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PRÓLOGO CORRETAGEM
O Corretor Um está do lado de fora da casa, fa-
ESTA CENA ACONTECE NA FREN- lando ao celular, com sua noiva. Tenta dissimular
TE DA CASA, NA PORTA DE EN- a conversa e vai pouco a pouco cumprimentando os
TRADA, ANTES QUE OS ESPECTA- espectadores, indicando que já os vai atender.
DORES SEJAM DIVIDIDOS NOS
CENÁRIOS CORRETOR UM
(Ao telefone) Tô aqui na casa. Isso. Eu trouxe
JULIO um pessoal para ver. Marquei com um monte
Ela tinha nascido para não incomodar nin- de gente de uma vez só, para agilizar. (A noiva
guém. Passava o dia tricotando no sofá do seu responde) Confusão? Não. A casa é grande,
quarto. Tricotava coisas sempre necessárias, cabe todo mundo. (A noiva responde. Ele se irri-
casacos para o inverno, meias para mim e cole- ta) Ele que se dane! Eu tentei conversar com
tes para ela. Às vezes tricotava um colete e de- ele e ele me ignorou. Vou fazer do meu jeito
pois o desfazia num instante, porque alguma mesmo. (A noiva responde) Vou ter que desli-
coisa lhe desagradava; era engraçado ver na gar. O pessoal está me esperando. (A noiva res-
cestinha aquele monte de lã encrespada resis- ponde) Te amo. Tchau. (Desliga o telefone) Oi
tindo a perder a forma anterior. Ela me conta- gente. Desculpe a demora. Eu sei que vocês
va histórias... E eu ia ao centro comprar lã, to- não devem estar entendendo nada, mas eu
dos os sábados, e aproveitava essa saída para ir marquei essa visita com todos vocês ao mesmo
à livraria e perguntar em vão se haviam novi- tempo. Como vocês podem ver, a casa é bem
dades da literatura francesa. Mas aqui, nunca grande e eu achei que a gente poderia fazer
chega nenhuma novidade. Quando ela sonhava isso, para agilizar. Vamos entrando. (Conduz as
em voz alta, eu perdia o sono. Nunca pude me pessoas para dentro da casa)
acostumar a essa voz de estátua ou papagaio,
voz que vem dos sonhos e não da garganta. No No interior da casa, já se encontra o Corretor
dia em que o juizo se perdeu de vez, nós sequer Dois, com um casal.
nos olhamos. Os ruídos se ouviam cada vez Eles estão visitando a casa, com a intenção de
mais fortes. comprar.
CORRETOR DOIS
O processo de financiamento é com a Caixa,
né. Mas acho que com a renda mensal de vo-
cês, não vai ter problema algum.
MARIDO
Eu realmente gostei muito do imóvel. Só pre-
cisamos definir melhor esse preço...
ESPOSA
A região é muito valorizada, a gente sabe. Mas
estamos pagando quase tudo à vista...
MARIDO
Bem mais da metade.
ESPOSA
Isso.
CORRETOR UM MARIDO
(Chamando o outro de canto) Que está aconte- Vamos fechar de uma vez. Olha só quanta
cendo? gente...
CORRETOR UM MARIDO
Mas o engenheiro avaliou que a casa está com Eu quero ir do outro lado, ver o que aconteceu.
problemas na estrutura.
CORRETOR DOIS
MARIDO Não. Por favor. Pode ser perigoso. Eu vou na
Como é que é? frente, avisar o pessoal da reforma para eles
pararem.
CORRETOR DOIS
É brincadeira dele. Entra o Mestre de Obras coçando a cabeça. Ele
não sabe como vai iniciar a conversa com os ir-
CORRETOR UM mãos.
Tô falando sério.
MESTRE DE OBRAS
MULHER Olha, pessoal, a gente teve um probleminha alí
Você não falou que a casa ainda estava ocupa- do outro lado...
da...
