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JULIO IRENE
Nós adoramos essa casa. Ela é espa- Parece que foi agora mesmo...
çosa, antiga... E guarda as lembran- JULIO
ças de nossos bisavós, do avô pater- Trinta anos.
no, dos nossos pais...
IRENE
Um grupo de crianças surge arras- Menos.
tando um colchão. Uma das crian-
JULIO JULIO
(Entra no armário) Que foi? Que nem quem?
IRENE IRENE
Eu não lembro o nome deles... O tio. O tio Alberto.
JULIO JULIO
Não lembra? O tio Alberto sempre foi subestima-
do.
IRENE
(Abre a porta) Não. IRENE
O tio Alberto era louco, Julio!
JULIO
(Abre a porta) Nem eu... JULIO
Não. A mamãe dizia que ela era ex-
IRENE cêntrico.
Como posso ter esquecido?
IRENE
JULIO A mamãe tinha pena dele.
Acontece...
JULIO
IRENE Tio Alberto não merecia a pena de
Não. (Descendo do armário) ninguém. Ele tinha mais dignidade
JULIO do que qualquer pessoa dessa famí-
Faz vinte anos... (Descendo do ar- lia.
mário) É normal. IRENE
IRENE Como é?
Não é normal. (Pega a vassoura) JULIO
JULIO Isso. Tinha mais dignidade do que
Vinte anos. É normal sim. qualquer um de nós.
IRENE IRENE
Meu deus! É hereditário. Agora eu sei.
JULIO JULIO
Não sei pra quê tanto drama. O quê?
IRENE IRENE
Eu tenho medo de ficar que nem ele. Você. Você está muito esquisito ul-
timamente. Esquecendo as coisas...
JULIO
(Pega a vassoura) Que nem quem? JULIO
Eu estou esquecendo? E você? Fa-
IRENE lando enquanto dorme. Falando
Dizem que essas coisas são heredi- com essa voz de estátua, essa voz de
tárias... papagaio. Eu não consigo dormir,
Irene! Eu não consigo dormir!
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IRENE JULIO
(Magoada, fala para o público, ig- (Pegando o fio do casaco) Vou em-
norando Julio) Essa cidade pode ser bora.
uma cidade limpa, mas é graças aos
IRENE
seus habitantes. Tem poeira demais
no ar e mal sopra uma brisa e já se Não se pode repetir sem escândalo.
apalpa o pó nos mármores. Dá um JULIO
trabalho tirar! Vou embora...
JULIO IRENE
Eu não consigo dormir, porque você Como era o nome deles?
fica com essa maldita voz de papa-
gaio, falando dos primos toscos, fa- Julio sai de cena, levando o fio do
lando das festas, falando dos seus casaco, que vai se desfiando pouco
“dois de paus” que você nunca lem- a pouco. No lugar onde a sombra
bra o nome. Falando do seu maldito de Maria Esther foi projetada, sur-
tricô. ge a sombra de alguém sentado
numa pilha de livros, folheando as
IRENE páginas.
(Para o público) Fora dessa nossa
atividade da limpeza eu passo o dia IRENE
tricotando. Viveu a vida como se ela fosse uma
cópia forjada de um de seus livros.
JULIO Cada capítulo da sua vida tentando
Você está me ignorando? ser o ápice da trama. A cada pará-
IRENE grafo mais drama, mais reticências,
Eu não sei o que seria de mim sem o mais insatisfação. Os livros termi-
tricô. navam grandiosos, mas sua vida se-
guia sempre medíocre e interminá-
JULIO vel. Um perpétuo capítulo, repetido
(Irônico) Ah, sim! Eu me pergunto o dia a dia, exaustivamente. Lembra-
que seria de Irene sem o tricô. va das mínimas coisas tentando pôr
(Abrindo uma gaveta) Outro dia eu uma lupa nos fatos mais insignifi-
encontrei numa gaveta da cômoda cantes. Buscava poesia no nada que
xales brancos, verdes, lilazes... co- era. Mamãe tentou em vão ensinar-
bertos de naftalina, empilhados lhe a ter os pés no chão. Nada. Se-
como num armarinho. Quem está guia inventando a vida, amassando
louco agora? Hein? Quem é o louco? os próprios parágrafos, rabiscando
as próprias frases, como se elas
IRENE
sempre saíssem vazias. No dia em
(Pegando um casaco de tricô. Co-
que Maria Esther foi embora, ele se
meça a desfiar o casaco enquanto
sentou na biblioteca e abriu pilhas e
fala) A gente pode reler um livro,
pilhas de livros. Queria saber se o
mas quando um casado de tricô está
seu fim realmente havia chegado.
terminado, não se pode repetir sem
Mas o amanhã veio, com menos
escândalo.
