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A Casa Tomada

PRÓLOGO CORRETAGEM
O Corretor Um está do lado de fora da casa, fa-
ESTA CENA ACONTECE NA FREN- lando ao celular, com sua noiva. Tenta dissimular
TE DA CASA, NA PORTA DE EN- a conversa e vai pouco a pouco cumprimentando os
TRADA, ANTES QUE OS ESPECTA- espectadores, indicando que já os vai atender.
DORES SEJAM DIVIDIDOS NOS
CENÁRIOS CORRETOR UM
(Ao telefone) Tô aqui na casa. Isso. Eu trouxe
JULIO um pessoal para ver. Marquei com um monte
Ela tinha nascido para não incomodar nin- de gente de uma vez só, para agilizar. (A noiva
guém. Passava o dia tricotando no sofá do seu responde) Confusão? Não. A casa é grande,
quarto. Tricotava coisas sempre necessárias, cabe todo mundo. (A noiva responde. Ele se irri-
casacos para o inverno, meias para mim e cole- ta) Ele que se dane! Eu tentei conversar com
tes para ela. Às vezes tricotava um colete e de- ele e ele me ignorou. Vou fazer do meu jeito
pois o desfazia num instante, porque alguma mesmo. (A noiva responde) Vou ter que desli-
coisa lhe desagradava; era engraçado ver na gar. O pessoal está me esperando. (A noiva res-
cestinha aquele monte de lã encrespada resis- ponde) Te amo. Tchau. (Desliga o telefone) Oi
tindo a perder a forma anterior. Ela me conta- gente. Desculpe a demora. Eu sei que vocês
va histórias... E eu ia ao centro comprar lã, to- não devem estar entendendo nada, mas eu
dos os sábados, e aproveitava essa saída para ir marquei essa visita com todos vocês ao mesmo
à livraria e perguntar em vão se haviam novi- tempo. Como vocês podem ver, a casa é bem
dades da literatura francesa. Mas aqui, nunca grande e eu achei que a gente poderia fazer
chega nenhuma novidade. Quando ela sonhava isso, para agilizar. Vamos entrando. (Conduz as
em voz alta, eu perdia o sono. Nunca pude me pessoas para dentro da casa)
acostumar a essa voz de estátua ou papagaio,
voz que vem dos sonhos e não da garganta. No No interior da casa, já se encontra o Corretor
dia em que o juizo se perdeu de vez, nós sequer Dois, com um casal.
nos olhamos. Os ruídos se ouviam cada vez Eles estão visitando a casa, com a intenção de
mais fortes. comprar.

CORRETOR DOIS
O processo de financiamento é com a Caixa,
né. Mas acho que com a renda mensal de vo-
cês, não vai ter problema algum.

MARIDO
Eu realmente gostei muito do imóvel. Só pre-
cisamos definir melhor esse preço...

ESPOSA
A região é muito valorizada, a gente sabe. Mas
estamos pagando quase tudo à vista...

MARIDO
Bem mais da metade.

ESPOSA
Isso.

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MARIDO MULHER
Só isso já vale um bom desconto. (Para o Marido) Já vai assinar?

CORRETOR UM MARIDO
(Chamando o outro de canto) Que está aconte- Vamos fechar de uma vez. Olha só quanta
cendo? gente...

CORRETOR DOIS CORRETOR UM


Quem é essa gente? Pessoal, vamos seguindo aqui para esse lado
(vai conduzindo as pessoas para o hall de entrada)
CORRETOR UM Eles sabem o porquê da reforma?
Eu é que pergunto. Esse horário é meu!
CORRETOR DOIS
CORRETOR DOIS Já mostrei para eles.
Já estamos terminando. Pra quê tanta gente?
MARIDO
CORRETOR UM É, mas depois que a gente assinar o contrato,
Estratégia nova. vamos querer que a reforma acabe.

CORRETOR DOIS MULHER


Ah, é isso que você estava querendo conversar E essa gente toda aqui?
ontem?
CORRETOR UM
CORRETOR UM Vieram para uma festa de lançamento.
Não interessa.
CORRETOR DOIS
CORRETOR DOIS Brincadeira dele.
Bom... Como é que você vai fazer para dispen-
sar todos eles? CORRETOR UM
É sério. Era essa a minha idéia.
CORRETOR UM
Como assim? CORRETOR DOIS
O quê?
CORRETOR DOIS
Acabei de vender a casa. Para o casal aqui. CORRETOR UM
Uma festa, para o cliente conhecer o espaço.
CORRETOR UM
Vender? Como assim? CORRETOR DOIS
Cara, eu já estou quase fechando com eles...
CORRETOR DOIS
(Para o casal) Só falta assinar o contrato, não é CORRETOR UM
isso? Aliás, vocês estão convidados.

