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PSICOLOGIA CIÊNCIA ÉTICA E PROFISSÃO REPORTAGEM INTERCEPT

PAGANDO BEM, QUE MAL TEM?


Psicólogos lucram com laudos contratados por pais e padrastos suspeitos de estuprar
crianças

Em nome dos pais


Parte 2
CONFIRA A SÉRIE COMPLETA
Conteúdo sensível: relatos sobre abuso infantil.

Quando foi preso acusado de estuprar a enteada de 10 anos, em outubro de 2020,


Manoel já respondia a outras três acusações semelhantes. Mas, se dependesse do
parecer encomendado por ele à psicóloga Elsa de Mattos, o abusador seria inocentado
ao menos das denúncias anteriores – elas não passavam de “criação de falsas
memórias provocadas a partir de informações distorcidas”, dizia o documento,
assinado pela psicóloga 10 dias antes da prisão. O verdadeiro problema, segundo a
análise de Mattos, seria Vanessa, ex-esposa de Manoel.

Ela conta que foi a primeira a denunciá-lo por estupro de vulnerável, em 2016. Aos 12
anos, sua menina contou que o então padrasto a tocava de forma indevida desde os 8,
dizendo à criança que aquilo era “coisa de pai e filha”. A adolescente também teria
afirmado que o abusador havia tocado os seios de outras duas meninas da família.

Vanessa se separou, denunciou o ex por estupro de vulnerável e avisou as outras mães.


Já em 2017, quando soube que a nova namorada dele tinha uma filha, tratou de alertá-
la, mas a mulher não acreditou à época. Segundo o parecer de Mattos, Vanessa, “de
forma deliberada, transmitiu a sua própria visão dos fatos” não apenas à filha, mas
também “às demais crianças, bem como a suas respectivas mães”. Eram ações
condizentes com a chamada síndrome da alienação parental, cuja existência é
contestada por especialistas. O diagnóstico acabou deixando Vanessa, e não o homem
acusado por ela de estupro, na mira do Judiciário.

Essa é a segunda reportagem da série “Em nome dos pais”, que revela quais são os
juízes, desembargadores, promotores, psicólogos e assistentes sociais que usam a Lei
de Alienação Parental para livrar acusados de estupro de vulnerável ou de violência
doméstica, muitas vezes tirando os filhos das mulheres e entregando-os a quem elas
denunciaram. Todas as informações foram retiradas de processos que correm em
segredo de justiça. Por causa da relevância do tema e de seu evidente interesse
público, o Intercept optou por publicar essas histórias, preservando a identidade das
vítimas e seus familiares.

A Lei de Alienação Parental se vale de uma teoria já desbancada que diz ser possível
programar uma criança para odiar alguém e fazer acusações falsas. Nada disso é
reconhecido pela Organização Mundial da Saúde. O Conselho Federal de Psicologia, o
Conselho Nacional de Assistência Social e o Conselho Nacional de Saúde também
questionam o uso do conceito.

Dos 11 processos que analisei, esse foi o único em que um homem denunciado por
estupro foi preso. Mas isso só aconteceu após Manoel ser acusado pela quarta vez.
Segundo Vanessa, a mãe da menina não acreditou que ele era um pedófilo, porque
continuava solto – condenado a mais de 20 anos pelo estupro da primeira enteada,
Manoel recorria em liberdade. Após três anos de relacionamento com a nova
namorada, ela ouviu da própria filha que ele se aproveitou de sua ausência para se
masturbar na frente da criança. Ela o denunciou à polícia no dia seguinte.

Até Manoel ser preso, segundo Vanessa, a justiça ainda a obrigava a entregar a filha
mais nova, fruto do casamento com ele, para visitas com o homem condenado em
primeira instância por estuprar a menina mais velha. E era contra a mãe que o
Judiciário se voltava: “Eu era constantemente ameaçada de ser acusada de alienação
parental. Se atrasasse a entrega da criança, por exemplo, ou se ligasse para pedir que
trouxesse ela quando passava do horário”, disse ela.

