Você está na página 1de 52

LE GRAND BOND EN ARRIÈRE

A UTOPIA DO MERCADO1
A idéia que existe uma vida coletiva, uma vida da nação, que condiciona
sua própria existência e que, por sua vez, depende da participação que eles querem
ter, parece para nossos contemporâneos totalmente estranha. A política, pouco a
pouco, nos deixou. Ela pareceu impotente frente ao aumento das desigualdades, da
precariedade e da pobreza, inclusive nos países ricos. Ela nos entregou a uma
competição cada vez mais áspera entre as nações assim como entre os indivíduos,
dizendo que era para nosso bem e que não tínhamos escolha. Qualquer que fosse a
cor ideológica do governo, fomos submetidos à lei da livre concorrência e obrigados
a assumir a prioridade da competitividade. Tivemos alternâncias sem alternativa
política.
A política se tornou desprezível por causa da multiplicação dos casos de
corrupção. Pode se temer que para as gerações que não conheceram o heroísmo
ou a utilidade social dos responsáveis políticos, a imoralidade, o egoísmo e o
desprezo do bem público constatados nas altas esferas de poder dêem mais
exemplo do que nojo.

A VITÓRIA DO MEDO E A SEGUNDA CRISE DO SÉCULO XX


O essencial do mal estar político não está, porém, simplesmente no
problema da corrupção. Ele está no enfraquecimento da função primitiva do político:
fornecer para qualquer um a segurança mínima de viver numa sociedade e não
numa selva, entregue sem defesa ao acaso e à lei do mais forte. A primeira derrota
do fator político é a vitória do medo. Depois da insegurança econômica dos anos 80,
precisava descobrir que, mesmo sem desemprego e sem guerra, nossa vida estava
suspensa ao bom prazer dos empreendedores que podiam decidir injetar sangue

1
HALIMI, Serge, Le grand bond en arrière, comment l’ordre libéral s’est imposé au monde, Paris,
Fayard, 2004
2

contaminado ou servir bifes de vaca louca. Com as companhias de seguro,


conseguimos lidar com riscos previsíveis e ligados a causas externas evitáveis.
Somos, contudo, desamparados frente a riscos sistêmicos: as ameaças globais
geradas pela própria sociedade que Keynes chamou de “incerteza radical”, a que
escapa a qualquer cálculo de probabilidade porque não se sabe o que pode
acontecer ou não. Frente a tais incertezas radicais, a única garantia é a existência
de uma autoridade suficientemente preocupada com o interesse geral para impedir a
busca do lucro seja mais importante do que a segurança sanitária e o direito ao
trabalho, para sempre socorrer e indenizar as vítimas, para obrigar as empresas a
respeitar as normas ambientais e as companhias de seguros a honrar seus
compromissos. A intuição fundamental é que nossa única garantia contra as
violências do mundo, sejam elas visíveis ou simplesmente pressentidas, é a certeza
de viver ainda numa sociedade humana onde cada um tem direitos mínimos, a
começar pelo direito primeiro de permanecer membro dessa sociedade, quer dizer
de nunca ser abandonado pelos seus. Essa última certeza foi desestabilizada ou
destruída pela incapacidade das democracias em conter a grande crise social do
século XX, que levou a um ressurgência da pobreza e do desemprego em massa
nos países ricos. Todos os medos que seguiram foram mais destruidores da
confiança na política porque pegaram pessoas já angustiados pela perspectiva de
viver não numa sociedade mas no campo de batalha onde cada um devia ganhar e
defender o próprio lugar numa luta desigual. A crise do fator político se alimentou da
incapacidade das democracias de responder às mudanças tecnológicas, políticas e
sociais por uma reação ordenada e solidária que poderia ter evitado a exclusão das
minorias menos armadas para enfrentar os choques, que teria recusado um mundo
de competição generalizada onde cada um é condenado (mesmo os vencedores) à
angústia solitária e permanente da performance.
Não se aproveitou as lições trazidas pela crise de 29 e o conseqüente
crescimento do totalitarismo. Quando a crise ressurgiu nos anos 70, a reação dos
grandes paises democráticos foi o mesmo coquetel de covardia, de miopia e de
miséria social. De novo aconteceu uma guerra mundial: a guerra da economia
estendida ao conjunto do planeta pela livre concorrência e a desregulamentação.
Muitos paises aceitaram que o custo das mutações tecnológicas fosse pago pelas
vitimas: os operários e os profissionais pouco qualificados. As democracias tiraram
as lições econômicas da Grande Depressão e não as lições políticas. Tudo foi feito
3

para evitar que uma nova crise mundial tenha efeitos catastróficos sobre a
economia: foi um sucesso.
O grande paradoxo da nossa época foi de ver ressurgir os mesmos
flagelos sociais e o mesmo medo do que nos anos 30, sem a depressão econômica
que os causaram. É que, se tudo foi feito para preservar a economia de um colapso
brutal e destruidor, nada foi pensado ou feito para evitar uma partilha cada vez mais
desigual desse sucesso, para impedir que os choques derrubem a sociedade
provocando a secessão entre os ganhadores e os perdedores da competição.
Compreenderemos que neoliberalismo consiste em explorar a ameaça da crise
econômica para impor e justificar uma sociedade mais desigual. Tivemos a crise
social sem a crise econômica, e aqui está o primeiro fermento da crise política.
Somos confrontados ao paradoxo de uma riqueza exuberante e crescente que,
todavia, deixa as nações poderosas na incapacidade de evitar a miséria.

O PARADOXO DA POTÊNCIA IMPOTENTE DAS “DEMOCRACIAS”


A crise intima do político, o mal estar que se instala no espírito dos
cidadãos, reflete a intuição complexa que a impotência aparente dos políticos está
ligada com uma potencia política bem real, mas desviada, ociosa e indiferente
quando ela poderia socorrer, fútil quando ela poderia produzir sentido. Esse estrago
político reenvia os indivíduos à sua própria “potencia impotente”. Enquanto cidadãos,
eles dispõem de todos os direitos e de todos os poderes que lhes permitem fazer e
desfazer os governos. Mas eis que eles são incapazes de mudar as políticas, sendo
assim confrontados a uma democracia de fachada, enquanto eles ainda
acreditavam, ainda, viver no melhor dos sistemas. A desilusão em relação ao poder
político mascara uma desilusão mais grave: em relação à própria democracia. Nunca
as nações e os governos tiveram tantos instrumentos, de conhecimentos, de meios
financeiros. Nunca os cidadãos dispuseram de tantas informações, de espaços e de
tempos livres para o debate publico, de direitos, de instrumentos de expressão e de
comunicação. Ao mesmo tempos, nunca nos sentimos tão desamparados frente a
caminhada da Historia. O maior paradoxo do inicio do século XXI é a impotência dos
povos os mais poderosos a orientar o próprio destino.
Essa evidencia remete à própria responsabilidade: o poder do cidadão só
pode ser assegurado na medida em que existe a condição mínima que ele o
reivindica. Como levar a democracia até o fim de sua promessa – o poder do povo
4

soberano – se o começo da democracia não for assegurado: a vontade de


reivindicar esse poder, o desejo de exercê-lo. O paradoxo é que os cidadãos mais
conscientes fogem os partidos em vez de tentar reformá-los. O sentimento mais
comum é o sentimento misto, contraditório e angustiante de que uma alternativa é
necessária e inexistente.
Existe um circulo vicioso que gera resignação e solidão: no nível da
sociedade, o individuo não pode ter segurança de nada em relação ao
comportamento dos outros; ele pode somente apostar e fundamentar-se em
crenças. Para sair desse círculo, não basta que o individuo saiba que em teoria uma
mobilização coletiva melhoraria a sorte de todos. Ele precisa acreditar que, na
prática, os outros vão mobilizar-se. O individuo deve apostar que seu engajamento e
sua atitude cooperativa serão imitados por um grande numero de pessoas. Deve
apostar que seu desejo de um mundo comum mais cooperativo é largamente
compartilhado pelos outros, ele deve acreditar que vive numa verdadeira sociedade
humana onde o desejo de viver bem juntos é mais forte do que o medo do outro e a
rivalidade. Ora, a conseqüência maior da lógica de competição generalizada que
tomou conta do mundo é justamente destruir essa aposta e essa crença. De fato, a
lógica de guerra econômica degenera em “guerra incivil” que nos dissocia uns dos
outros e destrói o sentimento de pertença à sociedade, porque o lugar de cada um
na sociedade de competição generalizada não é mais um direito: é o resultado
incerto e vulnerável de um combate permanente. Todos devem se comportar como
guerreiros, em vencedores, para escapar à exclusão e ao estigma reservados aos
menos performers.
O que se chamou de “sociedade de mercado”, para designar a
colonização de todo o espaço social pela lógica mercante, nos conduz para uma
não-sociedade, ou mais exatamente uma “dissociedade”2 que justapõe os indivíduos
(ou sub-comunidades de indivíduos) rivais e fechados em si mesmos. Ora ninguém
pode tornar-se ou voltar a ser cidadão lá onde não existe uma cidade.
Esse livro é motivado pela convicção que, na época dos riscos globais,
dos riscos maiores, a mais iminente e a mais determinante das catástrofes que nos
ameaça é essa mutação antropológica, bem avançada, que pode transformar no
prazo de uma ou duas gerações, o ser humano num ser dissociado, fazer bascular
5