MARIDO CORRETOR DOIS


Onde eu assino? Eles são meus clientes! Aliás, vamos assinar?

CORRETOR DOIS Um forte estrondo é ouvido na área da RE-


Só um instante, já estou pegando aqui na pas- FORMA.
ta.
MULHER
Que foi isso?

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CORRETOR DOIS MARIDO
Não foi nada. Deve ter sido alguma coisa na Não falou mesmo.
reforma.
CORRETOR DOIS
CORRETOR UM Olha, esses são só uns parentes nossos meio
Aliás, já era hora de eles pararem. loucos...

CORRETOR DOIS CORRETOR UM


Eu esqueci de te avisar que hoje eles vão até São primos. Primos de segundo grau! A gente
mais tarde. vai resolver isso.

CORRETOR UM CORRETOR DOIS


Como é que é? O importante hoje é vocês fecharem o contra-
to. Inclusive tem uma cláusula aqui, falando
CORRETOR DOIS dessas providências...
(Para o Corretor Um) Os outros dois não que-
rem sair da casa. A gente armou essa coisa da MARIDO
reforma ir até de noite agora. Vocês são parentes?

No andar de cima, Julio começa a descer a escada. CORRETOR DOIS


Vê os espectadores e dá meia volta. Por fim, bate Irmãos.
uma porta no andar superior.
CORRETOR UM
CORRETOR UM Vocês dão licença, só um pouco? (Para o Corre-
Eles ainda estão aqui? tor Dois) Eu fiz as contas essa semana. Se a
gente derrubar a casa e construir o condomí-
CORRETOR DOIS nio, vamos ganhar cinco vezes mais...
Estão.
CORRETOR DOIS
CORRETOR UM Eu já vendi a casa, velho!
E a reforma é para pressionar os dois a saírem?
CORRETOR UM
CORRETOR DOIS Depois vai dar processo. A casa está caindo.
É. Também... Problemas na estrutura. Eu mandei avaliar.

CORRETOR UM MARIDO
Mas o engenheiro avaliou que a casa está com Eu quero ir do outro lado, ver o que aconteceu.
problemas na estrutura.
CORRETOR DOIS
MARIDO Não. Por favor. Pode ser perigoso. Eu vou na
Como é que é? frente, avisar o pessoal da reforma para eles
pararem.
CORRETOR DOIS
É brincadeira dele. Entra o Mestre de Obras coçando a cabeça. Ele
não sabe como vai iniciar a conversa com os ir-
CORRETOR UM mãos.
Tô falando sério.
MESTRE DE OBRAS
MULHER Olha, pessoal, a gente teve um probleminha alí
Você não falou que a casa ainda estava ocupa- do outro lado...
da...

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MULHER JULIO
Que probleminha? A casa sempre foi minha. Minha e de Irene!

MESTRE DE OBRAS CORRETOR DOIS


(Para os irmãos) Essa quem é? A casa é nossa, tio! Foi deixada para a gente!

CORRETOR DOIS CORRETOR UM


Ela está comprando a casa... Sai daqui, anda! A gente não quer conversar
agora!
MARIDO
Ainda não. Julio sai.

MULHER CORRETOR DOIS


Que probleminha? (Para o irmão) Calma. Olha as pessoas... Gen-
te, vocês podem me acompanhar até aqui por
MESTRE DE OBRAS favor? (Conduz novamente as pessoas até a sala
Comprou ou não comprou? de estar)

CORRETOR UM CORRETOR UM
Mas, e a festa? A gente vai ter uma festa de Não aguento mais esse velho! Já falamos mil
lançamento daqui a pouco... vezes que a casa é nossa.

MESTRE DE OBRAS MULHER


Festa onde? Não. Não dá não! Que situação desagradável!