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IRENE IRENE
Trinta anos, Julio. Trinta anos que Era mesmo?
ele se foi. No final ele estava louco, JULIO
não estava? Era.
JULIO IRENE
Eu nunca soube. Quando tio Alberto enlouqueceu,
IRENE todos os parentes sabiam disso, mas
Mas aquilo que ele disse da casa. ele não. Para ele a vida continuava a
mesma.
JULIO
Talvez ele tivesse razão, Irene. JULIO
Quando todos os parentes disseram
IRENE que tio Alberto era louco, ele se
Ele estava louco, Julio. Falar da casa afastou de todo mundo e mergulhou
daquele jeito. na música.
JULIO IRENE
Talvez ele tivesse razão. Foi isso o que eu disse.
IRENE JULIO
E se for hereditário? Não.
JULIO IRENE
A casa foi hereditária, não? Foi o que eu disse.
IRENE JULIO
E se a loucura for de herança, Julio? Mamãe se recusava a ver loucura
E se nós enlouquecermos? nas ações de tio Alberto. Para ela,
eram traquinagens de um menino
JULIO
que há muito havia partido e que
Ele não era louco, Irene.
agora retornava à casa, cheio de
IRENE vida e alegria.
Tenho medo de acreditar nisso. Te-
nho medo de ficar louca. Mais medo
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IRENE JULIO
Papai se aborrecia com as coisas de Eu não quero essa vida.
tio Alberto. Se desagradava em ver
IRENE
um homem mais velho do que ele
sem nenhuma responsabilidade. Essa é uma vida tão boa quanto
Sem freio algum. Uma criança de qualquer outra.
oitenta anos. JULIO
JULIO Dois loucos cuidando de uma casa...
Tio Alberto parou o tempo. Parou o IRENE
próprio tempo. Eu não estou louca.
IRENE JULIO
Tio Alberto enlouqueceu e dizia que Por enquanto. E depois?
era por culpa da casa.
IRENE
JULIO E na próxima página?
Tio Alberto não era louco porque ti-
nha a mamãe para cuidar dele. JULIO
E no próximo ponto?
IRENE
Tio Alberto lia as mesmas páginas IRENE
do livro o resto de sua vida. Feio.
JULIO JULIO
Fazia um tricô de sua história, para Boba!
em seguida desmanchá-la.
IRENE
IRENE Não falo mais com você.
Se empilhava de histórias e históri-
JULIO
as, que nunca lembrava como ter-
Deixa. Eu não ligo.
minava e então tinha que relê-las
infinitamente. IRENE
Eu vou embora. Vou pegar minhas
JULIO
lãs e vou embora.
Enchia gavetas e gavetas de coisas
inúteis e que não serviam para nin- JULIO
guém e estavam completamente (Batendo nas portas dos armários.
fora de moda. Música ONE - U2)
Ele só precisava de amor, Irene.
IRENE
Amor. Como eu, como você.
Deve ser hereditário.
IRENE
JULIO
A casa foi tomada.
Deve ser herança da família.
JULIO
IRENE
Isso acaba, Irene. Se você não cuida.
Eu não quero enlouquecer.
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IRENE IRENE
A casa? Nem sucesso.
JULIO JULIO
O amor. Eu te levo e você me leva.
IRENE IRENE
Você veio pedir perdão? Tá.
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Amália AMÁLIA
Cadê a dona da casa?
Amália vai entrando pelo aquário,
EMPREGADA
conferindo o mural de fotos anti-
(Entrando) Boa tarde, dona Amália.
gas. Na outra sala, tio Alberto toca
A dona Odete pediu para senhora
e dança uma sinfonia inaudível.
esperar que eles já estão descendo.
AMÁLIA
JORGE
Gente, olha o meu cabelo nessa foto!