CORRETOR UM CORRETOR UM
Mas, e a festa? A gente vai ter uma festa de Não aguento mais esse velho! Já falamos mil
lançamento daqui a pouco... vezes que a casa é nossa.
MULHER MARIDO
Que probleminha? Não sei se vou fechar o negócio. Com essa
complicação...
CORRETOR DOIS
Não deve ser nada. CORRETOR DOIS
Como eu disse antes, nós já estamos resolven-
MESTRE DE OBRAS do esse probleminha.
Esse negócio de festa hoje não dá não. A pare-
de de lá caiu e a gente vai ter que escorar. CORRETOR UM
Esses dois velhos estão malucos.
MARIDO
Caiu uma parede? Deixa eu ver. MARIDO
Estou falando dessa parede que caiu do outro
MESTRE DE OBRAS lado.
Não pode ficar nesse passa-passa não, amigo.
Tá perigoso, tem que esperar! CORRETOR DOIS
Ah, bom! A gente pode ir até lá, dar uma
Julio novamente aparece no andar de cima e se olhada. Você vai ver que não é nada demais...
dirige aos dois irmãos. (Saem para a Reforma)
JULIO CORRETOR UM
Vocês não tem vergonha de fazer uma coisa Em primeiro lugar, eu queria pedir desculpas
dessas com os seus próprios tios? para vocês por essa confusão. Como vocês per-
ceberam, a casa estava passando por uma re-
CORRETOR UM forma. Infelizmente, o engenheiro detectou
Você não é meu tio! A casa sim, é nossa! um problema estrutural seríssimo.
PINTOR
(Para o Ajudante) Ontem a mulher veio aqui,
rapaz, e ela parece que fica vendo coisa sabe?
Acho que ela tá meio doida.
AJUDANTE
A gente fala com ela e ela não escuta. Sabe
quando a pessoa fica viajando?
PINTOR
Sei como é. Tá chamando o Jesus, de Gené-
sio...
AJUDANTE
Tá bem louca essa tiazinha.
AJUDANTE SERVENTE
Se vocês quiserem, tem aquelas mascaras de Falou foi dessa.
pintura ali. Eu não uso não. Negócio mais
atrapalha do que tudo. Se vocês quiserem, é só PEDREIRO
pegar ali. Dá aqui essa marreta, dá aqui essa marreta!
PINTOR SERVENTE
Vão pegando as coisas e agilizando. Quero Eita porra!
terminar essa resina ainda hoje, porque ama-
nhã só fica o acabamento lá de cima. PINTOR
(Do lado de fora) Tá quebrando tudo aí, pedrei-
AJUDANTE ro?
E como vai fazer lá com a véinha?
SERVENTE
PINTOR Eu falei! Eu falei!
Isso aí não é poblema nosso. Isso aí é cos dono!
PEDREIRO
AJUDANTE Não foi nada não, rapaz!
(Para o público) Tem uma véia doida aí, rapaz,
que mora co irmão... viche! MESTRE DE OBRAS
Que merda é essa? (Olha o estrago) Puta que o
PINTOR pariu! Não era pra mexer nessa parede não,
Vamo parar com a fofoca? caralho!
PEDREIRO SERVENTE
O serviço é tranquilo. A gente precisa derrubar Num foi, que o engenheiro falou que não era
essa parede aqui, mas tem que ser com jeito, pra dirrubá essa?
porque a estrutura da casa tá meio zoada.
PINTOR PEDREIRO
(Para o Mestre de Obras) Quem? Pode deixar que eu conserto, rapaz. Sou ho-
mem, não tô de brincadeira não!
MESTRE DE OBRAS
Os donos. MESTRE DE OBRAS
Que é que eu vou dizer pros donos, rapaz?
PINTOR
Puta merda! Já era para eu ter terminado essa PINTOR
resina já. Fica um cheiro forte, rapaz! Fala pra voltar depois, que a gente tá fazendo
um negócio agora que eles não podem passar
AJUDANTE aqui.
Vamo agilizando, gente, vamo agilizando!