MULHER MARIDO
Que probleminha? Não sei se vou fechar o negócio. Com essa
complicação...
CORRETOR DOIS
Não deve ser nada. CORRETOR DOIS
Como eu disse antes, nós já estamos resolven-
MESTRE DE OBRAS do esse probleminha.
Esse negócio de festa hoje não dá não. A pare-
de de lá caiu e a gente vai ter que escorar. CORRETOR UM
Esses dois velhos estão malucos.
MARIDO
Caiu uma parede? Deixa eu ver. MARIDO
Estou falando dessa parede que caiu do outro
MESTRE DE OBRAS lado.
Não pode ficar nesse passa-passa não, amigo.
Tá perigoso, tem que esperar! CORRETOR DOIS
Ah, bom! A gente pode ir até lá, dar uma
Julio novamente aparece no andar de cima e se olhada. Você vai ver que não é nada demais...
dirige aos dois irmãos. (Saem para a Reforma)

JULIO CORRETOR UM
Vocês não tem vergonha de fazer uma coisa Em primeiro lugar, eu queria pedir desculpas
dessas com os seus próprios tios? para vocês por essa confusão. Como vocês per-
ceberam, a casa estava passando por uma re-
CORRETOR UM forma. Infelizmente, o engenheiro detectou
Você não é meu tio! A casa sim, é nossa! um problema estrutural seríssimo.

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MULHER MARIDO
Como é que é? Vocês estavam vendendo uma Eu desisto do negócio.
casa que está caindo aos pedaços?
CORRETOR DOIS
CORRETOR UM O senhor me desculpe. Eu perdi totalmente a
Meu irmão não sabe disso ainda e por isso es- razão.
tava vendendo a casa.
CORRETOR UM
MESTRE DE OBRAS E a festa?
Quer dizer que vão derrubar a casa toda? (Sai
para a Reforma) CORRETOR DOIS
Não tem condição nenhuma.
MULHER
Que gente mau caráter! CORRETOR UM
Como assim, cara? E esse monte de gente?
CORRETOR UM
(Para os espectadores) Mas vocês não tem com o CORRETOR DOIS
quê se preocupar. O conceito que estamos Cara, a melhor coisa é dispensar todo mundo.
vendendo a vocês é outro: condomínio hori- Do jeito que estão as coisas do outro lado, a
zontal! Visualmente, as casas que vamos cons- casa não vai durar muito.
truir aqui serão muito parecidas com essa. Em
tamanho menor, claro! Garagem, vigilância 24 CORRETOR UM
horas, áreas de lazer... tudo em comum. As Impossível! Uma casa desse tamanho não vai
despesas divididas. Segurança, conforto, tudo cair inteira de uma vez por causa de uma mar-
por um preço que você pode pagar. retada. Vou lá ver!

Se escuta uma discussão violentíssima do lado da CORRETOR DOIS


Reforma. Uma porta se fecha com força. Sons de (Segura o irmão) Pára com isso, cara. Acabou!
alguém subindo a escada.
CORRETOR UM
MARIDO Me solta! Eu vou lá ver essa merda toda! (Ten-
(Entrando, visivelmente embaraçado) Vamos ta abrir a porta do lado da reforma, mas não con-
embora. segue. Pede ajuda a alguém da platéia) Escuta,
você pode me ajudar aqui?
MULHER
O que houve? MARIDO
Vamos embora, mulher.
MARIDO
Eu nunca vi uma monstruosidade dessas. MULHER
Que aconteceu?
CORRETOR DOIS
(Entrando, transtornado) A casa está condena- CORRETOR DOIS
da. Por favor. Queiram me acompanhar. Vamos ter
que interditar a casa.
CORRETOR UM
Que aconteceu? Ouvi uma gritaria... CORRETOR UM
Não antes de eu ter certeza que isso é verdade.
CORRETOR DOIS (Vai para a porta do Hall de entrada. Entra e
Eles acertaram uma coluna estrutural que esta- fecha a porta).
va fragilizada. A velha entrou gritando com
todo mundo. Perdi o controle... No lado da reforma ouve-se um ruído fortíssimo.