Laudos encomendados

Tunísia Viana, uma das integrantes do coletivo Mães na Luta, formado por vítimas da
Lei de Alienação Parental, acredita que a legislação ainda resiste no Brasil, porque
“movimenta um enorme comércio para psicólogos, advogados e assistentes sociais que
atuam em processos envolvendo disputas familiares”. A lei acaba rendendo bons lucros
a esses profissionais.

De acordo com a tabela de honorários da Federação Nacional dos Psicólogos, as


práticas diagnósticas variam de R$ 100 a R$ 860, embora o profissional tenha liberdade
para definir preços. Por telefone e sem saber que falava com uma jornalista, a
psicóloga Elsa de Mattos, que emitiu o parecer para Manoel, me disse que cobra cerca
de R$ 3 mil para esse tipo de serviço, oferecido a todo o Brasil. O laudo contra Vanessa
foi feito com a análise de documentos e depoimentos dos processos de violência
doméstica e de estupro de vulnerável. Mattos tinha como objetivo “identificar a
possibilidade de que a adolescente […] tenha apresentado um relato de abuso com
base em falsas memórias”. A resposta da psicóloga foi que tinha, sim.

Em seu parecer, ela disse que o “rompimento violento da relação” entre Vanessa e
Manoel fez com que a adolescente criasse uma justificativa para se solidarizar com o
sofrimento da mãe. “Uma denúncia de abuso sexual – uma falsa denúncia – poderia
estar representando uma forma de punir o padrasto”, escreveu Mattos.

Avaliações psicossociais são indispensáveis para ações que envolvem alegação de


alienação parental. São os psicólogos, junto com os assistentes sociais, que oferecem
relatórios para fundamentar decisões. Muitas vezes, promotores e juízes apenas
repetem o que está nesses documentos, que podem ser feitos por servidores dos
tribunais, por profissionais nomeados pelos magistrados ou contratados por uma das
partes. De qualquer forma, a análise tem que ser técnica – ou deveria ser.
Por WhatsApp, a psicóloga Elsa de Mattos disse que não tem autorização para
comentar o caso e nem para responder às minhas perguntas, pois “esse tipo de
questão fere a ética profissional da confidencialidade do trabalho do psicólogo
jurídico”.

Documentos, vídeos, áudios e autos de ações judiciais a que tive acesso com
exclusividade revelam que alguns psicólogos contrariam os preceitos éticos e as
recomendações do Conselho Federal de Psicologia, o CFP. A nota técnica mais recente
da entidade orienta os profissionais a utilizarem “abordagens teóricas já consolidadas e
reconhecidas no campo da psicologia” nas avaliações e atendimentos em que há
alegação de alienação parental. É preciso considerar, diz o CFP, “a inexistência de
consenso no campo da ciência psicológica e na categoria profissional quanto ao uso
dos termos Síndrome de Alienação Parental e Alienação Parental”. Em muitos
pareceres a que tive acesso, contudo, os psicólogos não têm esse cuidado e usam os
termos sem qualquer ressalva, levando juízes a punirem as mães sob a alegação de que
elas estão praticando alienação parental.

Os profissionais também desconsideram em seus pareceres que há “um viés de


gênero” nas denúncias de alienação parental, pois, como diz a nota técnica do CPF, elas
“incidem no campo social e jurídico, majoritariamente, sobre mães guardiãs” e podem
“ocultar formas de abuso sexual, emocional e psicológico contra crianças e
adolescentes”, bem como “ser utilizadas como forma de ameaça por ex-parceiros
contra mulheres”.

Desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e uma das


primeiras magistradas a usar o termo Síndrome de Alienação Parental em suas
decisões, antes mesmo de a lei existir, Maria Berenice Dias tem opinião contrária. Para
ela, o que falta é qualificação dos profissionais de psicologia. “Tem psicólogas que
afirmam indícios de abuso sexual e agem de uma maneira irresponsável, sem ao
menos chamar os pais [acusados]”. Dias é vice-presidente do Instituto Brasileiro de
Direito de Família e, como advogada, também atua em casos defendendo homens que
acusam mulheres de alienação parental.

