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O corpo narrado.

A palavra não me fugiu. Se me fez prisioneira. E como estar preso


é atingir liberdades, fui seu salvador. Fiz-me vítima por ser algoz. Sou
filho de minha filha; sou mãe até que o parto me devora e vomita: só
um refém. A escravidão nos confins da palavra é toda a amplitude
possível. É assim antes e além.

Há vezes que uma narrativa se bifurca e de cada um desses seus


braços surgem outros tantos que ao fim, ter-se-á um rio caudaloso tão
longo que não será de se estranhar que do tal não se saiba mais da
origem e por vezes, nem seu fim. Essa longitude de um rio assim pode
ser vivenciada por alguém que se encontre em uma de suas partes, com
um grande sentido de permanência e seu cheiro, que varia de manhã
até à noite, que varia de lua a lua, de uma estação à outra, por mais que
mude não apagará a sensação subterrânea do que é eterno na
dimensão de uma vida só.
A quem vivesse imerso em sua vida em um momento de
turbilhões, de cachoeiras e precisasse de sua narrativa caudalosa para
sobreviver ao percalço, estaria irremediavelmente asujeitado a
autonomias outras que não a mínima possibilidade de uma que fosse
sua. Aprisionamento seria a liberdade possível, talvez até suspeitada.
Pior também, a tábua flutuante de salvação, é bem provável, poderia se
tornar a ancora do mergulho final, a chave sem segredo do grilhão.
Antes fosse ela rejeitada. Fosse, o que seria então? A invenção de estar
livre ao que corresponde no tempo da história da consciência que
conseguiu ver-se?
Entrei certa vez, num antiquário cujo proprietário já não via há
bem mais que cinco anos. Do senhor alvo, esguio e sexagenário, não
esperava mais que a lembrança de uma impressão esparsa.
Decepcionando minha expectativa, só o meu nome não recordava.
Havia mantido em grande frescor todos os dados diretos que me
levaram a ele em algumas oportunidades. Não apenas. Acrescentou o
que se desenrolou a outros que conhecíamos em comum durante
aqueles anos todos. Como de hábito, costurou casos, alinhavou estórias
e as ajeitou em camadas de modo que coubessem todas e daquele
exato arranjo para que transmitissem uma só idéia. Uma construção de
conjuntos ordenados para que culminassem a contar uma apenas
estória. Naquela oportunidade esse qüiproquó de palavras, personagens,
espaços e tempos vários serviam para que ele expusesse suas
conclusões sobre a dificuldade surpreendente que representa ser
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professor. Mas, naquele exercício havia bem mais que o expor. Havia
muito mais de expor-se e mais ainda.
Longe dali, fixo na memória do corpo dele que falava em conjunto
com olhos e boca, suspeitei que aquele exercício revelava a busca por
coesão. Ao falar amarrava seu corpo de vivencias dispersas na memória.
No narrado estava contida sua vida, ele nela contido, ele sendo ela, ela
sendo ele, os dois um só, juntos e separados pela impressão de
ajuntamento e afastamento da palavra. Ao narrar, ia ajeitando os fatos
que formava como um bolo de muitas camadas, porém, não para se dar
a comer senão para ser por ele mesmo comido. Para além de mim que
ouvia, ele que se ouvia. O objeto de sua boca era ele próprio e eu,
apenas caminho de volta, uma curva externa. Sua produção era o
costurar de etapas de sua vida; o recosturar de seu corpo de história
que vivia escondido debaixo de sua língua, alojado no vinco sulcado de
seus recordos até tomarem corpo também, na ravina de sua boca. Cada
ponto levantado correspondia a uma etapa de sua vida representada por
um ponto de memória, uma lembrança que solitária buscava outros e
solidárias rumavam ao encontro de um exército de seus semelhantes.
Era armada uma guerra cujo esquecimento se buscava derrotar sob a
pena capital da morte do eu, da tombada do grande bastião; a
consciência enervada, vívida. Essa, sua luta.
Cada ponto remembrado uma vitória que aliava, convalidava um
tempo que era acimentado na consistência de um órgão, pulsátil e vivo.
Cada tempo acercava de valor o presente que se misturava a todos os
passados para fazer-lhes valer a valência de vitalidade. E tudo isso era
um homem só, desdobrado em espaços infinitos feitos de presentes
passados e todos juntos na memória: seu corpo em cada extremidade
fincado e expandido a se alongar ultrapassando seus limites. O corpo
biológico já era, ele sim, um sonho, uma ilusão, uma invenção. Na troca,
o real era o mnemônico, o passado redivivo. Mas o objeto era mesmo se
dar sentido e esse se dava pelo efeito de coesão: era ele aquele mesmo
ator de tantos palcos, de inúmeras peças e quantas tragédias? Que
catarses? Que monólogos? Que fracassos? Quão poucos sucessos? O
que selecionar a renascer e o que sentenciar a morrer? Que decretos
existências fazer? Era essa a liberdade? Era essa a prisão?
A narrativa, aquela em específico, alinhavava, fazia os ponto-a-
ponto da costura de todas aquelas memórias que corporificam uma
roupa que vestia um corpo que era o seu próprio, só que falado e
expandido pela profissão de fé dos relatos. Seus relatos, agulhas de
costura de carne, como as carnes expostas dos acidentados, das
fraturas expostas em sua urgência de salvação que pouco vai além da
premência da costura, do urgir da coesão reconstitutiva. Cada palavra
uma pedra, um ponto, um nó. Cada frase um golpe no mármore, um
alinhavo na carne, um aperto na amarra. Cada estória um esforço de
cinzel, um toque cirúrgico. Ao fim, o copo narrado de quem viveu e quer
que o vivido coincida no corpo. Missão impossível; o corpo, a carne, de
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suporte só serve. Ponto de partida dos pontos tantos e outros. Desejo de