as sociedades desenvolvidas na desumanidade de “dissociedades” povoadas por


indivíduos posicionados (dressés) uns contra os outros. Erradicar esse risco
comanda nossa capacidade de enfrentar os outros. Somente autenticas sociedades,
soldadas pela solidariedade e a primazia do bem comum sobre a performance
individual, estão em condição de atingir o nível considerável e inédito de cooperação
e de coesão indispensáveis, nas nações e entre as nações, para enfrentar os dois
grandes desafios do século XXI: evitar uma guerra de civilizações e assegurar de um
modo democrático a grande mudança de modos de vida e de produção sem a qual o
planeta torna-se inviável.
É um problema de consciência política: a dissociedade não é uma
disfunção técnica cuja correção chamaria a invenção de políticas inéditas. Trata-se
de uma doença social degenerativa que altera as consciências inoculando nelas
uma cultura falsa mas auto-realizadora. As sociedades de mercado são
contaminadas por uma cultura neoliberal: individualista, “mercadista” e anti-política.
A partir de um limiar critico de contaminação dos espíritos, ela se torna auto-
realizadora: convencidos de viver já e para sempre num campo de batalha, os
indivíduos se comportam como guerreiros e não como cidadãos. Em vez de construir
uma sociedade, eles geram um mundo hostil onde é cada vez mais racional
comportar-se como guerreiro. Trata-se de um processo cumulativo, onde cada fase
de dissolução da sociedade e dos vínculos de solidariedade justifica e reforça a
debandada solitária dos indivíduos no medo e na aversão dos outros, debandada
que acentua a regressão coletiva e torna mais árdua toda ação para inverter o senso
das políticas e das crença sociais.
O diagnóstico clinico pode ter um efeito determinante em termos de
patologia social. Se cada um, ou cada cidadão militante, toma consciência que
somos coletivamente vitimas e atores de uma cultura errônea portadora de um vírus
social mortal, é um passo suficiente em direção da cura. A política pode fazer o
resto, desde que uma maioria de cidadãos está convencida de que a via em direção
de uma sociedade humana é não somente preferível à de uma dissociedade, mas é
uma questão de vontade coletiva. Essa é a primeira convicção que a cultura
neoliberal consegue destruir.

2
Transfiro para o português o neologismo criado pelo autor ibid. p. 28 e o usarei todas as vezes que
o autor o usa no seu texto.
6

DO PACTO SOCIAL À GUERRA ECONÔMICA3


Por que e como um mundo caracterizado pelo quase pleno emprego, um
real progresso social e uma regulação política dos mercados cai em alguns anos na
crise social e no desengajamento político que acabamos de evocar. Foi popularizada
a idéia de que essa mudança seria fruto de uma inelutável amputação das margens
de manobra dos governos. A política teria sido obrigada a ceder às exigências dos
mercados. Esse quase lugar comum constitui hoje o ponto de partido não debatido
de toda reflexão sobre o futuro do mundo.
Ora a idéia de um poder político submerso pelo alargamento do espaço e
do poder da economia mundial é uma idéia falsa. É uma mistificação que fantasia a
guerra econômica em causa da desregulação do poder político quando, de fato, é
um efeito deliberadamente escolhido. Esse caminho foi aberto pela vontade política
dos governos nacionais que, mesmo depois de um quarto de século de
mundialização, conseguiriam escolher um outro caminho. Todas as nações não se
engajaram nesse caminho, em particular os Estados Unidos, que encorajaram os
outros a fazê-lo. Na política, como nas bolsas, as crenças podem ser auto-
realizadoras porque fabricam os comportamentos que determinam por sua vez a
realidade. Longe de ser submetido à economia, o poder político foi seqüestrado a
serviço de interesses particulares, em nome de um projeto político.
Tivemos uma primeira mundialização que aconteceu no fim do século XIX
e no início do século XX e que levou à crise de 29. Karl Polanyi, no seu livro “A
grande transformação” analisou como os malefícios dessa primeira mundialização
conduziram a um questionamento do capitalismo liberal e suscitam a grande
transformação que é regulação da economia que acontece depois da Grande
Depressão, imposta pelo nazismo, o fascismo e o comunismo e, finalmente,
institucionalizada pelas democracias depois dos anos 404. Isso acontece ao mesmo
tempo que o sindicalismo se desenvolve, o sufrágio universal ocupa espaço e que
são votadas as primeiras leis que melhoram as condições de trabalho e colocam as
bases de uma proteção social. A primeira mundialização, longe de acompanhar um
recuo da regulação política da economia, acompanha a tomada de consciência da
necessidade de tal regulação e os primeiros passos de sua implementação.

3
Ibid. capítulo 2
4
POLANYI, Karl, A grande transformação, as origens da nossa época, Rio de Janeiro, Editora
Campus, 2000 (ed original 1944)
7

Ao contrario da primeira mundialização, a segunda mundialização


intervém não na continuidade de uma fase de extensão regular do capitalismo
liberal, mas no termo de uma fase de expansão do Estado social, da planificação,
das políticas keynesianas, da redistribuição de renda, da regulação das finanças
internacionais etc. Ela acompanha o recuo voluntário das soberanias nacionais, o
desmantelamento do direito social, as privatizações e a desregulamentação das
finanças.
Na primeira mundialização, pode se dizer que as elites políticas e
econômicas não sabiam ou não podiam avaliar bem as conseqüências do processo
que estava em andamento. Não se pode dizer a mesma coisa das elites que
governam a partir do fim do século XX. Sabem que a guerra econômica conduz à
guerra, que a democracia parlamentar pode gerar o totalitarismo, que os mercados
perfeitamente livres provocam desequilíbrios, crises, desemprego, desperdício,
privatização dos bens públicos, catástrofes ecológicas; sabem que uma regulação
política da economia de mercado é possível e muito eficaz quando se vê a
prosperidade e os progressos sociais das Trinta Gloriosas. Daí o paradoxo: por que
os instrumentos políticos que contribuíram para a prosperidade das três décadas
depois da guerra são desprezados no mesmo momento em que a quebra do ritmo
de crescimento e o aumento do desemprego deveriam fundamentar uma intervenção
mais forte dos governos? Não é a livre circulação dos capitais que obriga a
desregulamentação dos mercados financeiros: é o contrario. É uma questão de
escolha e de forças políticas.
A guerra econômica não é uma fatalidade: os órgãos de cooperação
internacional ou as instituições da Comunidade européia ofereciam um espaço de
coordenação onde os grandes paises industriais poderiam ter decidido conter a
competição mundial num quadro compatível com a manutenção da coesão social.
As virtudes da concorrência são compatíveis com qualquer nível de regulação e de
proteção social, desde que existam oportunidades de lucro e que todos os atores
estejam submetidos às mesmas regras. Bastou que alguns paises renunciem à
regulação dos mercados para dissuadir os outros de preservá-la.
Assim, o aumento da pobreza e da exclusão não era a conseqüência
inelutável de uma lei natural da economia: existia a escolha entre varias estratégias
de adaptação e de reação. Um sistema econômico nunca é a aplicação pura e
simples de regras advindas de um qualquer tratado universal de economia política,
8

mas é um compromisso social complexo refletindo fundamentalmente uma relação


de força política entre os atores de uma situação. O quase consenso liberal dos
anos 80 forjou-se no momento em que as relações de força foram radicalmente
modificados a favor dos detentores de capital e no momento em que um grande
número de eleitores e os responsáveis políticos encontraram vantagens nesse novo
cenário.

