necht foi vie: presidente ia Associapio Internacional de Psicandlise de 57 a 69 149 Insisto em assinalar, rapidamente, que a psicandlise é uma terapia do “aqui e ogora”, visto que o essencial é nela analisado e interpretado com referéncia a transferéncia atual Inversamente, em Gestalt — e contrariamente a uma opiniao di- fundida —, 0 passado emerge regularmente (‘“Gestalts inacabadas”) ¢ até, as vezes, um passado longinguo, pré-verbal, arcaico. Mas ele s6 & ‘abordado quando aflora espontaneamente, no aqui e agora. O Gestalt ‘erapeuta nao esta, pois, em absoluto, encerrado na prisdo do presente. ‘ssim como o psicanalista, “ele estd atento a tudo que emerge do pas. sado como lembranea atual, e que, conseqiientemente, deve ter algum significado agora”? Seria absurdo negar as raizes, a pretexto de que nos interessamos pelas flores ¢ pelos frutos! Mas 0 Gestalt-terapeuta disp3c de meios mais diretos e, sobretudo, twenos alienantes para o cliente, do que a instauracdo de uma neurose ide transferéncia para favorecer 0 eventual ressurgimento de comporta. wentos infantis: as técnicas de mobilizagdo corporal e emocional ¢ 6 sonko-desperto permitem a répida emergéncia de uma parte do mat vial arcaico € de comportamentos anacrémicos repetitivos. Podemos assim evitar 0 longo e complexo desvio da neurose de trans- feréncia, limitando as perturbasées da vida cotidiana do cliente ¢ abre- viando 0 tratamento, As manifestagées transferenciais espontineas Acabei de evocar a neurose de t ‘ransferéncia e ndo os fendmenos espontineos de transferéncia, os uais, é claro, persistem — mesmo que ¢ terapeuta se esforce para elimind-los d medida em que vao aparecen ‘lo (ndo sem explicitd-los — até explord-los — de passagem). Durante uma sesso de terapia individual, Valéria declarou: ‘Valétin: Sei que nem sempre vocé me leva a sério: no posso entender que voc® nao tenha vindo & minha exposigo! Mas ela foi um sucesso € voce devia estar orgulhoso de min! Ela se dirige, & bem evidente, mais a no terapeuta presente. ‘Um banal confronto com a realidade: uma imagem parental do que Terapeuta: Por que eu deveria “estar orgulhoso de voce"? basta entio para uma conscientizagao, por parte da cliente, dos meca- nismos transferenciais infiltrados em seu comportamento, ¢ este problema a incentiva a buscar uma auto-imagem satisfatéria, nela mesma, ¢ 130 em uma consideragéo parental superestimada, A relagio atual e a contratransferéncia A alterndncia judiciosa de atitudes terapeuticas de apoio compreen- sivo ¢ de frustragao oportuna (skilled frustration) favorece pouco 2 pouco @ autonomia do cliente (self support) . 7 Como acabo de enfatizar, 0 Gestalt-terapeuta no hesitard, se for ©.caso, em expressar o que sente na situagao do momento. Ele até pode se permitir, na ocasitio, revelar seus gostos, suas opcdes, suas alegrias ‘esuas dificuldades — isso nao para se ex-plicar — mas para se in-plicer: — “Eu acho que voc® tem jeito para a pintura, mas pessoaimente 1 ndo gosto de arte abstrata; prefiro as aquarelas de Duty! a “self-disclosure”, 0 desvendamento deliberado da pessoa num exvolvimento auténtico — embora controlado e seletivo: assim, ‘penso tudo que digo, mas nao digo tudo que pen: endo faco mais tudo que quero! Estow presente como pessoa especifica: eu mesmo, agui — mas nao aqui para mim mesmo! Assim entdo estabelego uma relagdo pessoal atual, parcialmente in- serida na realidade social intersubjetiva dos dois parceiros, estando, a0 mesmo tempo, de alguma forma: * em empatia com 0 cliente, ou seja, “mele” . ‘tem congruéneia comigo mesmo, ou seja, “em mim" * em simpatia na relagdo Eu/Tu, ou seja, “entre nds O cliente geralmente aprecia esse tipo de compartilhamento, em que ee se sente reconhecido como sujeito, como “interlocutor valida” e 1&0 como um simples objeto de interesseprofissiona de um terapeuta cons, cencioso mas indiferente.