que tenha a força da forma e conteúdo que se supõe na carne; que
funcione com a coesão da ossatura que no corpo narrado é a saúde.
Cresce o corpo de signos em teia. Saúde da alma então, que agora é o
próprio corpo, contudo renovado e soerguido à palavra.

A madureza parece nos levar à defrontação de um rol de espelhos.


E a madureza é sempre e piora quando sabida. Os que refletem, um
processo; os que refratam, outro diverso, adverso. Não se trata de
convite e novamente, escapa ser livre. Embora, sendo imperativo, resta
evitar-lhe opondo-lhe indiferença.
O corpo que murcha é levado frente a um espelho onde seu
reflexo é mostrado em transparência. Isso é feito para que se meça o
senso de presença no mundo, sua inteireza de vida, da vida vivida, do
quanto o mundo se enraizou nos escombros do ser. No espaço do corpo
ali presente, o reflexo indaga se cabe sobre ele próprio, o corpo
transparente de sua existência, sem arranhões, em acoplamento de
cópula e portanto, vital. Um corpo que envelhece tem unidade porque
mesmo em processo, ao vê-lo, vê-se continuidade, ainda que seja a
menos desejada continuidade do crescer para a morte. Mas e o ser, a
alma, e o vivido, e a memória, e o lastro do coração? Suas ordens são
estranhas às do corpo que vai. Seu aspecto crescente, temporal, pode
ser dominado por descontinuidades; aquelas do corpo significado.
Frente ao espelho, ambos os corpos se confrontam. Mas o dos
signos contém o de carne. Falar e ser ouvido, contar e recontar são as
agulhas do tecelão ferido: costuram e tecem amarras para que prendam
um corpo ao outro – o de carne partida, o outro, ida. Dessa cópula deve
surgir, para a saúde dos corpos, uma tolerância sôfrega do atrito dos
contornos ou identidade entre as partes, que cremos, vivem vidas em
distância e busca: mais que Eros e Psique, corpo e alma, uma vez que
cada corpo, em seus reinos e ordens, erigem suas categorias nunca
equalizadas, nunca pacificadas porque para sempre e desde sempre
cindidas. O hermafroditismo inerente diz dos corpos que de grande
comum habitam o mesmo local de guerras.
Narro então; clamo por integridade, sonho com a pacificação da
natureza beligerante. A crença nos processos naturais de ajuste é doce
e frutifica em previsibilidade fácil. Viciados no seu sumo, deliramos na
replicação dessa ordem no corpo dos afetos, no corpo dos sonhos, no
corpo da memória, no corpo do tempo escondido.
Narro e clamo por segurança de ser e de continuar, perdurar,
transviver ... Nos espaços que não alcanço com minha palavra-agulha,
neste interstício, brota alienação. Quanto mais superficial, assim como
uma ferida, mais tratável e vice-versa. Também quanto a sua origem,
quanto mais superficial, mais provavelmente causada nos arredores de
mim; quanto mais profunda, mais distante, para além das cercanias que
me limitam, onde vivo: corpo, casa, país, continente, mundo.
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Importa continuar o ofício, laborioso embate. Há buracos,