O DESABAMENTO DO PACTO SOCIAL5


No período de crescimento extensivo dos anos 50-80 (Trinta Gloriosas), o
capital precisava de uma mão de obra abundante, mesmo que pouco qualificada, a
ponto de desenvolver a imigração para compensar a insuficiência da população ativa
nacional; precisava da difusão do poder aquisitivo para criar saídas necessárias para
a produção de massa das industrias de consumo. Era favorável a um Estado-
providencia que garantia a renda e a estabilizava frente às flutuações da conjuntura.
O capital também tinha medo da subida do comunismo: necessidade econômica e
medo político se conjugavam para promover um pacto social: o poder de gestão dos
detentores de capital não era contestado mas, em contraparte, o capital aceitava
uma maior progressão dos salários, dos direitos sociais estendidos e a melhoria das
condições de trabalho. O capitalismo tinha entrado numa segunda idade
caracterizado pelo compromisso social e pela regulação política.
A partir dos anos 70, os fundamentos objetivos desse pacto social são,
um por um, abalados. A evolução tecnológica (telecomunicações, informática,
robótica), a concorrência aumentada de novos paises industriais e a ruptura nítida
do ritmo de crescimento econômico, se conjugam para incitar as empresas a
comprimir os custos limitando o emprego e/ou a progressão dos baixos salários. Nos
paises ricos, as taxas de equipamento das famílias aproximam-se da saturação. Em
conseqüência, a prosperidade das empresas não é mais garantida pela produção
em massa dos bens de consumo estandardizados. Torna-se mais incerta e depende
da capacidade em desenvolver novos produtos com alto valor agregado, encontrar
mercado no exterior e adaptar-se rapidamente às variações da demanda e às
inovações dos concorrentes. As empresas precisam de uma mão de obra mais
móvel, mais flexível e mais bem formada. Podem dispensar os trabalhadores de

5
Ibid. p.43 ss
9

pouca qualificação pela robotização das tarefas repetitivas. É verdade que


desempregando assalariados, as empresas perdem clientes; contudo, essa perda é
compensada pela compressão dos custos e pela demanda renovada de todos
aqueles que conservam o emprego e cujo poder aquisitivo continua progredindo.
No mercado de trabalho, o aparecimento de um desemprego de massa
inverte a relação de forças a favor dos empregadores. A ameaça continua de
demissão obriga quem conserva o emprego a aceitar a “moderação salarial” e as
novas exigências de mobilidade, de flexibilidade e de produtividade associadas à
intensificação da concorrência internacional. No prazo de quinze anos, a gestão da
produção e as condições de trabalho sofrem uma completa metamorfose concebida
para garantir a rentabilidade financeira máxima. O medo do desemprego não é
instrumentalizado somente para obter dos assalariados todos os sacrifícios
necessários a rentabilidade do capital, mas serve também a pressionar os governos
para reivindicar, em nome da defesa do emprego, uma redução dos encargos fiscais
e sociais. O contra poder sindical é laminado por uma nova organização do trabalho
flexível que destrói os coletivos de trabalho, promove a gestão individual das
carreiras e a competição interna entre assalariados. Com a destruição do muro de
Berlim, acaba o medo do comunismo. Não encontrando resistência, os dirigentes de
grandes empresas vão até o fim de suas vantagens. Isso significaria que o horror
social é fruto de uma conspiração das firmas multinacionais? É provável que elas
tiram vantagem da situação. Mas isso não explica como um clube de algumas
centenas de dirigentes pode impor suas escolhas num sistema onde todo mundo
vota.
Se os interesses das firmas multinacionais acabaram dominando as
escolhas políticas validadas pelas eleições, isso pode significar que eles
correspondem às aspirações de uma boa parte da sociedade. De fato, para todos
que não se sentem ameaçados pelo desemprego (executivos, técnicos qualificados,
funcionários), a “coesão social” representa um custo que é preciso minimizar; são
incapazes de avaliar e antecipar os custos que eles deverão suportar um dia em
função da exclusão de uma parte da sociedade para uma condição de precariedade
e de pobreza. Nada de estranhar que os governos representativos não resistiram ao
desemprego dos menos qualificados e tenham aceitado a pobreza dos menos
qualificados.
10

Nos anos 80, a sociedade européia, depois da Inglaterra e dos Estados


Unidos, aceita-se que o objetivo do pleno emprego não seja atingido, que era o
objetivo unanimemente perseguido. A nova prioridade é: a desinflação. A conversão
geral e rápida aos dogmas do rigor monetária e da inflação mínima só se produziu
porque ela apresentava um interesse para as elites dirigentes. Por que essa
conversão é desejada pelos políticos e aceita pela sociedade? Se a inflação é tão
ruim, por que ela foi tolerada tanto tempo? Porque todo mundo, tirando quem vivia
de rendimentos financeiros, era favorecido por políticas de expansão monetária: os
rendimentos nominais dos assalariados e das empresas progrediam mais
rapidamente do que a inflação. Uma tal política monetária traduzia-se por taxas de
juros baixas ou negativas o que favorecia o investimento e o financiamento bancário
das empresas; favorecia também o financiamento para o consumo. Os únicos
perdedores dessa política monetária eram aqueles que tiravam uma parte essencial
da sua renda de aplicações financeiras: não conseguindo achar nas taxas de juros
uma remuneração estimulante, eles aplicavam em ações. Aí também, suas
exigências em termos de rentabilidade eram limitadas por as dos managers que
privilegiavam outros objetivos porque tinham um acesso fácil aos financiamentos
bancários e eram relativamente independentes dos seus acionistas que não
estavam em posição de força para exigir dividendos. Se quem vivia de rendimentos
financeiros tinha interesse numa reviravolta de políticas monetárias a favor da
desinflação e de uma melhor remuneração da poupança, eles estavam isolados
numa sociedade que tolerava a inflação e aproveitava o credito quase gratuito.
Na virada dos anos 70 para os anos 80, as aspirações dos aplicadores
tornaram-se de toda uma geração de executivos: eles pertenciam a uma classe
intermediária que tinha constituído um patrimônio imobiliário e uma poupança
financeira. Uma vez esse patrimônio constituído, não precisavam mais do credito
gratuito e esperavam taxas de juros mais altas que remunerariam melhor sua
poupança, o que significa que a inflação não tinha mais nenhum atrativo.
Por outro lado, a aceleração da inflação consecutiva aos choques dos
custos de produção esconde um conflito para a repartição dos ganhos. No fim dos
anos 60 nos grandes paises industriais, uma série de movimentos sociais
desemboca numa forte revalorização dos baixos salários. Contudo, as empresas
esforçam-se de restaurar a parte do capital, compensando o aumento dos salários
por uma alta dos preços. A mesma reação prevalece depois dos choques
11

petroleiros. Os patrões tentam de fazer pagar a maior parte da fatura pelos


assalariados via alta dos preços. Esses últimos reagem por reivindicações salariais
para compensar a erosão do seu poder de compra o que causa novas altas dos
preços e assim sucessivamente. Essa guerra arrisca-se de degenerar num espiral
inflacionário infinito enquanto um dos guerreiros não consegue dominar o outro.
Os quadros políticos e econômicos, os empresários e, mais largamente,
todas as famílias mais ou menos abastecidas que têm um patrimônio imobiliário e/ou
financeiro, têm hoje um interesse objetivo para o endurecimento das políticas
monetárias que aumentam as taxas de juros e engajam a desinflação. Os efeitos
dessa reviravolta são conhecidos: explosão do desemprego nos paises ricos,
insolúveis dificuldades de pagamento para os paises em desenvolvimento,
endividados. Esses efeitos não são desastrosos para todos: eles reforçam as
conseqüências esperadas pelos promotores da nova política econômica, quer dizer
a mudança das relações de forças a favor dos detentores do capital. O rigor
monetário e o desemprego são as ferramentas políticas pelas quais os governos
colocam um ponto final ao conflito para a repartição do valor agregado impondo um
ganhador: o capital.
Na mesma época, na maior parte dos grandes paises industriais, a
liberalização das operações financeiras instala um vasto mercado financeiro mundial
e aberto. Os capitais podem circular de um país para o outro, os operadores
financeiros podem soltar sua criatividade para criar instrumentos adaptados a essa
nova realidade mundial. É preciso distinguir a retórica oficial e os verdadeiros
interesses que justificam essa desregulamentação. Segundo o credo neoliberal, uma
total liberdade de gestão e de circulação dos capitais é o melhor meio de assegurar
uma alocação eficaz dos recursos. Num vasto mercado mundial onde os analistas
profissionais julgam em permanência a gestão e a performance dos paises, das
empresas e dos governos, os capitais são constantemente redistribuídos das
atividades menos lucrativas para as mais lucrativas. Todavia, a teoria econômica
moderna e a experiência recente mostram que essa bela crença nas virtudes do
mercado é uma teologia sem fundamento.
A crença na vigilância dos “analistas profissionais” ficou abalada depois
das falências da Enron e da Andersen. As contas de numerosas grandes
sociedades, embora certificadas por grandes empresas de auditoria, são tanto mais
falsas quanto mais a situação da empresa é complicada. A razão encontra-se numa
12

