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Caso Sophia

Desde novembro de 2018, os olhos das autoridades já


tinham como enxergar o perigo representado pelo homem que está preso pelo
assassinato da menina Sophia, aos 2 anos e 7 meses, ocorrido no dia 26 de janeiro em
Campo Grande. A pequena nem tinha nascido – viria ao mundo em 6 de junho de 2020
– e ele já era fichado em razão do comportamento agressivo. Só foi parado pelo
“sistema”, porém, quando uma vida, ainda em seu início, se perdeu.

Foram três boletins de ocorrência por violência doméstica


contra Chris, modo de tratamento para os mais próximos, oficializados em 28 de
novembro de 2018, 5 de janeiro de 2019 e 6 de junho de 2019.

A vítima não era a mãe da menina morta. Era a então


companheira dele, de 18 anos na data da primeira comunicação. À Deam (Delegacia de
Atendimento à Mulher), ela relatou episódio do dia 21 de novembro de 2018, com
ofensas verbais e soco no rosto. Uma semana depois, quando foi à polícia, contou ter
recebido ameaça dupla.

“Vou tirar meu filho de você, nem que eu tenha de matar”,


esbravejou o rapaz de 21 anos, conforme o documento descreve a fala do denunciado à
mulher.

A criança citada tinha sete meses. Nesse dia, o casal estava


separado. Em 5 de janeiro de 2019, juntos novamente, ela foi pela segunda vez à Casa
da Mulher Brasileira, dizendo ter sido xingada com inúmeros palavrões e sofrido um
empurrão próximo ao portão da casa.

“Você é uma vagabunda, imprestável, puta, idiota,


babaca, preguiçosa, imunda, porca, praga,
demônio, desgraça e filha da puta” são palavras
descritas aos policiais.

O estopim do destempero? A clássica tentativa da parte da


jovem de encerrar a convivência amorosa, definida como “turbulenta”.
Em 6 de junho de 2019, a terceira ida à delegacia. Foram
relatadas ofensas no mesmo nível das anteriores, acrescidas de socos nos braços, e
expulsão do lar em comum.

Eram frequentes as agressões, conforme dito à polícia.


Havia outro componente típico de relações tóxicas, cujo fim costuma ser trágico: a
proibição de ver os pais, declarada nessa última estada na polícia. A mãe também foi
impedida de levar o filho.

E o que aconteceu?

De acordo com a investigação, apesar desses três boletins


de ocorrência, nada aconteceu com Christian Campoçano Leitheim. Tanto que ele ficou
com o garoto, pois a criança estava em seu poder quando Sophia foi morta.

Não foi possível conferir se ele tem a guarda oficialmente


O PROCESSO CORRE EM SEGREDO

A morte em meio ao lixo

Na casa onde a morte de Sophia ocorreu, na Vila Nasser,


viviam em condições insalubres, no meio do lixo literalmente, o homem de 25 anos, a mulher de
24, a menina assassinada, o menino da outra relação, e mais uma bebê, de seis meses, fruto do
casamento entre Christian e Stephanie.

Quanto ao caso de violência doméstica de novembro de 2018,


Chris foi indiciado pela Polícia Civil, denunciado pela promotoria à Justiça, mas não foi
localizado para responder à acusação. O prazo era de dez dias. Diante disso, o processo foi
suspenso, em julho de 2022, pelo período de prescrição das infrações penais, de oito anos.

Ainda pode ser retomado, portanto.

Os outros dois boletins de ocorrência tiveram como conclusão o


arquivamento, por motivo principal de falta de representação pela vítima. A ex-companheira
comunicou as agressões à autoridades e depois desistiu de levar à frente, andamento bastante
comum para quem lida com a violência de gênero. Não voltou a pedir medida protetiva, como
da vez inicial, nem usou da estrutura oferecida pela rede de proteção.

Disso resulta o fato de Christian, ainda que com passagens


policiais, ser considerado réu primário agora, quando cometeu um ato tão absurdo.
O assassino de Sophia sequer figura como autor dos maus-tratos
à criança denunciados à DEPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente), em
novembro de 2021 e em dezembro do ano passado, pelo pai, o técnico em enfermagem Jean
Ocampo.

A culpa é de todos

Nas ocorrências da DEPCA, é a mãe da pequena a suspeita.


Como exaustivamente demonstrado pela cobertura de imprensa, foram infrutíferas as tentativas
do pai de acordar as autoridades para o ambiente de risco onde a menina estava inserida.

Da porta de entrada até a última instância, todos os guardiões


oficiais da vida de uma criança foram falhos. Sophia não foi vista pelo poder público. Sua morte
é permeada de sonoros “se…”.  