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MESTRE DE OBRAS
(Entrando) Gente, é melhor vocês saírem. Por
REFORMA
favor! (Vai conduzindo as pessoas para fora em O Mestre de Obras está com as pessoas na garagem
direção à garagem). da casa. Ele as trata como se fossem operários que
vão estagiar na obra.
CORRETOR DOIS
(Apressando a saída do público) Por aqui, gente. MESTRE DE OBRAS
Por aqui! (Distribuindo equipamentos de proteção para as
pessoas) Olha, pessoal, vocês desculpem a cor-
MARIDO reria. A gente tem que cuidar da reforma aqui
(Tenta entrar no meio do público) Vamos! Va- dessa casa, que esses dois irmãos encomenda-
mos! ram pra nós, e eles queriam que a gente aca-
basse a coisa toda logo, porque eles estão com
MULHER pressa de vender. Tem um deles, o mais novo,
(De fora da multidão) Me espera! que parece que vai casar e está precisando do
dinheiro. Então a gente tava trabalhando de
MARIDO dia e de noite. Mas agora ninguém mais tá
Anda, mulher! querendo trabalhar aqui de noite e a gente re-
solveu contratar vocês para aumentar a equipe
CORRETOR DOIS e trabalhar na casa de dia mesmo. Todo mun-
(Para o casal, depois que os espectadores saem) Vo-
do. Das oito às cinco, de segunda a sexta. Sá-
cês dois, só um instantinho. Eu queria dar uma
bado não. Nem domingo. Só hoje que a gente
palavrinha com vocês... (fecha a porta da casa,
trabalha de noite para vocês verem o que tem
pelo lado de dentro)
que fazer.
... O Mestre de Obras conduz as pessoas através da
porta que vai da garagem à lavanderia, no quin-
tal. Nos fundos da casa se observa uma equipe de
trabalho. Próximo ao tanque, no quintal, estão o
pintor e seu ajudante. Na cozinha, um pedreiro,
um servente e um encanador.

PINTOR
(Para o Ajudante) Ontem a mulher veio aqui,
rapaz, e ela parece que fica vendo coisa sabe?
Acho que ela tá meio doida.

AJUDANTE
A gente fala com ela e ela não escuta. Sabe
quando a pessoa fica viajando?

PINTOR
Sei como é. Tá chamando o Jesus, de Gené-
sio...

AJUDANTE
Tá bem louca essa tiazinha.

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MESTRE DE OBRAS SERVENTE
(Para o público) Quem tem jeito com essas coi- O engenheiro falou que num era pra derrubar
sas de pintura? Vem aqui então. Vocês ficam essa não...
aqui com eles. (Para os pintores) Que que vocês
tão fazendo? PEDREIRO
Quem falou? Engenheiro, merda nenhuma...
PINTOR
Hoje é só resinar esse pedaço aqui. Com resina SERVENTE
de silicone. Ajudante, pega os rolo lá e dá as Olha, rapaz, ele falou ontem, que eu vi.
máscara para eles.
PEDREIRO
MESTRE DE OBRAS Vai pegando a marreta, vai! O Engenheiro fa-
Os outros seguem aqui comigo. (Leva os outros lou da outra parede, rapaz. Não era essa não.
para a cozinha) Ele falou daquela outra ali.

AJUDANTE SERVENTE
Se vocês quiserem, tem aquelas mascaras de Falou foi dessa.
pintura ali. Eu não uso não. Negócio mais
atrapalha do que tudo. Se vocês quiserem, é só PEDREIRO
pegar ali. Dá aqui essa marreta, dá aqui essa marreta!

MESTRE DE OBRAS SERVENTE


(Na cozinha) Aqui precisa de gente forte, por- Toma. (Dá a marreta)
que vai trabalhar com o pedreiro.
PEDREIRO
MESTRE DE OBRAS Muita conversinha, rapaz! (Dá uma marretada
Quem pode ficar com o pedreiro? na parede. A parede e o teto cedem)

PINTOR SERVENTE
Vão pegando as coisas e agilizando. Quero Eita porra!
terminar essa resina ainda hoje, porque ama-
nhã só fica o acabamento lá de cima. PINTOR
(Do lado de fora) Tá quebrando tudo aí, pedrei-
AJUDANTE ro?
E como vai fazer lá com a véinha?
SERVENTE
PINTOR Eu falei! Eu falei!
Isso aí não é poblema nosso. Isso aí é cos dono!
PEDREIRO
AJUDANTE Não foi nada não, rapaz!
(Para o público) Tem uma véia doida aí, rapaz,
que mora co irmão... viche! MESTRE DE OBRAS
Que merda é essa? (Olha o estrago) Puta que o
PINTOR pariu! Não era pra mexer nessa parede não,
Vamo parar com a fofoca? caralho!

PEDREIRO SERVENTE
O serviço é tranquilo. A gente precisa derrubar Num foi, que o engenheiro falou que não era
essa parede aqui, mas tem que ser com jeito, pra dirrubá essa?
porque a estrutura da casa tá meio zoada.

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PEDREIRO PEDREIRO
Cala a boca, merda! É sério.