clivagens de dúvidas, espaços desfiados pelo efeito dilacerante dos
conflitos, das lutas tantas, rasgos feitos pela pressão dos tantos
desnorteios.
Conto que vive naquele que vive, me afirmo que vivo e enquanto
há o bramir dos dentes, segue a máquina de agulhas que costura a
persona que já não é mais apenas máscara – é vestido, toga de um pano
mágico que atenua o desespero do pesadelo de ficar nu frente ao
espelho, aquele espelho de górgona que com o escudo das agulhas da
boca tento vencer. Narro como narra o velho que busca se salvar no
corpo falado que nutre e infla de estórias.

Os corpos sem tempo.

O retorno é uma dádiva; a repetição vem com possibilidade de


alteridade. Não mais uma maldição; uma benção. Voltar à caverna nunca é
retornar à mesma caverna: ora mais escura e reafirmada; ora mais iluminada,
esfalecendo-se para inaugurar tranqüilidade como alguma liberdade...
liberdade dos grilhões que são a própria estada na caverna ou seu retorno em
mera repetição.

Fomos surpreendidos com nossa própria velhice. O afastamento


em anos dos que no presente do nosso envelhecimento são jovens,
acionou uma série de novas visões. Quem estávamos sendo quando nos
encontramos de pronto tão desiguais àqueles com os quais tanto
parecíamos? Pensávamos que a maturidade fosse tão sólida quanto um
lugar, uma fase tão natural quanto o amadurecer na natureza acomete
invariavelmente os frutos e os levam a serem o que, nos parece com
clareza, ser seu fim, seu destino irrecusável. Pensamos que houvesse
então, por detrás do envelhecer, uma organização. Mais ainda, uma
ordenação que nos levasse, assim como aos frutos, a algum destino que
servisse e fosse o nosso destino. Era como se o futuro, antes afastado
pela distância agradável de quem deixa o começo de viver, fosse uma
instância comum ao maduro que culmina, que finda.
O equilíbrio era componente presente em grande peso nas
codificações que fazíamos. O porvir aguardava com equilíbrio. Nossa
geração acostumou-se ao sonho da família americana. Nesse símbolo-
esteriótipo a velhice era segura à sombra de um bom governo. Ali, o
corpo feneceria aos poucos sob a segurança da saúde pública ou
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privada. A ciência médica exala odores de crença na resolução do