das grandes virtudes do mercado que consiste em agradar sempre o cliente. Os


auditores fecham os olhos sobre a falsificação das contas e emitem relatórios
satisfatórios para conservar os clientes e satisfazer sua hierarquia que deve poder
mostrar bons resultados financeiros da própria empresa.
Mesmo sem malversação, o uso dos capitais não é espontaneamente
ótimo. Sempre se prefere investir capitais na renovação do parque de telefonia
celular dos paises ricos do que na erradicação da AIDS na África. O dinheiro vai lá
onde pode se reproduzir e não onde ele é necessário. Que a livre circulação dos
capitais seja um excelente meio de selecionar as oportunidades as oportunidades de
lucro imediato, ninguém duvida. Contudo, é evidente que a taxa de rendimento
financeiro não é o bom indicador para saber onde a humanidade julga que ele é o
mais útil, o mais urgente e o mais justo de investir.
Finalmente, a desregulamentação mundial dos movimentos de capitais e
dos mercados financeiros gerou crises financeiras internacionais repetidas. Todos os
especialistas, liberais ou não, reconhecem nessa instabilidade financeira o efeito da
desregulamentação anárquica dos mercados financeiros. A desregulamentação
financeira não se justifica pela pretensa busca de uma otimização econômica ou
social. Sua verdadeira razão de ser fica clara quando se descobre quem encontra aí
seu interesse.

A TERCEIRA IDADE DO CAPITALISMO


Estamos passando de um capitalismo managerial para um capitalismo
“mercadista” comandado pelos fundos de grandes investidores. Os grandentees
acionistas podem atualmente fazer valer suas exigências. Pelo intermediário dos
administradores (investidores institucionais), exigem estratégias de gestão que
maximizam os valores dos capitais investidos. Nasce a nova religião da empresa: a
criação de valor para o acionista. Um objetivo de rentabilidade financeira se impõe
rapidamente como norma de referencia: um rendimento anual do capital de 15%,
mais de três vezes mais do que era considerado satisfatório nos tempos anteriores.
Paradoxalmente, os detentores do capital querem explorar seu novo poder num
momento em que é mais difícil ganhar dinheiro. Como triplicar o rendimento do
capital quando o crescimento do produto nacional é dividido por dois e a competição
cada vez mais feroz? Se todos quiserem o progresso para si mesmo quando tem
menos para todos, todos não poderão ganhar. Nada é obtido que não seja tirado de
13

alguém: resta para ganhar a predação e a guerra. Na guerra, o medo e o mimetismo


servem de racionalidade. Por mais feroz que seja a competição entre capitalistas,
eles estão de acordo para criar novas oportunidades de lucro, abrindo a guerra
econômica em paises em desenvolvimento e em setores públicos outrora ausentes
do culto do lucro.
Na teoria como na história, o único contexto no qual a concorrência tenha
virtudes é o de uma competição limitada por instituições, convenções sociais e
normas políticas fortes. Se esses limites são levantados, a sadia emulação que se
espera da concorrência econômica deixa lugar para uma guerra econômica, uma
competição sem freios onde todos os meios são bons para maximizar o lucro. A
terceira idade do capitalismo, dominada pela maximização da rentabilidade
financeira imediata, tem todos os traços de uma loucura coletiva. Parece ruim para
todas as partes: assalariados, clientes, managers e acionistas.
Nesse novo capitalismo, a compressão dos efetivos assalariados não é
mais o sacrifício último para salvar a empresa. É uma estratégia preventiva das
empresas rentáveis que se preparam para aumentar a rentabilidade dos seus papeis
na bolsa. O aumento do desemprego é solução para o único problema que preocupa
o capitalismo atual: criar mais valor para o acionista. O aumento do desemprego
ajuda o investidor de três modos: a baixa de custo da mão de obra tem um efeito
rápido sobre a rentabilidade financeira; a estimulação ao medo do desemprego limita
as reivindicações salariais; o aumento da taxa de desemprego pode incitar os
bancos centrais a reduzir a taxa de juros para sustentar o crescimento; se a taxa de
juros diminui, os poupadores se sentem encorajados a investir seu dinheiro na bolsa
o que faz subir o preço das ações.
Os assalariados são cada vez mais tratados como recursos produtivos
cujo cada minuto deveria criar mais valor para o acionista. Para conseguir a
mobilização efetiva dos assalariados, a obrigação dos meios (tempo de presença) é
substituída pela obrigação de resultados cada vez mais exigente. Se individualiza a
avaliação das performances e das remunerações. Não se remunera mais uma
qualificação fundada sobre critérios relativamente objetivos (diploma, formação
profissional e experiência profissional), se remunera competências avaliadas
subjetivamente pela hierarquia. As primeiras competências são a subserviência e a
alienação voluntária, a capacidade a demonstrar uma plena adesão ao discurso, à
cultura e aos objetivos da direção.
14

Os produtores têm interesse em adaptar o comportamento dos clientes


aos objetivos da rentabilidade financeira, mais do que o contrário. Ao mesmo tempo,
a loucura do rendimento financeiro pode voltar-se contra o investidor. Os
administradores que se sabem julgados no curto prazo estão prontos para qualquer
manipulação porque sua remuneração está calcada nos resultados obtidos no curto
prazo.

A POLÍTICA NÃO ESTÁ EM CRISE PARA TODOS


A extensão de uma lógica de competição generalizada não resulta em
nada de um desengajamento do Estado ou de uma renuncia da regulação política da
economia. Ela manifesta simplesmente uma nova modalidade de engajamento do
Estado e uma nova regulação que acompanham e aceleram a grande mudança das
relações de forças sobre as quais se estabeleceram os compromissos sociais e
políticos do pós guerra. A política não se retraiu: ela modelou um mundo favorável
aos detentores de capitais financeiros e das melhores qualificações; um mundo cada
vez mais precário ou inviável para os detentores de um capital humano depreciado
pela evolução tecnológica. O poder mascarado é sempre mais robusto do que o
poder exposto. Os neoliberais devem denegrir o Estado e o voluntarismo político
para dissimular que o domínio exorbitante do capital é possível por causa da
benevolência do Estado e para dissuadir os dominados de acreditar na única
ferramenta capaz de ajudá-los: a política. O desafio não é de colocar a economia
sob o domínio da política; é de recolocar os políticos ao serviço do bem comum.
O verdadeiro inimigo de uma lógica mercadista generalizada não é a
política que já foi cooptada: é a democracia de cidadãos que podem recolocar a
política ao serviço do bem comum. Ora uma sociedade de competição generalizada
desenvolve a obsessão da performance individual e a certeza de estar sempre
ameaçado pela performance dos demais; isso transforma os cidadãos em rivais que
devem enfrentar-se para salvar o próprio lugar. A competição generalizada lamina a
coesão social que confortaria o poder coletivo dos cidadãos, ela transforma uma
maioria política potencial em coleção de indivíduos isolados e desarmados.
15

DA GUERRA ECONÔMICA À GUERRA INCIVIL6


Assim como nos anos 30, a crise econômica e social do fim do século XX
desemboca numa guerra mundial de um novo tipo, aparentemente mais inofensiva,
mas, na realidade, mais nociva para a sociedade e a democracia: a guerra
econômica geral. Esta não opõe mais simplesmente os estados, mas principalmente
e sobretudo os indivíduos dentro das fronteiras nacionais; ela não contribui mais a
fazer sair da crise social pela mobilização geral contra um inimigo comum: pelo
contrario, ela amplifica a crise social e se alimenta dela, porque o desgaste dos
vínculos sociais constitui ao mesmo tempo a conseqüência e a condição necessária
para a extensão de uma competição generalizada. Essa guerra teve efeitos
devastadores sobre a capacidade e a vontade de uma comunidade humana de viver
juntos e escolher coletivamente seu destino, quer dizer constituir uma comunidade
política. Essa diferença não é sempre percebida por duas razões:
1. a competição generalizada distila um veneno insidioso: ela não
ataca a sociedade frontalmente, mas sim um setor depois do outro;
seus efeitos psicológicos permanecem muito tempo confinados na
intimidade dos indivíduos.
2. o projeto neoliberal avança mascarado atrás de uma expansão do
Estado que, num primeiro momento, mantém a ilusão de que a
guerra econômica reforça o político. Isso acontece mas não na
direção da democracia.