Em nota enviada após o posicionamento de Dias e a publicação da primeira


reportagem da série, o instituto reconheceu a gravidade das alegações de mau uso da
Lei de Alienação Parental e sua “aplicação equivocada ou defeituosa”. Mas também
defendeu que revogá-la “significa enfraquecer a rede de proteção infantil […]
atualmente vigente, tornando-a deficiente, o que é verdadeiro retrocesso social”.

Escondido no banheiro, o menino gritava para a psicóloga escolhida pelo pai: “Eu
também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não quero que você me force!”.
Ilustração: Terroristas del Amor
Criança em último lugar
Júlio havia completado 8 anos há menos de um mês, mas já tinha clareza do que não
queria de forma alguma na vida: ver o pai novamente. “Meu pai mexia no meu
bumbum e no meu pipi. […] Ele falava, se você contar pra alguém eu vou matar sua
família. […] Eu não quero mais ver ele”, disse o menino em dezembro de 2020, segundo
o laudo psicológico do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo.

Os abusos teriam começado em 2017, quando ele tinha 5 anos, e durado até 2019. A
escola havia alertado que Júlio estava com comportamento sexualizado, e a sua mãe,
Thaís, já havia notado que ele estava retraído, agressivo e evitava vestir roupas que
mostrassem o corpo, como camisetas e bermudas – preferia calças e casacos. Ela
também lembrou que, após 15 dias de férias na casa do pai, o filho disse que o
bumbum estava doendo, mas a mãe associou o machucado à falta de higiene. Foi só
depois de iniciar um tratamento com uma psicóloga que a criança contou o que o pai
fazia.

Em outubro de 2019, a profissional o encaminhou para atendimento na Sociedade


Rorschach, uma instituição científica que desenvolve pesquisas e avaliações na área de
saúde mental. O laudo reforçou a “hipótese de abuso” que ela já havia identificado. O
menino se sentia ameaçado “pela figura paterna/masculina” e acreditava que ela
destrói. Por isso, tem “ansiedade e fantasias de mortes”.

Nem assim a criança foi afastada do pai. O contato, mesmo por videochamada, lhe
dava crise de pânico. O menino rasgava a própria roupa quando era obrigado a falar
com ele e chegou a tentar suicídio duas vezes. Mas tudo isso foi irrelevante para a juíza
Leila França Carvalho Mussa, da comarca de Carapicuíba, em São Paulo. Ela não só
determinou a retomada gradual do contato entre pai e filho, como afirmou que a
psicóloga da criança tinha um “possível comprometimento […] conforme se percebe
em trecho de laudo onde a profissional toma partido na questão”.

O contato com o pai dava crises de pânico no menino, que chegava a rasgar as próprias
roupas.
A decisão dizia que a psicóloga poderia ser substituída por outro profissional escolhido
pela mãe ou pelo pai. Segundo os autos do processo, a escolha da psicóloga Renata
Yamasaki foi do pai, e era ele quem pagava, o que só agravou o emocional do filho. Ele
falou sobre o medo das sessões com ela para ao menos três profissionais. Em uma
gravação feita pela mãe em setembro de 2021, Júlio se recusa a entrar na sala da
terapia, enquanto a profissional insiste para saber o motivo. Escondido no banheiro,
ele gritava: “Eu não quero! Eu também não quero te ouvir, eu não quero entrar, eu não
quero que você me force!”

Com o fantasma da acusação de alienação parental rondando, Thaís era obrigada a


presenciar cenas assim semanalmente. Caso não levasse o filho à psicóloga que ele
tanto rejeitava, teria que pagar R$ 5 mil de multa a cada falta, determinou a juíza
Mussa.

Ela só acatou os vários pedidos de Thaís para afastar a psicóloga nove dias após a mãe
ter feito a gravação. Por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São
Paulo, perguntei se a juíza tinha ouvido o áudio que mostrava a criança gritando e
chorando para não entrar na sala da psicóloga, mas fui informada que ela não iria se
manifestar “fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.