sofrimento e da dor; amenizando o sofrer, encaminha bem o corpo que
murcha rumo à morte. Mas o fim era doce porque era sabido e o medo
deveria ser aos poucos incorporado, assimilado aqui e ali, entre uma
ruga e mais um fio branco até que se deglutisse por completo – para ser
o fim.
Crescemos baseados nas convenções do homem e da mulher que
se encontram, descobrem o amor e se casam. Daí aos filhos e ao
envelhecer e reproduzir-se nos filhos dos filhos. Quaisquer desvios no
exercício desses papéis, explicavam-se por outros desvios havidos na
execução dos papéis por quem os deveria ter executado com mais
afinco, quem sabe, maior esforço. Monogamia, cristandade como
moralidade, formas de ser, de sentir, desejar e sonhar bem
estabelecidas. E a sociologia das distâncias não perdoava: quanto mais
ao interior, mais rígidos os nós das malhas, das teias, das redes que nos
davam sustentação de ser o que de nós esperavam os de fora e todos
aqueles que já haviam se instalado dentro, coração e mente, como um
filho num útero.
Vivemos um sonho restrito, limitado em escondido para que os
arroubos, os delimites dos quais pudéssemos vir a saber, ficassem bem
longe como aberrações, cercadas fortemente para que sua exposição
não gerasse senão escárnio. Sentir e desejar polarizavam-se no binômio
crer-consumir. Ter fé era necessário. Felicidade cabia bem junto ao ter.
Mais ter, mais estável, mais felicidade. Conhecemos a agradável
estabilidade de ter nascido no interior, em classe média, em um período
onde as forças da contradição foram momentaneamente afastadas e o
tempo, suspenso e domado, parecia fácil, controlável naquele presente
e no horizonte que nem nos cabia na preocupação. Bastavam o esforço
e o estudo. As chaves eram dadas e a autonomia era usá-las ou não,
como aliás, muitos fizeram.
Mesmo desviantes de alguma forma, usuários de algum tipo de
droga, inclinados um pouco que fosse a alguma tendência não natural
em relação aos usos e costumes da sexualidade cristã, participantes ou
apenas simpatizantes de alguma ideologia dita de esquerda, fosse como
fosse, nosso coração pulsava com um sangue morno, era tempo de uma
ingenuidade morna.
Pensávamos que houvesse uma apreensão da realidade. O fluxo
de movimentos concretos que nos precedem no tempo é a cultura que
se faz e refaz como que estilhaçando – impossível de um redizer total.
Só passível portanto, de reconstituição. Aí o real é o desdobramento dos
homens e suas descendências em processo. O afastamento que nos
causa a sensação de distanciamento da realidade que nos esmaga é a
alienação das rédias da capacidade de significar as práticas a que somos
submetidos como úteis ou desnecessárias, a manter ou banir da
lembrança. Tal definição nos era impossível ou no mínimo de difícil
acesso. Mas os sinais de mal-estares se sucederam uma após aos
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outros: infelicidades, angústias, depressões, doenças, males psíquicos,