ESTADO PODEROSO E NEOLIBERALISMO: O OUTRO LADO DE UM


PARADOXO APARENTE
A partir do fim dos anos 70, as despesas públicas e os impostos não
cessam de aumentar. Isso é o primeiro índice que o projeto neoliberal não significa
desengajamento do Estado mas, pelo contrário, seu reengajamento a serviço de
interesses particulares e de um outro modelo de sociedade. Existe uma nova
focalização do Estado sobre suas funções de policia da sociedade de mercado:
guardião da ordem interna e externa, protetor dos bens e das propriedades, garantia
da execução dos contratos. Quando se chega a esse estágio último do
neoliberalismo, o essencial dos serviços coletivos e das regras do jogo econômico

6
GÉNÉREUX, Jacques, La dissociété, Paris, Éditions du Seuil, 2006, capítulo 3
16

depende dos contratos privados e dos mercados; trata-se de uma restrição drástica
do campo aberto para a deliberação democrática e as escolhas políticas. A
finalidade dos neoliberais não é enfraquecer o Estado, mas de dispor de Estados
suficientemente poderosos para impor, dentro como fora, uma ordem conforme a
seus interesses e a sua visão de mundo. Num primeiro momento, portanto, não se
assiste a uma redução das despesas publicas mas a sua reestruturação. Por isso,
taxa-se mais os menos ricos e menos os mais ricos!

A PRIVATIZAÇÃO DOS ESPÍRITOS


O pragmatismo reivindicado pelos neoliberais não pode reconhecer
nenhum mérito a seus adversários políticos. Sabendo-se empenhado numa batalha
cultural, um responsável político neoliberal não pode confundir sua mensagem
dando uma parte de verdade para o campo adversário. Seu discurso teórico é
preparado e inspirado por universitários que não são pragmáticos e têm uma
religiosa indiferença em relação aos fatos. A adesão intelectual ao neoliberalismo
não podendo ser fundada numa argumentação cientifica, nem se sustentar numa
observação das realidades desse mundo, ela encontra sua energia na ardorosa
necessidade de crer e a absoluta certeza de ter razão que caracterizam o fanatismo
religioso. Isso não significa vontade de mentir: a retórica neoliberal é falsa pela
analise dos fatos, mas permanece justa o sentido do que ela descreve um mundo tal
qual deveria ser e tal qual eles têm a intenção de modelá-lo pela sua ação política.
Conhecem bem a necessidade de crer, a força das crenças, e portanto a
necessidade estratégica de controlar a cultura. Como eles têm acesso a
comunicação de massa, eles preferem a alienação cultural dos povos a sua
alienação física; não buscam controlar os corpos, mas sim o imaginário social de
seus administrados. Trata-se de levar esses a imaginar que o Estado-Providencia é
um predador e de suscitar o desejo de um mundo livre dessa tutela. Trata-se de
privatizar os espíritos; bajular e inchar o lado narcisista e egocêntrico de cada um, de
modo que perca aos poucos a consciência do bem publico e que, finalmente, no
termo do processo de lavagem cerebral, as simples palavras “impostos”,
“regulamentação”, “solidariedade” sejam dolorosas de ser ouvidas e desencadeiem
um reflexo defensivo.
Num primeiro momento, a retórica do “Estado mínimo” ou da reforma do
Estado, não serve a aliviar realmente o Estado. Ela serve a criar uma cultura anti-
17

funcionalismo, anti-administração e anti-impostos que deslegitima a ação política


conduzida em nome do interesse publico, mas dá uma nova legitimidade quando ela
é colocada a serviço das iniciativas e dos interesses privados. O uso estratégico das
diminuições de impostos e das cotizações sociais aprofunda os déficits para criar a
ilusão de que o pais vive acima das suas possibilidades e justificar o recuo das
despesas sociais e as privatizações. A persistência do desemprego não constitui um
problema: constitui uma solução porque participa do descrédito do modelo social
que se quer destruir e mantém o medo que predispõe os assalariados para todas as
submissões. Sabem que eles ganharam quando, no imaginário coletivo, os
resistentes à “mercadização” não encarnam mais o progresso mas sim a defesa de
um mundo antigo e superado.
Os neoliberais conduzem assim uma estratégia eficaz de privatização do
Estado por etapas. Aos poucos, numa guerra econômica mundial, não são mais
somente os produtos que são colocados em competição mas também os sistemas
políticos e sociais.

O MITO DA GOVERNANÇA
No momento do recuo efetivo das despesas publicas e dos impostos, o
discurso dominante promete uma nova governança necessária para evitar os
excessos de uma competição selvagem. Essa palavra governança responde à
necessidade de ser governado mas sem governo, ter leis mas não de um
parlamento, de obter a ordem mas sem autoridade publica, a cenoura sem o bastão.
A predileção dos neoliberais para o tema da governança reflete o sonho de uma
privatização bem sucedida do Estado. O que se entende por governança é um
conjunto de agencias descentralizadas e especializadas de regulação dos
mercados, a lei dos mercados definida pelos atores dos mercados, a ética dos
negócios destinada a homens de negócios, em breve, a auto-regulação do business
pelo business e nada de democracia que se tornou sem utilidade. A governança é
uma espécie de governo privado, ou uma miríade de governos privados e
concorrentes para satisfazer clientes e acionistas. O que se espera de um Estado ou
de um governo nesse ambiente? Que ele faça a policia e a guerra. A engrenagem
perversa da privatização do Estado-providencia prepara e nutre o circulo vicioso da
violência social e de sua repressão por um “Estado-penitencia”. Menos a nação
investe em educação, habitação e estabilidade do emprego, mais se banalizam as
18

incivilidades e a delinqüência juvenil. Quando uma sociedade troca a seguridade


social pela segurança, ela toma o caminho da insegurança geral. Na guerra
econômica, não são simplesmente os feridos e os perdedores na competição, mas
todos os cidadãos que são embarcados na engrenagem de uma sociedade violenta
e insegura, o que os transforma aos poucos em guerreiros.

A MUTAÇÃO DO CIDADÃO EM GUERREIRO7


Se a guerra econômica demora para enfraquecer os instrumentos da ação
política, ela ataca desde a origem nas fundações morais do político quebrando a
coesão nacional. Trata-se de uma guerra insidiosa onde o inimigo, normalmente
invisível não é um estado estrangeiro cuja agressão estimularia a solidariedade
nacional. Seu governo não lhe pede de combater todos juntos para salvar a pátria ou
defender um inimigo comum. De fato, ele não pede mais nada: ele abandona
puramente e simplesmente à guerra com seus concorrentes, seu patrão, seus
colegas; tem se a impressão que ele abriu as portas da cidade aos predadores para
que eles façam seus negócios a vontade. Portanto, não somente o político não serve
para nada, mas ele se torna o aliado objetivo dos seus inimigos. Quando o inimigo
torna-se perceptível, percebe-se que é o vizinho, o que quer ser mais competitivo,
quer dizer o outro que te percebe como um inimigo porque assim ele é percebido por
nos. Os medos coletivos desenvolvem-se pela força do discurso político e mediático
bem antes de ter base nos fatos. Assim, a força do discurso economicamente
correto insinua nos nossos espíritos uma lógica de guerra econômica bem mais
amedrontadora do que ela é na realidade. Mas não interessa o que é: interessa que
se acredita estar numa guerra para comportar-se em soldado obediente.
Antes de estar ancorada nos fatos, a lógica de competição generalizada
penetra os espíritos, difunde o medo e uma cultura de mercado, uma cultura de
guerreiro que torna obsoleta a cultura daqueles que acreditavam ser ainda membros
de uma sociedade humana. Numa sociedade, cada um pensa ocupar seu lugar
cumprindo um conjunto de deveres intimamente ligados aos direitos que lhe são
reconhecidos. Num mercado, o individuo não tem seu lugar, deve conquistá-lo e
abandoná-lo para cobiçar um melhor; nenhuma posição, nenhuma fortuna é
adquirida e suficiente sob o reinado de uma competição generalizada que condena