MESTRE DE OBRAS MESTRE DE OBRAS


E agora? Você faz uma puta cagada dessa e ainda quer
me dizer o que eu tenho que fazer? Eu devia
PEDREIRO era mandar você ir procurar sua turma...
Aquela véia também. Deixa a gente nervoso,
rapaz. Num aguento mais aquela velha! PEDREIRO
É só falar. É só falar que eu saio agora mesmo!
MESTRE DE OBRAS
Agora o problema é a velha... Puta que o pa- MESTRE DE OBRAS
riu. Como é que nós vamos fazer? Os donos Você vai é consertar essa merda que você fez,
estão aí. se você for homem.

PINTOR PEDREIRO
(Para o Mestre de Obras) Quem? Pode deixar que eu conserto, rapaz. Sou ho-
mem, não tô de brincadeira não!
MESTRE DE OBRAS
Os donos. MESTRE DE OBRAS
Que é que eu vou dizer pros donos, rapaz?
PINTOR
Puta merda! Já era para eu ter terminado essa PINTOR
resina já. Fica um cheiro forte, rapaz! Fala pra voltar depois, que a gente tá fazendo
um negócio agora que eles não podem passar
AJUDANTE aqui.
Vamo agilizando, gente, vamo agilizando!
PEDREIRO
PINTOR Fala que a gente teve um pobrema aqui, mas já
Não foi culpa minha. A velha fica tesourando tamo resolvendo. Só que não pode passar.
o serviço.
AJUDANTE
MESTRE DE OBRAS Isso.
Agora tudo é a velha?
MESTRE DE OBRAS
PEDREIRO (Saindo) Puta que o pariu...
Ô servente, leva o pessoal lá fora e pega uns
caibros pra gente escorar essa laje aqui, vai! SERVENTE
(Entrando com os caibros) E agora, faz o quê?
SERVENTE
Vamo, gente. Vamo gente! (Leva um grupo de PEDREIRO
pessoas para pegar os caibros) Esqueceu como faz escora? Esqueceu?

PEDREIRO SERVENTE
E é melhor você avisar pros donos não virem Isso aí não tem mais jeito não!
pra cá não. O negócio aqui é perigoso e depois
não quero nego reclamando no meu ouvido. PEDREIRO
Vamo pará com essa conversinha, vamo. Agili-
MESTRE DE OBRAS za esses caibro logo!
Tá querendo falar o que eu tenho que fazer,
rapaz?

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PINTOR AJUDANTE
Ô Pedreiro, não é querendo falar não, mas Pior se a véia descer.
acho que fudeu tudo aí, meu amigo.
PINTOR
PEDREIRO Cala a boca.
Eu fico dando palpite no seu serviço? Fico
dando palpite na merda do seu serviço? SERVENTE
Só faltava aquela velha, agora.
PINTOR
Quem trabalha direito não precisa de palpite. PEDREIRO
Se aquela velha aparecer aqui, ou eu me mato,
PEDREIRO ou mato ela!
Cê tá falando o quê, hein? Seu filho de rapari-
ga! SERVENTE
Escuta. Escuta!
PINTOR
Do que foi que você me chamou, rapaz? AJUDANTE
Não dá pra ouvir merda nenhuma...
AJUDANTE
Vamo acalmando. Os donos tão aí. SERVENTE
Mas que o bicho pegou lá, pegou!
PEDREIRO
Sua sorte é essa, rapaz. Sua sorte é essa... PINTOR
Vai sobrar pro nosso lado...
PINTOR
Se eu fosse você, se concentrava em arrumar IRENE
essa merda aí que você fez. (Entrando) Não é a vez de vocês, agora. Não é
a vez de vocês. A vez é dos outros!
SERVENTE
É. Vamo resolver isso, antes que os donos che- PEDREIRO
guem. Sai daqui, velha!

PEDREIRO IRENE
Filho da puta! Primeiro eu. Depois o Julio. (Canta uma canção
de ninar)
SERVENTE
Onde que é pra colocar esses caibros? AJUDANTE
(Dando risada) Essa tiazinha é uma comédia.
PEDREIRO
Vou te falar onde você enfia esses caibros! Vou SERVENTE
te falar... Me dá aqui que eu cuido disso! (Pega Dona, aqui tá perigoso. É melhor a senhora
os caibros e vai escorando a laje em alguns pontos) voltar para o seu quarto...

SERVENTE PEDREIRO
Dá um pouco aí, vai. (Ouvindo a discussão do Agiliza, servente. Agiliza!
lado da Corretagem) Viche, o bicho tá pegando
do lado de lá. Entram o Corretor Dois e o Marido.