somatizações.
Quando vimos ao redor, tudo se transformando em quase seu total
contrário. As antigas pontes partiram. Os portos de chegada já não havia
mais. Fomos tomados de um torpor tal que não sabíamos falar sobre;
coube-nos a inglória tarefa de agir sob. Mas envelhecemos e essa
mudança nos deslocou uma vez mais e fora do eixo onde estávamos
mudos, podemos exercitar um balbuciar. Começamos tentando dizer
quem éramos frente ao que nos tornamos. Da narração parida passamos
a nos dar conta de que precisávamos atribuir valores. Do valorar o que
foi, partimos ao atrevimento: valorar o que é, o que se tornou, o que se
fez.
Nem sempre se pode. Entre o sujeito e a pessoa há uma fissura
tão grande que muitos diante dela preferem calar, não ver. Parece que o
tanto de autenticidade com a qual precisamos nos deparar está
justamente no meio do sujeito e da pessoa e perdido. Nesse meio, resta
o sentido que possibilita fazer a distinção entre o que fizeram de mim, o
que fiz de mim, se gosto ou não, o que restou a ser feito, o que me resta
ainda a fazer e talvez o mais duro: o que dificilmente terei meios de
mudar. É provável que aí haja o que se tornou em nós, o que se
congelou.
Mesmo a fissura pode ser de difícil identificação. Muitos encontram
na sua superfície a irritação que brota como efeito do choque, da
insatisfação causados pela pessoa frente ao sujeito, quando a pessoa
representa o acordo, a aliança passada em que a geração anterior
concordou em adotar uma visão da realidade e uma educação dos
sentidos de ser nesta realidade. Na hora em que tal irritação é
percebida, sorte ou azar, os laços das convenções se afrouxam ou seu
aperto usual já não mais nos cabe. Muitos nesta hora de corte,
deixaram-se influenciar por nuvens de ceticismo, ou vasto pragmatismo,
ou perda total de rumos cujos inícios comecem de dentro. E o que
poderia ser algo de liberdade, resvala-se em prisões e prisões de
prisões.
Antes, a convenção, as amarras, eram o meio e o significado. Com
estes decifrávamos o mundo de dentro e de fora. Mas com a fissura,
uma nova tarefa de risco se impôs: reconstruir o que se quebrou,
preencher o vazio com um estofo que valha. A dificuldade é saber-se
sozinho sendo também ao mesmo tempo meio de construção do texto e
o próprio alvo da leitura-decifração, pois o vazio a ser preenchido é um
obelisco e seu texto hieroglífico. Contudo, o que antes se utilizava para
velar, daí a frente, se fará usar para o desvelo.
Rechaçaram mártires, refutaram ídolos, reentronizaram deuses
insípidos, decapitaram reis, aviltaram mandamentos, dessacralizaram
cultos, desataram nós e criaram emaranhados para o ser; como aranhas
desgovernadas, fizeram-se algozes e vítimas. Nós. O que tínhamos até
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então era o que nos davam como dote natural. O que tínhamos era o
dado e isso éramos nós e isso se partiu e partiu.
O Lugar foi desocupado e hoje só, só um cadáver resta. Muitos de
nós levam este cadáver que restou, o cadáver do si-mesmo. O local que
é externo-interno desocupado é sentido como jazigo pois quem lá habita
é o tal cadáver. Corpo imóvel? Nem tanto! Menos ainda: só os limites, os
contornos do que deveria ser, do que deveria estar e que deveria ser
nossa pauta. A esse molde precisamos preencher com o estofo que
ainda não sabemos bem do que se tratar. E mesmo se o soubéssemos,
suspeito que não o faríamos porque o molde já não comporta estofo
novo como o tecido velho não comporta remendo novo.
Essência e forma, estrutura e sentido, esses nomes vastos tiveram
suas almas arrebatadas. Seus corpos ocos nos servem de meios de ser,
na verdade de locomoção tão somente.
Para onde ir, já que ao menos retivemos a locomoção é uma
questão solar. Depois da mudança dos cento e oitenta, é bem possível
que aos trezentos e sessenta, o retorno perpétuo, importe voltar.

O corpo de busca.

A mim também o silêncio me incomodava. Esse impacto da distância das


compreensões, da impossibilidade de um encontro que cause uma impressão
na memória e no corpo. Essa coisa toda eu também a senti. O silêncio me
incomodava. Não tanto o dos outros mas, o meu. O meu quando queria
continuar e estava certo que havia o que dizer, o que perguntar, só não havia
descoberto o que.
Lá na minha cidade, todos faziam e falavam sempre as mesmas coisas.
Já não queria mais contatos, nem ouvir. Ficava calado e isolado e de mim o que
notável era apenas uma leve ausência.
Incômodo e irritação. Não com eles. Precisava entender o que era tudo
aquilo que tinha que ser algo porque eu sentia que sim; mas não sabia falar,
nem perguntar...
Bem menos a quem, ou onde. Nas escolas, nas igrejas, com os novos,
como eu, com os velhos... não haveria resposta alguma onde a pergunta não
houvesse se aproximado. Pensei em fugir. Fuga impossível. Eu não queria ir;
queria ficar mas para que aquele lugar não fosse diferente dos lugares que vou
quando durmo, precisava entender o que era aquilo tudo que mesmo sendo
nada era mais forte, mais denso que uma rapadura e como ela, se não se sabe
que se deve comer aos poucos, quase nada, profundamente amarga. Aquele
nada todo era tudo e duro, e amargo, e me fazia mal. Ao contrário da rapadura,
da qual dominava o segredo da distância entre o bom e o ruim, sobre aquilo eu
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nada sabia, nada me contaram, nem ouvi comentário. Não dominava o