Na gravação, ouve-se Yamasaki dizer que, se não conseguisse concluir seu trabalho, a
justiça poderia ordenar que a criança fosse atendida em um lugar “muito ruim”, no
qual o pai “pode solicitar as visitas”. Como ver esse homem era o maior pesadelo de
Júlio, a frase foi interpretada pela mãe e pela criança como uma ameaça.

A juíza encaminhou o menino para o Projeto Acolhe, da prefeitura de Carapicuíba, após


o afastamento de Yamasaki. À psicóloga do município, Júlio disse que a profissional
havia dito que “o pai viria buscá-lo e eles o levariam para um lugar muito ruim”. À
enfermeira do Caps, o menino disse que preferia morrer a ver o pai.

Segundo um médico registrou em um relatório de consulta em setembro de 2021, Júlio


“espontaneamente falou de sua preocupação sobre a possibilidade de ser atendido por
uma psicóloga escolhida pelo pai”. Na mesma ocasião, o menino introduziu uma caneta
em uma folha de papel, de “forma ríspida”, para demonstrar como o pai o machucou.

Procurada por e-mail e WhatsApp, a psicóloga Renata Yamasaki confirmou o


recebimento das minhas perguntas, mas não as respondeu.

Absolvido por falta de provas

Um parecer do Ministério Público, de fevereiro de 2022, listou 10 provas, entre elas


depoimentos, laudos psicológicos, relatórios médicos, áudios e fotos do ânus
machucado da criança, que levam à mesma conclusão: Júlio teria sido estuprado pelo
pai. No mínimo cinco profissionais diferentes atestaram que a criança foi coerente em
todos os relatos, além das falas suicidas que revelavam o tamanho do trauma. Por tudo
isso, cravou a promotora, “é demasiado improvável que a genitora (sem formação
técnica) e uma criança de 7 anos de idade fossem capazes de enganar inúmeros
profissionais especializados”. Para ela, “beira a irracionalidade” supor que os
profissionais estivessem aliados à mãe a fim de “prejudicar o réu”.

Além de recomendar a condenação do abusador por estupro de vulnerável, ela


solicitou medidas protetivas para que a criança não tivesse mais contato com ele.
Menos de dois meses depois, a juíza Mussa obrigou Júlio a fazer videochamada com o
pai para a “preservação do direito à convivência familiar”.

Também em abril, a juíza Manoela Assef da Silva absolveu o pai no processo criminal e
acabou com as medidas protetivas. Segundo ela, o relato de Júlio deve ser considerado
“principalmente quanto aos sentimentos de tristeza e sofrimento”, mas “a palavra da
criança não pode ser o único elemento de prova”.

Um ano antes da absolvição, em maio de 2021, a juíza Mussa reforçou a necessidade


de aproximar pai e filho. Ela nomeou como mediadores um engenheiro e uma
advogada que não têm especialização em saúde mental e nem outra qualificação
específica para cuidar de uma criança que já havia tentado suicídio duas vezes. Em uma
das sessões, o mediador insistiu para que Júlio lembrasse de “coisas legais” com o pai.

Segundo a Lei da Mediação, para atuar como mediador judicial basta ser graduado há
pelo menos dois anos em qualquer área e fazer o curso de formação oferecido pelos
tribunais. Essas pessoas entram em um cadastro e podem ser nomeadas pelos juízes
para atuarem em determinadas causas. Na decisão em que a juíza Mussa informou os
nomes dos mediadores no processo de Thaís, não há justificativa para a escolha. Ela
informa apenas que eles estão “cadastrados no sistema informatizado”.

A criança preferia morrer a ver o pai e tentou suicídio, mas a juíza decidiu reaproximar
os dois.
Ao menos três novos laudos de psicólogos e psiquiatras, feitos entre junho e setembro
de 2022, trazem alertas como “não há a mínima condição de ter reaproximação com
seu genitor, inclusive online, sob alto risco de suicídio”. Em um dos relatórios, a
psicóloga do Projeto Acolhe registrou que Júlio lhe perguntou: “Você gostaria de ver o
seu pai de novo se ele fizesse com você o que o meu pai fez comigo?”.