7
Ibid. p. 102 ss
19

cada uma à ofensiva permanente, à mobilidade, à mudança. Numa sociedade onde


cada um tem o próprio lugar, um individuo pode esperar no mínimo uma vida
decente sem combate; num mercado, ele se sente mercadoria que deverá a própria
sobrevivência ao fato de ser mais forte do que os outros ou o escravo dos mais
fortes. Numa sociedade se vive, num mercado se combate. Numa sociedade uma
pessoa se define pelos seus vínculos, num mercado o individuo se define pelos seus
talentos, seus poderes, seu capital, tudo que determina sua competitividade. Numa
sociedade, se aprecia alguém, num mercado se mede alguém. Numa sociedade, o
importante é amar, num mercado, o importante é ser forte.
A cultura de mercado é uma cultura de combatentes engajados numa
guerra esquisita, sem exércitos constituídos e solidários, onde nosso inimigo
esconde-se na mesma trincheira do que nos, onde todos temos o mesmo inimigo
intimo: o medo do outro; um medo que, paradoxalmente, nos empurra para o
enfrentamento em vez de unir nos para ter menos medo. O reino do mercado é
antes de tudo a vitória do medo.

DISSOCIEDADE HIPERSOCIEDADE E SOCIEDADE DE PROGRESSO HUMANO8


Assim, o mundo, como ele vai, bajula o egoísmo e a combatividade, o
risco e a rivalidade, adora a velocidade e a urgência, recompensa o rendimento e a
mobilidade, honra a corrida e a competição... Ao mesmo tempo, esta simples lista
dá, as vezes, nojo! Cada dia, em casa, na rua ou no trabalho, outras sensações,
sentimentos e aspirações dão o gosto de existir. Apesar do pretenso reinado da
troca comercial, sabemos que trocamos muitas vezes para trocar e falamos para
falar. Nossa conversas mais vazias e as mais freqüentes falam dos nossos vínculos,
mantêm e delimitam nossas relações. A privação de um bem é sempre menos
dolorosa do que a ruptura de um vinculo, e a perda dos bens que nos deixam sem
consolo é dos que lembravam um ser caro.

“SER SI MESMO” E “SER COM”


É qualidade dos vínculos que traz a felicidade mais do que a quantidade
dos bens. Precisamos de amizade, não de produtividade: necessidade de atenção
não de tensão.

8
Ibid. capítulo 4
20

Nas democracias contemporâneas, existe uma dupla propriedade: o


sistema econômico e social não pode ser imposto pela força; por outro lado, os
novos modos de produção flexíveis e descentralizados requerem uma cooperação e
uma implicação voluntárias do maior número. Essa constatação não exclui as
relações de forças favoráveis ao capital a às oligarquias, mas a explicação pela
submissão ao modelo pela simples dominação é insuficiente. Nenhuma dominação
nunca impediu os homens e as mulheres de combater e de morrer pelas próprias
idéias e a Historia mostra o quanto a energia desprendida nessa luta não é
proporcional às chances de sucesso mas a injustiça percebida. O poder do mais
forte não explica, portanto, tudo na submissão ou a revolta do mais fraco: os
sentimentos desse são também fundamentais. Se os malfeitos do capitalismo
contemporâneo fossem radicalmente insuportáveis para a imensa maioria de nos,
eles não seriam suportados e a revolta o derrubaria. Quando a submissão é mais
forte do que a revolta, é preciso supor a existência de arranjos internos onde as
satisfações que tiramos do presente contrabalançam os efeitos negativos da nossa
servidão. Portanto, sem negligenciar o papel das relações de força, é preciso
considerar o que, no modelo neoliberal, suscita uma submissão ou uma sedução
mais do que uma repulsão. A sociedade de mercado e de competição generalizada
só pode instalar-se na medida em que ela repousa sobre finalidades e valores
compartilhados pela maior parte e que suscitam uma adesão suficiente para
compensar, de um modo ou do outro, uma tendência à desafeição. Portanto, se
existir uma contradição entre nossos valores de solidariedade e os princípios de
rivalidade, entre nosso desejo de viver em paz e as exigências da guerra econômica,
não é por causa de uma contradição entre nos e a sociedade, mas por causa de
uma fratura intima, uma tensão interna entre as aspirações contraditórias que
modelam nosso ser. Nossos valores e nossas aspirações são ambivalentes e as
vezes contraditórias.
A natureza humana é feita pela interação continua entre uma aspiração à
autonomia e uma aspiração à associação, entre uma pulsão de auto-satisfação e o
desejo de fazer sociedade, o desejo de libertação e o desejo de socialização, o
desejo de “ser si mesmo” e o desejo de ser com”. O ser humano é social por
essência, por nascimento e não por construção intelectual e política; é constituído
pelos seus vínculos com os outros e o grande negocio da vida dele, o que comanda
todos os outros, é de conciliar seus vínculos e sua liberdade, de saber como ser si
21

mesmo e com os outros, para si e para os outros, como existir neles sem se
dissolver neles. Frente a essas duas beiras da vida, estamos em tensão perman,
iente, buscamos o equilíbrio e o compromisso necessário, necessário porque não
somos nada sem os outros, mas não existimos se os outros são tudo para nós.
A capacidade de cada um de achar o caminho de uma sinergia positiva
entre suas duas aspirações a vínculos e à liberdade é afetada pela historia singular
de suas relações pessoais. Mas essa historia singular não acontece num laboratório
isolado do resto do mundo. Ela acontece no contexto de uma sociedade com suas
instituições, suas regras, suas políticas publicas, sua cultura e esse contexto social e
cultural afeta diretamente ou indiretamente a elaboração do compromisso pessoal
entre ser si mesmo e ser com os outros. A sociedade pode ajudar cada um a viver
em ser plenamente humano, quer dizer inteiro como um “eu social”, livre e vinculado,
crescendo e andando sobre suas duas pernas que autorizam o bom funcionamento
do ser. Pode também contrariar esse crescimento equilibrado e levar os indivíduos a
cambalear numa perna só: tudo social privado de si mesmo, tudo a si mesmo
privado dos outros. Tratamento desumano que nos coloca no encalço do que
constitui ou não uma sociedade verdadeiramente humana.

A SOCIEDADE DE PROGRESSO HUMANO


No uso comum, “humano” não serve simplesmente para nomear ou
distinguir nossa espécie; serve também para qualificar a vida que conduzimos ou
nossos comportamentos. Assim, um humano (membro da espécie) pode ser julgado
desumano (problema de comportamento). Assim, do mesmo modo, uma sociedade
pode ser julgada desumana. Nesse sentido, a questão de saber se uma sociedade
humana é “verdadeiramente humana” não é trivial: ela poderia ser desumana,
impedir os seres humanos de viver uma vida plenamente humana, encorajar
comportamentos (humilhações, torturas etc.) que julgamos desumanos. Portanto,
pressentimos que a questão de saber o que é próprio do homem em relação às
outras espécies, não se confunde com a questão de saber o que constitui uma vida
humana no seio da espécie humana. Não basta ser um humano para ter uma vida
plenamente humana (que atinge nossas aspirações) enquanto basta ser um macaco
para ter uma vida de macaco. Podemos portanto chamar “sociedade de progresso
humano” uma sociedade que favorece o desabrochar de uma vida plenamente
humana, no sentido do que podemos definir como segue.
22