segredo, o grande segredo que não se ouvia falar.
Pensei então, que um troço tão grande deveria aparecer para alguém,
em algum lugar. Se não aqui, talvez lá. Comecei a perguntar aos outros sobre
seus sonhos. Durante um bom tempo tudo o que a tarefa havia me rendido era
um monte de estórias que nem de palpite pro jogo-do-bicho me serviram.
Fiquei tão decepcionado que resolvi desistir. Fiquei tão revoltado que resolvi
juntar tudo o que podia e esquecer que eu sabia que não sabia o que os outros
ainda não desconfiavam.
Fui à praça e ri com os que riam, ouvi suas estórias e repeti as
expressões, e as falas, e as brincadeiras na tarefa que me havia decidido e vi
que não é nada difícil fingir quando fugir é impossível. Voltei para casa e jantei.
Estava convencido que me mudaria dali pra diante já que não era tão difícil. E
ademais, era preferível ao gosto intragável daquela rapadura desconhecida.
Fui dormir com um assossego que há muito não experimentava quando, eu
não esperava por isso, meu primeiro encontro com o que buscava se deu.
Nunca fui de religião como até hoje não sou. Mas aquilo foi sagrado bem
que me causou. Eu sonhei comigo velho, muito velho, sujo, pobre, esquálido,
cheio de força, de determinação, forte e vulnerável como uma estátua branca.
Também eu, contudo um outro, mais jovem que na realidade, quieto e absorto
em ouvir, sedento e tonto, fiel e amedrontado, com angústia de saber o que
viria no tom de revelações. E aquele eu dos sonhos me dizia:

Há um tanto de verdade aqui meu filho! Em meio aos turbilhões, aos


amontoados de pedaços, um junto ao outro, juntos uns aos demais,
formam eles aquilo que nos orienta silenciosamente, ainda que seu
impacto seja de tal forma poderoso que sua força se equivalha a
inúmeros gritos que, em se assomando, nos ensurdecem. Lá no
horizonte dos sentidos, onde a vista do agora não alcança, lá se poderia,
se chegássemos, atingir a altura do delírio que é a crença na unidade do
eu que é tão somente ver limitado o existir debaixo do meu querer. É
tão somente esquadrinhar o todo que vem nos cercando desde que
nascemos e filtrá-lo ao sabor do que desejo que permaneça; para mim,
para meu uso, para que se perpetue o sorver que incha o espaço do que
é meu.

Esse ponto é preciso saber.

Tomar o eu e seus extensos meus como plano é trazer certa paz. A paz
da permanência porque, sob esse teto insensato, aspiramos ao
congelamento. Nessa paz de frio, os tormentos, os infortúnios, os
malefícios, os aviltamentos, os malogros, os arroubos, as opressões e
aprisionamentos são fáceis de contornos; são sujeitos a desvios. São
intimidados e se se nos escapolem, são suscetíveis de boas desculpas,
ou quem sabe, de pequenas penas, ou punições, ou penitências, ou
promessas hipócritas. Tomássemos as rédias de nossa natureza,
fôssemos senhores do que não vemos em nós, veríamos surgir o
impensável, o que se ainda não pode imaginar porque a alter(n)ação foi
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sempre tida como temerária: ou atributo dos deuses, como no passado;


ou vício dos insatisfeitos, ou a maldade dos pervertidos, ou a culpa dos
ímpios, ou o poder do mal que escorrega por entre os dedos do bem que
queríamos todo poderoso. Alternar e alterar dependem da capacidade
de sonhar num outro rumo.

Esse ponto é preciso saber.

