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APONTAMENTOS DE PSICOLOGIA III

O presente escrito é um resumo, realizado pelos assistentes, das explicações que Silo deu em Palmas de
Canárias no princípio de Agosto de 1978, realizado pelos assistentes.

1. CATARSES, TRANSFERÊNCIAS E AUTOTRANSFERÊNCIAS. A AÇÃO NO MUNDO


COMO FORMA TRANSFERENCIAL

Devemos considerar dois circuitos de impulsos que terminam por dar registro interno. Um circuito
corresponde à percepção, representação, nova dose de representação e sensação interna. E outro circuito
nos mostra que, de toda ação que lanço no mundo, tenho também sensação interna. Essa dose de
retroalimentação, é a que nos permite aprender fazendo as coisas. Se não houvesse em mim uma dose de
retroalimentação dos movimentos que estou fazendo, jamais poderia aperfeiçoá-los. Eu aprendo a escrever
no meu teclado por repetição. Quer dizer, vou gravando atos entre acertos e erros. Mas, só posso gravar os
atos se os realizar.

Desde o meu fazer, tenho registro. Existe um preconceito grande, que às vezes tem invadido o campo
da pedagogia, e é o preconceito segundo o qual as coisas se aprendem simplesmente por pensá-las. Sem
dúvida, algo se aprende, porque também do pensar se tem a recepção do dado. Apesar disso, a mecânica
dos centros nos diz que estes se mobilizam quando chegam imagens até eles, e a mobilização dos centros é
uma sobrecarga que dispara sua atividade no mundo. Deste disparo de atividade há uma dose de
retroalimentação que vai à memória e, por outro lado, vai à consciência. Esta dose de retroalimentação é a
que nos permite dizer, por exemplo, “errei a tecla”. Assim vou registrando a sensação do acerto e do erro,
assim vou aperfeiçoando o registro de acerto, e aí vai se fluidificando e automatizando a correta ação de
escrever à máquina, por exemplo. Estamos falando de um segundo circuito que me entrega o registro d
ação que produzo.

Em outra ocasião1  vimos as diferenças existentes entre os atos chamados “catárticos” e os atos
“transferenciais”. Os primeiros se referiam, basicamente, às descargas de tensões. Os segundos permitiam
transladar cargas internas integrar conteúdos e ampliar as possibilidades de desenvolvimento da energia
psíquica. É sabido que ali, onde existem “ilhas” de conteúdos mentais, de conteúdos que não se comunicam
entre si, ocorrem dificuldades para a consciência. Se, por exemplo, se pensa numa direção, se sente em
outra e finalmente se atua em outra, ocorrem dificuldades para a consciência. Se, por exemplo, se pensa
numa direção, se sente em outra e finalmente se atua em outra, ocorre um registro de “desencaixe”, um
registro que não é pleno. Parece que, unicamente, quando temos pontes entre os conteúdos internos, o
funcionamento psíquico se integra e podemos avançar uns passos mais.

Conhecemos os trabalhos transferenciais entre as técnicas de Operativa. Mobilizando determinadas


imagens e fazendo percorridos com ditas imagens, até o ponto de vista da resistência, podemos vencer
estas últimas. Ao vencer essas resistências provocamos distensões e transferimos as cargas a novos
conteúdos. Essas cargas transferidas (trabalhadas em elaborações pós-transferenciais), permitem a um
sujeito integrar algumas regiões de sua paisagem interna, de seu mundo interno. Conhecemos essas
técnicas transferenciais e outras como as autotransferenciais, nas quais não se requer a ação de um guia
externo, senão que, internamente, guia-se a si mesmo, com determinadas imagens anteriormente
codificadas.

Sabemos que a ação, e não somente o trabalho das imagens que viemos mencionando, pode operar
fenômenos transferenciais e fenômenos autotransferenciais. Não será o mesmo um tipo e outro de ação.
Haverá ações que permitem integrar conteúdos internos e haverá ações tremendamente desintegradoras.
Determinadas ações produzem tal carga de pesar, tal arrependimento e divisão interna, tal profundo
desassossego que jamais se quereria repeti-las. E, não obstante, tais ações já ficaram fortemente aderidas ao
passado. Ainda que não se volte, no futuro, a repetir tal ação, ela seguirá pressionando desde o passado, sem

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resolver-se, sem permitir que a consciência translade, transfira, integre seus conteúdos e permita ao sujeito
essa sensação de crescimento interno tão estimulante e liberadora.

Está claro que não é indiferente a ação que se realiza no mundo. Existem ações das quais se tem
registro de unidade e ações que dão registro de desintegração. Se estudarmos isso da ação no mundo, à luz
do que sabemos sobre os procedimentos catárticos e transferenciais, ficará muito mais claro o tema da
integração e do desenvolvimento dos conteúdos da consciência. Já voltaremos sobe isto, depois de dar uma
olhada geral sobre a nossa Psicologia.

2. ESQUEMA DO TRABALHO INTEGRADO DO PSIQUISMO

Nós apresentamos o psiquismo humano como uma espécie de circuito integrado de aparelhos e de impulsos, onde
alguns aparelhos, chamados “sentidos externos”, são os receptores dos impulsos do mundo externo.
Também existem aparelhos que recebem impulsos do mundo interno, do intracorpo, aos quais chamamos
“sentidos internos”. Estes sentidos internos, muito numerosos, são, para nós, de grande importância e
devemos destacar que têm sido muito descuidados pela Psicologia ingênua. Também observamos que
existem outros aparelhos, como os da memória, que tomam todo sinal que chega desde o exterior ou desde
o interior do sujeito. Existem outros aparelhos que são os que regulam os níveis de consciência e, por
último, os aparelhos de resposta. Todos esses aparelhos, em seu trabalho, vão utilizando a direção, às vezes,
de um sistema central ao que chamamos “consciência”. A consciência relaciona e coordena o
funcionamento dos aparelhos mas, pode fazê-lo, graças a um sistema de impulsos. Os impulsos vêm e vão
de um aparelho para outro. Impulsos que percorrem o circuito a enormes velocidades, impulsos que se
traduzem, se deformam, se transformam, e em cada caso vão dando lugar a produções altamente
diferenciadas de fenômenos de consciência.

Os sentidos, que estão, continuamente, tomando amostras do que acontece no meio externo e interno, estão
sempre em atividade. Não há sentido que esteja quieto. Ainda quando uma pessoa dorme e tem as
pálpebras fechadas, o olho está tomando amostras desse telão escuro; o ouvido está recebendo impulsos do
mundo externo e assim acontece com os clássicos e escolares cinco sentidos. Mas, também, os sentidos
internos, estão tomando amostras do que vai acontecendo no intracorpo. Sentidos que tomam dados do
Ph do sangue, da alcalinidade, da salinidade, da acidez; sentidos que tomam dados da pressão arterial, que
tomam dados do açúcar no sangue, que tomam dados da temperatura. Os termoceptores, baroceptores e
outros, continuamente, estão recebendo informação do que acontece no interior do corpo, enquanto que,
simultaneamente, os sentidos externos também tomam informação do que acontece no exterior do corpo.

Todo sinal que vão recebendo os introceptores passa à memória e chega à consciência. Melhor dizendo, estes
sinais do intracorpo se desdobram e, tudo o que vao tomando de amostra, vai chegando, simultaneamente,
à memória e à consciência (aos distintos níveis de consciência que se regulam pela qualidade e intensidade
destes impulsos). Existem impulsos muito débeis, subliminares, no limite da percepção. Por outro lado,
existem impulsos que se fazem intoleráveis porque, precisamente, chegam ao limiar de tolerância, por cima
do qual, aqueles impulsos perdem a qualidade de simples percepções de um dado sentido, para
converterem-se numa percepção homogênea, venha do sentido que venha, entregando uma percepção
dolorosa. Existem outros impulsos que deveriam chegar à memória, à consciência e, apesar disso, não
chegam porque houve um corte num sentido interno ou externo. Também acontece que outros impulsos
não cheguem à consciência, não porque exista um corte no receptor, senão porque algum fenômeno,
desafortunado, produziu um bloqueio em algum ponto do circuito. Podemos ilustrar com alguns casos de
cegueira, conhecidos como “somatizações”. Examina-se o olho, se examina o nervo óptico, se examina a
localização occipital, etc. Tudo funciona bem no circuito e, sem embargo, o sujeito está cego, e está cego
não a partir de um problema orgânico senão que de um problema psíquico. Outro sujeito fica mudo, ou
surdo, sem embargo, tudo funciona bem no circuito no qual faz as suas conexões e localizações... mas algo
bloqueou o percorrido dos impulsos. O mesmo acontece com os impulsos que provém do intracorpo e isto
não é tão reconhecido, mas é de suma importância porque, acontece que existem numerosas “anestesias”,

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por assim chamá-las, de impulsos do intracorpo. As mais freqüentes são as anestesias que correspondem
aos impulsos do sexo, de modo que é muita a gente que por algum tipo de problema psíquico não detecta
adequadamente os sinais que provém deste ponto. Ao haver-se produzido um bloqueio e não se detectar
esses sinais, o que normalmente deveria chegar à consciência (seja em seu campo atencional mais notório,
ou seja nos níveis subliminares), sofre fortes distorções, ou não chega. Quando um impulso proveniente de
sentidos externos ou internos não chega à consciência, está faz um trabalho como se tratasse de recompor
essas ausência “pedindo emprestados” impulsos a memória, compensando a falta do estímulo que
necessitaria para sua elaboração. Quando, por alguma falha sensorial, externa ou interna, ou simplesmente
por bloqueio, algum impulso não chega desde o mundo externo ou interno, então a memória lança seu
trem de impulsos tratando de compensar. Se isto não acontece, a consciência se encarrega de tomar
registro dela mesma. Um trabalho estranho que faz a consciência, que é como se uma filmadora de vídeo
se colocasse frente a um espelho e vê, agora, na tela um espelho dentro de um espelho, e assim seguindo,
em processo multiplicativo de imagens, onde a consciência, reelabora seus próprios conteúdos, e se tortura
tratando de tirar impulsos de onde não existem. Esses fenômenos obsessivos, são um pouco, a filmadora de
vídeo em frente a um espelho. Assim como a consciência compensa tomando impulsos de outro ponto,
assim também, quando os impulsos do exterior ou do intracorpo são muito fortes, a consciência se defende
desconectando o sentido, como se tivesse suas válvulas de segurança. Além disso, sabemos que os sentidos
estão em contínuo movimento. Quando se dorme, por exemplo, os sentidos correspondentes ao ruído
externo abaixam seu limiar. Então muitas coisas que seriam percebidas em vigília, ao fechar-se o limiar
não entram, mas de todo modo os sinais estão sendo captados. E, normalmente, os sentidos estão
abaixando e levantando seu limiar de acordo com o ruído de fundo nesse momento. Claro, este é o
trabalho normal dos sentidos, mas quando os sinais são irritantes e os sentidos não podem eliminar o
impulso abaixando o limiar, a consciência tende a desconectar o sentido globalmente. Imaginemos o caso
de uma pessoa submetida a continuadas irritações sensoriais externas. Aumenta-se o ruído da cidade,
aumenta-se a estimulação visual, aumenta-se toda essa confusão de notícias do mundo externo, então,
nessa pessoa pode produzir-se uma espécie de reação. O sujeito tende a desconectar seus sentidos
externos e “dirigir-se para dentro”. Começa a estar à mercê dos impulsos do intracorpo, a desconectar seu
mundo externo num processo de rarefação (estranhamento) da consciência. Mas a coisa não é tão
dramática, trata-se de uma entrada em si mesmo ao tentar eludir o ruído externo. Neste caso, o sujeito que
desejava diminuir o ruído sensorial, vai encontrar-se, nada menos, do que com a amplificação dos impulsos
do intracorpo, porque assim, como existe uma regulação de limites em cada um dos sentidos externos e
internos, assim também, o sistema de sentidos internos compensa o sistema de sentidos externos. Podemos
dizer que, em geral, quando abaixa o nível de consciência (para o sono), os sentidos externos abaixam seus
limiares aumentando o limiar da percepção dos sentidos internos. Inversamente, quando sobe o nível de
consciência (para o despertar), no sujeito começa a baixar o limiar de percepção dos sentidos internos e se
abre o limiar de percepção externa. Mas, ocorre que, ainda na vigília, no exemplo anterior, os limiares de
sentidos externos podem reduzir-se e o sujeito entrar em situação de “fuga” frente à irritação que o mundo
lhe produz .

Seguindo com a descrição dos grandes blocos de aparelhos. Observamos os trabalhos que efetua a
memória ao receber impulsos. A memória sempre toma dados e assim formou um substrato básico desde a
primeira infância. Com base a esse substrato, se organizarão todos os dados de memória que se vão acumulando.
Parece que são os primeiros momentos da vida, os que determinam, em grande medida, os processos
posteriores. Mas a memória antiga, vai ficando cada vez mais afastada da disponibilidade vigílica da
consciência. Sobre o substrato vão se acumulando os dados mais recentes até chegar aos dados imediatos
do dia. Imaginem vocês as dificuldades que existem nisso de resgatar conteúdos de memória muito antigos
que estão na base da consciência. É difícil chegar até lá. Há que enviar “sondas”. Por cúmulo, essas sondas
que se lançam são, às vezes, rechaçadas por resistências. Então, devem utilizar-se técnicas bastante
complexas para que, estas sondas, possam chegar a tomar sua amostra da memória, com a intenção de
reacomodar esses conteúdos que, em alguns casos, desafortunados, estavam mal encaixados.