PINTOR
Melhor vocês agilizarem essa escora aí, porque
daqui a pouco os donos chegam por aqui.

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CORRETOR DOIS MESTRE DE OBRAS
Foi só uma rachadura aqui no teto, tá Não precisa mais. Acabou. Essa merda que
vendo...(Olhando para Irene) Que merda é você fez, no fim das contas, era o que eles que-
essa? riam.

MARIDO PINTOR
Puta rachadura, rapaz. A parede está comple- E a resina?
tamente mole!
MESTRE DE OBRAS
PINTOR Pode parar.
A gente resolve isso num instante.
AJUDANTE
CORRETOR DOIS E o pessoal novo?
O que é que ela está fazendo aqui? Cadê a
bosta do velho? MESTRE DE OBRAS
Dispensa.
MARIDO
Calma, rapaz! É só uma senhora... SERVENTE
Rapaz, eu já não queria mais trabalhar aqui
CORRETOR DOIS não. O homem esculachou a tiazinha, rapaz.
(Visivelmente transtornado) Vamos saindo da- Só faltou bater na velha.
qui, sua velha louca! Fora! Sai daqui! (Pega Ire-
ne pelo braço com força e a leva até a porta que dá PEDREIRO
para o Hall de entrada). Quem já estava batendo na velha era eu. Quer
dizer que vão derrubar tudo?
IRENE
Não é a vez de vocês. É a vez do Julio... MESTRE DE OBRAS
Vão.
CORRETOR DOIS
Anda, velha! Cai fora! Vai melar meu negócio! PEDREIRO
( Joga Irene do outro lado da porta e a fecha) Servente, trava essa porta. (Indica a porta de
acesso à corretagem) E quando é que esses filhos
MARIDO da puta iam avisar a gente?
Não tem a menor condição de comprar essa
casa. E isso não é jeito de tratar uma senhora... PINTOR
Que absurdo! (Sai) Puta trabalho, rapaz. À tôa...

CORRETOR DOIS SERVENTE


Eu falei que a gente tinha que chamar a polícia Mas eles vão pagar né?
para tirar esses velhos daqui. Eu falei! (Sai)
PEDREIRO
MESTRE DE OBRAS Filhos da puta! Filhos da puta! E eu aguen-
(Entrando) Essa merda aqui não tem mais jei- tando essa merda dessa velha!
to não, pedreiro. Acabou. Vai ter que derrubar
tudo! PINTOR
Calma, pedreiro!
PEDREIRO
Tem jeito sim, rapaz. É só escorar! PEDREIRO
Calma? Calma o caramba! Vou derrubar isso
tudo, só de raiva. (Dá uma marretada mais forte.
A parede cede ainda mais)

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MESTRE DE OBRAS
O homem está doido! Deixa eu avisar o pesso-
Memórias
al para sair da casa! E vocês, segurem o bicho! Julio recebe as pessoas no Hall de entrada. Ele car-
(Sai para o lado da Corretagem) rega uma sacola com vários novelos de lã e um ál-
bum de selos debaixo do braço. Essa cena tem um
PINTOR, SERVENTE E AJUDANTE ritmo bastante diferente das anteriores. É mais
(Seguram o pedreiro e o tiram da casa) Para com lenta.
isso, rapaz!
JULIO
JULIO Eu e a Irene gostamos da casa, porque ela é
(Abre a porta do Hall de entrada e convida as pes- espaçosa e antiga e guarda as lembranças dos
soas a passarem para o outro lado) Vamos en- nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais,
trando? Vamos entrando? e de toda a nossa infância.

CORRETOR UM Na escadaria, desce uma menina sentada num


(Entrando) Que merda foi essa? Tio, sai daqui. colchão. Em seguida, um menino desce e a ajuda a
A casa está caindo! (Sai da casa pela porta de subir novamente.
entrada)
JULIO
JULIO Fazemos a limpeza de manhã. Levantando
(Vai até a porta de entrada e a fecha) Vamos su- sempre às sete. Quando dá mais ou menos
bir, gente? Vamos ver a Irene? onze horas, eu deixo os últimos quartos para a
Irene limpar e vou para a cozinha. O almoço é
... sempre às 12 horas.

IRENE
(Descendo) Já é hora do almoço?

JULIO
Ainda não.

IRENE
Já é hora do almoço?

JULIO
Não. É hora do chá.

IRENE
Do chá?