A tudo isso poderíamos chamar desvelar. O simbolismo arcaico, que te


precede, que nos pariu, que foi rompido e afastado, perdura por detrás
da acurácia das técnicas, no preto dos asfaltos,nos milagres do acaso,
nos jogos da criança, na ira do moderno. Ele irrompe nos sonhos, como
agora ocorre, e diz que o desvelo é preciso. É representado por uma
mulher impávida que se mantém impossível de descobrimentos pois seu
rosto permanece por detrás de um véu. Esse véu guarda o segredo e
interdita ao consulente espúrio o conhecer. Ao consulente de si mesmo,
a esse também lhe oculta o saber que protege, que esconde. E o faz
por proteção do buscador que pede saciamento. Mas o que pede que se
lhe saceie não regra o que necessita e afoito, estupra, rasga, deflora,
atinge, escasseia e leva à morte que é a seca, a mudez do ídolo de
pedra. Evitada tal devastação, é a aparência da verdade que se
encontra afastada na plasticidade irretocável da dama de véu, do
feminino insondável.

Esse ponto é preciso saber.

De igual modo, o tabu, o interdito ou a arca nos falam muito mais de


uma etapa interna comum às civilizações presentes e não tão somente
de um capricho de injunções sociais onde poucos são os escolhidos. Os
mitos e as religiões bem o dizem: para além do permitido aguarda a
loucura, ou o exílio, ou a execração, ou a morte. Cada pena pior que a
outra de acordo com o tempo propício a cada uma para ser a pior.
Sendo a pior determinada, é ela então a escolhida ao infrator da
normalidade, ao inversor da natureza, ao desafiante do homem
permitido a ser. E você é um homem assim, mas de já abre o invisível
em ti e vê, vê por detrás do véu. Véu que teu.

Esse ponto é preciso saber.

É de lá, para mais de lá, onde fica a raiz das nossas insanidades que é o
mesmo espaço onde se fundam os alicerces do que nos mantém do jeito
que é ser o normal da hora, o natural da estação. É lá que se busca
então. E no entanto, a obscuridade está em que de pronto não podemos
a isso perceber porque tais insanidades são as tão importantes
normalidades e essas seu contrário. Os nomes Razão e Consciente
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muitas vezes mascaram, ou são o próprio véu que guarda e resguarda o


saber proibido a que tanto almejas e do qual quase se desvia, como é
regra aqui, lá e para adiante.

Esse ponto é preciso saber.

Parece provável que a substância do véu seja a crença. Ela é uma


grande aprendizagem que se torna mais forte sempre que é ensinada
em silêncio. Daí o perigo em ser crente e cego; daí a dificuldade em ser
desperto e ainda assim crente. É uma aprendizagem muda porém,
ensinada em alta voz. Essa voz que opera no silêncio, nos penetra
insuspeita e suas lições são assim como a ação do sol nos corpos que
alimenta, nutre, faz surgir, traz doenças, opera a vida e leva à morte
sem que percebamos. Mesmo quando o fazemos, somos levados a
esquecê-lo, ou tratá-lo, ou nos acostumar, ou ainda, tentar fingir o que
quer que seja e que faça diminuir um tanto de sua presença e
conseqüências quanto a má impressão de nossa impotência em lhe dar
um outro rumo qualquer que não aquele em curso.
Cremos, como nos ensinaram, que a fina corda sobre a qual
caminhamos no curto espaço de uma vida seja toda a existência
possível. É então o retorno aos limites curtos do eu. E se cremos em seu
contrário, que a fina corda não é senão um fiapo da corda real que virá,
a medida de existência se encurta ainda mais, como é o fiapo frente à
corda. Por um lado ou pelo outro, importa, malgrado ao buscador,
encurtá-la sempre e mais para que caiba apenas e somente nos limites
da superfície do eu, de novo, o eu.

Esse ponto é preciso saber.

