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Ela conta que foi a primeira a denunciá-lo por estupro de vulnerável, em 2016. Aos 12
anos, sua menina contou que o então padrasto a tocava de forma indevida desde os 8,
dizendo à criança que aquilo era “coisa de pai e filha”. A adolescente também teria
afirmado que o abusador havia tocado os seios de outras duas meninas da família.
Essa é a segunda reportagem da série “Em nome dos pais”, que revela quais são os
juízes, desembargadores, promotores, psicólogos e assistentes sociais que usam a Lei
de Alienação Parental para livrar acusados de estupro de vulnerável ou de violência
doméstica, muitas vezes tirando os filhos das mulheres e entregando-os a quem elas
denunciaram. Todas as informações foram retiradas de processos que correm em
segredo de justiça. Por causa da relevância do tema e de seu evidente interesse
público, o Intercept optou por publicar essas histórias, preservando a identidade das
vítimas e seus familiares.
A Lei de Alienação Parental se vale de uma teoria já desbancada que diz ser possível
programar uma criança para odiar alguém e fazer acusações falsas. Nada disso é
reconhecido pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia, o
Conselho Nacional de Assistência Social e o Conselho Nacional de Saúde também
questionam o uso do conceito.
Dos 11 processos que analisei, esse foi o único em que um homem denunciado por
estupro foi preso. Mas isso só aconteceu após Manoel ser acusado pela quarta vez.
Segundo Vanessa, a mãe da menina não acreditou que ele era um pedófilo, porque
continuava solto – condenado a mais de 20 anos pelo estupro da primeira enteada,
Manoel recorria em liberdade. Após três anos de relacionamento com a nova
namorada, ela ouviu da própria filha que ele se aproveitou de sua ausência para se
masturbar na frente da criança. Ela o denunciou à polícia no dia seguinte.
Até Manoel ser preso, segundo Vanessa, a justiça ainda a obrigava a entregar a filha
mais nova, fruto do casamento com ele, para visitas com o homem condenado em
primeira instância por estuprar a menina mais velha. E era contra a mãe que o
Judiciário se voltava: “Eu era constantemente ameaçada de ser acusada de alienação
parental. Se atrasasse a entrega da criança, por exemplo, ou se ligasse para pedir que
trouxesse ela quando passava do horário”, disse ela.
Laudos encomendados
Tunísia Viana, uma das integrantes do coletivo Mães na Luta, formado por vítimas da
Lei de Alienação Parental, acredita que a legislação ainda resiste no Brasil, porque
“movimenta um enorme comércio para psicólogos, advogados e assistentes sociais que
atuam em processos envolvendo disputas familiares”. A lei acaba rendendo bons lucros
a esses profissionais.
Em seu parecer, ela disse que o “rompimento violento da relação” entre Vanessa e
Manoel fez com que a adolescente criasse uma justificativa para se solidarizar com o
sofrimento da mãe. “Uma denúncia de abuso sexual – uma falsa denúncia – poderia
estar representando uma forma de punir o padrasto”, escreveu Mattos.
Documentos, vídeos, áudios e autos de ações judiciais a que tive acesso com
exclusividade revelam que alguns psicólogos contrariam os preceitos éticos e as
recomendações do Conselho Federal de Psicologia, o CFP. A nota técnica mais recente
da entidade orienta os profissionais a utilizarem “abordagens teóricas já consolidadas e
reconhecidas no campo da psicologia” nas avaliações e atendimentos em que há
alegação de alienação parental. É preciso considerar, diz o CFP, “a inexistência de
consenso no campo da ciência psicológica e na categoria profissional quanto ao uso
dos termos Síndrome de Alienação Parental e Alienação Parental”. Em muitos
pareceres a que tive acesso, contudo, os psicólogos não têm esse cuidado e usam os
termos sem qualquer ressalva, levando juízes a punirem as mães sob a alegação de que
elas estão praticando alienação parental.
Escondido no banheiro, o menino gritava para a psicóloga escolhida pelo pai: “Eu
também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não quero que você me force!”.
Ilustração: Terroristas del Amor
Criança em último lugar
Júlio havia completado 8 anos há menos de um mês, mas já tinha clareza do que não
queria de forma alguma na vida: ver o pai novamente. “Meu pai mexia no meu
bumbum e no meu pipi. […] Ele falava, se você contar pra alguém eu vou matar sua
família. […] Eu não quero mais ver ele”, disse o menino em dezembro de 2020, segundo
o laudo psicológico do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo.
