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O corpo narrado.
professor. Mas, naquele exercício havia bem mais que o expor. Havia
muito mais de expor-se e mais ainda.
Longe dali, fixo na memória do corpo dele que falava em conjunto
com olhos e boca, suspeitei que aquele exercício revelava a busca por
coesão. Ao falar amarrava seu corpo de vivencias dispersas na memória.
No narrado estava contida sua vida, ele nela contido, ele sendo ela, ela
sendo ele, os dois um só, juntos e separados pela impressão de
ajuntamento e afastamento da palavra. Ao narrar, ia ajeitando os fatos
que formava como um bolo de muitas camadas, porém, não para se dar
a comer senão para ser por ele mesmo comido. Para além de mim que
ouvia, ele que se ouvia. O objeto de sua boca era ele próprio e eu,
apenas caminho de volta, uma curva externa. Sua produção era o
costurar de etapas de sua vida; o recosturar de seu corpo de história
que vivia escondido debaixo de sua língua, alojado no vinco sulcado de
seus recordos até tomarem corpo também, na ravina de sua boca. Cada
ponto levantado correspondia a uma etapa de sua vida representada por
um ponto de memória, uma lembrança que solitária buscava outros e
solidárias rumavam ao encontro de um exército de seus semelhantes.
Era armada uma guerra cujo esquecimento se buscava derrotar sob a
pena capital da morte do eu, da tombada do grande bastião; a
consciência enervada, vívida. Essa, sua luta.
Cada ponto remembrado uma vitória que aliava, convalidava um
tempo que era acimentado na consistência de um órgão, pulsátil e vivo.
Cada tempo acercava de valor o presente que se misturava a todos os
passados para fazer-lhes valer a valência de vitalidade. E tudo isso era
um homem só, desdobrado em espaços infinitos feitos de presentes
passados e todos juntos na memória: seu corpo em cada extremidade
fincado e expandido a se alongar ultrapassando seus limites. O corpo
biológico já era, ele sim, um sonho, uma ilusão, uma invenção. Na troca,
o real era o mnemônico, o passado redivivo. Mas o objeto era mesmo se
dar sentido e esse se dava pelo efeito de coesão: era ele aquele mesmo
ator de tantos palcos, de inúmeras peças e quantas tragédias? Que
catarses? Que monólogos? Que fracassos? Quão poucos sucessos? O
que selecionar a renascer e o que sentenciar a morrer? Que decretos
existências fazer? Era essa a liberdade? Era essa a prisão?
A narrativa, aquela em específico, alinhavava, fazia os ponto-a-
ponto da costura de todas aquelas memórias que corporificam uma
roupa que vestia um corpo que era o seu próprio, só que falado e
expandido pela profissão de fé dos relatos. Seus relatos, agulhas de
costura de carne, como as carnes expostas dos acidentados, das
fraturas expostas em sua urgência de salvação que pouco vai além da
premência da costura, do urgir da coesão reconstitutiva. Cada palavra
uma pedra, um ponto, um nó. Cada frase um golpe no mármore, um
alinhavo na carne, um aperto na amarra. Cada estória um esforço de
cinzel, um toque cirúrgico. Ao fim, o copo narrado de quem viveu e quer
que o vivido coincida no corpo. Missão impossível; o corpo, a carne, de
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então era o que nos davam como dote natural. O que tínhamos era o
dado e isso éramos nós e isso se partiu e partiu.
O Lugar foi desocupado e hoje só, só um cadáver resta. Muitos de
nós levam este cadáver que restou, o cadáver do si-mesmo. O local que
é externo-interno desocupado é sentido como jazigo pois quem lá habita
é o tal cadáver. Corpo imóvel? Nem tanto! Menos ainda: só os limites, os
contornos do que deveria ser, do que deveria estar e que deveria ser
nossa pauta. A esse molde precisamos preencher com o estofo que
ainda não sabemos bem do que se tratar. E mesmo se o soubéssemos,
suspeito que não o faríamos porque o molde já não comporta estofo
novo como o tecido velho não comporta remendo novo.
Essência e forma, estrutura e sentido, esses nomes vastos tiveram
suas almas arrebatadas. Seus corpos ocos nos servem de meios de ser,
na verdade de locomoção tão somente.
Para onde ir, já que ao menos retivemos a locomoção é uma
questão solar. Depois da mudança dos cento e oitenta, é bem possível
que aos trezentos e sessenta, o retorno perpétuo, importe voltar.
O corpo de busca.
Tomar o eu e seus extensos meus como plano é trazer certa paz. A paz
da permanência porque, sob esse teto insensato, aspiramos ao
congelamento. Nessa paz de frio, os tormentos, os infortúnios, os
malefícios, os aviltamentos, os malogros, os arroubos, as opressões e
aprisionamentos são fáceis de contornos; são sujeitos a desvios. São
intimidados e se se nos escapolem, são suscetíveis de boas desculpas,
ou quem sabe, de pequenas penas, ou punições, ou penitências, ou
promessas hipócritas. Tomássemos as rédias de nossa natureza,
fôssemos senhores do que não vemos em nós, veríamos surgir o
impensável, o que se ainda não pode imaginar porque a alter(n)ação foi
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É de lá, para mais de lá, onde fica a raiz das nossas insanidades que é o
mesmo espaço onde se fundam os alicerces do que nos mantém do jeito
que é ser o normal da hora, o natural da estação. É lá que se busca
então. E no entanto, a obscuridade está em que de pronto não podemos
a isso perceber porque tais insanidades são as tão importantes
normalidades e essas seu contrário. Os nomes Razão e Consciente
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Acordei mais que tonto. Foi como não ser mais eu. Não me
lembrava de absolutamente nada, exceto do velho e sua presença, e de
quem realmente se tratava. O impacto restava ainda. Fui aos poucos me
recuperando e também aos poucos me apropriando daquilo tudo que
hoje posso sintetizar e recontar como te fiz. Aquele encontro foi sendo
lentamente recuperado. E a cada pedaço recomposto, em proporção de
assustar, compunha eu meus rumos. Nos desvios, nos descaminhos, me
encontrei e até agora não sei se o que houve não passou de reencontro.
O segredo que me salvou me trouxe aqui e me fez assim. De lá
para cá não fui poupado de nada. Mas, não me rendi ao que por bem
pouco, quase me fez me roubar de mim a chance de ser. Fizesse o
contrário, ainda assim, teria sido eu. A grande diferença não está em
ganho ou perda alguma. Não tenho condições de efetuar tal operação de
medidas. E certamente de nada você saberia. Por vezes rechacei a
oportunidade de poder saber pois a contra-parte exala dor, muita dor.
Mas sabe, com o tempo, principalmente quando o corpo sucumbe à
gravidade e o torpor de estar vivo cessa gradualmente em sua
intensidade, chega também em gotas, um início de calmaria. Essa fase
não é mais que prenúncio do fim. Após tanto se debater sobrevém o
cansaço. No meu caso consegui ultrapassar essa fase vivo ainda e te
falo, parte de minha sorte foi ter esperado e lutado e chegado aqui para
sentir. Sentir que me reconciliei e essa reconciliação eu a sinto na carne
pois não arde o peso ter passado.
Te falo porque sei que entendes e que absorves pois fostes
também tocado daquela febre que é a fome de vida real, de ser , de ser
em verdade encarnada. De útil fica meu testemunho de que tudo isso,
das tentativas e das dores tantas, que tudo isso possa ser, não te
cabendo outra luta menos terrível, um caminho que valha muito, como
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no meu caso que tudo valeu. Mas, se de nada sei, sei e te falo que algo
deu certo.