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Existem outros aparelhos, como os centros, que fazem um trabalho bastante mais simples. Os centros trabalham
com imagens. As imagens são impulsos que, provindo da consciência, disparam até os centros
correspondentes e, estes centros, movem o corpo em direção ao mundo. Vocês conhecem o funcionamento
do centro intelectual, emotivo, motriz, sexual, vegetativo, e sabem que para mobilizar a qualquer deles será
necessário que se disparem imagens adequadas. Poderia acontecer também que a carga, a intensidade do
disparo, fora insuficiente. Em tal caso, o centro em questão se moveria com debilidade. Também poderia
acontecer que a carga fosse excessiva e então, no centro se provocaria um movimento desproporcionado.
Por outra parte, esses centros, que também estão em contínuo movimento e que trabalham em estrutura,
ao mobilizar cargas até o mundo, tomam energia dos centros contíguos. Uma pessoa tem alguns
problemas que se refletem em sua motricidade intelectual, mas seus problemas são de natureza afetiva.
Assim, as imagens próprias da motricidade do intelecto estão contribuindo para que se reordenem
conteúdos, mas não se resolve o problema emotivo por essa reelaboração de imagens desenfreadas ou por
um “ruminar” imagens fantásticas. Se essa pessoa, no lugar de abandonar-se a seus devaneios, se pusesse de
pé e começasse a mover o corpo trabalhando com sua motricidade, succionaria as cargas negativas do
centro emotivo e a coisa mudaria. Mas, normalmente, se pretende manejar todos os centros desde o centro
intelectual e isto traz numerosos problemas porque, aos centros, como temos estudado no seu momento,
os manejamos desde “abaixo” (desde onde há mais energia e velocidade) e não desde “acima” (desde onde
se transforma a energia psíquica em tarefas intelectuais). Enfim, que todos os centros trabalham em
estrutura, que todos os centros ao lançar sua energia para o mundo succionam energia dos outros centros.
Às vezes, um centro se sobrecarrega e ao transbordar seu potencial, também energetiza os outros centros.
Estes transbordamentos nem sempre são negativos porque, se bem que um tipo de transbordamento possa
ser encolerizar e desatar ações reprováveis, em outro tipo de transbordamento, pode-se alegrar e essa
sobrecarga energética do centro emotivo pode terminar distribuída muito positivamente por todos os
outros centros. Às vezes, por outro lado, produz-se uma grande carência, um grande vazio, uma grande
sucção do centro emotivo. O sujeito começa a trabalhar no negativo com o centro emotivo. Numa
imagem, é como se houvesse produzido um “buraco negro” que concentra matéria, que contrai o espaço e
absorve tudo para ele. Nosso sujeito se deprime; suas idéias se obscurecem e também vai baixando seu
potencial motriz e, inclusive, vegetativo. Dramatizando um pouco, agregamos que, até suas defesas
vegetativas diminuem e, então uma quantidade de respostas que seu organismo dá normalmente,
encontram-se, agora, atenuadas; seu organismo é agora mais propenso à enfermidade.

Todos os aparelhos trabalham com maior ou menos intensidade de acordo com o nível de consciência. Se nosso
sujeito está vigílico, está desperto, passam coisas muito diferentes do que quando está dormindo. Claro que
existem muitos estados e níveis intermediários. Existe por aí, um nível intermediários de semisono, que
resulta de uma misturança entre vigília e sono. Existem também diferentes níveis dentro do próprio sono.
Não é o mesmo um sono paradoxal, um sono com imagens, do que um sono profundo, vegetativo. Neste
sono vegetativo, profundo, a consciência toma dados, pelo menos no seu campo central; é um sono que se
parece com a morte, que pode durar bastante tempo e se, ao acordar não passou pelo sono paradoxal, tem a
sensação de contradição no tempo. é como se não houvesse passado o tempo porque o tempo da
consciência é relativo à existência dos fenômenos que nela existem, de modo que, não havendo fenômenos,
não há tempo para a consciência. Neste sono onde não há imagens, as coisas acontecem rápido demais.
Mas isto não é completamente assim, porque quando se deita para dormir algumas horas, o que aconteceu,
em realidade, é que houveram muitos momentos de ciclos. Assim passou pelo sono paradoxal, depois pelo
sono profundo, depois pelo paradoxal, depois pelo profundo, e assim seguindo. Se despertarmos o sujeito
quando está no sono profundo, sem imagens (que podemos comprovar desde fora graças ao E.E.G. e ao
M.O R), é possível que não se lembre de nada dos trens de imagens que apareceram na etapa do sono
paradoxal (na qual se observa desde fora o Movimento Ocular Rápido sob as pálpebras daquele que
dorme); enquanto que, se o despertamos no momento em que está sonhando com imagens, é possível que
lembre do sonho. Por outra parte, para aquele que despertou, parece que o tempo encolheu porque não
lembra tudo o que aconteceu em diferentes ciclos do sono profundo. Nos níveis baixos de consciência,

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como nos níveis de sonho paradoxal, é onde os impulsos do intracorpo trabalham com maior soltura. E é
onde também trabalha a memória com muita atividade. Acontece que quando se dorme, o circuito se
recompõe: aproveita, não apenas para eliminar as toxinas como também para transferir cargas, cargas de
conteúdos da consciência, de coisas que durante o dia não foram bem assimiladas. O trabalho do sono é
intenso. O corpo está quieto, mas há trabalhos intensos da consciência. Reordena-se conteúdos
rebobinando a filmagem e adiantando-la, classificando e ordenando de outro modo os dados perceptuais
do dia. Durante o dia vai se acumulando uma desordem perceptual muito grande porque os estímulos são
vários e discordantes. No sono, ao contrário, produz-se uma ordem muito extraordinária. Classificam-se as
coisas de um modo muito correto. Por suposto que para nós a impressão é do contrário, de que o que
percebemos durante o dia é muito ordenado e que no sonho é que há uma grande desordem. Na realidade
as coisas podem estar muito bem ordenadas, mas as percepções que temos das coisas são extremamente
fortuitas, são muito aleatórias, enquanto que o sonho, em sua mecânica, vai reelaborando e colocando os
dados em seus “ficheiros”. O sonho não faz apenas essa tarefa extraordinária, senão que, além disso, trata
de recompor situações psíquicas que não foram solucionadas. O sonho trata de lançar cargas de um lado
para outro, de produzir descargas catárticas porque existem sobrecargas. No sono solucionam-se muitos
problemas de carga, produzem-se distensões profundas. Mas, também no sono produzem-se fenômenos
transferenciais de cargas que vão se dispersando de uns conteúdos para outros e destes para terceiros num
claro processo de deslocamento energético. Muitas vezes as pessoas experimentam, depois de um belo
sonho, a sensação de que algo “encaixou” bem, como se houvesse produzido uma transferência empírica,
como se o sonho tivesse feito sua transferência. Mas também, estão os sonhos “pesados” e se desperta com
a sensação de que um processo interno não está bem digerido. O sonho está fazendo sua tentativa de
reelaborar conteúdos, mas não consegue e, então, o sujeito sai desse nível com uma sensação muito ruim.
Sem dúvida que o sonho está, sempre, a serviço da recomposição do psiquismo.

3. A CONSCIÊNCIA E O EU

O que faz a consciência enquanto os diferentes aparelhos trabalham incansavelmente? A consciência


conta com um “diretor” de suas funções e atividades que é conhecido como o “eu”. Vejamos, assim: de algum modo
eu me reconheço a mim mesmo e isto é graças à memória. Meu eu se baseia na memória e no
reconhecimento de certos impulsos internos. Tenho noção de mim mesmo, porque reconheço alguns de
meus impulsos internos que estão sempre ligados a um tom afetivo característico. Não apenas me
reconheço como eu mesmo por minha biografia, por minha forma particular de compreender. E se
tirássemos os sentidos, onde estaria o eu? O eu não é uma unidade indivisível, senão que resulta da soma e
da estruturação dos dados dos sentidos e dos dados da memória.

Um pensador, faz umas centenas de anos, observou que podia pensar sobre seu próprio pensamento.
Então, descobriu uma atividade interessante do eu. Não se tratava de lembrar coisas, nem se tratava de que
os sentidos dessem informação. É mais: esse senhor que advertia sobre esse problema, muito
cautelosamente tratou de separar os dados dos sentidos e os dados da memória; tratou de fazer uma
redução e ficar com o pensamento do seu pensar e isto teve enormes conseqüências para o
desenvolvimento da Filosofia. Mas agora estamos preocupados em entender o funcionamento psicológico do
eu. Nos perguntamos: “o eu, então, pode funcionar ainda que tiremos os dados da memória e dos
sentidos?”. Vejamos o ponto com cuidado.

O conjunto de atos pelos quais a consciência pensa a si mesma depende de registros sensoriais interno, os
sentidos internos dão informação do que acontece na atividade da consciência. Esse registro, da própria
identidade da consciência está dado pelos dados dos sentidos e pelos dados da memória além de uma
peculiar configuração que outorgam à consciência, a ilusão de identidade e permanência, não obstante as
contínuas mudanças que nela se verificam. Essa configuração ilusória de identidade e permanência é o eu.

Comentemos algumas provas realizadas na câmara de silêncio. Alguém colocou-se ali e pôs seu corpo
imerso, digamos a uns 36º centígrados (quer dizer, colocou-se num banho onde a temperatura do meio é

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igual à temperatura da pele). O recinto está climatizado para conseguir que os pontos do corpo que
emergem estejam umedecidos e a mesma temperatura do líquido. Suprimiu-se todo som ambiente; todo
rastro de cheiro; de luz, etc. O sujeito começa a flutuar na escuridão e com pouco tempo começa a
experimentar alguns fenômenos extraordinários: uma mão parece crescer notavelmente e seu corpo perde
os limites. Mas algo curioso se produz quando diminuímos ligeiramente a temperatura do recinto.
Quando diminuímos em um par de graus a temperatura do meio externo em relação à temperatura do
líquido, o sujeito sente que “sai” pela cabeça ou pelo peito. Em determinados momentos, o sujeito começa
a experimentar que seu eu não está em seu corpo, mas fora dele. E este estranhamento extraordinário da
localização espacial do seu eu é devido, precisamente, à modificação dos impulsos da pele em pontos
precisos (do rosto e do peito), sendo que o resto deles está totalmente indiferenciado. Mas se voltamos a
uniformizar a temperatura do líquido com a do recinto, começam a ocorrer outros fenômenos. Ao faltar
dados sensoriais externos, a memória começa a jogar trens de dados, compensando essa ausência, e pode-
se começar a recolher dados de memória muito antigos. O mais notável é que esses dados de memória, às
vezes não aparecem como normalmente acontece quando recordamos imagens da vida, senão que
aparecem “fora” da cabeça. Como se essas lembranças “viessem de lá, de fora de si”, como alucinações
projetadas numa tela externa. É claro, não se tem muita noção de onde termina o corpo; então, tampouco
se tem muita referência de onde estão situadas as imagens. As funções do eu são percebidas fortemente
alteradas. Produz-se uma espécie de alteração das funções do eu, pelo simples expediente da supressão
sensorial externa.

4. REVERSIBILIDADE E FENÔMENOS ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA

Neste esquema que estamos redescrevendo, o aparelho de consciência trabalha com mecanismos de
reversibilidade. Isso quer dizer que assim como percebo um som, mecanicamente, involuntariamente,
também posso colocar a atenção na fonte do estímulo, nesse caso, minha consciência tende a levar a
atividade para a fonte sensorial. Não é o mesmo perceber e aperceber. Aperceber é atenção mais percepção.
Não é o mesmo lembrar, quer dizer, isto que agora passa pela minha mente e chega desde minha memória
(onde a consciência passivamente recebe o dado), que evocar, onde minha consciência vai até a fonte da
memória, trabalhando por singulares procedimentos de seleção e descarte. Assim a consciência dispõe de
mecanismos de reversibilidade que trabalham de acordo com o estado de lucidez no qual se encontra a
consciência nesse momento. Sabemos que diminuindo o nível, cada vez é mais difícil ir às fontes dos
estímulos voluntariamente. Os impulsos se impõem, as lembranças se impõem, tudo isso com uma grande
força sugestiva vai controlando a consciência enquanto ela, indefesa, se limita a receber impulsos. Abaixe o
nível de consciência, diminui a crítica, diminui a autocrítica, diminui a reversibilidade com todas as suas
conseqüências. Isso não acontece somente nas quedas do nível de consciência, mas também nos estados
alterados da consciência. É preciso não confundir níveis e estados. Podemos estar, por exemplo, no nível de
consciência vigílico, mas em estado passivo, em estado atento, em estado alterado, etc. Cada nível de
consciência admite diferentes estados. São diferentes, no nível de sono paradoxal, os estados de sono
tranqüilo, de sono alterado e de sono sonambúlico. Pode, também, cair a reversibilidade em algum dos
aparatos de consciência por causa de estados alterados e não porque o nível tenha abaixado.

Poderia acontecer que uma pessoa estivesse vigílica e, sem embargo, por uma circunstância especial,
sofresse fortes alucinações. Observaria fenômenos que, para ela, seriam do mundo externo, quando na
realidade estaria projetando “externamente” algumas de suas representações internas. Estaria fortemente
sugestionado por esses conteúdos, por essas alucinações, do mesmo modo que uma pessoa fica em pleno
sono, fortemente sugestionada por seus conteúdos oníricos. Apesar disso nosso sujeito estaria desperto, e
não dormindo. Também por uma febre muito alta, pela ação de drogas ou de álcool, sem haver perdido o
nível de consciência vigílico, se encontraria num estado alterado de consciência, com a conseqüente
aparição de fenômenos anormais.

Os estados alterados não são tão globais, senão que podem afetar determinados aspectos da reversibilidade.