1. Uma vida plenamente humana consiste na realização de um


equilíbrio pessoal entre duas faces do nosso desejo de ser: a
aspiração a “ser si mesmo” e a aspiração a “ser com”. Equilíbrio
não significa um justo meio. Significa um estado de integridade e
saúde mentais, que pressupõe uma confiança em si e nos outros,
uma capacidade de ser si mesmo independentemente dos outros,
mesclada com a convicção que a relação com os outros
permanece uma fonte inesgotável de enriquecimento do ser,
apesar dos problemas de vida encontrados.
2. uma sociedade de progresso humano tende para uma situação
onde cada pessoa dispõe de uma igual capacidade de levar uma
vida plenamente humana, quer dizer conciliar livremente suas duas
aspirações fundamentais. O progresso humano não é um estado
ultimo do mundo, não é uma historia que termina bem, mas uma
historia que continua bem. A sociedade não é um estado
congelado do mundo, mas sim uma interação permanente entre
pessoas que a compõem, num contexto histórico e num ambiente
natural movediços. A questão nunca é saber como uma sociedade
é mas o que ela se torna. Ela está engajada no caminho do
progresso humano ou da regressão em direção de uma sociedade
desumana? Uma vez na estrada, boa ou má, a sociedade tenda a
avançar. As boas ou más intenções acabam sendo auto-
realizadoras. Uma sociedade de competição generalizada encoraja
os indivíduos ao egoísmo e à rivalidade. Interessa menos saber
onde estamos do que saber para onde vamos. O objetivo é o
caminho. Não é a chegada para algum destino que salva a
sociedade: é a mudança de direção. Por isso que “livremente”
significa escapar à dominação de alguns que, em razão de um
poder, estariam em condição de impor sua concepção da vida em
sociedade e poderiam assim, tornando mais pesado o fardo de
obrigações pesando em cima dos outros, aliviar sua própria
dependência do ambiente que constitui a comum condição
humana.
23

3. uma sociedade de regressão desumana trava a busca do equilíbrio


pessoal por um processo político deliberado visando a reprimir as
duas grandes aspirações. Existem três tipos de regressão humana:
a hipersociedade, a dissociedade e o regime totalitário.
4. a “hipersociedade” é uma sociedade que hipertrofia o “ser com” (a
dimensão da existência e os laços coletivos), ao ponto de reprimir e
mutilar o “ser si mesmo” (a aspiração à realização pessoal). O
arquétipo da hipersociedade é um sistema coletivista ou comunista.
5. a “dissociedade” é uma sociedade que reprime ou mutila ou desejo
de “ser com” para impor o domínio de “ser si mesmo”. O arquétipo
da dissociedade é a sociedade de mercado neoliberal fundada
sobre a extensão máxima da livre competição a todas as atividades
humanas. É a ela que vão os desenvolvimentos seguintes.
Para ser exaustivo, é preciso evocar a terceira forma possível de
regressão humana, sua forma extrema: a de uma sociedade que tende para o
aniquilamento simultâneo das duas aspirações “ontogenéticas9”, que proíbe tanto de
“ser si mesmo” quanto de “ser com”. O regime totalitário tolera nem a autonomia
pessoal nem os laços sociais. O totalitarismo tende na realidade a abolir
simultaneamente o individuo e a sociedade. A dominação total tolera nem a
sobrevivência de nenhuma forma de solidariedade coletiva nem a sobrevivência de
nenhuma atividade privada. Ele despreza a idéia de pessoa humana, porque o se
chama assim tem por vocação de se dissolver numa única pessoa total: um novo
gênero humano chamado a cumprir a lei da natureza (nazismo) ou a lei da historia
(stalinismo).

O QUE É A DISSOCIEDADE?
Primeira proposição: a ideologia e as políticas neoliberais tendem a
dissociar as duas aspirações ontogenéticas e a inflar a primeira (ser si mesmo e
para si) ao ponto que ela sufoca a segunda (ser com e para os outros). É um
processo de dissociação pessoal.
Segunda proposição: ao mesmo tempo causa e conseqüência,
instrumento e finalidade da dissociação pessoal, a dissociedade é o processo de

9
Neologismo do próprio autor.
24

organização do espaço, das instituições e das relações que decompõe uma


sociedade humana, de um lado isolando e opondo as comunidades ou categorias
sociais relativamente homogêneas e, por outro lado, instalando e exacerbando a
rivalidade entre indivíduos compondo essas comunidades ou categorias sociais.
A dissociedade é ao mesmo tempo causa e conseqüência da dissociação
pessoal. A guerra econômica faz as pessoas levantarem umas contra as outras e
acaba convencendo os cidadãos outrora solidários a comportar-se como guerreiros
solitários. Isso acaba dissuadindo qualquer um de buscar a conciliar o desejo de ser
si mesmo com o desejo de ser com. A dissociedade maximiza as chances de
sobrevivência e de sucesso e as oportunidades para os que aceitam de mutilar seu
ser social e só se preocupam consigo mesmo, contra os outros se for necessário. É
cada vez mais necessário na medida em que a competição endurece e penetra os
espaços outrora regidos por outras lógicas. O herói desse tipo de sociedade, seu
produto mais acabado, é o homem perfeitamente dissociado que consegue a viver
na alegria seu luto do desejo de “ser com” e se compraz no único (e para sempre
insaciável) desejo de “ser si mesmo”.
A dissociedade é ao mesmo tempo conseqüência da dissociação pessoal,
porque mais os seres humanos aderem a uma cultura individualista, mais eles
apóiam politicamente e colocam em aplicação os princípios de uma dissociedade de
mercado. Quando o desejo de “ser com” é mutilado e sufocado pela obsessão de si,
o individuo tem dificuldade em viver no meio de uma grande sociedade mestiçada e
solidária: para ele a promiscuidade das diferenças é fonte de angustia, cada um é
único responsável para si e ninguém deve nada para ninguém, ninguém tem outro
direito a não ser proteger-se e lutar contra os outros. Assim, os seres dissociados
não suportam verdadeiramente a vida em sociedade – o viver juntos – a não ser com
pessoais semelhantes a eles mesmos. No ideal do individualista dissociado, viver
somente com outros si mesmos preserva ao mesmo tempo dos outros e da solidão,
permite de viver, na realidade, somente consigo mesmo, mas rodeado de sósias
que, numa mutua contemplação, confirmam uns aos outros a realidade e a
adequação de sua existência. Vivamos juntos para permanecer entre si!
Contudo, uma sociedade fundada na rivalidade e no hiper-individualismo
acaba, as vezes, por dissolver os vínculos até nos últimos refúgios íntimos da
sociabilidade: a família pode virar uma dissociedade em miniatura, o bando pode ser
uma escola do ódio mais do que o último refugio do amor. Então, eventualmente, a
25

rivalidade e a indiferença estão por toda parte, e a fraternidade em lugar nenhum: a


verdadeira pessoa capaz de me amar por mi mesmo, sou eu mesmo! Depois do
fechamento sobre a comunidade, sobre a família ou a tribo, vem o fechamento sobre
si mesmo.
A dissociedade aparece assim como uma força centrifuga que isola e
decompõe em elementos cada vez mais restritos o que constituía o todo
indissociável de uma sociedade humana.

O ESPIRAL VIRTUOSO OU VICIOSO DAS INTERAÇÕES SOCIAIS


Podemos fazer da dissociedade duas leituras opostas, seja individualista,
seja holística. No primeiro caso, se consideraria que a busca pela autonomia e o
egocentrismo do individuo (sua dissociação pessoal) geram a explosão da
sociedade em dissociedade. No segundo caso, se tornaria a evolução do sistema
em direção para a dissociedade responsável pelo individualismo.
Quando se diz que a dissociedade é ao mesmo tempo causa e
conseqüência da dissociação pessoal, recusa-se essas duas leituras. A
dissociedade é um processo de interação dinâmica entre o sistema social ou cultural
e os indivíduos. Uma sociedade individualista favorece a tendência narcisista e
autonomista dos indivíduos, mas ela não a inventa. Essa tendência preexistente
facilita e reforça o desabrochar de um sistema fundado sobre a rivalidade e a
performance individual, mas não basta para gerá-la. Nossa aspiração para a
autonomia pessoal pode entrar em sinergia positiva com nosso desejo de fazer
sociedade e que ela nos influenciaria para construir uma sociedade baseada na
cooperação e a solidariedade.
Assim, a dissociedade assim como a sociedade de progresso humano
não é um estado fixo do mundo, mas um processo dinâmico; é uma sinergia
perversa entre os atores individuais e o sistema social. Face a esse processo, a
pergunta pertinente não é saber quem começou, dos indivíduos ou da sociedade,
porque forçosamente eles começaram juntos! Um movimento social qualquer não
deixa de ser a ação de um conjunto de pessoas, mas cada ação pessoal é
indissociável do contexto social onde ela se exerce. Não somos confrontados a uma
cadeia causal mas a um círculo causal onde cada elemento é ao mesmo tempo
causa e efeito de todos os outros. Descrevemos processos dinâmicos de interação
social onde tudo é ao mesmo tempo causa e efeito, onde o papel determinante dos
26