Os abusos teriam começado em 2017, quando ele tinha 5 anos, e durado até 2019. A
escola havia alertado que Júlio estava com comportamento sexualizado, e a sua mãe,
Thaís, já havia notado que ele estava retraído, agressivo e evitava vestir roupas que
mostrassem o corpo, como camisetas e bermudas – preferia calças e casacos. Ela
também lembrou que, após 15 dias de férias na casa do pai, o filho disse que o
bumbum estava doendo, mas a mãe associou o machucado à falta de higiene. Foi só
depois de iniciar um tratamento com uma psicóloga que a criança contou o que o pai
fazia.
Nem assim a criança foi afastada do pai. O contato, mesmo por videochamada, lhe
dava crise de pânico. O menino rasgava a própria roupa quando era obrigado a falar
com ele e chegou a tentar suicídio duas vezes. Mas tudo isso foi irrelevante para a juíza
Leila França Carvalho Mussa, da comarca de Carapicuíba, em São Paulo. Ela não só
determinou a retomada gradual do contato entre pai e filho, como afirmou que a
psicóloga da criança tinha um “possível comprometimento […] conforme se percebe
em trecho de laudo onde a profissional toma partido na questão”.
O contato com o pai dava crises de pânico no menino, que chegava a rasgar as próprias
roupas.
A decisão dizia que a psicóloga poderia ser substituída por outro profissional escolhido
pela mãe ou pelo pai. Segundo os autos do processo, a escolha da psicóloga Renata
Yamasaki foi do pai, e era ele quem pagava, o que só agravou o emocional do filho. Ele
falou sobre o medo das sessões com ela para ao menos três profissionais. Em uma
gravação feita pela mãe em setembro de 2021, Júlio se recusa a entrar na sala da
terapia, enquanto a profissional insiste para saber o motivo. Escondido no banheiro,
ele gritava: “Eu não quero! Eu também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não
quero que você me force!”
Ela só acatou os vários pedidos de Thaís para afastar a psicóloga nove dias após a mãe
ter feito a gravação. Por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São
Paulo, perguntei se a juíza tinha ouvido o áudio que mostrava a criança gritando e
chorando para não entrar na sala da psicóloga, mas fui informada que ela não iria se
manifestar “fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.
Na gravação, ouve-se Yamasaki dizer que, se não conseguisse concluir seu trabalho, a
justiça poderia ordenar que a criança fosse atendida em um lugar “muito ruim”, no
qual o pai “pode solicitar as visitas”. Como ver esse homem era o maior pesadelo de
Júlio, a frase foi interpretada pela mãe e pela criança como uma ameaça.
Também em abril, a juíza Manoela Assef da Silva absolveu o pai no processo criminal e
acabou com as medidas protetivas. Segundo ela, o relato de Júlio deve ser considerado
“principalmente quanto aos sentimentos de tristeza e sofrimento”, mas “a palavra da
criança não pode ser o único elemento de prova”.
Segundo a Lei da Mediação, para atuar como mediador judicial basta ser graduado há
pelo menos dois anos em qualquer área e fazer o curso de formação oferecido pelos
tribunais. Essas pessoas entram em um cadastro e podem ser nomeadas pelos juízes
para atuarem em determinadas causas. Na decisão em que a juíza Mussa informou os
nomes dos mediadores no processo de Thaís, não há justificativa para a escolha. Ela
informa apenas que eles estão “cadastrados no sistema informatizado”.
A criança preferia morrer a ver o pai e tentou suicídio, mas a juíza decidiu reaproximar
os dois.
Ao menos três novos laudos de psicólogos e psiquiatras, feitos entre junho e setembro
de 2022, trazem alertas como “não há a mínima condição de ter reaproximação com
seu genitor, inclusive online, sob alto risco de suicídio”. Em um dos relatórios, a
psicóloga do Projeto Acolhe registrou que Júlio lhe perguntou: “Você gostaria de ver o
seu pai de novo se ele fizesse com você o que o meu pai fez comigo?”.
Em outubro, Thaís se mudou de estado e, com isso, o caso referente à guarda foi
transferido para uma nova comarca. Lá, ela conseguiu uma liminar que impede a
reaproximação, mas o processo segue em andamento. A criança ainda tem pesadelos,
como relatou na terapia. Nos seus piores sonhos, o pai volta para abusar dele.