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Podemos dizer que uma pessoa qualquer, em plena vigília, pode ter bloqueado algum aparato de
reversibilidade. Tudo funciona bem, suas atividades diárias são normais, é uma pessoa convencional. Tudo
anda às mil maravilhas... menos num ponto. Quando se toca nesse ponto, o sujeito perde o controle. Existe
um ponto de bloqueio de sua reversibilidade. Quando se toca nesse ponto, diminui o sentido crítico e
autocrítico, diminui o controle de si mesmo e estranhos fenômenos internos se apoderam de sua
consciência. Mas isso não é tão dramático e acontece com todos nós. Em maior ou menos medida, todos
temos nossos problemas com algum aspecto dos mecanismos de reversibilidade. Não dispomos, tão a
nosso gosto, de todos os nossos mecanismos. Pode acontecer, então, que nosso famoso eu, diretor da
orquestra, não o seja tanto, quando alguns aspectos da reversibilidade são afetados, no momento em que
ocorrem disfunções entre os distintos aparelhos do psiquismo. O exemplo da câmara de silêncio é muito
interessante, nele compreendemos que não se trata de uma queda de nível de consciência, senão da
supressão de impulsos que deveriam chegar até a consciência, e ali, a própria noção do eu se altera, se
perde. Também se perdem faixas de reversibilidade, de sentido crítico e ocorrem alucinações
compensatórias.

A câmara de silêncio nos mostra o caso da supressão de estímulos externos e poucas vezes ocorrem ali
fenômenos de real interesse se não se eliminam todas as referências sensoriais. Ocorre, às vezes, a falta, ou
insuficiência de impulsos provenientes dos sentidos internos. A esses fenômenos chamamos,
genericamente, de “anestesias”. Por algum bloqueio, os sinais que deveriam chegar, não chegam. O sujeito
se estranha, seu eu se distorciona, bloqueiam-se alguns aspectos de sua reversibilidade. Assim é que o eu
pode ver-se alterado por excesso de estímulos ou por carência deles. Mas, em todo caso, se nosso eu, diretor, se
desintegra, as atividades de reversibilidade desaparecem.

Por outro lado, o eu dirige as operações utilizando um “espaço” e segundo se situe nesse “espaço”, a direção dos
impulsos mudará. Falamos do “espaço de representação” (diferente do espaço de percepção).2 Neste espaço de
representação, do qual também toma amostras o eu, vão se situando impulsos e imagens. De acordo com a
profundidade ou o nível do espaço de representação a que uma imagem seja lançada, sai uma resposta ao
mundo diferente. Se para mover minha mão, imagino-a visualmente, como se a visse de fora, imagino-a
deslocando-se até um objeto que quero pegar, não é por isso que minha mão, realmente, se deslocará. Esta
imagem visual externa não corresponde ao tipo de imagem que deve ser disparada para que a mão se
mexa. Para que isto ocorra é necessário que eu utilize outros tipos de imagens: uma imagem cenestésica
(baseada na sensação interna) e uma imagem cinestésica (baseada no registro muscular e de posição que
vai tendo a minha mão ao mover-se). Poderia acontecer que logo eu me equivocasse no tipo e na
localização da imagem ao mundo. Eu poderia Ter sofrido um certo “trauma”, como gostavam de dizer em
outras épocas, e então, ao querer levantar-me da cadeira em que me encontro, me equivocasse na
localização da imagem no espaço de representação. Ou então, confundisse o tipo de imagem. O que estaria
me passando? Eu estaria dando sinais, estaria me vendo levantar-me da cadeira, mas poderia acontecer
que não estivesse disparando as imagens cenestésicas e cinestésicas corretas, que são as que movem meu
corpo. Se me equivocasse no tipo de imagem ou na localização dela, meu corpo poderia não responder e
ficar paralisado. Poderia, ao contrário, acontecer que esta pessoa que está paralisada desde aquele famoso
“trauma” e que não pode situar corretamente sua imagem, recebesse um forte impacto emotivo de um
xamã curandeiro ou de uma imagem religiosa e como resultado desse fenômeno de fé (de um forte registro
emotivo cenestésico), reconectasse a correta localização ou discriminasse corretamente a imagem
(cenestésica) do caso. E seria bastante vistoso o fato de que alguém , frente a esses estranhos estímulos,
rompesse sua paralisia e saísse caminhando. Poderia acontecer, se pudesse reconectar corretamente a
imagem. E assim como existem muitas somatizações, podem existir também muitas “des somatizações” de
acordo com os jogos de imagens que temos comentado. Empiricamente, isto aconteceu muitas vezes e
estão devidamente registrados numerosos e diversos casos.

Este assunto das imagens não é uma questão menor. Aí está nosso eu disparando imagens e cada vez
que uma imagem vai, um centro se mobiliza, e uma resposta sai ao mundo. O centro mobiliza uma

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atividade, seja para o mundo externo ou seja par o intracorpo. O centro vegetativo, por exemplo, mobiliza
atividades de disparo para dentro do corpo e não para a motricidade externa. Mas, o interessante deste
mecanismo, é que, uma vez que o centro mobiliza uma atividade, os sentidos internos tomam amostra
dessa atividade que se disparou para o intracorpo ou para o mundo externo. Então, se movo o braço, tenho
noção do que faço. A noção que tenho do meu movimento não está dada por uma idéia, senão que, por
registros cenestésicos próprios do intracorpo e por registros cinestésicos de posição, entregues por
diferentes tipos de introceptores. Acontece que, segundo movo o braço, vou tendo o registro de meu
movimento. Graças a isso é que posso ir corrigindo meus movimentos até encontrar justo com o objeto.
Posso ir corrigindo-o com maior facilidade do que um bebê, porque o bebê, todavia, não tem a memória, a
experiência motriz para realizar movimentos tão usuais. Posso ir corrigindo meu movimento porque, de
cada movimento que faço, vou tendo sinais correspondentes. Claro que isso vai a grande velocidade e, de
cada movimento que produzo, tenho sinal do que vai acontecendo, num circuito contínuo de
retroalimentação, que permite corrigir e, além disso, aprender os movimentos. Assim, pois, de toda ação
que mobiliza um centro ao mundo, tenho uma dose de retroalimentação que volta ao circuito. E, esta dose
de retroalimentação, que volta ao circuito, mobiliza por sua vez, diferentes funções de outros aparelhos da
consciência. Sabemos que existem formas de memória motriz, por exemplo, algumas pessoas quando
estudam, o fazem melhor caminhando do que sentadas. Em outro exemplo, alguém interrompe seu
diálogo com outra pessoa com a qual debatia enquanto caminhava porque esqueceu o que estava por dizer.
Apesar disso, ao voltar ao lugar em que perdeu o fio do seu discurso, pode recuperá-lo completamente. E,
para terminar com isto, vocês sabem que, quando esquecem algo, se repetem os movimentos corporais
prévios ao momento do esquecimento, podem retomar a seqüência esquecida. Em realidade, há uma
retroalimentação complexa do ato que sai: tomam-se amostras do registro interno, se reinjecta no circuito,
vai até a memória, circula, associa-se, transforma-se e traduz-se.

Para muitos, sobretudo para a Psicologia clássica, a coisa termina quando se realiza um ato. E parece
que a coisa recém começa quando alguém realiza um ato, porque este ato se reinjeta e essa reinjeção
desperta uma grande cadeia de processos internos. Assim vamos com nossos aparatos, conectando-os entre
si por meio de complexos sistemas de impulsos. Estes impulsos de deformam, se transformam e se
substituem uns por outros. Assim, portanto, e segundo alguns exemplos que foram dados em seu
momento, essa formiga que percorre meu braço é rapidamente reconhecida. Mas, esta formiga que
percorre meu braço enquanto durmo, não é facilmente reconhecida, senão que esse impulso de deforma, se
transforma e às vezes se traduz, suscitando numerosas cadeias associativas, segundo a linha mental que
esteja trabalhando neste momento. Complicando um pouco mais as coisas: quando meu braço esta mal
localizado, me dou conta disso e me movo. Mas, quando estou dormindo e meu braço está mal localizado,
essa soma de impulsos que chegam é tomada pela consciência, traduzida, deformada e associada de modo
singular. Aí acontece que imagino um exército de vespas que atacam meu braço e então essas imagens
levarão carga até meu braço e o braço se moverá num ato de defesa (que conseguirá uma reacomodação) e
seguirei dormindo. Essas imagens servem, precisamente, para que o sono continue. Estão à disposição,
essas traduções e deformações de impulsos, da inércia do nível. Estas imagens do sono estão servindo a
defesa do próprio nível. Existem muitíssimos estímulos internos que dão sinal durante o sono. Então, no
momento do sonho paradoxal, estes impulsos aparecem como imagem. Acontece que há uma tensão
visceral profunda, por exemplo. O que acontecerá? O do braço, mas por dentro. Esta tensão visceral
profunda envia um sinal e ele se traduz como imagem. Suponhamos algo mais fácil: uma irritação visceral
envia o sinal que se traduz como imagem. O sonhador agora se vê dentro de um incêndio e se o sinal é
demasiado intenso, o “incêndio” terminará rompendo a inércia do nível, então o sujeito se despertará e
tomará algum digestivo ou algo do tipo. Mas, se não for assim, se manterá a inércia do nível e se
associaram outros elementos que contribuirão par ir diluindo a situação, porque a própria imagem pode
trabalhar disparando-se para dentro e provocando distensões. Nos sonhos, continuamente, estão sendo
recebidos impulsos de distintas tensões internas, estão sendo traduzidas imagens correspondentes e estas
imagens que mobilizam centros, também mobilizam o centro vegetativo que dá respostas de distensão

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interna. De maneira que, as tensões profundas vão dando sinais e, as imagens vão rebotando par dentro,
provocando as distensões equivalentes às tensões que foram disparadas.

Quando o sujeito era bebê, recebeu um forte choque. Ficou fortemente impressionado por uma cena.
Contraíram-se muitos de seus músculos externos. Também se contraíram algumas zonas musculares mais
profundas. E cada vez que recorda aquela cena, produz-se o mesmo tipo de contração. Agora acontece que
essa cena está associada (por similitude, contiguidade, contraste, etc.) com outras imagens que,
aparentemente, não tem nada que ver. Então, ao evocar essas imagens, saltam as primigenias e produzem-
se as contrações. Acontece, por último, com o passar do tempo, que se tenha perdido na memória antiga a
primeira imagem, que era a que produzia a tensão. E, agora, inexplicavelmente, ao receber um impulso e
soltar-se uma imagem, produzem-se essas contrações. Acontece que, frente a certos objetos, ou situações,
ou pessoas, despertam-se no sujeito fortes contrações e um estranho temor, ao qual não se encontra relação
com aquilo que passou na infância. Foi apagada uma parte e ficaram outras imagens. Cada vez que, em
seus sonhos soltam-se imagens que põe em marcha essas contrações e, delas se tomam amostras que
voltam a traduzir-se em imagens, está se realizando na consciência, uma tentativa por distender e por
transferir as cargas que estão fixadas a uma situação não resolvida. No sonho está se tratando de resolver,
com o disparo de imagens, as tensões opressivas e, além disso, está se tratando de deslocar cargas de certos
conteúdos para outros, de menor potencial, a fim de que se separe, ou se redistribua, a carga dolorosa
primitiva.

Tendo em conta o trabalho empírico catártico e transferencial que se realiza durante o sonho, as técnicas de
Operativa podem seguir o processo de tomar impulsos e disparar imagens aos pontos de resistência. Mas, é
necessário fazer aqui umas breves digressões em torno da classificação das técnicas de Operativa, aos
procedimentos gerais e ao objetivo de tais trabalhos.

Agrupamos as distintas técnicas de Operativa3  do seguinte modo. 1. Técnicas catárticas: sondeo catártico,
catarse de realimentação, catarse de climas e catarse de imagens. 2. Técnicas transferenciais: experiências guiadas4 ;
transferências e transferências exploratórias. 3. Técnicas autotransferenciais.

Nas transferências se situa o sujeito num particular nível e estado de consciência, num nível de semi-sono
ativo no qual vai baixando e subindo pela sua paisagem interna; vai avançando ou retrocedendo; vai
expandindo ou vai contraindo e ao fazê-lo assim, nosso sujeito vai encontrando resistências em
determinados pontos. Essas resistências que encontra são para quem guia a transferência, indicadores
importantes de bloqueio, fixação, ou contração. O guia vai procurar que as imagens do sujeito cheguem,
suavemente, a essas resistências e as superem. E, dizemos que quando se pode superar uma resistência, se
produz uma distensão ou se produz uma transferência de carga. Às vezes estas resistências são muito
grandes e não se pode acometê-las de frente porque se produzem reações, ou rebotes e o sujeito não vai se
sentir animado a novos trabalhos se sofre algum fracasso ao tratar de vencer suas dificuldades. Assim, pois,
com as grandes resistências, o guia não avança frontalmente, senão que, melhor, retrocede e “dando voltas”
chega novamente a elas, mas, conciliando conteúdos internos, e não atuando com violência. O guia vai
orientando-se pelas resistências, sempre com o procedimento das imagens. Trabalha no nível do semisono
por parte do sujeito, para que ele possa apresentar um conjunto de alegorias conhecidas e manejáveis.
Trabalhando com alegorias no nível do semisono ativo, o guia pode mobilizar imagens, vencer resistências
e liberar sobrecargas.

O objetivo final dos trabalhos de Operativa é o de integrar conteúdos que estejam separados, de maneira que
esta incoerência vital que alguém percebe em si mesmo, possa ser superada. Estes mosaicos de conteúdos que não
encaixam bem; estes sistemas de ideação onde se reconhecem tendências contraditórias; estes desejos que
não se quer desejar; estas coisas que passaram e não se quer repetir; essa complicação enorme de conteúdos
não integrados; essa contradição contínua, é o que se pretende ir superando com o apoio das técnicas
transferenciais de integração de conteúdos. E, conhecendo bem as técnicas, interessa incursionar em
diversos tipos de trabalhos autotransferenciais, nos quais já se prescinde de um guia externo, utilizando um
sistema de imagens codificado para orientar o próprio processo. Nas autotransferências resgatam-se

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conteúdos biográficos que não estão conciliados e se podem trabalhar temores e sofrimentos imaginários
situados num presente ou num futuro psicológico. Os sofrimentos que se introduzem na consciência em
seus distintos tempos e por suas distintas vias, podem ser modificados mediante a utilização de imagens
autotransferenciais disparadas ao nível e ao âmbito adequados do espaço de representação.