Em outubro, Thaís se mudou de estado e, com isso, o caso referente à guarda foi
transferido para uma nova comarca. Lá, ela conseguiu uma liminar que impede a
reaproximação, mas o processo segue em andamento. A criança ainda tem pesadelos,
como relatou na terapia. Nos seus piores sonhos, o pai volta para abusar dele.

Procuradas por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo, as


juízas Leila França Carvalho Mussa e Manoela Assef da Silva responderam que os
processos tramitam sob segredo de justiça e que “os magistrados são impedidos de se
manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.

Terapia até em churrascaria

Bianca foi acusada de alienação parental pela primeira vez em 2017, quando ainda
estava grávida. O pai, Jonas, que ela acusa de violência doméstica e de quem havia se
separado, fazia questão de estar na sala de parto e entrou na justiça do Paraná para
obrigá-la a aceitar sua presença. O pedido foi recusado, mas começou ali uma disputa
que já soma 11 ações judiciais. Assim como aconteceu com Thaís, um dos maiores
problemas de Bianca foram as psicólogas que atuaram no processo – mas não só elas.

A criança tinha apenas 1 ano e meio e nem falava quando a mãe, a avó e as babás
perceberam que ela voltava das visitas paternas com um comportamento estranho. De
acordo com a ocorrência registrada em 2019, a menina se jogava no chão, ficava muito
agressiva e, em algumas ocasiões, tinha o hálito alcoólico.

Bianca decidiu esconder um gravador no carrinho de passeio da filha. A bebê passa as


três horas de gravação calada, e, segundo a denúncia, ouve-se Jonas pedindo para ela
olhar o “elefantinho do papai”.
A mãe denunciou a suspeita de abuso e queria que a justiça determinasse visitas
monitoradas, mas o juiz Juan Daniel Pereira Sobreiro negou. Ele avaliou que havia
rancor recíproco entre os pais e que não era possível identificar claramente no áudio
que o pai havia mencionado “o tal elefantinho”. Por fim, afirmou, sem nenhum laudo,
que Bianca estava agindo “conforme a malfadada síndrome de alienação parental”. Um
mês depois, como Bianca ainda se recusava a entregar a filha, o juiz Sobreiro aplicou
multa de R$ 10 mil por cada visita paterna frustrada e ameaçou a mãe com inversão de
guarda.

O magistrado nomeou a psicóloga Edith Cristiane Marchiori em maio de 2020 para


fazer quatro sessões terapêuticas com as partes e emitir um parecer técnico sobre o
suposto abuso sexual ou alienação parental. Como ela não faz parte do quadro de
servidores do tribunal, a conta ficou para Bianca, que desembolsou cerca de R$ 2,8 mil
– pagou, inclusive, as sessões para o ex-marido, que alegava não ter dinheiro.

Marchiori estava com o cadastro de perita vencido desde 2018 e sequer constava no
registro de mediadores do tribunal, contrariando recomendação do Conselho Nacional
de Justiça. De acordo com o site Escavador, Marchiori atua como consteladora familiar,
hipnoterapeuta e comentarista de programas de TV.

Procurado por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Paraná, o juiz


Juan Daniel Pereira Sobreiro respondeu que é vedado ao magistrado se manifestar ou
opinar sobre processo pendente de julgamento, de acordo com a Lei Orgânica da
Magistratura Nacional.

Uma das sessões com Jonas aconteceu em uma churrascaria, onde os dois almoçaram
juntos e tiveram conversas amistosas, segundo relatou a babá da criança, também
presente. Enquanto almoçava, escreveu a psicóloga em seu relatório, ele “desabafou
como sente falta da filha, que se sente incomodado com a presença constante de
acompanhantes” e que “se sente vigiado”. Marchiori chegou e saiu da churrascaria no
carro de Jonas.

De acordo com a psicóloga Iencarelli, o código de ética da profissão zela pela


adequação do ambiente e não há como fazer uma avaliação do estado emocional do
paciente nesse tipo de local. Além disso, completou, a intimidade quebra preceitos que
facilitam a expressão de ansiedade, culpa ou angústia.