* O clinico utiliza sua prépria vivencia com ferramenta terapéutica, referindo uma explorapio “ofensiva™ de sua contratransferénca, a uma simples vigincia ‘defe 5,0 gestatta talano Edoardo Giusti asocia abordagem rogeiana¢ Geist no que cha snow de "Gestalt Counseiy Em suma, € quase que uma inversdo das atitudes tradicionalmente preconizadas: ® em psicandlise classica, o analista se atém, principalmente, a alimen- ‘ar a transferéncia do cliente, e ainda se esforcando para controlar ao méximo a propria contratransferéncia © em Gestalt, inversamente, o terapeuta se esforga para limitar a trans- Jeréncia do cliente, ainda estando atento para explorar deliberadamente ‘sua contratransferéncia, especialmente pot uma awareness permanente do que ele mesmo sente, emocional e corporalmente, repercutindo 0 com- ortamente verbal ou gestual do cliente. Convém, alids, assinalar que esta atitude positiva em relagao a con- tratransferéncia, outrora criticada, é cada vez mais admitida pelos psi- canalistas contemporaneos. Assim, Nacht escreve: “Por muito tempo, os analistas estiveram persuadidos de que po- diam ‘dominar’ ¢ até eliminar suas proprias reagdes contratransferen. ciais inconscientes com uma atitude de neutralidade. Nos hoje sabemos que a contratransferéncia é tao fecunda no tra: balho anatitico quanto a transferéncia, sob a condigao, & claro, de que la atue num sentido benéfico para o doente™. E Harold Searles declara:* “G..) meu sentimento de identidade tornou-se (...) minha fonte mais segura de informagoes sobre 0 que acontece entre o paciente € 22, © 40 gue acontece com o paciente (...), um instrumento cientifico muito sensivel einstrutivo, que fornece informacdes sobre o que acon {eee no tratamento, em geral, em dominios verbalmente inexprimnivels pelo paciente”. A psicandlise, hoje em dia, volta assim a encontrar, apés @ Gestalt, as teses defendidas desde as anos 30 por Ferenczi (um de cujos alunos, Karl Landauer, supervisionou a andlise didética de Perls). Outros psi canalistas célebres, como Mélanie Klein, Winnicott ¢ Balint, formados or Ferenczi ou por seus alunos, desenvolveram, cada qual sua ma~ heira, uma “técnica ativa’” que da grande espaco & exploragdo da con. ‘ratransferéncia, particularmente em suas repercussdes corporais. Exteviorizagio sexual E claro que nao se trata de passar de um excesso de neutralidade um exeessa de envolvimento, e nao possa endossat a posicao de alguns 9. Seaies, U. Le contresransfert. Paris, Gallimard, 1981 152 colegas americanos que, sob pretexto de uma relacdo auténtica ¢ pre tensamente “igualitaria’” de pessoa para pessoa, pretendem anular qual: quer diferenca entre 0 terapeuta e 0 cliente e se permitem abusos disctt tiveis, utilizando algumas sessdes para sua satisfacdo pessoal, chegand mesmo a tra:ar de seus préprios problemas no tempo destinado aos cs: tagidrios, ou para satisfazer seus proprios desejos sexuais — a pretexio de “‘autenticidade”” da relagdo mitua! efeite demagdgico dessas priticas nem sempre é negligencive! ‘4 curto prazo, pois bem que os estagidrios gostam de ver as fraqueza do terapeuta — que hes parece assim mais “humano” e mais “acessi vel””! Mas sio abusos lastimaveis (alias, excepcionais), que trouxerann algum descrédito a pratica da Gestalt. Diversos estudos americanos relatam que, de fato, ndo é posstve! afirmar muito objetivamente que os efeitos secunddrios de tais préticas tenham sido negativos ou positivos, e isso tanto para um ou outro dos arceiros envolvidos, quanto para