Temos orientado nossos trabalhos na direção da superação do sofrimento. Também temos dito que o
ser humano sofre pelo que acredita que aconteceu na sua vida, pelo que acredita que acontece, e pelo que
acredita que acontecerá. E sabemos que esse sofrimento que o ser humano tem pelo que acredita, é um
sofrimento real ainda que não seja real o que ele acredita. Trabalhando sobe si mesmo, pode-se chegar a
essas crenças dolorosas, reorientando a direção da energia psíquica.

5. O SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO NOS ESTADOS ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA

Nos deslocamentos pelo espaço de representação, chegamos a seus limites. À medida que as representações
descem, o espaço tende a escurecer-se e, inversamente, para cima, vai aumentando a claridade. Estas
diferenças de luminosidade “profundidades” y “alturas”, seguramente têm que ver com a informação de
memória que, desde a primeira infância, vai associando a gravação de luminosidade aos espaços altos.
Também se pode comprovar a luminosidade maior que tem qualquer imagem situada ao nível dos olhos,
enquanto sua definição diminui à medida que se situe fora desse nível. Logicamente, o campo de visão
abre-se com mais facilidade a frente e para cima dos olhos (para a cúspide da cabeça) do que para frente e
para baixo (para o tronco, as pernas e os pés). Não obstante o dito, alguns pintores de zonas frias e
nebulosas nos mostram nos planos baixos de suas telas ema iluminação especial, nas quais,
freqüentemente, estão os campos nevados, assim como uma crescente escuridão até os espaços altos que
podem aparecer cobertos de nuvens.

Nas profundidades ou nas alturas, aparecem objetos mais ou menos luminosos, mas, ao representar tais
objetos não se modifica o tom geral da luz que possa existir nos distintos níveis do espaço de
representação.

Por outro lado e somente em determinadas condições de alteração de consciência, produz-se um


fenômeno curioso que irrompe iluminando todo o espaço de representação. Este fenômeno acompanha as
fortes comoções psíquicas que entregam um registro emotivo cenestésico muito profundo. Esta luz que
ilumina todo o espaço de representação se faz presente de tal maneira que, ainda que o sujeito suba ou
baixe, o espaço permanece iluminado, não dependendo isto de um objeto particularmente luminoso, senão
que todo o “ambiente” aparece agora afetado. É como se pusesse a tela da TV com o brilho máximo. Em
tal caso, não se trata de uns objetos mais iluminados do que outros, senão que do brilho geral. Em alguns
processos transferenciais, e logo após registrar esse fenômeno, alguns sujeitos saem para a vigília com uma
aparente modificação da percepção do mundo externo. Assim, os objetos parecem mais brilhantes, mais
claros e com mais volume, segundo as descrições que se podem fazer nesses casos. Ao produzir-se esse
curioso fenômeno de iluminação do espaço, algo passou com o sistema de estruturação da consciência que
agora interpreta de um modo diferente a percepção externa habitual. Não é que se “tenham depurado as
portas da percepção”, senão que se modificou a representação que acompanha a percepção.

De um modo empírico e por meio de diversas práticas místicas, os devotos de algumas religiões tratam
de se pôr em contato com um fenômeno transcendente à percepção e que parece irromper na consciência
como “luz”. Por diferentes procedimentos ascéticos ou rituais, por meio do jejum, da oração, ou da
repetição, pretende conseguir o contato com uma espécie de fonte de luz. Nos processos transferenciais e
nos processos autotransferenciais, seja por acidente no primeiro caso, ou de modo dirigido no segundo, se
tem a experiência destes curiosos acontecimentos psíquicos. Sabe-se que estes podem produzir-se quando
o sujeito recebeu uma forte comoção psíquica, quer dizer, que seu estado é, aproximadamente, um estado
alterado de consciência. A literatura religiosa universal está repleta de numerosos relatos acerca destes
fenômenos. Também é interessante advertir que esta luz, em algumas ocasiões, se “comunica” e até

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“dialoga” com o sujeito, tal como está ocorrendo nestes tempos com as luzes que se vêem nos céus e que
chegando aos temerosos observadores, lhes dão suas “mensagens de outros mundos”.

Existem muitos outros casos de variações de cor, qualidade e intensidade lumínica, como acontece com
certos alucinógenos, mas esses casos não tem nada a ver com o comentado anteriormente.

Segundo se descreve em muitos textos, algumas pessoas que aparentemente morreram e voltaram à
vida, tiveram a experiência de abandonar seu corpo e ir orientando-se para uma luz cada vez mais viva,
sem poder relatar bem se eram eles que avançavam até a luz, ou a luz que avançava até eles. O fato é que
os protagonistas vão se encontrando com semelhante luz que tem a propriedade de comunicar-se e até de
dar indicações. Mas para poder contar essas histórias, terá que receber um choque elétrico no coração, ou
algo do estilo, e então, nossos heróis se sentirão retrocedendo e afastando-se da famosa luz com a que
estavam por tomar um interessante contato.

Existem numerosas explicações acerca destes fenômenos, explicações pelo lado da anoxia, da
acumulação de dióxido de carbono, da alteração de certas enzimas cerebrais. Mas, para nós, como é
costume, não nos interessam tanto as explicações, que hoje são umas, amanhã são outras, senão que nos
interessa o sistema de registros, a situação afetiva que padece o sujeito e essa espécie de grande “sentido”
que parece irromper sorpresivamente. Aqueles que acreditam ter voltado da morte, experimentam uma
grande mudança pelo fato de haver registrado um “contato” com um fenômeno extraordinário que de logo
emerge e do qual não se alcança compreender se é um fenômeno de percepção ou de representação, mas
que parece de grande importância já que tem aptidão para mudar, subitamente, o sentido da vida humana.

Sabes-se, além do mais, que os estados alterados de consciência podem dar-se em distintos níveis e, por suposto,
no nível vigílico. Quando alguém se encoleriza, produz-se, em vigília, um estado alterado. Quando alguém,
de repente, sente euforia ou uma grande alegria, também está roçando um estado aletardo de consciência.
Mas quando se fala de “estado alterado”, pode-se pensar em algo infravigílico. Sem embargo, os estados
alterados são freqüentes, acontecem em diferentes graus e com diferentes qualidades. Os estados alterados
sempre implicam no bloqueio da reversibilidade de alguns de seus aspectos. Existem estados alterados de
consciência ainda na vigília, como são os estados produzidos pela sugestionabilidade. Todo mundo está
mais ou menos sugestionado pelos objetos que mostra a publicidade ou que glorificam os comentaristas
mediáticos. Muita gente no mundo acredita nas bondades dos artigos que, repetidamente, vão sendo
propostos nas diversas campanhas. Esses artigos podem ser objetos de consumo, valores, pontos de vista
sobre diferentes tópicos, etc. A diminuição da reversibilidade nos estados alterados de consciência, está
presente em cada um de nós e a cada momento. Nos casos mais profundos de susceptibilidade, já nos
encontramos no transe hipnótico. O transe hipnótico trabalha no nível de consciência vigílica, ainda que o
criador da palavra “hipnose” tenha pensado que era uma espécie de sono. O sujeito hipnotizado caminha,
vai, vem, anda com os olhos abertos, efetua operações e, também, durante o efeito pós-hipnótico o sujeito
segue atuando em vigília, mas cumprindo com o mandato que lhe deram no momento da sessão
hipnótica. Trata-se de um forte estado alterado de consciência.

Existem os estados alterados patológicos nos quais se dissociam importantes funções da consciência.
Também existem estados não patológicos nos quais, provisoriamente, se podem cindir, dividir as funções.
Por exemplo, em certas sessões espíritas alguém pode estar conversando e, ao mesmo tempo, sua mão se
põe a escrever automaticamente e começa a passar “mensagens” sem que o sujeito repare no que está
acontecendo.

Com os casos de divisão de funções e de cisões de personalidade, poderia se organizar uma listagem
bastante extensa dos estados alterados. Muitos estados alterados acompanham fenômenos de defesa que se
põem em marcha quando ocorrem disparos adrenalínicos frente a um perigo e isto produz sérias
modificações na economia normal da consciência. E, sem dúvida, assim como existem fenômenos muito
úteis na alteração da consciência, existem também fenômenos muito negativos.

Por ação química (gases, drogas e álcool), por ação mecânica (giros, respirações forçadas, opressão de

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artérias) e por ação da supressão sensorial, podem produzir-se estados alterados de consciência. Também
por procedimentos rituais e por um “colocar-se em situação” graças a condições musicais especiais, danças
e operações devocionais.

Existem os chamados “estados crepusculares de consciência“, nos quais existem o bloqueios da


reversibilidade geral e, um posterior registro de desintegração interna. Distinguimos, também, alguns
estados que podem ser ocasionais e que, bem poderiam ser chamados “estados superiores de consciência”.
Estes podem ser classificados : “êxtase”, “arrebatamento” e “reconhecimento”. Os estados de êxtase, podem ser
acompanhados por suaves concomitâncias motrizes e por uma certa agitação geral. Os de arrebatamento,
são mais de fortes e inefáveis registros emotivos. Os de reconhecimento, podem ser caracterizados como
fenômenos intelectuais, no sentido em que o sujeito acredita, por um instante, “compreender tudo”; por
um instante não ter diferenças entre o que ele é e o que é o mundo, como se o eu tivesse desaparecido. A
quem não aconteceu alguma vez que, de repente, experimentou uma alegria enorme sem motivo, uma
alegria súbita, crescente e estranha? A quem não ocorreu, sem causa evidente, uma “caída em conta” do
profundo de profundo sentido, na qual se fez evidente que “assim são as coisas”?

Também pode-se penetrar num curioso estado de consciência alterada pela “suspensão do eu”. Isto se
apresenta como uma situação paradoxal, porque para silenciar o eu é necessário vigiar sua atividade de
modo voluntário, o que requer uma importante ação de reversibilidade que robustece, novamente, aquilo
que se quer anular. Assim é que a suspensão se alcança unicamente por caminhos indiretos, deslocando,
progressivamente, o eu de sua localização central de objeto de meditação. Este eu, soma de sensação e
memória, começa, logo, a silenciar-se, a se desestruturar. Tal coisa é possível porque a memória pode deixar
de entregar dados, e os sentidos, (pelo menos os externos) também podem deixar de entregar dados. A
consciência, então, está em condições de encontrar-se sem a presença desse eu, numa espécie de vazio. Em tal
situação, é experimentável uma atividade mental muito diferente da habitual. Assim como a consciência se
nutre dos impulsos que chegam do intracorpo, do exterior do corpo e da memória, também se nutre das
respostas que dá ao mundo (externo e interno) e que, re-alimentam, novamente, a entrada no circuito. E,
por esta via secundária, detectamos fenômenos que se produzem quando a consciência é capaz de
internalizar-se até “o profundo” do espaço de representação. “O profundo” (também chamado “si mesmo” em
alguma corrente psicológica contemporânea) não é, exatamente, um conteúdo da consciência. A
consciência pode chegar ao “profundo” por um trabalho especial de internalização. Nesta internalização
irrompe aquilo que sempre está escondido, coberto pelo “ruído” da consciência. É no “profundo” onde se
encontram as experiências dos espaços e dos tempos sagrados. Em outras palavras, no “profundo”
encontra-se a raiz de toda a mística e de todo sentimento religioso.