E onde está o vinho?
Que horrível! Melhor colocar um
balão de festa aqui na frente senão AMÁLIA
eu vou passar vergonha. E os outros convidados?
JORGE EMPREGADA
(Chamando Amália de canto) Amá- Os convidados estão na sala ao lado.
lia, vamos devagar com o vinho, E o vinho também. O senhor quer
vamos? Não quero passar vergonha que eu traga uma taça?
aqui no meio da sua família.
AMÁLIA
AMÁLIA Não precisa. A gente vai até lá.
Que vergonha, meu filho!? Sou forte Obrigada. Vamos gente, vamos que
com essa coisa de bebida. Puxei o a festa é do outro lado.
tio Alberto.
JORGE Vitamina C
Puxou mesmo. Olha lá ele na outra Amália e Jorge seguem a emprega-
sala. Fortíssimo! da e conduzem o público para a
AMÁLIA sala da lareira, onde estão os ou-
Que ele está fazendo? tros familiares. Há música ambien-
te, muito baixa para não atrapa-
JORGE lhar a conversa geral. Quando che-
Regendo a orquestra do delírio. gam no cômodo, se separam. Jorge
vai cumprimentar Roberto do ou-
AMÁLIA tro lado da sala e Amália, conversa
Que lindo isso: regendo a orquestra com Carmen.
do delírio. Da loucura dele, isso sim.
AMÁLIA
JORGE Quem é vivo sempre aparece!
Cadê os donos da casa?
CARMEN
AMÁLIA Olha só quem fala...
A casa é do velho, Jorge.
AMÁLIA
JORGE Tudo bem, prima?
Só no papel. Esse velho já perdeu
tudo, Amália. Perdeu o juízo, per- CARMEN
deu tudo! Tudo ótimo! Melhor impossível!
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AMÁLIA CARMEN
E o maridão? Deita e ronca a noite inteira!
CARMEN AMÁLIA
Não veio. Estava com trabalho... Ô!!!
Sei.
AMÁLIA
Aplicações de Risco
JORGE
CARMEN Faala, Ricardo!
E o Jorge, cadê?
ROBERTO
AMÁLIA Roberto.
Tá ali, cumprimentando o pessoal...
JORGE
CARMEN Puta merda, eu sempre confundo
Nossa, aquele é o Jorge? vocês dois.
AMÁLIA ROBERTO
É ele sim. Não faz mal.
CARMEN JORGE
Eu me lembrava dele diferente. E como anda a vida?
AMÁLIA ROBERTO
É que faz tempo, né? A gente se viu A mesma merda, né. Comprando,
quando? vendendo... Ano passado, com a cri-
CARMEN se... E você? Ainda é advogado?
Foi no casamento da menina da Clo- JORGE
tilde, não foi? Ainda.
AMÁLIA ROBERTO
Uns cinco anos? Eu estava precisando de uns conse-
CARMEN lhos, rapaz...
Imagina? Cinco anos? Faz mais... JORGE
AMÁLIA (Tirando o cartão de visitas) Passa
Que é isso, Carmen? Não estou tão lá no escritório durante a semana.
velha assim. ROBERTO
CARMEN E tua mulher?
Não está mesmo, menina... Está lin- JORGE
da! Me conta, qual o segredo? A Amália, tá ali, falando com aquela
AMÁLIA senhora...
Vitamina C, querida! De cama... ROBERTO
Aquela é a Carmen.
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JORGE ROBERTO
A Carmen? Puta que o pariu! Tô levando, prima.
ROBERTO AMÁLIA
Tá um bagaço né? Ainda no mercado de ações?
JORGE ROBERTO
É sério que é a Carmen? Ainda.
ROBERTO CARMEN
É. Pra mim isso é igual apostar em ca-
valo.
JORGE
Que aconteceu com ela? ROBERTO
Pode apostar que é.
ROBERTO
Se divorciou. O marido largou ela AMÁLIA
pra ficar com outro cara... Lembra da Carmen?
JORGE JORGE
Putz! Com outro cara? Lembro. Tudo bem contigo?
ROBERTO CARMEN
Pois é. Tudo ótimo.
JORGE JORGE
Que golpe, rapaz. A mulher era lin- E o teu marido, hein? Que coisa...
da! Se cuidava inteira...