PEDREIRO
PINTOR Fala que a gente teve um pobrema aqui, mas já
Não foi culpa minha. A velha fica tesourando tamo resolvendo. Só que não pode passar.
o serviço.
AJUDANTE
MESTRE DE OBRAS Isso.
Agora tudo é a velha?
MESTRE DE OBRAS
PEDREIRO (Saindo) Puta que o pariu...
Ô servente, leva o pessoal lá fora e pega uns
caibros pra gente escorar essa laje aqui, vai! SERVENTE
(Entrando com os caibros) E agora, faz o quê?
SERVENTE
Vamo, gente. Vamo gente! (Leva um grupo de PEDREIRO
pessoas para pegar os caibros) Esqueceu como faz escora? Esqueceu?
PEDREIRO SERVENTE
E é melhor você avisar pros donos não virem Isso aí não tem mais jeito não!
pra cá não. O negócio aqui é perigoso e depois
não quero nego reclamando no meu ouvido. PEDREIRO
Vamo pará com essa conversinha, vamo. Agili-
MESTRE DE OBRAS za esses caibro logo!
Tá querendo falar o que eu tenho que fazer,
rapaz?
PEDREIRO IRENE
Filho da puta! Primeiro eu. Depois o Julio. (Canta uma canção
de ninar)
SERVENTE
Onde que é pra colocar esses caibros? AJUDANTE
(Dando risada) Essa tiazinha é uma comédia.
PEDREIRO
Vou te falar onde você enfia esses caibros! Vou SERVENTE
te falar... Me dá aqui que eu cuido disso! (Pega Dona, aqui tá perigoso. É melhor a senhora
os caibros e vai escorando a laje em alguns pontos) voltar para o seu quarto...
SERVENTE PEDREIRO
Dá um pouco aí, vai. (Ouvindo a discussão do Agiliza, servente. Agiliza!
lado da Corretagem) Viche, o bicho tá pegando
do lado de lá. Entram o Corretor Dois e o Marido.
PINTOR
Melhor vocês agilizarem essa escora aí, porque
daqui a pouco os donos chegam por aqui.
MARIDO PINTOR
Puta rachadura, rapaz. A parede está comple- E a resina?
tamente mole!
MESTRE DE OBRAS
PINTOR Pode parar.
A gente resolve isso num instante.
AJUDANTE
CORRETOR DOIS E o pessoal novo?
O que é que ela está fazendo aqui? Cadê a
bosta do velho? MESTRE DE OBRAS
Dispensa.
MARIDO
Calma, rapaz! É só uma senhora... SERVENTE
Rapaz, eu já não queria mais trabalhar aqui
CORRETOR DOIS não. O homem esculachou a tiazinha, rapaz.
(Visivelmente transtornado) Vamos saindo da- Só faltou bater na velha.
qui, sua velha louca! Fora! Sai daqui! (Pega Ire-
ne pelo braço com força e a leva até a porta que dá PEDREIRO
para o Hall de entrada). Quem já estava batendo na velha era eu. Quer
dizer que vão derrubar tudo?
IRENE
Não é a vez de vocês. É a vez do Julio... MESTRE DE OBRAS
Vão.
CORRETOR DOIS
Anda, velha! Cai fora! Vai melar meu negócio! PEDREIRO
( Joga Irene do outro lado da porta e a fecha) Servente, trava essa porta. (Indica a porta de
acesso à corretagem) E quando é que esses filhos
MARIDO da puta iam avisar a gente?
Não tem a menor condição de comprar essa
casa. E isso não é jeito de tratar uma senhora... PINTOR
Que absurdo! (Sai) Puta trabalho, rapaz. À tôa...
IRENE
(Descendo) Já é hora do almoço?
JULIO
Ainda não.
IRENE
Já é hora do almoço?
JULIO
Não. É hora do chá.
IRENE
Do chá?
JULIO
Isso. Do chá.
IRENE
(Sentando na escada. Se posiciona como se a escada
fosse uma mesa)
JULIO
Essa é Irene. Nascida para não incomodar nin-
guém. Fora dessa nossa atividade matinal, ela
passa o dia tricotando.