NOTAS

O DEVANEIO E A AÇÃO

Madrid, praça de Colombo. Entre árvores, águas e flores, dois protagonistas hieráticos e distanciados
propõem seu contraponto. Enquanto o Monumento ao Descobrimento da América se assenta
centralmente, a estátua de Cristóvão Colombo ocupa um espaço lateral. E na noite, quando o tumulto
urbano silenciou, um mundo de calculados labirintos, de contradições apenas esboçadas, ganha
importância . O monumento iluminado por potentes colunas de luz branca impõe o peso de sua massa ao
tempo que a silhueta do célebre navegante se ergue longÍnqua e fantasmagórica. Assim, o observador fica
preso em uma situação onírica em que os objetos lhe parecem estranhos. A estátua, em una esquina da
praça, não pode ser apreciada com justiça porque está de costas. Tampouco se pode chegar ao monumento

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pois uma cerca o circunda. É necessário sair da praça e, dando um rodeio, entrar desde a rua.Mas ali se
está demasiado perto dos blocos e é impossível, retrocedendo, regular as distâncias que seriam necessárias
para observar os detalhes e o conjunto. Finalmente, quando se tenta outra perspectiva, umas árvores
impedem a visão. Assim é que se pode apreciar do complexo um só aspecto por vez; só um aspecto, passo a
passo. Entre os blocos do monumento se recortam dois severos ciprestes enquanto nos jardins vão
alternando-se oliveiras e magnólias. Pequenos faróis com luzes amarelas e alguns bancos de pedra
emolduram o ambiente calmo, silencioso desconcertante.
A praça foi inaugurada em 1841. Atualmente se levanta nos jardins uma fina coluna neogótica de 20
metros sobre a qual está localizada a figura do grande genovês. Este, levando na sua mão direita um
estandarte com uma cruz em seu ápice, parece avançar um passo. Na cena de pedra não se lêem datas
decisivas. Os nomes dos reis da Espanha não aparecem bordados na bandeira. Não se vêem caravelas, nem
nativos da América. Estão ausentes as figuras dos irmãos Pinzón acompanhando o desembarque em
Guanahaní. É que o escultor não pretendeu mostrar a realidade de uma extraordinária aventura senão que
materializou a imagem que o marinheiro teve de si mesmo quando se sentiu encarnando ao São Cristóvão
da lenda. O artista fez visível o devaneio que impulsionou a Cristóvão Colombo a substituir seu nome civil
por um fictício. Assim se compreende que a grafia estampada em numerosos documentos da época não é
um pseudônimo senão a representação do autor, é sua assinatura que diz "Cristo ferens" e que significa "o
portador de Cristo."
O Monumento ao Descobrimento da América está localizado no espaço central sobre uma plataforma de
escadas provida de rampas. Sobre esse piso se levantam umas enormes muralhas . O monumento consta de
4 volumes, dos quais o mais alto mede 17 metros de altura. Grandes desenhos inseridos e textos massivos
ocupam os 2.000 metros de superfícies decoradas dos segmentos murais. A luz joga nas caras planas ou
curvas dos muros compostos com áridos vermelhos de Alicante. Esta grande construção impressiona por
suas surpreendentes características.5
Os dois volumes centrais do monumento levam gravadas as principais datas, lugares e nomes na história
prévia do descobrimento. Vê-se a Colombo com seu filho Diego e se aprecia a entrevista com os reis. Mais
além estão as barras, os castelos e leões de Castilla e Aragão, junto às barras e as águias de Sicília. Trata-se
da heráldica estampada na bandeira que foi levada às terras de Guanahaní.
No enorme bloco final, chamado "O Descobrimento", se lêem em baixo relevo os nomes da tripulação e as
circunstâncias da aventura: "...O Almirante baixou a terra na barca armada e Martim Alonso Pinzón e
Vicente Yáñez seu irmão que era capitão de La Niña. Sacou o Almirante a bandeira real e os dois capitães
as duas bandeiras da cruz verde com um 'F' e um 'Y', encima de cada letra sua coroa. Postos em terra
viram árvores muito verdes, e águas muitas, e frutas de diversas maneiras... logo se juntou ali muita gente
da ilha". Uma figura de Colombo de sete metros, com os pés na água e o grande báculo na mão, ao estilo
dos São Cristóvão das catedrais, domina ao conjunto.
O inquietante primeiro bloco, ao que o arquiteto da obra chamou "As Profecias", apresenta várias
inscrições. Uma delas corresponde ao coro de Medeia de Sêneca tal qual foi traduzido do latim ao
castelhano por Colombo, para respaldar seus argumentos na Corte. Nessa tradução livre dos versos do
cordovês romano se lê: "Virão nos tardos anos do mundo certos tempos nos quais o mar oceano afrouxará
as ataduras das coisas e se abrirá uma grande terra e um novo marinheiro como aquele que foi guia de
Jasón e que teve por nome Typhis descobrirá novo mundo e já não será a ilha Thule a mais longínqua das
terras". Frase bastante diferente à que, em realidade, escreve Sêneca: "Tempos virão ao passar dos anos em
que solte aos oceanos as barreiras do mundo e se abra a terra em toda sua extensão e Tetis nos descubra
novos orbes e o confim da terra já não seja Thule".
Outro escrito, agora de São Isidoro de Sevilha, acompanha no muro às palavras de Sêneca. O autor das
"Etimologias" afirma oito séculos antes do descobrimento: "Além das três partes do mundo existe outro
continente mas além do oceano". Esta inscrição, por demais sugestiva, pouco tem de profética e em todo
caso se aproxima à percepção de Raymundo Lulio na que se fala da existência de uma grande terra "na que
o oceano deve estribar por ocidente."
Também foram levadas à muralha as palavras anotadas por Colombo na margem de uma página da
"Ymago Mundi" de Pierre d'Ailly: "Mais além ,no trópico de Capricórnio se encontra a morada mais
formosa, pois é a parte mais alta e nobre do mundo, quer dizer, o Paraíso Terrenal." O tema do paraíso
terrenal é considerado pelo Navegante especialmente em sua terceira viagem e isto cria alguns problemas
em quanto à confiabilidade dos documentos e à linguagem usados.Mas, superados os inconvenientes
aparece uma extraordinária geografia mítica que ajuda a compreender umas motivações das novas viagens

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e descobrimentos. "A Sagrada Escritura testemunha que Nosso Senhor fez o Paraíso Terrenal e nele pôs a
árvore da vida, e dele sai uma fonte de onde resultam em este mundo quatro rios principais." Esse lugar se
encontra no ponto mais alto do mundo e por mar vai- se subindo à medida que se avança para o sul. "E
bem que o parecer de Aristóteles fosse que o pólo Antártico ou a terra que é debaixo dele seja mais alta
parte do mundo e mais próxima ao céu." E mais adiante comenta que o mundo "...é da forma de uma pêra
que seja toda muito redonda, salvo ali onde tem o mamilo que tem ali mais alto, ou como quem tem uma
bola muito redonda e num lugar d'ela fosse como uma teta de mulher ali posta, e qu'esta parte d'este
mamilo seja a mais alta e mais propícia do céu".(9) É claro que a idéia de Colombo (em quanto a que há
um lugar mais alto que todos os demais na esfera do mundo e que nessa zona a água é também mais alta),
responde a crenças que já haviam sido desvirtuadas desde séculos anteriores. A respeito, se deve recordar o
que Dante escreve em 1320: "A água não tem corcova alguma que sobressaia de sua circunferência
regular", e também: "Este argumento arranca de uma falsa imaginação pois os marinheiros no mar
imaginam que não divisam a terra desde o barco por ser o barco mais alto que a terra; mas isto não é
assim, senão que mais bem sucederia todo o contrário, pois divisariam um panorama muito mais largo que
o que vêm. A causa consiste em que o raio direto da coisa visível se rompe entre o objeto e o olho pela
convexidade da água, pois como a água tem necessariamente por todas partes forma redonda arredor de
seu centro, daí provem que, a certa distancia, a água forma um obstáculo ao olhar com sua própria
convexidade".11 Se bem Dante refuta as idéias sobre as partes mais altas das águas no globo, sustenta que
no hemisfério sul se encontra a gigantesca montanha sobre a qual está localizado o Paraíso Terrenal. Estas
imagens mescladas com a concepção geocêntrica de Ptolomeu vão a seguir inflamando a imaginação dos
navegantes até avançado o S. XVII.12
Nesse primeiro bloco se lê uma profecia que parece haver nascido em terras de América antes da chegada
dos europeus. A inscrição diz: "A distancia de um grito, a distancia de uma jornada estão já, ¡oh, pai!
Recebei a vossos hóspedes os homens barbados, os de oriente, os que trazem o sinal de Ku, a divindade". A
citação está atribuída ao livro maia de Chilam Balam de Chumayel,13 uma das pedras angulares da
literatura indígena americana.14 Mas a frase está composta com dois parágrafos diferentes: O 11 Ahau
diz: "...Do oriente vieram quando chegaram a esta terra os barbudos, os mensageiros do sinal da
divindade, os estrangeiros da terra, os homens rubicundos." o 12 Ahau diz: "...Recebei a vossos hóspedes;
a distancia de uma jornada, a distancia de um grito vem já." Tudo isto se entende melhor quando lemos o
13 Ahau que diz: "Os Ah Kines, Sacerdotes-do-culto-solar, profetizaram porque compreenderam como
haveriam de vir os estrangeiros espanhóis; os leram nos signos de seus papéis e por isso começaram a
dizer: 'Verdadeiramente os faremos amigos nossos e não lhes faremos guerra', dizendo ademais: 'A eles se
lhes pagará o tributo'." Por certo, estes textos são posteriores à conquista. O assunto é muito claro já desde
o 1 Ahau no qual se "profetiza" logo de passados os acontecimentos: "...Ao término do katun, do Coração
do Monte receberá sua esmola, sua parte, César Augusto (Carlos V), em mortes por fome, em zopilotes
nas casas."
A partir de 1930 começaram a circular escritos da cultura maia traduzidos às diferentes línguas européias.
O caso particular das profecias ainda é tema de discussão entre filólogos e historiadores e serviu de
inspiração a escritores e artistas, como fica bem claro neste primeiro bloco do monumento.15
Por outra parte, a seqüência de blocos nos leva a refletir sobre as fantasias que Colombo elaborou e que
não ficaram sô em sua mente senão que terminaram atuando nas interpretações de alguns autores que
trabalharam em recriar sua vida. Muitas daquelas imagens influíram naqueles que tomaram ao Navegante
como modelo de descobridor extraordinário, como um tipo de aventureiro sempre atual não obstante o
passar dos séculos. Ainda hoje podemos apreciar isto em alguma criação cinematográfica na que o diretor
(e produtor) não provêem do campo da arte senão da Astronáutica.16
Através do monumento da praça de Colombo se intui o universo de imagens que impulsionou ao
Navegante ao longo de sua vida. Seus projetos foram, sobretudo, grandes vôos imaginários, e sua ação
resultou conseqüente com esses arrebatos. Depois de tudo, há casos nos que alguns devaneios pouco
possíveis terminam orientando a vida do protagonista e, no jogo de forças históricas, se chegam a
converter em fatores decisivos. Algo disto ocorreu com alguns projetos de Cristóvão Colombo. Ele mesmo
descartou vários planos por irrealizáveis17 enquanto outros, errados na concepção básica, terminaram, no
entanto, acertando no branco.
Agora se chega a compreender porque se produziu uma separação, se diria que um choque, entre a estátua
de Colombo e o Monumento ao Descobrimento. Tudo o que aparece como surpreendente e contraditório
na praça é, em realidade, um reflexo do que foi o mundo dividido daquele sonhador e homem de ação.

14
NOTAS A ‘O DEVANEIO E A AÇÃO’
1. Em muitas praças e passeios se encontram estátuas dedicadas a Colombo. Uma delas, a de
Barcelona, é particularmente significativa. A que nos ocupa, de 3 metros de altura, se deve a A. Mélida y J.
Suñol que a concluíram em 1885. Em 1892 esteve situada sobre uma coluna de 17 metros no centro da
Castelhana. Terminado o Monumento ao Descobrimento da América foi localizada na praça no seu lugar
atual. Depois de uma restauração, l aforam acrescentados à coluna outros 3 metros.
2. No Palácio Municipal de Gênova se conserva uma carta dirigida a Nicoló Oderigo, embaixador de
Gênova na Espanha. Está fechada em Sevilha em 21 de Março de 1502. Colombo firma como "Cristo
ferens."
3. Segundo uma lenda Síria do século III, um homem tinha o oficio de facilitar aos viajantes o
cruzamento de uma torrente caudalosa. Para realizar seu trabalho colocava aos passageiros sobre seus
ombros e caminhando sobre o leito do rio os descarregava na outra margem. Costumava avançar
apoiando-se em um bastão de madeira . Certo dia apareceu um menino que pediu seus serviços. À metade
do rio o menino adquiriu um peso tão enorme que o homem começou a desfalecer. No meio do perigo
aquele revelou que era Jesus Cristo e então o homem assombrado pelo prodígio se converteu ao
cristianismo tomando o nome de Christóforos (latim. Christus, Cristo y gr. Foros, portador). Cristóvão
passou a ser o santo protetor dos viajantes. Na Idade Media se desenvolveu a estatuária dos São Cristóvão
colossais que ainda se conservam em numerosas catedrais. A princípios do S. XV na Alemanha e nos
Países Baixos se fizeram estampas impressas que circularam por toda Europa y que tinham o poder de
proteger nas desgraças. Na época de Colombo, a lenda era muito conhecida popularmente. Um pouco
mais adiante, em 1584 e na catedral de Sevilha, Mateo Pérez de Alesio pintou um São Cristóvão que
passava os nove metros de altura. Em pinturas e estátuas religiosas aparece São Cristóvão cruzando um rio
enquanto leva a Jesus sobre seus ombros. Na mão direita o menino leva, a sua vez, ao globo do mundo
rematado por uma cruz. Em base a essa representação circulou na Áustria desde há vários século, um a
ditado burlão: "Cristóvão levava a Cristo, Cristo levava ao mundo, onde apoiava seus pés Cristóvão?"
4. Foi inaugurado pelo alcaide de Madrid em 15 de Maio de 1977 diante do rei e vinte alcaides das
capitais dos países de América.
5. Diz o notável arquiteto italiano A. Sartoris que "Vaquero Turcios fez uma arquitetura esculpida,
fracionada em segmentos com concavidades e articulações de volumes... Sobre estes volumes, sobre as
fortíssimas e audazes sacadas lançadas no vazio, as figurações foram escavadas e os textos das inscrições
encaixados graficamente, à maneira de grandes desenhos e grafites. Formas esvoaçantes de caráter
monolítico. Monumento narrativo. Primeira obra de Arte Construída, realizada a escala urbana." Por sua
vez, O. Guayasamin opina sobre a obra que: "Observada desde o ponto de vista estético, ela atinge níveis
de alta poesia. As massas arquitetônicas que podem parecer estáticas demais no primeiro momento,
adquirem uma grande leveza e equilíbrio. O monumento é ao mesmo tempo a cordilheira dos Andes e as
velas dos barcos. Quero dizer com isto, que é maciço como uma rocha e leve como a vela de um veleiro. É,
por fim, o monumento de maior envergadura realizado na Europa nos últimos tempos, e o de maior
firmeza.-”Vaquero Turcios e a Arte Construída-. Monumento ao Descobrimento da América. A. Sartoris.
Madrid. Abaco. 1977”.
6. Medeia. Sêneca. Madrid. Gredos, 1997. Ato segundo par. 375. O texto que possivelmente usou
Colombo foi o da Editio priceps de Ferrara de 1484, o qual (como se suponha até a pouco tempo com
respeito às edições de Martinus Herbipolensis de Leipzig ou a de Carolus Fernandus de París das que não
consta ano de produção mas que só foram conhecidas em 1492) aparece como da mesma data das
Tragoediae Senecae cum duobus commentariis de Marmita que este publicou em Veneza em 1493. Com
relação ao texto que nos ocupa diz o tradutor e comentarista das obras de Sêneca, Jesus Luque Moreno:
"Desde há séculos (Abraham Oertel, p. exemplo), esta passagem foi interpretada como o anúncio profético
feito por um espanhol sobre o descobrimento do Novo Mundo que seria logo levado a cabo pela
Espanha". Hernando Colón, o filho do descobridor, escreveu na margem desta passagem em seu exemplar
do teatro de Sêneca: "haec prophetia expleta est per patrem meum Christoforum Colon almirantem anno
1492" (esta profecia foi cumprida por meu pai, o almirante Cristóvão Colombo, no ano 1492).
7.Biblioteca Colombina, Sevilla.
8. Diário. Relações de viagens. C. Colón. Madrid. Sarpe, 1985. Na nota introdutória deste livro se
sustenta que "do autor se conservam relativamente poucos documentos e, em qualquer caso, boa parte de