AMÁLIA
ROBERTO Ele está trabalhando. Não pode vir.
E não adiantou merda nenhuma, no
CARMEN
final. O cara largou ela pra ficar com
outro homem... (Constrangida) É. Está trabalhan-
do... E você, Jorge? Como anda a
JORGE advocacia?
Era melhor ela ter deixado a barba
JORGE
crescer...
Porquê? Você está precisando?
ROBERTO
CARMEN
Pois é. Vamos lá que eu quero cum-
primentar a Amália. Não. Estou só curiosa... Dá licença,
vou pegar um vinho e já volto. (Vai
até a bandeja com vinho e desabafa
Ação cautelar com alguém da platéia) Filho da
AMÁLIA puta, esse Jorge! Era apaixonado
Roberto, menino! Como você está? por mim. Apaixonado. E agora me
(Dando três beijinhos) humilhando assim...
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AMÁLIA AMÁLIA
E você Roberto? Que me conta de Tão negociando a herança da gente,
novo? só que com o velho vivo.
ROBERTO CARMEN
Nada demais. Vocês já viram o ve- Da gente nada. Ouvi dizer que o ve-
lho? Dá pena, né? lho vai deixar tudo para os meninos.
JORGE AMÁLIA
Esse aí não dura muito mais... Eu já Como é que é?
conversei com a Amália, que vocês
JORGE
deveriam agilizar o inventário. Es-
sas coisas facilitam muito quando a Eu avisei. Se a gente tivesse agiliza-
pessoa ainda está viva. do isso antes de ele ficar louco...
AMÁLIA
AMÁLIA
Jorge! Me explica essa história?
CARMEN
JORGE
Tô sendo prático, Amália. Eu ouvi os empregados comentando
alguma coisa assim...
AMÁLIA
ROBERTO
Tá sendo um canalha, isso sim!
Os empregados? Que empregado?
ROBERTO
CARMEN
O Jorge tem razão, Amália. Eu tam-
bém já pensei nisso. Disse que vai ficar tudo para o me-
nino e a menina.
AMÁLIA
JORGE
Escuta, vocês não têm vergonha
não? O velho ainda está vivo. O Julio e a Irene?
CARMEN
JORGE
Mas é disso que eu estou falando. É. Enquanto eles não crescem, a
mãe fica cuidando da propriedade.
ROBERTO
AMÁLIA
É disso que ele está falando.
A mãe. Claro. Agora sei de quem foi
CARMEN a idéia...
Tão falando de quem?
JORGE
JORGE Você acha...
Do velho.
AMÁLIA
CARMEN Claro, Jorge! Pensa... A festa de oi-
Do tio Alberto? tenta anos, a reunião de família. Ela,
tomando conta do velho esses anos
todos... Filha da puta!
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ROBERTO ROBERTO
Eu não tinha pensado nisso... Sou o filho do Geraldo, seu irmão.
AMÁLIA TIO ALBERTO
Vocês, homens, não enxergam mer- Geraldo, tranqueira! Ê Geraldão... E
da nenhuma. como está seu pai?
ROBERTO ROBERTO
Dá licença... Vou ali falar com o ve- Morreu, tio. O senhor não lembra?
lho.
TIO ALBERTO
AMÁLIA Nessa idade, filho, se eu não morri
Vou com você. (Saem) ainda, com certeza já não me lem-
bro de nada. (Dá risada) E como
JORGE está a sua mãe? Morreu também?
Quer dizer que teu marido te largou
pra ficar com um cara? ROBERTO
Não.
CARMEN
Cala a boca, Jorge! TIO ALBERTO
Então ela não deve lembrar de mim.
JORGE
Quem diria, hein Carmen? ROBERTO
Lembra, sim. Ela mandou lembran-
CARMEN ças.
Por que isso agora, hein? Por quê?
TIO ALBERTO
JORGE Se mandou lembranças, é porque
Você sabe que dá para tirar uma ainda as tem.
grana do cara por dano moral? Sa-
bia? Eu já fiz isso. E ganhei. ROBERTO
Claro. Claro.
CARMEN
Que me importa isso, Jorge? Que TIO ALBERTO
me importa? E você menina? Quer o quê comigo?
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...
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