Em dezembro de 2021, com base no parecer de Marchiori, que defendeu a


necessidade de “haver respeito ao direito da criança em ter sua mãe e seu pai
presentes”, a promotora Leidi Mara Wzoreck de Santana se manifestou favoravelmente
às visitas paternas sem supervisão, com pernoite e com direito de o suspeito viajar
com a criança. Caso Bianca não permitisse, estaria sujeita a multas e à aplicação da lei
de alienação parental.

Questionada, a promotora argumentou que “o posicionamento nos autos foi amparado


em provas testemunhais e periciais apresentadas no curso do processo, que apontam
para a não ocorrência do suposto abuso”. Já a psicóloga Edith Cristiane Marchiori não
retornou os meus contatos.

Desconfiada de possíveis abusos, a mãe colocou um gravador no carrinho da bebê.


Segundo a denúncia, ouve-se o homem pedindo para ela olhar o “elefantinho do
papai”. Ilustração: Terroristas del Amor
Quando o problema é o Ministério Público

Bianca enfrentou dificuldades com outra pessoa ao longo dos quase seis anos de
disputa judicial: a promotora Tarcila Santos Teixeira, que pediu o arquivamento do
primeiro inquérito policial sem que a investigação tivesse seguido passos básicos, como
a interrogação de Jonas – segundo alegou a Teixeira, ele já havia se manifestado por
meio dos advogados, “negando peremptoriamente” as acusações – o que ela
considerou suficiente.

A promotora disse ainda que, mesmo se houvesse lesões nas partes genitais da criança
“e que elas fossem causadas por uma manipulação não adequada do pai”, isso poderia
“ser fruto de assaduras ou má realização da higiene”. Ela também afirmou que era
necessário comprovar que “o toque do pai na região íntima da vítima” tinha como
objetivo “a busca da satisfação da lascívia”.

Procurada, a promotora argumentou que todas as diligências já tinham sido feitas na


fase do inquérito policial e que a “promoção de arquivamento se deu, justamente, em
razão da constatação da fragilidade dos elementos indiciários [elementos para que o
suspeito fosse indiciado] trazidos na fase investigatória”. Ela também reforçou que
“não é o simples toque nas partes íntimas da criança” que configura delito, assim como
“nem toda lesão” indica abuso.

Quase três anos depois da primeira denúncia, a criança voltou com hematomas de
uma viagem de férias na casa do pai, em São Paulo. A filha de Bianca também teria
falado que ele lhe deu várias vezes para comer “cola gosmenta que faz xixi”, além de se
recusar a fazer a higienização das partes íntimas. A psicóloga Iencarelli defende que os
profissionais da psicologia e do sistema de justiça precisam ficar atentos para esse tipo
de relato. “Esse é o vocabulário de que elas dispõem para se expressar”.

Segundo a mãe, a filha teria dito que o pai lhe deu para comer ‘cola gosmenta que faz
xixi’.
A mãe registrou nova denúncia em dezembro de 2021, e o exame de lesão corporal
indicou cinco pequenas marcas no corpo, principalmente nas pernas. Em fevereiro de
2022, ela pediu o desarquivamento do inquérito anterior, mas a promotora afirmou
que a denúncia deveria ser feita em São Paulo, onde as agressões teriam acontecido.

Em resposta ao Intercept, a promotora destacou que “o Juízo da Comarca de Curitiba


se revelou incompetente para a investigação e processamento, já que – conforme
devidamente fundamentado junto aos autos de inquérito policial –, o sistema penal
brasileiro adota a teoria do resultado, determinando que o juízo competente é o do
local da infração, independentemente de onde a vítima se encontra, tampouco de
onde tramitam outros processos envolvendo as partes”.

Em um relatório psicológico de junho de 2022, consta que há na criança “indícios


indicativos de abuso físico e emocional”. Durante as sessões de terapia, a menina disse
que o pai era mau, que puxava seus cabelos, batia na sua cabeça e a chutava.