15
eles chegou até nós graças a cópias de frei Bartolomé De las Casas, que manteve uma estreita amizade
com Diego Colombo.Isto lhe permitiu ter acesso direto ao arquivo e aos livros do descobridor. Assim,
graças a uma cópia autografada de Las Casas, se conserva o resumo dos Diários da primeira e terceira
viagens. Isto faz pensar que o texto original dos Diários pode haver sido alterado substancialmente. No
entanto, investigadores posteriores foram polindo as cópias de imprecisões e alterações, e as versões atuais
resultam altamente confiáveis.A falta de originais se une a outra dificuldade nas obras colombinas: o
debatido problema da língua usada pelo autor... Colómbo é antes de tudo um homem de mar. Portanto,
este marinheiro está acostumado a navegar mil léguas sem lograr expresar-se bem em nenhuma. A diário e
durante seus anos de moço, o Almirante haverá de entender-se com seus companheiros na linguagem que
então se chamava 'levantisca' , isto é, do Levante, do Mediterrâneo ”.
9. "Eu sempre li que o mundo, terra e água era espérico e as autoridades e experiências que Ptolomeo e
todos os outros que escreveram d'este sitio davam y amostravam para isso, assim por eclipses da lua e
outras demonstrações que fazem de Oriente até Ocidente como da elevação do pólo de Septentrión no
Austro. Agora vi tanta disformidade como já disse; y por isto me pus a ter isto do mundo, e falhei que não
era redondo na forma que escrevem, salvo que é da forma de uma pêra que seja toda muito redonda, salvo
ali onde tem o mamilo que tem ali mais alto, ou como quem tem uma bola muito redonda e em um lugar
d'ela fosse como uma teta de mulher ali posta, e qu'esta parte d'este mamilo seja a mais alta e mais
próxima ao céu, e seja debaixo da línha equinocial, e neste mar Ocçeana, em fim do Oriente (chamo eu
fim de Oriente onde acaba toda a terra e ilhas). E para isto alego todas as razões sobreescritas da raia que
passa ao Ocidente das ilhas dos Açores cient léguas de Septentrión em Austro, que em passando de ali ao
Poniente, já vão os navíos alçándo-se ao céu suavemente..." Op. cit. Relação da terceira viagem .
10. Disputa sobre a água e a terra. Dante Alighieri. O. C. Madrid. BAC. 1973, par. 8. La Quaestio de situ
aquae et terrae, nega a teoría sustentada por Plinio, Sêneca e São Basilio segundo a qual o mar ocupa um
lugar mais alto que a terra.
11. Op. Cit., par. 82.
12. O que em el Dante é poesía, para muitos de seus leitores termina sendo a descrição de uma realidade
física que se encontra nos mares do sul. O vate relata: "I'mi volsi a man destra, e posi mente a l'altro polo,
e vidi quattro stelle non vista mai fuor ch'a la prima gente. Goder pareva il ciel di lor fiammelle: oh
settentrional vedovo sito, poi che privato se'di mirar quelle!" ("Me virei à direita, reparando no outro
polo, e vi quatro estrelas nunca vistas desde os primeiros humanos. Gozar parecia o céu com seus
resplendores. ¡Oh septentrión, que triste lugar eres, pois que te ves privado de ver-las!"). O Purgatorio,
Canto I. A Divina Comedia. Para Dante, a Terra, segundo o sistema de Ptolomeo, está imóvil. A seu redor
giram as esferas celestes e com elas o Sol, os planetas e as estrelas. No poema estas são as direções do
mundo: ao norte, Jerusalém sobre o abismo infernal; ao sul, nas antípodas de Jerusalém, a montanha do
purgatório; ao este, o Ganges; ao oeste, o estreito de Gibraltar. O inferno e o purgatório estão na Terra,
um em forma de abismo, o outro em forma de montanha, em cuja cúspide está o paraíso terrenal. A
imagen Tolomeica seguirá vigente ainda depois da publicação de Revolutionibus orbium coelestium, de
Copérnico en 1543. Como este negava que a Terra fosse centro do universo, sua concepção foi resistida
vigorosamente. Em 1609 Galileu introduziu a lente astronómica e confirmou a teoria heliocéntrica de
Copérnico, mas ainda passaram várias décadas para que se cimentara a nova visão da realidade.
13. "O Chilam Balam de Chumayel. Procede do povo de Chumayel, Yucatán. Foi propriedade do Sr.
Obispo Crescencio Carrillo e Ancona. En 1868, sendo 'ja propiedade deste, foi copiado a mão pelo Dr.
Berendt e em 1887 foi fotografado por Teoberto Maler. George B. Gordon, diretor do Museu da
Universidade de Pennsylvania, o fotografou e editou em forma facsimilar em 1913. Passou à Biblioteca
Cepeda de Mérida em 1915 donde foi substraído juntamente com outros manuscritos, antes de 1918. Em
1938 apareceu a venda em Estados Unidos, pela soma de sete mil dólares. Mais tarde, foi de novo
oferecido para venda ao Dr. Sylvanus G. Morley pela soma de cinco mil dólares. Partes dele foram
traduzidas e publicadas desde 1882, mas a primeira tradução completa foi a que publicou Antonio Médiz
Bolio em Costa Rica em 1930, em espanhol. A segunda, em inglés, foi feita por Ralph L. Roys quem a
publicou em 1933." O Livro dos Livros de Chilam Balam. México. Fundo de Cultura Economica. 1963,
p. 13.
14. "Os chamados Livros de Chilam Balam formam uma das secções mais importantes da literatura
indígena americana. Foram redigidos depois da conquista espanhola, e por isso sua escritura e sua forma
material são europeias. Quer dizer, sua escritura é a que os frades espanhois adaptaram à fonología da
lingua maya de Yucatán e o papel usado -pelo menos nas cópias agora existentes- é também europeu,

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formando cadernos. Alguns, senão todos, tiveram capas de couro... Como se ve, a diversidade de seu
conteúdo abarca todas as fases culturais pelas que foi passando o povo maya de Yucatán até que esses livros
cessaram de compilar-se... É induditável que uma grande parte de seus textos religiosos e históricos
puramente nativos provêem dos antigos livros hieroglífos... Não sabemos desde quando vieram a se
chamar Livros de Chilam Balam. Atualmente este nome não consta como título original de nenhum livro,
ainda que Pío Pérez assenta em uma de suas transcrições: 'Até aquí termina o livro intitulado
Chilambalam que se conservou no povo de Maní... (códice Pérez, Ms., p. 137)'. De todos modos, o nome é
já a denominação técnica aceita para designar este tipo de livros yucatecos... Supomos que os Livros de
Chilam Balam chegaram a organizar-se e multiplicar-se, assim: Algum sacerdote (ou vários sacerdotes
simultáneamente) receberiam instruções dos frades, aprendendo a ler e escrever na sua própria lingua.
Aproveitando esta nova adquisição de sua cultura, transcreveriam textos religiosos e históricos contidos em
seus livros hieroglíficos incluindo os das predições de Chilam Balam. De uma ou várias fontes sairiam
cópias que passariam a mãos dos sacerdotes nativos de outros povos, vindo assím a incluir em sua
denominação o nome do lugar de procedência: Chumayel, Maní, Tizimín, etc. O tempo destruiria os
livros materialmente e destruiria também o entendimento que seus curadores deveríam ter de seu
conteúdo, ao modificar sua propria cultura. Assim é que as cópias hoje existentes não são as originais do
século XVI em seus textos de fundo, senão cópias de cópias muito posteriores, algumas do século XVII e
outras ainda do presente século. Grande parte destes textos, que chamamos: de fundo, aparecem repetidos
uma ou mais vezes nos Livros, mas em cada ocasião as versões não são idênticas, pelas razões apontadas".
Op. Cit. p. 9 e sgs.
15. São muitos os estudiosos, pensadores e cientístas que se inspiraram nos ensinamentos da historia. Isto,
nos escritores de ciencia-ficcão foi particularmente notável. Basta um exemplo: Ray Bradbury.
Seguramente, este autor, ao escrever suas Crônicas Marcianas recebeu a influência de vários escritores de
contos fantásticos. Também são muito claros nele os impactos dos grandes descobrimentos marítimos e
terrestres. Bradbury se preocupou em seu livro por mostrar as consequencias perniciosas do encontro
entre culturas (em seu caso entre a marciana e a terráquea), inspirándo-se nos fatos como os acontecidos
em Guatemala logo da chegada dos europeos, quando uma epidemia de varíola dizimou aos grupos mayas
de uma área importante, situação esta que o novelista recria como a praga de variola que, levada pelos
terráqueos, acaba com os marcianos (diferente à enfermidade terrestre que mata aos marcianos invasores
na La Guerra dos Mundos, de H. G. Wells). A primeira edição de The Martian Chronicles é de 1946,
posterior em treze anos à tradução completa ao inglês dos livros de Chilam Balam. O sonho profético
referido por um dos marcianos anunciando a chegada dos primeiros seres humanos, faz recordar os dizeres
das profecías mayas supostamente registradas antes do descobrimento de América por parte dos europeus.
Tanto os mayas como os marcianos anunciam em suas profecías que os estrangeiros estão muito próximos,
a uma jornada de distância e também em ambos os casos se discorre sobre as características físicas dos
invasores. Os estranhos livros sonoros que "lêem" os marcianos lembram os “livros pintados” ou livros
hieroglíficos dos mayas. Por último as máscaras, às que são adeptos os miembros de ambas culturas,
confirmam o jogo de imágens de Bradbury inspirado pela literatura maya.
16. Referência ao filme "Christopher Columbus The Discovery", produzido e dirigido em 1992 por John
Glen.
17. Colombo havia imaginado que era possivel levantar 50.000 soldados e 5.000 cabalos para o resgate do
Santo Sepulcro, chegando a pedir permissão aos reis de España para formar uma cruzada que expulsaria
aos musulmanos de Jerusalém. Com o tempo ele foi abandonando essa idéia para concentrar-se na última
etapa de sua carreira de descobrimentos. Na quarta e última viagem para América, partiu de Cádiz em 9
de Mayo de 1502.

O BOSQUE DE BOMARZO

Bomarzo.1 A Opera.

Antes de correr-se o telão, a voz do menino pastor inunda a sala:

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"Não me troco, em minha pobreza, pelo duque de Bomarzo. Tem rebanho de rochas e é de ovelhas meu
rebanho. Com o que é meu me basta, com esta paz de Bomarzo, a doce voz do arroio, das cigarras o
canto..."
Há um ato I, cena III, chamado "O horóscopo". Mais adiante, a cena de "A alquimia" e, por último, a de
"O parque dos monstros" onde aparece uma enorme e grotesca cara talhada em pedra. Então, um barítono
define a situação nesta estrofe:
"É noite para amar, como nenhuma. Para morrer também, pois tudo treme com o mistério das horas
únicas. E os monstros enormes que meu irmão manda esculpir em pedras taciturnas, (3) aproximam-se a
quem ouse andar pela espessura."