os outros membros do grupo. Sao citados casos particulares de agravamento ou de perturbiigies secundirias neste tipo de relagao, mas sto igualmente lembrados «aso: de methoria (por revalorizagdo narcisica ou desdramatizacao de wit fantasia). Nao deixa de reinar na matéria uma certa hipocrisia, herdada ile conceitos merais e religiosos, que ndo permitem um estudo muito obje- tivo a respeito. Nao vai longe o tempo em que 0 estudo cientifico do comporta: mento sexual, por Kinsey ou Master & Jonhson, provocava eseéndlalo, enquanto, de fato, se ia percebendo que 80% da populagao (sic!) man tinha praticas entao rotuladas de “perversas”” pela moral oficial! Assim sendo, independentemente de qualquer preconceito de orden ‘moral ¢ de qualquer afitmacao prévia de eventual “nocividade”” psico. I6gica, nés pensamos que, de qualquer maneira, uma rela¢do sexual en tre terapeuta ¢ cliente corre o risco de ser falseaca pela dissimetric: do status: * um é pago, o outro paga; * 0 terapeuta profissional tem um status de autoridade e um poder do qual ele pode ficar tentado a abusar, mesmo a sua revelia; * inversamente, a “‘conquista’” afetiva do terapeuta por umt (a) cliente nem sempre é motivada por uma atrago afetiva ou sexual auténtica! * além disso, qualquer terapeuta, por sua profissio, é levado a encon- trar um elevado niimero de parceiros potenciais, ¢ isso numa situa: privilegiada de fragilizacdo emocional dos clientes; 0 equilibrio & pois rompido. ‘nfim, ndo se pode abstrair 0 contexto sécio-cultural reprovador, ainda muito atuante, apesar da recente evolugao dos costumes, 0 que 153 sepercute profundamente nessas exteriorizagdes, conferindo-Jhes um toque de culpa dissinulada ou, pelo contririo, de provocacdo osten- iva, Huma perspectiva gectaltista, no se pode separar o individuo de ‘meio © qualquer comportamento s6 faz seittido se considerado em seu campo global, mesmo que 08 limites impostos sejam, no mais das veass, arbitrérios provisorios, tributarios da histéria e da geografia Enfim, 2 damietizecto dos casos de uansgressao nos perece s ve~ ors mais nociva do que a propria transgress30.10 No ontro extremo das posigdes liberais, as posigdes moralistas ex- {vemas no nos parecem muito mais defensiiveis e a experiéncia nos en- siaou a desconfiar dos inquisideres rigorosos, que pensam superar suas vréprias fraquezas perseguindo as dos outros (fornagao reacional). Alguns responséveis por grupos de terapia ou de desenvolvimento ‘oal chegam até a exigir, de cada estagidrio, um compromisso por socrito de “abstinéncia” de qualquer relagao sexual, ndo apenas com ‘2 terapeutas (0 que é natural), mas também entre os préprios esta ¢ isso inclusive nos intervalos das sessées, Embora nos parecam indispensdveis os repetidos alertas sobre ca- ‘ier eviificialmente “superaquecido”” das relagées estabelecidas num grt ve de wabalho psicoterdpico com mediac&o corporal e emocional, tais vioibicdes cocrcitivas nos parece um atentado a privecidade de clien- 3 adultos... justamente aqueles que queremos tornar responséveis! Além disso, invimeros depoimentos confirmam que tais vomnpromis- — mesino quando assinades — raramente so respeitados pela tola- lisade dos membres do grupo, alguns destes sendo entéo acuados a po- sinGes anti-sociais de tronsgressao provocadora da lei estabelecida, seja 2 posicdes hipéeritas de nepacdo ou mentira, precisamente quando pre- ‘saademos incentivar em cada um expresso auténtica de suas emocdes, sensagdes, temores ¢ descjos, Uiaa Haha diviséria ... Nossa posigéo pessoal esta, portanto, numa desconfortével “linha ‘iviséria”” entre @ queda nos extremos. Ela é de uma prudéncia méximna Felacio a fodos as envolvimentos