Bianca denunciou as suspeitas de abuso pela terceira vez, e o juiz Leandro Leite
Carvalho Campos concedeu uma medida protetiva. Segundo ele, havia “fortes indícios
da prática de maus tratos e violência sexual contra a criança”. Campos proibiu o pai de
“manter qualquer espécie de contato com a vítima, sua genitora e demais familiares da
infante, seja por qualquer meio”. Apenas seis dias depois dessa decisão, a promotora
Teixeira se manifestou sugerindo que a mãe estaria revitimizando a criança.

A promotora Tarcila Santos Teixeira já é conhecida por sua atuação em ações judiciais
envolvendo crianças. Em 2013, ela foi destaque em uma reportagem do Fantástico, na
Rede Globo, pelo trabalho em um processo que retirou sete filhos de uma mesma mãe
em Triunfo, no Paraná. O parecer de Teixeira foi favorável à adoção das crianças por
estrangeiros. Incomodada com a reportagem, a promotora entrou na justiça e ganhou
uma indenização de R$ 30 mil pela ofensa à honra, à imagem e à reputação. O caso
chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que aumentou o valor da indenização para R$
350 mil.

Esse e outros processos de adoção no qual Teixeira atuou foram alvos de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que investigou o tráfico
de pessoas no Brasil. Ela foi uma das depoentes e precisou se explicar sobre os
pareceres. Em 2014, a CPI indiciou quatro pessoas por tráfico humano, mas a
promotora não estava entre elas.

Segundo Teixeira, “fora constatado absoluto rigor na observância das disposições


legais” em todos processos de adoção em que ela atuou. “Sequer fui acusada de
qualquer prática delitiva ou minimamente irregular, sendo que tudo se limitou a uma
reportagem sensacionalista e falaciosa que apresentou informações inverídicas e
contrárias a todo o conteúdo dos processos”, argumentou.

‘Preocupações excessivas’

Quem também se sentiu prejudicada pelo Ministério Público em um processo


envolvendo alegação de alienação parental foi Carolina. Três promotores da comarca
de Resende, no Rio de Janeiro, fizeram pareceres que favoreceram Jorge, o pai do seu
filho, mesmo após um relatório psicológico de dezembro de 2018 indicar que seu filho
omitia o “laço familiar paterno, assumindo o padrasto como seu pai legítimo”.

Esse foi o primeiro alerta de que havia algo errado – a criança tinha 10 anos. No
relatório, a psicóloga apontou que ele também apresentava “afastamento da realidade
para se proteger”, o que poderia “desenvolver um aspecto tímido ou rígido diante das
adversidades”.
A mãe já lutava na justiça para que os filhos – o menino então pré-adolescente e uma
menina de 6 anos – não viajassem para a cidade do Rio, onde Jorge morava, nem
tivessem que pernoitar com ele. Uma das suas maiores preocupações até então era o
contato das crianças com o avô paterno, que havia abusado da própria filha anos atrás,
como Jorge confirmou, de acordo com os autos do processo.

A promotora Laura Cristina Maia Costa Ferreira concordou que era necessário
resguardar as crianças do avô, mas escreveu em seu parecer que não havia
impedimento para o pai levar os filhos ao Rio. A juíza Maria Elizabeth Figueira Braz
acatou. Jorge só teria que manter seu pai longe das crianças, mas, segundo ele mesmo
admitiu, os filhos falaram com o avô pelo WhatsApp.

Ainda assim, o promotor Afonso Henrique Reis Lemos Pereira foi contra os pedidos da
mãe para reformular as visitas. Para ele, o problema era que Carolina não havia se
adaptado “à ampliação da convivência paterna”.

A promotora Ferreira escreveu que não havia “qualquer indicativo da equipe técnica de
que os filhos apresentem repulsa à figura paterna”. Segundo ela, “as preocupações
excessivas” da mãe poderiam caracterizar alienação parental, porque “causam
obstáculo ao exercício da paternidade”.

Prestes a completar 14 anos, em outubro de 2021, o menino já havia bloqueado as


chamadas e mensagens de Jorge desde o início do ano. Então, a psicóloga que já
atendia o adolescente há cerca de um ano e meio mediou uma sessão dele com o pai,
mas o encontro terminou mal.

