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wdomingo,
9 de maio de 2010 15
PARTE VI Foto por Thiago Casoni
Corpo
Desacostumado
Por Caroline Guimarães Gil
As barracas de coquetéis encontravam-se el-
egantes na rua central da cidade, cada qual com
sua habilidade culinária e especialidades artísticas
em exposição. A banda contratada pela prefeitura
!
era composta pelos próprios moradores do bairro,
alguns adultos, adolescentes, e crianças, ador-
manhê
nados com uma farda, típica, na cor branca, com
detalhes em azul marinho, e botões dourado, com
seus instrumentos, cantarolando, num som grave e
perdido. Amiúde, notam-se pessoas se embriagando
com as bebidas do ponche, e se empanzinando com Por Ângela Russi
os aperitivos ofertados. Pelos cantos, próximos
aos cedros-da-várzea vêem-se grupos de jovens Quando meus filhos eram pequenos brincava com eles dizen- Sinal de amor eterno e da falta que elas imaginavam que ela faria. A
murmurando palavras, e trocando risos entre si; do que se a cada vez que eles falassem a palavra mãe eu ga- certeza da falta viria somente após a perda e a saudade. E veio.
crianças discutindo pelos balões coloridos que um nhasse dez centavos logo seria milionária. Muitas vezes eles Meus filhos, quando crianças queriam me comprar
senhor de barbas longas e brancas os vende junto a estavam em um cômodo da casa e eu estava em outro, nem um presente com seu próprio dinheiro e para isso juntaram la-
um palco, cujo espaço do gramado vazio, defronte o
tablado, encontra-se repleto de cadeiras alinhadas queriam nada, só me chamavam para ouvir-me respondendo: cres de latinhas de Coca-Cola, havia uma promoção que os tro-
em fileiras. ”tô aqui”, e diziam: ”só queria saber onde você estava.” cavam por brindes na época, e venderam para amiguinhos e
A fanfarra começou a se organizar para uma Nesse segundo domingo de maio não há como não falar sobre como o dinheiro era pouco me levaram para tomar sorvete.
última apresentação, ajeitando os trajes, afinando a dona do dia. Ela que é a presença mais marcante na vida de Histórias todos nós temos com a mulher de nossa vida.
os instrumentos, em meio a um calor avassalador, todo o ser humano mesmo que nunca tenha marcado presença. Boas ou não tão boas, são nossas e guardam em si um senti-
fazendo com que as pessoas se dispusessem ao redor Mesmo ausente tem o papel mais importante na vida daquele mento de pertença, de raiz, de identidade.
dela, nas calçadas, espichando as pontas dos pés, que gerou. Como não falar da mãe hoje? Palavra que é substan- Falar de mãe é mexer o mais profundamente possível no
para conseguirem ver tal acontecimento. Algumas tivo, porém é cheia de adjetivos. emocional da gente. Quem a tem por perto, independentemen-
crianças nos ombros de seus pais, inquietas, com Todos nós, se questionados, teríamos um episódio para con- te de proximidade física, é privilegiado. Quem não a tem, por
os dedos nas bocas, ou com suas fraldas, chupetas, tar em que nossa progenitora, ou de alguém que conhecemos, falecimento ou incompatibilidade de gênios, é um órfão. Mes-
bonecas, carrinhos. Algumas, mais afortunadas, foi o foco central da situação. Episódios bons e ruins fazem mo órfão carregamos em nós o jeito dela de ser. Gestos e ações
estavam logo na frente, de mãos dadas com seus pais parte desse relacionamento regado com amor exagerado e, in- nossos, inconscientemente, são feitos conforme ela nos orien-
ou parentes (conhecidos) à espera da apresentação, felizmente para muitos, com carência de amor. Algumas des- tou ou apenas por termos observado os gestos e ações dela. Na
antes do pronunciamento do novo prefeito. Benjamim sas histórias ficaram registradas em mim. adolescência só queremos ser diferentes dela, na maturidade
passava por ali, por coincidência encontrou alguns Assisti a um jogo de futebol amador em um clube aqui da ci- precisamos reconhecer que somos muito parecidas.
de seus antigos companheiros, e acabou permane- dade em que um jogador foi expulso por partir para cima de Eu sempre choro quando ouço aquela música antiga que diz:
cendo mais tempo do que previra. Embora esse tipo outro com violência. Motivo? O jogador a quem agrediu havia “mãe é uma só que temos no mundo”. Sei da falta que ela faz quando vai
de conglomeração o aterrorizasse, o carinho que xingado sua mãe. Ele saiu de campo seguro por amigos e di- para o outro mundo onde não dá para chamar e nem ouvir um “tô aqui”.
tinha por seus amigos, respeito e consideração, fê- zendo: “pode me xingar, mas, a minha mãe, não!” É um cômodo acima do que estamos. É tão gostoso poder dizer “minha
lo estabelecer-se, e suscitar indagações a respeito Conheço uma filha dada para adoção aos 11 meses mãe”. Falar que está indo na casa da mãe. Essa é a maior falta que sinto da
deste tal pronunciamento que iria vir a ocorrer no
local. de idade que na adolescência, incansavelmente, procurou sua minha. Poder chamá-la em voz alta: ”manhê.” Só chamar para ouví-la dizer:
- Patuscada! Patuscada! mãe para olhar pelo menos em seus olhos e reconhecer-se ne- “tô aqui.” Como quando estamos em um cômodo da casa e ela em outro,
- Ora, chega de gritos, Afonso! – exclamou les. Chegou ao limite de procurá-la em prostíbulos. Quando só para saber que está por perto. Como também sou mãe enxugo as lágri-
Benjamim, tentando fazê-lo aquietar diante a multi- descobriu seu paradeiro, a mãe já havia falecido. mas e espero o melhor dos abraços e o mais saboroso dos beijos que uma
dão. Mas, como o bem conhecia, Afonso era dotado Lembro-me de uma vizinha que no dia das mães estava no mãe pode desejar. O presente vem e já não é resultado de lacres de Coca-
desta hiperatividade única, mescla de exacerbação hospital já em estado terminal, recebeu rosas vermelhas das filhas. Cola. Ah, que saudade!
com inocência.