afetivos, amorosos ou sexuais, mas ovat eogitar de proibicdes de tipo rigido ou ideolégico, que ndo conside- veriam a singularidade de cada caso. ‘av uma crianea nervoss ou consoli-a quando se machticava: em eetas kas do Paci “2, etmitem que um passante masturbe um gazoto, mesmo se for desconhectiy se le slow 0 joetho — ass, como faremros um agrado, Poutlamios a diivida; ° a agressividade; ° a morte. Estes cinco eixos terdo sido longamente “trabalhados” durante a ferapia pessoal, durante a formagao basica e a supervisdo do futuro eli- hico, e seu relativo dominio constituira um “teste” para avaliar se o pos. tulante esta pronto ou nao para ser terapeuta, © gestaltista observard e reajustara incessantemente seus prdprios limites ¢ saberd recusar, quando for 0 caso, um “acompanhamento” ‘muito perigoso — assim como o guia de montanha insuficientemente experiente ou provisoriamente cansado, se proibe de partir para uma ex- cursao além de suas possibilidades no momento. Alguns afirmam deliberadamente que nao se pode “‘acompanhar”* ‘alguém para além do itinerdrio que se percorreu, Eu néo compartilho esse ponto de vista, bastante difundido: posso acompanhar eficazmente uma mulher gravida ou um canceroso angustiado, sem ter vivido pes- soalmente essas situagdes, enquanto que, inversamente, posso perder mi nha disponibilidade afetiva perante, por exemplo, um problema de de_ Portagao — justamente porque ele desperta em mim uma Gestalt eter hamente inacabada, concernente a um drama existencial pessoal dificil. mente cicatrizével, O importante nao € pois o que eu mesmo vivi, mas meu sentimento atual de conforto perante 0s temas evocados, Da mesma forma, posso set acometido pela angiistia num percurso i4 Feito em que vivi um acidente, ¢, ao contrério, acompanhar uma fila de alpinistas com atengao e eficdcia em uma passagem nova para min, inas que corresponda @ minha competéncia técnica. Talvez até seja ain, ‘da mais atento do que em trajetos rotineiros... Confesso apreciar essas excursdes com um cliente, por zonas inex- ploradas, s6 me dando conta do itinerdrio percorrido na sessao de tera pia conforme ela avanga (na verdade, apés). Nao é sempre ao longo dos caminhos preparados de antemao gue se fazem as descobertas mais ricas: as mais belas flores © os tesouros acultos se abrigam as margens das veredas freqiientadas. Nio creio que seja sempre necessario definir, por principio, previa ‘mente, um “‘contrato terapéutico” preciso com o cliente, Em inumeros 158 casos, stlas motivagdes subjacentes s6 se revelarao pouco a pouco. Ale guns conhecem seu mal e sabem definir seu objetivo; outros, ainda ndo chegaram a isso ou nao estdo mais ai! A Gestalt-terapia permite, ¢ esta € uma das suas imimeras riquezas especificas, que partamos na desco- berta, atentos **a todas as diregdes”, © no nos obriga a definir o itine- rari com precisao, antes de qualquer expedicao. ‘Sempre me enriqueci mais em viagens improvisadas, estimulado por uma awareness aprimorada ao sabor dos encontros e dos achados no “aqui e agora’” da regido, do que em circuitos orgenizados, com suas tapas cuidadosamente previstas — mesmo quando pretensamente defi- nidas por mim, em encontros prévios e discretamente “orientados”, com © agente de viagens. Assim, ndo ¢ tarefa do terapeuta manter o cliente, a qualquer cus. to, em um itinerdrio determinado, mas ajuda-lo a aproveitar ao maxi- ‘mo aquilo que encontrar no caminho de sua terapia, pelo menos identi- ficar melhor os obstaculos e os perigos, distinguir entre evitagdes ino- Portunas e desvios necessdzios, selecionar as descobertas aproveitaveis apés voltar de cada expedigio, 159

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