O menino disse que Jorge não o tocaria e que deveria mostrar sua verdadeira
personalidade. Aos prantos, recusou o abraço do pai. Quando o homem foi embora, o
adolescente teve coragem de falar o motivo da sua dor – o pai lhe abusava desde que
era criança. A violência teria começado quando ele tinha entre 7 e 10 anos anos. Nessa
mesma noite, ele contou detalhes para a mãe, dizendo que o pai o forçava a tomar
banho com ele, pedia para ver o pênis do filho e manipulava os próprios órgãos
genitais.

Diante dos relatos, Carolina pediu à justiça que fossem tomadas providências para
proteger também a filha mais nova. A resposta da juíza Maria Elizabeth Figueira Braz se
resumiu a duas linhas – “nada a prover, eis que se trata de feito findo, com sentença
transitada em julgado”. Dez dias depois, a magistrada decidiu suspender a visita
paterna prevista para o fim de semana seguinte, mas adiantou que “não foi possível
verificar a presença de elementos que comprovem as alegações”.

Em dezembro de 2021, coube à promotora Aline Palhano Rocha Cossermelli Oliveira se


manifestar sobre o pedido da mãe para suspender as visitas paternas à filha.
Resumindo todo o problema a uma questão de dificuldade de convivência, a
promotora opinou pelo afastamento entre Jorge e o filho, mas sugeriu manter as visitas
à menina. A juíza Braz escreveu que ela demonstrava “satisfação com o novo formato
familiar”, enquanto o adolescente “não deseja conviver” com o pai. Sobre os motivos
que levaram o filho a rejeitar essa convivência, a magistrada não se prolongou.

O menino disse que o pai abusava dele, mas a juíza manteve as visitas da irmã ao
homem.
Um relatório psicossocial de março de 2022 – recomendado pela promotora Oliveira
para apurar indícios de atos de alienação parental – ouviu Carolina, Jorge, os dois filhos
e a psicóloga do adolescente, que foi a primeira pessoa para quem ele contou sobre os
abusos sofridos.

O pai disse que só comentou sobre o órgão sexual com o filho para orientá-lo quanto à
higiene pessoal e negou que tenham tomado banho juntos depois que o menino
cresceu. Já a mãe lembrou que o filho havia falado sobre o abuso quando voltou da
psicóloga, que ele chamou o pai de pedófilo e perguntou se algum exame poderia
comprovar o abuso. Na entrevista com o adolescente, ele confirmou para a psicóloga
judicial tudo que havia dito antes.

À equipe psicossocial do tribunal de justiça, a psicóloga do menino disse que ele já


apresentava sinais de síndrome do pânico quando iniciou o atendimento com ela e
vinha se afastando do pai.

A promotora Oliveira se manteve irredutível. Ela deu parecer favorável para as visitas
paternas à filha, sem supervisão e com pernoites, e sugeriu multa para a mãe em caso
de descumprimento. Seu relatório afirma que “não restou demonstrado que o
exercício da visitação paterna seja prejudicial a seus interesses”. Por fim, Oliveira
sugeriu que a mãe fosse investigada por alienação parental.

Por meio da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro,


as promotoras Laura Cristina Maia Costa Ferreira, Aline Palhano Rocha Cossermelli
Oliveira e o promotor Afonso Henrique Reis Lemos Pereira informaram que não
poderiam responder às minhas perguntas, porque “os processos da Vara de Família
tramitam em segredo de justiça”. A juíza Maria Elizabeth Figueira Braz tampouco
respondeu a nossos questionamentos, e a assessoria do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro também se limitou a dizer que não se manifestaria por o caso correr em sigilo.

O que vem garantindo o distanciamento seguro entre Jorge e a filha, hoje com 11 anos,
é uma liminar de junho de 2022 do desembargador Luiz Henrique Oliveira Marques,
que permite visitas paternas apenas com supervisão. Enquanto isso, Carolina é
investigada por alienação parental.

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