É desta cegueira que te venho falando, na irritação que sentes, no


abandono, na estranheza, na diáspora, no exílio do teu corpo na tua
terra, quando te peço que forjes tua prisão em arma de escape. Quando
te peço que escape de todos os desnorteios e busque ao isolamento.
Não é às tradicionais formas de meditação que peço que te lances.
Antes porém, peço que te vás a perder-se das referências das cegueiras
e das surdezes. Esse mundo já se encontrava de há muito condenado.
Busca ouvir com retidão, busca! A retidão não é teu caráter que
disciplinado reterá. A retidão é a atenção que te leva ao longe, onde te
falei que é o alicerce: a vastidão. Retidão é buscar ir além do que o
presente após o presente te oferece. A realidade da qual te falo não se
apreende ou delimita, mas se acompanha indo com ela a frente e para
trás ao longo de sua, novamente, vastidão. Deixar-se é um dos sinais e
é assim que perder-se se faz em achar. Sim e perder-se em meio ao
medo, à incerteza, ao abissal. É assim como morrer. É estreito e
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solitário, frágil e morrediço. Entretanto, verdadeiro. Abrir-se, sofrer,


perder-se ou permanecer preso e imóvel. O sacrifício é você mesmo. O
ritual é sua busca e partida. Não há prêmios ou benesses; falo de
deveres e obrigações pois, as estradas são várias mas caminho só há
um que eu conheça: o de dentro. E nele, quanto mais longe, mais perto.
Quanto mais estreito, maior a visão.

Esse ponto é preciso saber.

Às vezes, naquelas oportunas, o que se pode fazer de melhor é afastar-


se, em primeiro do si mesmo que há. Ser assim ou daquele jeito
arraigadamente é vicioso e prejudicial. Busque assim, ver por onde não
se vê, escutar com ouvidos alheios, redescobrir os sentidos e fazer
revelar outros. Já lhe adianto um tanto do segredo: Amplia-te e percorre
– há muito o que fazer. Segue então.

Acordei mais que tonto. Foi como não ser mais eu. Não me
lembrava de absolutamente nada, exceto do velho e sua presença, e de
quem realmente se tratava. O impacto restava ainda. Fui aos poucos me
recuperando e também aos poucos me apropriando daquilo tudo que
hoje posso sintetizar e recontar como te fiz. Aquele encontro foi sendo
lentamente recuperado. E a cada pedaço recomposto, em proporção de
assustar, compunha eu meus rumos. Nos desvios, nos descaminhos, me
encontrei e até agora não sei se o que houve não passou de reencontro.
O segredo que me salvou me trouxe aqui e me fez assim. De lá
para cá não fui poupado de nada. Mas, não me rendi ao que por bem
pouco, quase me fez me roubar de mim a chance de ser. Fizesse o
contrário, ainda assim, teria sido eu. A grande diferença não está em
ganho ou perda alguma. Não tenho condições de efetuar tal operação de
medidas. E certamente de nada você saberia. Por vezes rechacei a
oportunidade de poder saber pois a contra-parte exala dor, muita dor.
Mas sabe, com o tempo, principalmente quando o corpo sucumbe à
gravidade e o torpor de estar vivo cessa gradualmente em sua
intensidade, chega também em gotas, um início de calmaria. Essa fase
não é mais que prenúncio do fim. Após tanto se debater sobrevém o
cansaço. No meu caso consegui ultrapassar essa fase vivo ainda e te
falo, parte de minha sorte foi ter esperado e lutado e chegado aqui para
sentir. Sentir que me reconciliei e essa reconciliação eu a sinto na carne
pois não arde o peso ter passado.
Te falo porque sei que entendes e que absorves pois fostes
também tocado daquela febre que é a fome de vida real, de ser , de ser
em verdade encarnada. De útil fica meu testemunho de que tudo isso,
das tentativas e das dores tantas, que tudo isso possa ser, não te
cabendo outra luta menos terrível, um caminho que valha muito, como
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no meu caso que tudo valeu. Mas, se de nada sei, sei e te falo que algo
deu certo.

Volta e conversamos mais.

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