Se o Conselho Tutelar tivesse cumprido sua função de zelar


pelo bem estar da infante, se a Polícia Civil tivesse sido mais célere e rígida na apuração, se a
Defensoria Pública tivesse comprado a briga do pai e do companheiro dele, Igor, para conseguir
a guarda, se o Ministério Público de Mato Grosso do Sul tivesse usado seu poder de fiscalização
e acusação e, se a Justiça tivesse sido provocada e agido…

A sociedade também falhou. Os vizinhos chegaram a denunciar


maus-tratos a um cão criado pelo casal, mas não à criança. Se a família estivesse mais
vigilante… Por fim, nem a mãe cuidou da proteção de Sophia. Ao contrário, foi cúmplice do
perpetrador, segundo o cenário revelado.

Em seu depoimento, primeiro negou que a filha tivesse sido


espancada. Jurava tê-la levado com vida para a unidade de saúde do bairro Coronel Antonino no
dia 26 de janeiro. Confrontada pela constatação da equipe médica dos evidentes sinais de
espancamento e estupro, confessou.

Até então, demonstrava calma. O nervoso veio diante da


iminente prisão. Depois de presa, afirmou que o marido a convenceu a não levar Sophia para o
atendimento médico, mesmo com vômito, dor, e o abdômen inchado.

Dói pensar na imagem da criança rolando num colchão de tanta


dor. Definhava. Em vez de procurar socorro, a mãe deu bromoprida, remédio para mal estar
digestivo, e dipirona. Durou uma noite e uma tarde inteira a agonia de Sophia, com o perdão da
rima. Stephanie só decidiu correr com a filha até o médico quando, segundo ela mesma,
percebeu dificuldade de respirar.
O curso natural da vida da criança tinha sido interrompido
quatro horas antes de chegar, atestaram duas médicas da UPA (Unidade de Pronto Atendimento
Coronel Antonino).

“Ressalta que ficou com medo de denunciar Christian da


agressão de Sophia, pois ele já lhe agrediu e lhe ameaça de tirar a filha que têm em comum”,
registra o texto do flagrante da mulher.

Christian, nesse momento, já era procurado. Seu nome e foto


rodavam os grupos de Whatsapp como suspeito. Foi encontrado em casa. Esperava pela prisão,
efetuada por policiais do GOI (Grupo de Operações e Investigações) da Polícia Civil.

Ao ser ouvido pelo delegado do plantão, optou pelo silêncio,


resguardado na lei aos suspeitos de crimes. Na audiência de custódia, passou mal, a ponto de
não ser possível a identificação biométrica. No questionário respondido, anotou ter abandonado
tratamento para ansiedade.

Os próximos passos

Na sexta-feira (3), o inquérito foi concluído pela DEPCA e


enviado ao Judiciário. Christian está sendo acusado de homicídio qualificado, além de estupro
de vulnerável. Stephanie responde por homicídio qualificado pelo motivo fútil praticado na
modalidade omissiva imprópria. Em letras leigas, o crime dela foi agravado por não tentar
salvar a filha. Viu e escolheu omitir-se, em síntese.

Quem são os assassinos de Sophia?

O casal estava junto havia um ano e quatro meses.  Stephanie,


apurou a coluna, tinha se afastado das amigas e até da família, depois de começar a se relacionar
com Chris. Eles se conheceram num trabalho em comum, em loja de shopping.

Em pouco tempo, moravam juntos e estavam grávidos. Só ela


trabalhava fixo, em uma empresa de venda de cosméticos até o dia fatal para Sophia. Christian
ficava em casa, com as crianças.

Ambos tentaram fazer faculdade, ela estudou Fisioterapia, e


parou quando Sophia nasceu. Faltava um ano para concluir o curso. Ele dizia a quem o
conhecia, que chegou a cursar Pedagogia. Tem registro como microempresário de venda de
bebidas, mostram consultas na internet. Na identificação depois da prisão, disse ser técnico em
informática.
Os pais de Christian, um policial militar da reserva e uma
autônoma, contrataram advogado para ele, porém o profissional ainda não se manifestou.
Stephanie vai ser assistida pela Defensoria Pública do Estado. Procurado, o órgão disse que não
vai se manifestar sobre a representada.

Presos preventivamente, estão em cidades diferentes. O


padrasto de Sophia foi levado para o presídio fechado Gameleira 2, em Campo Grande. A mãe,
por medida de segurança, está no presídio de São Gabriel do Oeste, a 140 km da capital.

O próximo passo do processo criminal contra eles é o MPMS


(Ministério Público de Mato Grosso do Sul) fazer a denúncia à Justiça, para que o juiz aprecie e
inicie a ação penal. O caso foi distribuído à 1ª Vara do Tribunal do Júri em Campo Grande. Isso
quer dizer que sete jurados vão decidir o futuro do casal, quando forem sentar no banco dos
réus.

Pela previsão da Lei Henry Borel, em homenagem ao menino


de quatro anos assassinado no Rio de Janeiro, o crime cometido é hediondo. Sendo assim, não
cabe fiança, anistia, graça ou indulto.

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