Noticias sobre o parque


Perto de Viterbo, a cem kilómetros de Roma, existe um bosque hoje publicitado como "Parco dei Mostri".
chegam a visitar-lo diversos tipos de turistas. Não falta quem se acerque atraído pela mística do lugar, já
que em algum momento chegou até eles um rumor fomentado por comentários boca a boca, artigos
jornalísticos e programas televisivos. O núcleo de idéias é mais ou menos este: "O bosque sagrado de
Bomarzo foi criado por um senhor Orsini no S. XVI. A concepção do parque é netamente esotérica e
quem sabe caminhar ordenadamente entre seus monumentos, realiza uma transformação interna similar à
que efetuaram os alquimistas em seus laboratórios."
O Sacro Bosco de Vicino Orsini passa, em 1645, para a família della Rovere. Daquela época só se
conservam alguns desenhos sem comentários (4). Depois de um silencio que dura até 1845, reaparece o
parque em mãos da família Borghese. Em 1953 um artigo jornalístico chama a atenção sobre o Bosque.
Em 1955 se publicam vários estudos. Em 1954 Giovanni Bettini adquire o prédio, fazendo importantes
modificações ao tirar as muralhas limítrofes, esboçar caminhos internos e modificar as posições dos
monumentos (as esfinges, os obeliscos e outros). Logo de restaurar algumas esculturas, o parque é
habilitado ao público. Em 1955 um grupo de professores da Facoltà di Architettura di Roma faz uma
investigação de arquivos e um trabalho de campo, com levantamento de planos. Em 1958 Mujica Lainez
visita o lugar e em 1962 publica sua novela Bomarzo, que dá lugar ao livreto da ópera homônima escrita
em colaboração com Ginastera e estreada em 1967. A partir desse momento, numerosos artigos, livros e
filmes começam a difundir uma imagem estereotipada do Sacro Bosco. É claro que aparte dos trabalhos
encarados com seriedade científica, aparecem as fantasias que, inspirándo-se na novela e ópera Bomarzo,
forçam interpretações apoiadas em um tipo de Psicologia profunda que foi popular na década de '70.
O lugar
O Sacro Bosco se encontra ao pé do povoado de Bomarzo. Franqueando uma entrada se apresenta ante os
olhos um bosque conservado em estado "selvagem", matizado por algumas coníferas e umas poucas
espécies cultivadas. Seguramente, este bosque na época de Orsini se apresentava muito parecido ao de
Nemi, bastante próximo, no qual se levantava o santuário de Diana Nemorensis ou Diana do Bosque.
Como o de Nemi, mostrava numerosos robles salpicados com o sagrado muêrdago do qual Eneas cortou
um ramo dourado para poder entrar aos infernos. Mas há mais que variedade arbórea, arroios, vales,
construções e pedras esculpidas. Há, sobretudo, um ambiente que está regido pela estética maneirista na
que o jardim renascentista despersonalizado já não tem lugar. Aqui, é agora realçada a experiência pessoal.
Neste bosque a unidade visual e a coerência do espaço se esfumaçaram. Põe-se no mesmo nível de
importância os lugares que ocupam posições opostas na imaginaria da época. Deste modo, céus e infernos
podem coexistir com toda naturalidade. Isto se faz manifesto na estatuária que deriva de figuras esculpidas
no lugar, aproveitando as rochas que já existem. O artista tomará os elementos que estão à mão e
aproveitará as condições topográficas para desenhar seu jardim. Ficará de manifesto uma contínua
alegorização inspirada em mitos e lendas que causam "maravilha" e assombro no espectador. Aqui mudou
o sistema de ideação relacionado ao geometrismo, o equilíbrio e a racionalidade que poucos anos antes
dominava nos passeios, jardins e vilas da Europa cultivada.
Para quem esteja interessado em compreender a formação e o processo de imagens míticas profundas
originadas a partir do Humanismo ocidental e que chegam até nossos dias, este bosque resultará
paradigmático. Haverá que resgatar as fontes de inspiração nas que abrevaram Vicino Orsini e os artistas
que trabalharam em Bomarzo para compreender os significados de esfinges, ogros, semideuses e animais
fabulosos que povoam o lugar.

18
Antecedentes bibliográficos
Uma primeira noticia bibliográfica da conta das cartas cruzadas entre Pierfrancesco Orsini e o alquimista
francês, Jean Drouet. Os correspondentes eram conhecedores de Amadigi, de Bernardo Tasso y Orlando
Furioso, de Ariosto. Mas aqueles homens consideraram por sobre toda outra literatura, esse estranho livro
intitulado Hypnerotomachia Polifili e que foi uma das fontes mais importantes de uma profusa produção
literária, pictórica e escultórica. Ademais, sua influência vai se fazer sentir em numerosas produções
arquitetônicas e até no desenho de jardins. Devemos ter em conta a primeira edição veneziana de 1499,
um in-folio ilustrado com 171 gravados em madeira nos que se pode observar a representação plástica das
descrições do texto. Tomando o primeiro capítulo do Sonho de Polifilo (luta de amor em sonhos de
Polífilo), ilustrado pelo primeiro gravado, vemos a figura do protagonista entrando no bosque. O texto vem
em nossa ajuda: "...duras encinas silvestres, fortes robles e encinas cheias de belhotas e de ramas tão
abundantes que não permitiam chegar completamente os gratos raios do sol ao solo coalhado de orvalho".
Assim vai continuando a abarrotada descrição do livro, até chegar a intermináveis encontros (ilustrados
pelos gravados), com construções abandonadas, pirâmides ao estilo egípcio, cúpulas, torres e panteões,
templos e obeliscos. Também aparecem grandes ânforas e vasos gigantes; árvores maravilhosas, máquinas e
engenhos incompreensíveis. É óbvio que elefantes, cavalos alados e dragões não deixam de apresentar-se.
As procissões, cerimônias e rituais se sucedem mostrando donzelas e efebos dispostos à prática da
religiosidade pagã e aos lances amorosos. É claro que também estão os transformismos do sonho de
Polifilo, que apresenta a sua amada Polia nas opostas facetas da mística e da criminalidade.
Também jogam um importante papel os hieróglifos que são comentados extravagantemente. Eis aqui um
exemplo: "Quando por fim regressei à praça, vi um pedestal de pórfido, digníssimamente cinzelado
arredor, estes hieróglifos: primeiro um bucráneo com dois instrumentos agrícolas amarrados aos chifres; e
um altar sustentado sobre dois pés de um macho cabrío e com uma chama ardente encima, e em sua frente
um olho e um abutre, logo uma jofaina e um aguamanil... eram estes hieróglifos escrituras realizadas em
ótima escultura. Meditei sobre estas antiqüíssimas e sagradas escrituras e as interpretei assim: EX
LABORE DEO NATVRAE SACRIFICA LIBERALITER, PAVLATIM REDVCES ANIMVM
DEO SVBIECTUM. FIRMAM CVSTODIAM VITAE TVAE MISERICORDITER
GVBERNANDO TENEBIT, INCOLVMENQVE SERVABIT".14
Se bem o Sonho de Polifilo é a fonte bibliográfica imediata que serve de inspiração aos artífices do bosque
de Bomarzo, a imaginária desse livro tem, a sua vez, antecedentes muito longínquos. Com respeito aos
hieróglifos comentados mais acima, devemos destacar que já em 1422 se havia começado a difundir os
Hieroglyphica constituindo-se em uma moda escrever, pintar e esculpir nesse estilo carregado de alegorias
e de signos, em muitos casos indecifráveis. Tal vez uma das melhores expressões da arte hieroglífica que
podamos encontrar seja "O Arco Triunfal de Maximiliano" gravado em madeira por Durero em 1515.
Assim pois no Sonho de Polifilo, como em tantas obras até entrado o século XIX (e ainda hoje nos textos
ocultistas), seguiram tendo-se em conta as interpretações hieroglíficas baseadas nos Hieroglyphica que
caíram em total desprestígio quando se decifrou efetivamente a linguagem egípcia em 1822.
A bibliografia inspiradora dos artífices do Sacro Bosco, é muito extensa e, não se limita ao Sonho de
Polifilo senão que está ligada indissoluvelmente às produções dos humanistas do século XV influenciados
pelo pensamento bizantino e pelo redescobrimento do acervo alexandrino do século III. Por outra parte,
não somente concorre aqui uma abundante literatura senão uma tradição oral que passa através dos
arquitetos, desenhistas e escultores.
O bosque
Temos em nossas mãos um catálogo, quase um inventário, que dá conta dos objetos "maravilhosos" do
Bosque. Ali se menciona a umas esfinges; ao monumento à Tripla Luz; à Gigantomaquia; às harpias; a
tartaruga gigante; o cão Cerbero; o elefante rematado em uma torre; o Pégaso e o dragão fazendo frente a
uma fera. Também se mencionam os lugares sagrados: a fonte de Netuno; a torre inclinada de meditação;
a caverna das ninfas; a fonte da vida. Nesse material preparado para orientar a ordem das fotografias que
deve tomar o turista, também se discorre sobre a luz do lugar; sobre a vegetação;os arroios; os planos
ascendentes e descendentes; as escadarias; as grutas artificiais os passeios das ânforas alinhadas... Bem vale
a pena destinar uma manhã a ver com cuidado esse esforço realizado há mais de quatrocentos anos.
Também será interessante seguir a um grupo de visitantes enquanto escuta ao guia que disserta sobre as
cerimônias mágicas que se realizavam no lugar, sobre os alquimistas que, fazendo um recorrido iniciático,
terminavam adquirindo um conhecimento inefável.

19
Chegaremos ao bosque bordejando um arroio. Apresentará-se um rio, uma ponte e uma porta almenada
que ostenta o escudo dos Orsini. Entraremos ao espaço que Pierfrancesco chamou em várias de suas
cartas, "El Sacro Bosco".
Duas "esfinges ginocéfalas" enfrentadas recebem ao visitante. As criaturas fabulosas, repousando sobre
seus pedestais, apresentam suas adivinhações escritas em pedra. Mas eis aqui nossa primeira surpresa. Não
se trata das clássicas adivinhações que apresentam esses monstros. Não são marcados de profundidade
senão como de cartazes publicitários redigidos com o gosto e estilo da época. Uma esfinge nos invita a
responder a seu exigente reclamo: "TU CH'ENTRI QUI CON MENTE PARTE A PARTE ET
DIMMI POI SE TANTE MARAVIGLIE SIEN FATTE PER INGANNO O PUR PER ARTE".
(19) A inscrição da outra esfinge diz: "CHI CON CIGLIA INARCATE ET LABRA STRETTE
NON VA PER QUESTO LOCO MANCO AMMIRA LE FAMOSE DEL MONDO MOLI
SETTE". Trata-se de uma reconvenção e um reclamo feito à "seriedade". De passo, se menciona às sete
maravilhas do mundo deixando que associemos com a oitava. Respiramos aliviados ao compreender que
há ali um humor desmanhado, não isento de petulância, mas distanciado da pesada solenidade. Vendo isto,
nada melhor que seguir buscando as mensagens que nos dê, diretamente e sem intermediação de teorias
interpretativas, o artífice do Bosque.
Encontrando a "luta entre gigantes", lemos em uma esteira de pedra colocada à esquerda do monumento:
"SE RODI ALTIER GIA FU DEL SUO COLOSSO PUR DE QUEST IL MIO BOSCO ANCO SI
GLORIA E PER PIU NON POTER FO QUANTO POSSO". Um caso mais de autoglorificação.
No chamado "ninfeo", encontramos uma inscrição, desafortunadamente muito apagada pelo passo do
tempo. Somente podemos resgatar estas palavras: "L'ANTRO LA FONTE IL LI... D'OGNI OSCUR
PENSIER...".
E buscando novas inscrições chegamos ao "teatro" que, como em todo jardim romano importante não
podia faltar. No proscenio se pode ler com dificuldade: "PER SIMIL VANITA MI SON AC...
(CORDA)...TO D'ONORARE...". Ao pé desse cenário foram colocadas partes de dois obeliscos que
foram desenterrados recentemente. Um deles diz: "VICINO ORSINO NEL MDLII". O outro anuncia
"SOL PER SFOGARE IL CORE".
Em uma urna próxima à "fonte de Netuno" uma inscrição diz: "NOTTE ET GIORNO NOI SIAM
VIGILI ET PRONTE A GUARDAR DOGNI INGIURIA QUESTA FONTE". E em outra:
"FONTE NON FU TRA CHINGUARDIA SIA DELLE PIU STRANE BELVE".
Chegando ao "Orco", ao ogro, vemos no lábio superior do monstro, esta lenda: "OGNI PENSIERO
VOLA".
Há por ali uma "banca etrusca" que em seu espaldar diz: "VOI CHE PEL MONDO GITE
ERRANDO, VAGHI DI VEDER MARAVIGLIE ALTE ED STUPENDE VENITE QUA, DOVE
SON FACCIE HORRENDE ELEFANTI, LEONI, ORSI, ORCHI ET DRAGHI". É um convite
para ver um parque de diversões.
Uma inscrição na "rotonda" reitera a publicidade escancarada do Bosque: "CEDAN ET MEMPHI E
OGNI ALTRA MARAVIGLIA CH EBBE GIAL MONDO IN PREGIO AL SACRO BOSCO
CHE SOL SE STESSO ET NULL ALTRO SOMIGLIA".(31)
As inscrições nos permitiram compreender as intenções dos artífices de Bomarzo. No mínimo
entendemos as mensagens diretas de Pierfrancesco Orsini. Mas, assim exposto o interesse desta visita,
ficamos ante um vazio de significado...
Não incursionamos na imaginária deste Bosque porque aquela não é de seu exclusivo patrimônio senão
que se trata da paisagem comum em que se expressa a mística do Renascimento. Uma mística às vezes
apenas esboçada e às vezes, como neste caso, apresentada claramente.
Se por necessidade epocal, ou por dar relevo à engenhosa personalidade do senhor do lugar, os arquitetos,
desenhistas e escultores, apelaram a temas alquímicos, astrológicos e mistéricos, não por isso podemos
pretender que aqueles artífices soubessem cabalmente com que significados estavam tratando. De todas
maneiras, as expressões dessa mística estão aí frente a nossos olhos e entre numerosos absurdos se
acumulam materiais valiosos como sucede em alguns porões abandonados. Seguramente, crescerá a
informação (ou melhor, a desinformação) sobre o Bosque de Bomarzo. Poderemos consultar as bibliotecas
virtuais, poderemos folhear os livros que desordenadamente falarão dos astros, da pedira filosofal, até do

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inconsciente coletivo, mas nada disso facilitará o acesso a um ambiente cultural complexo que começou a
forjar-se no sincretismo helenístico da antiga Alexandria.