Bianca foi acusada de alienação parental pela primeira vez em 2017, quando ainda
estava grávida. O pai, Jonas, que ela acusa de violência doméstica e de quem havia se
separado, fazia questão de estar na sala de parto e entrou na justiça do Paraná para
obrigá-la a aceitar sua presença. O pedido foi recusado, mas começou ali uma disputa
que já soma 11 ações judiciais. Assim como aconteceu com Thaís, um dos maiores
problemas de Bianca foram as psicólogas que atuaram no processo – mas não só elas.
A criança tinha apenas 1 ano e meio e nem falava quando a mãe, a avó e as babás
perceberam que ela voltava das visitas paternas com um comportamento estranho. De
acordo com a ocorrência registrada em 2019, a menina se jogava no chão, ficava muito
agressiva e, em algumas ocasiões, tinha o hálito alcoólico.
Marchiori estava com o cadastro de perita vencido desde 2018 e sequer constava no
registro de mediadores do tribunal, contrariando recomendação do Conselho Nacional
de Justiça. De acordo com o site Escavador, Marchiori atua como consteladora familiar,
hipnoterapeuta e comentarista de programas de TV.
Uma das sessões com Jonas aconteceu em uma churrascaria, onde os dois almoçaram
juntos e tiveram conversas amistosas, segundo relatou a babá da criança, também
presente. Enquanto almoçava, escreveu a psicóloga em seu relatório, ele “desabafou
como sente falta da filha, que se sente incomodado com a presença constante de
acompanhantes” e que “se sente vigiado”. Marchiori chegou e saiu da churrascaria no
carro de Jonas.
Bianca enfrentou dificuldades com outra pessoa ao longo dos quase seis anos de
disputa judicial: a promotora Tarcila Santos Teixeira, que pediu o arquivamento do
primeiro inquérito policial sem que a investigação tivesse seguido passos básicos, como
a interrogação de Jonas – segundo alegou a Teixeira, ele já havia se manifestado por
meio dos advogados, “negando peremptoriamente” as acusações – o que ela
considerou suficiente.
A promotora disse ainda que, mesmo se houvesse lesões nas partes genitais da criança
“e que elas fossem causadas por uma manipulação não adequada do pai”, isso poderia
“ser fruto de assaduras ou má realização da higiene”. Ela também afirmou que era
necessário comprovar que “o toque do pai na região íntima da vítima” tinha como
objetivo “a busca da satisfação da lascívia”.
Quase três anos depois da primeira denúncia, a criança voltou com hematomas de
uma viagem de férias na casa do pai, em São Paulo. A filha de Bianca também teria
falado que ele lhe deu várias vezes para comer “cola gosmenta que faz xixi”, além de se
recusar a fazer a higienização das partes íntimas. A psicóloga Iencarelli defende que os
profissionais da psicologia e do sistema de justiça precisam ficar atentos para esse tipo
de relato. “Esse é o vocabulário de que elas dispõem para se expressar”.
Segundo a mãe, a filha teria dito que o pai lhe deu para comer ‘cola gosmenta que faz
xixi’.
A mãe registrou nova denúncia em dezembro de 2021, e o exame de lesão corporal
indicou cinco pequenas marcas no corpo, principalmente nas pernas. Em fevereiro de
2022, ela pediu o desarquivamento do inquérito anterior, mas a promotora afirmou
que a denúncia deveria ser feita em São Paulo, onde as agressões teriam acontecido.
Bianca denunciou as suspeitas de abuso pela terceira vez, e o juiz Leandro Leite
Carvalho Campos concedeu uma medida protetiva. Segundo ele, havia “fortes indícios
da prática de maus tratos e violência sexual contra a criança”. Campos proibiu o pai de
“manter qualquer espécie de contato com a vítima, sua genitora e demais familiares da
infante, seja por qualquer meio”. Apenas seis dias depois dessa decisão, a promotora
Teixeira se manifestou sugerindo que a mãe estaria revitimizando a criança.
A promotora Tarcila Santos Teixeira já é conhecida por sua atuação em ações judiciais
envolvendo crianças. Em 2013, ela foi destaque em uma reportagem do Fantástico, na
Rede Globo, pelo trabalho em um processo que retirou sete filhos de uma mesma mãe
em Triunfo, no Paraná. O parecer de Teixeira foi favorável à adoção das crianças por
estrangeiros. Incomodada com a reportagem, a promotora entrou na justiça e ganhou
uma indenização de R$ 30 mil pela ofensa à honra, à imagem e à reputação. O caso
chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que aumentou o valor da indenização para R$
350 mil.