JULIO
Isso. Do chá.

IRENE
(Sentando na escada. Se posiciona como se a escada
fosse uma mesa)

JULIO
Essa é Irene. Nascida para não incomodar nin-
guém. Fora dessa nossa atividade matinal, ela
passa o dia tricotando.
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A Casa Tomada
IRENE IRENE
(Segurando uma xícara invisível) Chá? A casa não deixou a gente se casar.

JULIO JULIO
(Faz o mesmo jogo com ela) Sim, obrigado. Eu perdi a Maria Esther e a Irene recusou dois
pretendentes. Já passamos a casa dos quarenta
IRENE anos e ficamos solteiros.
Me passa o açúcar?
IRENE
JULIO A casa é do papai, da mamãe, do vovô, da vovó,
Tá aqui. do Julio, da Irene. A casa não é dos primos.

IRENE JULIO
Obrigado. Não. Não é deles.

JULIO IRENE
Eu às vezes me pergunto o que teria feito Ire- Eles são preguiçosos. Toscos.
ne, sem o tricô.
JULIO
IRENE Isso. (Mudando de assunto) Mostra o seu tricô
(Levantando subitamente) Você trouxe? para eles...

JULIO IRENE
Trouxe. (Indo para o quarto) Vem aqui ver o meu tricô.

IRENE JULIO
(Subindo a escada) Deixa eu ver? (Ajudando a conduzir as pessoas) Eu me pergun-
to o que teria feito Irene, sem o tricô.
JULIO
Toma. (Entrega os novelos para Irene) IRENE
A gente pode reler um livro, mas quando um
IRENE casaco está terminado, não se pode repetir sem
Ai que lindos! Você tem bom gosto! (Sobe para escândalo.
os quartos)
JULIO
JULIO (Para o público, em segredo) Outro dia eu en-
(Seguindo Irene e conduzindo os espectadores) A contrei numa gaveta da cômoda xales brancos,
Irene confia no meu bom gosto e graças a verdes, lilazes... cobertos de naftalina, empi-
Deus, eu nunca tive que devolver as madeixas. lhados, como num armarinho.

No andar de cima da casa, Irene amarra as lãs em Ouve-se um estrondo forte na Reforma
Maria Esther, e nos pretedentes, como se eles fos-
sem marionetes. IRENE
(Transtornada) Preguiçosos e toscos! Preguiço-
IRENE sos e toscos!
Com quem será? Com quem será? Com quem
será, que o Julio vai casar? JULIO
(Para Irene) Calma. Calma.
JULIO
Maria Esther. Maria Esther e dois pretenden- IRENE
tes. Eu queria mais chá.

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A Casa Tomada
JULIO IRENE
Eu vou buscar. (Para um espectador) Você também ouve um
barulho?
IRENE
Eu queria mais chá. JULIO
Essa cidade pode ser uma cidade limpa, mas é
JULIO graças aos seus habitantes. Tem poeira demais
Vou buscar. (Sai em direção à escada) no ar e mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó
nos mármores. Dá trabalho tirá-lo com o es-
IRENE panador.
Chá de verdade. Ele vai na cozinha. Fica perto
da sala de jantar, lima. Daí tem a biblioteca e IRENE
aqui tem três quartos grandes. Eu limpo os Eu gosto de Chá de verdade.
quartos.
JULIO
JULIO (Fingindo tomar o chá) Hmmm. O meu está
(Voltando e fechando a porta com vigor) Trouxe o uma delícia.
seu chá. (Faz o gesto do chá, de mentirinha)
IRENE
IRENE Vou buscar mais.
Esse é chá de verdade?
JULIO
JULIO Toma, eu tenho mais aqui.
É. Chá de verdade.
IRENE
IRENE Não. Eu quero daquele outro. Eu busco.
Passa o açúcar.
JULIO
JULIO Não. Eu pego para você.
Tá aqui.
IRENE
IRENE Você não sabe qual eu quero.
Eu gosto de Chá de verdade.
JULIO
JULIO Sei sim.
É só o tricô que distrai Irene. Eu gosto de
vê-la tricotando, as agulhas indo e vindo e as IRENE
cestinhas no chão, onde se agitam constante- Não sabe.
mente os novelos. É muito bonito!
JULIO
IRENE Sei.
Eu estou ouvindo um barulho.
IRENE
JULIO Então qual é?
Não é nada.
JULIO
IRENE Chá de verdade.
Um barulho, sim.
IRENE
JULIO (Feliz) Isso!
Não é nada.