Djair Guilherme Página 11 de 15
A Casa Tomada
IRENE IRENE
(Segurando uma xícara invisível) Chá? A casa não deixou a gente se casar.
JULIO JULIO
(Faz o mesmo jogo com ela) Sim, obrigado. Eu perdi a Maria Esther e a Irene recusou dois
pretendentes. Já passamos a casa dos quarenta
IRENE anos e ficamos solteiros.
Me passa o açúcar?
IRENE
JULIO A casa é do papai, da mamãe, do vovô, da vovó,
Tá aqui. do Julio, da Irene. A casa não é dos primos.
IRENE JULIO
Obrigado. Não. Não é deles.
JULIO IRENE
Eu às vezes me pergunto o que teria feito Ire- Eles são preguiçosos. Toscos.
ne, sem o tricô.
JULIO
IRENE Isso. (Mudando de assunto) Mostra o seu tricô
(Levantando subitamente) Você trouxe? para eles...
JULIO IRENE
Trouxe. (Indo para o quarto) Vem aqui ver o meu tricô.
IRENE JULIO
(Subindo a escada) Deixa eu ver? (Ajudando a conduzir as pessoas) Eu me pergun-
to o que teria feito Irene, sem o tricô.
JULIO
Toma. (Entrega os novelos para Irene) IRENE
A gente pode reler um livro, mas quando um
IRENE casaco está terminado, não se pode repetir sem
Ai que lindos! Você tem bom gosto! (Sobe para escândalo.
os quartos)
JULIO
JULIO (Para o público, em segredo) Outro dia eu en-
(Seguindo Irene e conduzindo os espectadores) A contrei numa gaveta da cômoda xales brancos,
Irene confia no meu bom gosto e graças a verdes, lilazes... cobertos de naftalina, empi-
Deus, eu nunca tive que devolver as madeixas. lhados, como num armarinho.
No andar de cima da casa, Irene amarra as lãs em Ouve-se um estrondo forte na Reforma
Maria Esther, e nos pretedentes, como se eles fos-
sem marionetes. IRENE
(Transtornada) Preguiçosos e toscos! Preguiço-
IRENE sos e toscos!
Com quem será? Com quem será? Com quem
será, que o Julio vai casar? JULIO
(Para Irene) Calma. Calma.
JULIO
Maria Esther. Maria Esther e dois pretenden- IRENE
tes. Eu queria mais chá.
IRENE JULIO
E o chá? Você teve tempo de pegar alguma coisa?
JULIO IRENE
Vamos ter que viver só desse lado. Não. Nada.
IRENE JULIO
E o chá? Agora já é tarde. Vamos?
JULIO IRENE
Não está aqui. Perdemos do outro lado da casa. Vamos.
JULIO
Ela tinha nascido para não incomodar nin-
guém. Passava o dia tricotando no sofá do seu
quarto. Tricotava coisas sempre necessárias,
casacos para o inverno, meias para mim e cole-
tes para ela. Às vezes tricotava um colete e de-
pois o desfazia num instante, porque alguma
coisa lhe desagradava; era engraçado ver na
cestinha aquele monte de lã encrespada resis-
tindo a perder a forma anterior. Ela me conta-
va histórias... E eu ia ao centro comprar lã, to-
dos os sábados, e aproveitava essa saída para ir
à livraria e perguntar em vão se haviam novi-
dades da literatura francesa. Mas aqui, nunca
chega nenhuma novidade. Quando ela sonhava
em voz alta, eu perdia o sono. Nunca pude me
acostumar a essa voz de estátua ou papagaio,
voz que vem dos sonhos e não da garganta. No
dia em que o juizo se perdeu de vez, nós sequer
nos olhamos. Os ruídos se ouviam cada vez
mais fortes. Estávamos apenas com a roupa do
corpo. Antes de partir, senti pena. Fechei bem
a porta da entrada e joguei a chave no ralo da
entrada.
FIM