Esse e outros processos de adoção no qual Teixeira atuou foram alvos de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que investigou o tráfico
de pessoas no Brasil. Ela foi uma das depoentes e precisou se explicar sobre os
pareceres. Em 2014, a CPI indiciou quatro pessoas por tráfico humano, mas a
promotora não estava entre elas.
‘Preocupações excessivas’
Esse foi o primeiro alerta de que havia algo errado – a criança tinha 10 anos. No
relatório, a psicóloga apontou que ele também apresentava “afastamento da realidade
para se proteger”, o que poderia “desenvolver um aspecto tímido ou rígido diante das
adversidades”.
A mãe já lutava na justiça para que os filhos – o menino então pré-adolescente e uma
menina de 6 anos – não viajassem para a cidade do Rio, onde Jorge morava, nem
tivessem que pernoitar com ele. Uma das suas maiores preocupações até então era o
contato das crianças com o avô paterno, que havia abusado da própria filha anos atrás,
como Jorge confirmou, de acordo com os autos do processo.
A promotora Laura Cristina Maia Costa Ferreira concordou que era necessário
resguardar as crianças do avô, mas escreveu em seu parecer que não havia
impedimento para o pai levar os filhos ao Rio. A juíza Maria Elizabeth Figueira Braz
acatou. Jorge só teria que manter seu pai longe das crianças, mas, segundo ele mesmo
admitiu, os filhos falaram com o avô pelo WhatsApp.
Ainda assim, o promotor Afonso Henrique Reis Lemos Pereira foi contra os pedidos da
mãe para reformular as visitas. Para ele, o problema era que Carolina não havia se
adaptado “à ampliação da convivência paterna”.
A promotora Ferreira escreveu que não havia “qualquer indicativo da equipe técnica de
que os filhos apresentem repulsa à figura paterna”. Segundo ela, “as preocupações
excessivas” da mãe poderiam caracterizar alienação parental, porque “causam
obstáculo ao exercício da paternidade”.
O menino disse que Jorge não o tocaria e que deveria mostrar sua verdadeira
personalidade. Aos prantos, recusou o abraço do pai. Quando o homem foi embora, o
adolescente teve coragem de falar o motivo da sua dor – o pai lhe abusava desde que
era criança. A violência teria começado quando ele tinha entre 7 e 10 anos anos. Nessa
mesma noite, ele contou detalhes para a mãe, dizendo que o pai o forçava a tomar
banho com ele, pedia para ver o pênis do filho e manipulava os próprios órgãos
genitais.
Diante dos relatos, Carolina pediu à justiça que fossem tomadas providências para
proteger também a filha mais nova. A resposta da juíza Maria Elizabeth Figueira Braz se
resumiu a duas linhas – “nada a prover, eis que se trata de feito findo, com sentença
transitada em julgado”. Dez dias depois, a magistrada decidiu suspender a visita
paterna prevista para o fim de semana seguinte, mas adiantou que “não foi possível
verificar a presença de elementos que comprovem as alegações”.
O menino disse que o pai abusava dele, mas a juíza manteve as visitas da irmã ao
homem.
Um relatório psicossocial de março de 2022 – recomendado pela promotora Oliveira
para apurar indícios de atos de alienação parental – ouviu Carolina, Jorge, os dois filhos
e a psicóloga do adolescente, que foi a primeira pessoa para quem ele contou sobre os
abusos sofridos.
O pai disse que só comentou sobre o órgão sexual com o filho para orientá-lo quanto à
higiene pessoal e negou que tenham tomado banho juntos depois que o menino
cresceu. Já a mãe lembrou que o filho havia falado sobre o abuso quando voltou da
psicóloga, que ele chamou o pai de pedófilo e perguntou se algum exame poderia
comprovar o abuso. Na entrevista com o adolescente, ele confirmou para a psicóloga
judicial tudo que havia dito antes.
A promotora Oliveira se manteve irredutível. Ela deu parecer favorável para as visitas
paternas à filha, sem supervisão e com pernoites, e sugeriu multa para a mãe em caso
de descumprimento. Seu relatório afirma que “não restou demonstrado que o
exercício da visitação paterna seja prejudicial a seus interesses”. Por fim, Oliveira
sugeriu que a mãe fosse investigada por alienação parental.
O que vem garantindo o distanciamento seguro entre Jorge e a filha, hoje com 11 anos,
é uma liminar de junho de 2022 do desembargador Luiz Henrique Oliveira Marques,
que permite visitas paternas apenas com supervisão. Enquanto isso, Carolina é
investigada por alienação parental.