NOTAS AO BOSQUE DE BOMARZO


1. Ao pé do povoado de Bomarzo se encontra o Sacro Bosco criado pelo duque Pierfrancesco Orsini,
apelidado Vicino (1523-1585). "Bomarzo" significa aproximadamente "Bom Marte". A denominação de
"Sacro Bosco", foi acunhada depois da morte de Orsini.
2. A ópera Bomarzo, de Alberto Ginastera, sobre textos de Manuel Mujica Lainez, estreou a 19 de
Maio de 1967 no Lisner Auditorium de Washington. Em conseqüência disso, em 18 de Julio de 1967, a
Municipalidade da cidade de Buenos Aires emitiu um decreto que excluiu a obra do repertório do teatro
Colón, onde devia ser estreada poucos dias depois. Os termos do decreto foram estes: "Esta Intendência
Municipal recém pode tomar conhecimento cabal dos aspectos característicos de dito espetáculo, em
cujos quinze quadros se adverte permanentemente a referência obsessiva ao sexo, à violência à alucinação,
acentuada pela posta em cena, a massa coral, os decorados, a coreografia e todos os demais elementos
concorrentes. O argumento da peça e sua posta em cena revelam achar-se renhidos com elementares
princípios morais em matéria de pudor sexual". Semelhante decreto foi celebrado por humoristas de
distintas latitudes e isso contribuiu a propagar a fama da obra. Estas iniciativas comunais, como por
exemplo a resolução da Municipalidade de Florência que em 1910 decidiu vestir com uma folha de
parreira ao David de Miguel Angel, costumam ser logo muito festejadas. Em 1970, A ópera foi
apresentada na Ópera de Kiel e de Zurich, dirigida pelo eminente Ferdinan Leitner. A partir dessas datas ,
começa a crescer o interesse pelo parque de Bomarzo.
3. Este é o canto de Girolamo, irmão maior de Pierfrancesco Orsini. Em quanto aos "monstros enormes
que meu irmão mandou esculpir" se sabe quem tomaram parte nas duas fases dos trabalhos escultóricos
que começaram em 1552 sendo logo interrompidos para ser retomados em 1564 até sua conclusão em
1573. Ainda não está suficientemente esclarecido quem foi o desenhista geral do parque. Em todo caso
houve um encargo para o arquiteto Pirro Ligorio (recordado por seu projeto em 1550 dos jardins da vila
d'Este em Tívoli).
4. Se conservam duas tintas: uma, conhecida como "Buon Martio" (Vienna. Graphische Albertina.
Portale e Urna. Cat. n. 27) e a outra, como "Vue du Jardim de Bomarzo" (atribuído a Breenberg. Louvre.
Nº de inventario 23373), são as referências mais longínquas.
5.Mario Praz I Mostri di Bomarzo , L'Illustrazione Italiana nº 8, 1953.
6. Quaderni dell' Instituto di Storia dell'Architettura (abril de 1955, fascículo especial dedicado à Villa
Orsini). Vários trabalhos, entre eles: Arnaldo Bruschi, L'Abitato di Bomarzo e la Villa Orsini; Giuseppe
Zander, Gli Elemmento Documentari del Sacro Bosco Leonardo Benevolo, Saggio d'Interpretazione do
Sacro Bosco.
7. Comparando as fotografias da primeira edição do folheto Bomarzo Parco dei Mostri (branco e
negro), com a segunda (cor), se pode observar importantes intervenções nos monumentos. Veja-se p.
exemplo "O Pégaso", totalmente restaurado. Estes folhetos, sem data, se vendem na entrada do parque.
8.Segundo se lê na dedicatória de Bomarzo. Ed. Sudamericana. Buenos Aires 1962.
9. Ver “La Rama Dorada”. J. G. Frazer. Fundo de Cultura Econômica. México. 1969. A relação do roble
e o morcego com os bosques sagrados é estudada no capítulo LXV (Balder e o morcego). Para
compreender o significado mítico desta árvore e sua parasita, ver o Livro VI da Eneida. Virgilio.Na edição
de Losada. Buenos Aires. 1984. Pág.112 se lê: "...Baixo a opaca copa de uma árvore se oculta um ramo,
cujas folhas e flexível talo são de ouro, o qual está consagrado à Juno infernal; todo o bosque o oculta e as
sombras o encerram entre tenebrosos vales e não é dado penetrar nas entranhas da terra senão ao que haja
desgarrado da árvore a áurea rama; Prosérpina tem disposto que esse seja o tributo que se leve...".
10. "O gótico deu, mediante a animação da figura humana, o primeiro grande passo na evolução da arte
expressiva moderna; o segundo o deu o maneirismo, com a dissolução do objetivismo renascentista, a
acentuação do ponto de vista pessoal do artista e a experiência pessoal do espectador". Historia social da
literatura e a arte. A. Hauser. Debate. Madrid, 1998. Vol I. pág. 426.
11. Veja-se O Sacro Bosco de Bomarzo. Um jardim alquímico. L. Roquero. Ed. Celeste. Madrid 1999.
Pág. 22.

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12. Sonho de Polifilo. F. Colonna. Barcelona. O Acantilado 1999.Na introdução ao livro se comenta: "A
Hipnerotomachia Poliphili (Venecia 1499), é um dos livros mais curiosos e enigmáticos saídos de umas
prensas. Gnolli se refere a ele como 'a maior obra fantástica, o único poema do século XV', em tanto que
Croce o condena com estas palavras: 'Se esse livro não houvesse sido tão sério, longo e pesado, se poderia
interpretar como uma caricatura do Humanismo'..."
13. Na introdução citada anteriormente, P. Pedraza comenta que O Sonho de Polifilo se fez notar nos
mais diversos campos: a literatura preciossista, a sátira e a alquimia, a teoria da arquitetura, a emblemática
e a arquitetura de jardins. Influiu no Preciosismo francês, no Romantismo, no Prerrafaelismo e no
Simbolismo. Desde Francisco I e Rodolfo I foi tido muito em conta em cortes e palácios. Até no
Gargantúa de Rabelais é citado como livro de interesse.
14. Op. Cit. Cap IV. "Sacrifica a Deus com generosidade os dons da natureza obtidos por teu trabalho.
Assim, pouco a pouco, irás conformando teu ânimo com o seu.Ele custodiará firmemente tua vida,
governando-a com misericórdia, e te conservará incólume". O hieroglífico está composto de modo
ideográfico, correspondendo cada objeto do desenho a uma ou mais palavras latinas: bucráneo="ex labore",
olho="de0", pássaro="naturae", altar= "sacrifica", etc.
15. "Quando dizia Horus, Marsilio Ficino se referia a Horus Apolo ou Horapolo, autor dos
Hieroglyphica, que se dizia era tradução grega de uma obra egípcia descoberta em 1419 na ilha grega de
Andros pelo monge florentino Cristoforo Buondelmonti. Comprado por Buondelmonti em nome de
Cosimo de Médici, o manuscrito dos Hieroglyphica chegou em 1422 a Florência, causando sensação,
posto que finalmente se tinha uma obra que explicasse o sentido oculto dos misteriosos hieróglifos
egípcios. Apesar das numerosas lacunas que apresentava, seu texto gozou de ampla difusão e foi objeto de
ávidos comentários, sendo o responsável da idéia que se tinha dos hieróglifos durante o Renascimento". O
Jogo Áureo. S. Klossowsky de Rola. Siruela. Madrid, 1988. Pág. 12.
16. "O gigantesco Arco de Triunfo de Maximiliano, que constitui o maior gravado em madeira da
história, um conjunto de imagens que medem 350 x 279 cm. Justo na parte superior do monumento há
um painel (descrito por Stabius, historiógrafo de Maximiliano, como um mistério em letras sacras
egípcias'), no qual aparece o imperador em seu trono, rodeado de símbolos espigados dentre as ilustrações
que fez Durero para o livro de Horapolo. Seguindo a R. Wittkower, recorro agora à tradução que fez
Erwin Panofsky dos textos alemães de Stabius e latinos de Pirckheimer, tradução que nos permite decifrar
a imagem (as interpolações são de Panofsky): 'Maximiliano (o imperador em pessoa) -príncipe (cachorro
coberto com uma estola) de grande piedade (estrela encima da coroa do imperador), magnanimidade,
força e valentia (leão), enobrecido por uma fama eterna e imorredoura (basilisco sobre a coroa do
imperador), descendente de uma antiga linhagem (o Az de papiro que está sentado)... etc." Op. Cit. Pág.
13.
17. "A Pedra de Roseta é uma estrela achada por um oficial francês em 1799 em Roseta, localidade
próxima à costa mediterrânea egípcia que atualmente se encontra no Museu Britânico de Londres. O
texto, redigido em dois idiomas e três grafias (hieroglífica, demótica e grega) serviu a Jean-François
Champollion como base para decifrar os hieróglifos em 1822. O decreto que ele contém, reproduz as
decisões adotadas por um sínodo dos sacerdotes egípcios, celebrado no ano 196 a. C. sobre as honras a
render a Ptolomeu V e Cleópatra I". Egito O Mundo dos Faraós R Schulz / M. Seidel. Könemann.
Colonia. 1997. Pág. 519.
18. "Em 1439, ante a pressão dos turcos em Constantinopla (sede do Patriarcado ortodoxo), é convocado
um Concílio em Florência. A estância das legações orientais na cidade supõe para os círculos intelectuais
florentinos o redescobrimento da cultura grega da época helenística. A toma de Constantinopla pelos
turcos em 1453 provocará uma chegada massiva de bizantinos à península itálica. Com a ajuda dos
eruditos bizantinos são traduzidos os textos gregos da época clássica e helenística. Estas traduções, junto
com a publicação de numerosos epístomes e comentários, proporcionaram à Academia Florentina um
prestígio sem precedentes. Esta Academia foi fundada pelo polifacético Philosophus platonicus, Theologus
et Medicus, Marsilio Ficino. A recuperação da cultura helenística através dos bizantinos supõe uma
comoção na Itália do Quattrocento. Cosme de Medici mobiliza agentes para localizarem manuscritos e
em 1460 chega de Macedonia uma cópia do Corpus Hermeticum. Marsilio Ficino é encargado da
tradução, com ordem de adiar a tradução dos textos de Platão e antepor o grande Hermes por ser mais
venerável e mais antigo. Produz-se um erro de perspectiva histórica: o que era fruto tardio de um
platonismo contaminado pela interferência eclética de outras culturas, é considerado doutrina originária
que em tempos longinquos se difundiu desde Egipto por todo o mundo antigo influindo no próprio

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Platão... Estas traduções revitalizam a tradição hermético-alquímica e estimulam um renovado interesse
pela astrología. A loucura hermética se apodera das cortes italianas. Não havía corte do Renascimento que
não hospedasse astrólogos e alquimistas, nem biblioteca que não coleccionasse obras da alquimia
tradicional" . O Sacro Bosco de Bomarzo. Um jardín alquímico. L Roquero. Ed. Celeste. Madrid 1999.
Pág. 11.
19. "Tú que entras com a ideia de ver tudo com cuidado, di-me depois se tantas maravilhas se foram feitas
por engano ou bem por arte".
20. "Quem não vai por este lugar com sombrancelhas em arcadas e lábios apertados, tampouco saberá
admirar as famosas sete maravilhas do mundo".
21. A vergonhosa enxurrada de interpretações cobriu a realidade do Bosque de Bomarzo. Para mostra,
consulte-se Os Jardins Do Sonho E. Kretzulesco-Quaranta. Ed. Siruela. Madrid. 1996. No capítulo de
Bomarzo: "O Bosque Sagrado". No entanto, se deve reconhecer neste livro um bom trabalho de
investigação sobre a mística do Renascimento.
22. "Si Rodas foi famosa por seu colosso, também meu bosque é motivo de glória, inclusive mais por não
poder fazer mais do que posso".
23. "A caverna, a fonte, o li..... de todo obscuro pensamento..." Tal vez, poderia completar-se assim:
"L'antro, a fonte: il lieto: céu. Libero l'animo d´ogni oscur pensiero". Quer dizer: "A caverna, a fonte, o
contente céu. Liverte a alma de todo obscuro pensamento", tendo em conta que o ninfeo inclui as urnas
das ninfas inspiradoras dos cinco sentidos, a saber: um espelho para a vista (Horasia); um instrumento
musical para o ouvido (Aloe); o recipiente de perfume para o olfato (Ofrasia); um racimo de uvas para o
gusto (Gusia); a mão apoiada para o tato (Afaé). Ver O Sonho de Polifilo, cap.VII "Polifilo fala da
amenidade da região à que foi parar, vagando pela qual encontrou uma fonte esquisita e muito notável, y
como viu vir até sí a cinco encantadoras donzelas..." As ninfas, antes de dizer seus nomes e anunciar seus
atributos, lhe mostraram a Polifilo: "...Nossos aspectos e presenças não deven assustar-te; não tenhas medo
porque aqui não se costuma fazer maldade alguma, nem encontrarás nada desagradável". A situação
relatada no O Sonho de Polifilo (inspirador de numerosas alegorías de Bomarzo), justifica que se tenha
completado a quase apagada inscrição do ninfeo como escrevemos mais acima ("...A caverna, a fonte, o
contente céu. Liverte a alma de todo obscuro pensamento").
24. Que poderia trasladar-se de um modo duvidoso: "Perante semelhante vaidade estou de acordo em
honrar...".
25"Vicino Orsini en el 1552".Interpreta-se que toda a obra foi terminada em 1552.
26. "Só para desafogar o coração". Explica que sua intenção foi "desafogar seu coração" e não, "fazer um
bosque alquímico no qual se possa realizar um percorrido iniciático" como anunciam algumas agências de
turismo e certos esoteristas propiciadores da psicología do inconsciente coletivo.
27."Noite e día estamos vigilantes e prontos para salvar à fonte de qualquer dano".
28."A fonte não foi (não é) para aqueles que em guarda estejam frente às mais estranhas feras".
29."Todo pensamento voa".
30. "Vós que vagais errantes pelo mundo em busca de maravilhas nobres e esplêndidas, venha aqui onde
há caras horrendas, elefantes, leões, ogros y dragões".
"Ceden Memfis e qualquer outra maravilha das que já houvesse no mundo em apreciação ao Sacro Bosco,
que só a si mesmo e a nenhum outro se assemelha"

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