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A Casa Tomada
JULIO quarto dela... Fica mais perto do quarto dela...
Já volto. (Sai) O importante mesmo é a casa. A casa e Irene.
Eu fui até a porta da cozinha e ouvi o som. Eu
IRENE ouvi, o que eles estavam fazendo. Eu ouvi, mas
Quando a gente abre aquela porta ali (Aponta eu não contei pra ela. Eu menti. Eu desci as
para a porta por onde Julio saiu) é que a gente escadas, tentei fazer de conta que não estava
percebe que a casa é grande. Assim parece pe- acontecendo, tentei fingir que a sujeira que só
quena. No sábado o Júlio vai comprar lã pra aumentava, era por conta de qualquer outra
mim. A lã que ele compra é bonita. coisa, mas eu sabia. Sabia o que eles estavam
fazendo. Eles iam nos vender. Vender a casa e
IRENE vender a gente. Vender como se a gente fosse a
Abre aquela porta ali, pra você ver que tama- mobília da casa. Como se a gente fosse duas
nho tem a casa. coisas velhas que ficaram na casa atrapalhando.
Duas velharias, dessas que ficam escondidas
JULIO nas casas, esperando o dia em que vão valer
A casa foi tomada. alguma coisa. As coisas velhas um dia valem
mais do que os homens velhos. Eu tentei pou-
IRENE par Irene. Lhe trazia o chá. Pensei que eles
E o chá. mudariam de idéia, que se cansariam da gente.
Mas eles seguiram. Seguiram incansáveis.
JULIO
A casa foi tomada. Tomaram a parte dos fun- IRENE
dos. (Voltando) Tomaram esta parte.

IRENE JULIO
E o chá? Você teve tempo de pegar alguma coisa?

JULIO IRENE
Vamos ter que viver só desse lado. Não. Nada.

IRENE JULIO
E o chá? Agora já é tarde. Vamos?

JULIO IRENE
Não está aqui. Perdemos do outro lado da casa. Vamos.

Julio e Irene conduzem as pessoas para fora da


IRENE casa, através da escadaria e do Hall de entrada.
Vou buscar chá. Você quer? (Desce a escada) Irene não desce as escadas. Fica no ponto de des-
canso, observando a saída das pessoas. Julio vai
JULIO para a porta que divide o Hall com a cozinha.
Irene! Abre a porta e chama as pessoas. Irene sobe as es-
cadas e permanece dentro da casa.
Irene desce as escadas e vai até a reforma.
...
JULIO
(Visivelmente transtornado) Tudo tem sua van-
tagem e sua desvantagem. Agora a limpeza vai
ficar mais simples... Agora a limpeza vai ficar
mais simples... A gente muda a cozinha aqui
pra cima. Fica mais fácil. Fica mais perto do

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A Casa Tomada
Epílogo
ESSA CENA ACONTECE APENAS
QUANDO TODOS OS ESPECTADO-
RES PASSARAM PELAS TRÊS CE-
NAS.

O Mestre de Obras, ao sair da Corretagem, deixa


os espectadores na frente da casa, onde já se encon-
tram as pessoas que vieram das Memórias. Julio
conduz os espectadores que vêm da Reforma para o
mesmo lugar.

JULIO
Ela tinha nascido para não incomodar nin-
guém. Passava o dia tricotando no sofá do seu
quarto. Tricotava coisas sempre necessárias,
casacos para o inverno, meias para mim e cole-
tes para ela. Às vezes tricotava um colete e de-
pois o desfazia num instante, porque alguma
coisa lhe desagradava; era engraçado ver na
cestinha aquele monte de lã encrespada resis-
tindo a perder a forma anterior. Ela me conta-
va histórias... E eu ia ao centro comprar lã, to-
dos os sábados, e aproveitava essa saída para ir
à livraria e perguntar em vão se haviam novi-
dades da literatura francesa. Mas aqui, nunca
chega nenhuma novidade. Quando ela sonhava
em voz alta, eu perdia o sono. Nunca pude me
acostumar a essa voz de estátua ou papagaio,
voz que vem dos sonhos e não da garganta. No
dia em que o juizo se perdeu de vez, nós sequer
nos olhamos. Os ruídos se ouviam cada vez
mais fortes. Estávamos apenas com a roupa do
corpo. Antes de partir, senti pena. Fechei bem
a porta da entrada e joguei a chave no ralo da
entrada.

FIM

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