atores compatível com o papel determinante do contexto social de sua ação. Trata-
se de um processo de co-determinação dos atores e do sistema. A imagem de
espiral é melhor do que a de círculo.
Os indivíduos mudam a sociedade tanto quanto a sociedade os muda e
reciprocamente. Não só os dois agem um sobre o outro ao mesmo tempo, mas os
dois são indissociáveis. O individuo não existe fora de uma interação com os outros.
O ser humano é sociável na sua própria constituição. A interação entre indivíduos
produz instituições, regras, modos de vida, de produção, de pensamento e de
expressão, uma cultura; numa palavra, ela constitui um “sistema social” que pode,
depôs ser estudado e considerado como uma entidade que não se confunde com o
individuo. Mas o que entendemos por “sociedade” não é esse sistema. O sistema
social é o resultado visível, o conjunto de manifestações que nos permitem
caracterizar a sociedade. Por “sociedade”, todavia, o senso comum designa um
conjunto de seres humanos que vivem juntos no quadro de um mesmo sistema
social. O termo “sociedade” não designa, portanto, uma entidade que estaria ao lado
ou separada dos indivíduos; ele designa o processo mesmo de vida comum pelo
qual os indivíduos geram o sistema e são condicionados por ele.
O que chamamos “sociedade” é o processo vivo de interação entre os
indivíduos e o sistema que eles constituem juntos. Portanto, a questão de saber que
tem o papel determinante, a sociedade ou o individuo, não tem sentido. A única
reflexão pertinente consiste em identificar as circunstancias que geram uma
reorientação decisiva da sinergia complexa indivíduos/sociedade no sentido de uma
sociedade desumana ou no de uma sociedade de progresso humano. Todavia,
embora os atores e o sistema social agem ao mesmo tempo um sobre o outro,
precisamos falar de um após o outro, de descrever o que a sociedade faz para o
individuo e o que o individuo faz para a sociedade até o momento em que esse vai e
vem mostra que esses dois tempos do discurso são uma coisa só na vida real.

BUSCANDO OS PILARES FUNDADORES DO EDIFÍCIO NEOLIBERAL10


Todo sistema social e todo discurso político repousa, pelo menos
implicitamente, sobre uma antropologia, quer dizer, no sentido mais amplo, sobre
uma teoria do ser humano. Ignorar esse fundamento antropológico, é expor-se a

10
Ibid. capítulo 5
27

suportar como uma fatalidade o advento de uma sociedade desumana, quando se


trata simplesmente da aplicação de uma teoria errônea.
Ora, precisamente, nossa pouca atenção para o que sabemos sobre a
natureza humana tem uma conseqüência funesta: o mundo presente está cada vez
menos regido pelos princípios que guiam nossas vidas ou pela nossa concepção
usual das relações esperadas com os outros. Mas por que os princípios governando
o mundo, a economia, a política, as relações entre nações deveriam ser tão
diferentes daqueles que governam nossa vida pessoal? Se a solidariedade é melhor
do que a competição nas nossas relações intimas, por que a extensão da
competição deveria constituir a pedra angular da nossa sociedade?
Na dissociedade, a união só faz a força de um grupo somente para a
competição com outros grupos. A união nunca realiza a harmonia e a coesão de uns
com os outros – entre “nos” e “eles” – ela autoriza simplesmente a coalizão dos
semelhantes para combater os dessemelhantes (“nos” contra “eles”), a fusão de uns
em vista da luta contra outros. Contudo, nas nossas relações cotidianas, sabemos
que é com os estrangeiros, os dessemelhantes, os verdadeiramente “outros” que a
cooperação, a educação e a busca de compromissos solidários são mais úteis e
mais necessários. A solidariedade, a cooperação e a preferência para relações
pacificas não são práticas excepcionais: elas constituem a realidade cotidiana de
todos os seres humanos. Assim, quem diz que “o que nos sentimos (como todos os
seres humanos) não é generalizável” apóia-se, insidiosamente, sobre a intuição
razoável que uma prática singular não é universal para convencer que uma prática
singular é universal! Assim, embora a maioria dos habitantes do planeta vivem
segundo os mesmos princípios fundamentais, alguém quer que acreditemos que
esses princípios são excepcionais, extraordinários, não generalizáveis enquanto eles
constituem a generalidade! Por que seriam somente generalizáveis as disposições
individualistas e não a empatia, a simpatia, a compaixão e a solidariedade que cada
dias as temperam?

POR QUE NÃO ELUDIR O DEBATE ANTROPOLÓGICO?


A orientação de todo discurso político depende de respostas a algumas
perguntas elementares: qual é o motor da ação humana? O que motiva as
escolhas? Os pensamentos, os desejos, as escolhas do individuo são dependentes
ou independentes do que pensam ou fazem os outros? Por que os humanos
28

constituem sociedades? Qual é a finalidade da sociedade? Qual é a relação entre


sociedade e individuo: independência, dependência, interação? As respostas a
essas perguntas põem os alicerces antropológicos a toda analise das sociedades
humanas e, portanto, a toda teoria política, econômica ou social. Essas questões
concernem o que constitui a natureza mesma do ser humano e de uma sociedade;
são “básicas” no sentido estrito da palavra: são a base sobre a qual repousa o modo
de abordar todos os outros debates da sociedade. Contudo, o debate público as
ignora quase sempre. Sem a revelação desses alicerces, não sabemos ao que
aderimos e a qual concepção do homem damos apoio através do voto, das opiniões
que defendemos e da cultura que ajudamos a transmitir.
Quando aderimos, por exemplo, à sociedade de mercado porque
“funciona”, isso significa uma tomada de posição filosófica sobre a hierarquia das
finalidades sociais, o que supõe também uma idéia sobre o que constitui uma boa
vida humana e, portanto, antes disso sobre o que consiste o fato de ser humano. Por
isso, antes de dizer “funciona”, é preciso saber de onde isso vem e para onde vai e
verificar até que ponto nos sentimos confortáveis em relação a tudo isso.
Acreditando na eficácia superior de uma sociedade que estende cada vez
mais a livre competição e o papel dos mercados, é preciso buscar alguns dos
pressupostos necessários para validar a crença.
Por “eficácia superior”, entende-se o fato que o modelo neoliberal
maximiza a “produção de riquezas”, e, por “riquezas”, entende-se os bens e serviços
mercantes frutos de uma mobilização racional do trabalho e do capital dos
empreendedores. Essa concepção da eficácia não é universal. Sociedades
primitivas perduraram até nossos dias sem nunca ressentir a necessidade de
desenvolver a produção material além do que é necessário para a vida biológica.
Essa concepção de sociedade eficaz não é universal: ela caracteriza uma cultura
recente na historia do Ocidente e sempre minoritária na humanidade de hoje.
Admitamos que uma sociedade eficaz seja a que explora do melhor modo
possível todos os recursos do planeta para maximizar o consumo de bens e
serviços. É preciso porém reconhecer que a livre concorrência reserva essa fartura
para uma minoria no planeta e que, mesmo nos paises ricos, ela exclui do festim
uma parte não pequena da população. Mas, num sistema de livre concorrência, todo
mundo pode tentar a chance e conseguir vencer pelo próprio esforço; cada um é,
portanto, responsável pela própria sorte e a concorrência obriga precisamente cada
29

um a se assumir. É o principio da “responsabilidade individual”: a sociedade não


pode fazer nada para a sorte dos humanos. Isso supõe aceitar algumas hipóteses
muito precisas em relação à natureza humana. Um individuo é o único responsável
do que ele faz se ele for livre de toda determinação exterior pela educação, pela
cultura, pelas convenções, pelos vínculos afetivos, sua posição social, em breve se
ele constituir um centro de decisão perfeitamente autônomo.
Surge uma outra pergunta: por que os indivíduos autônomos e
responsáveis desejando maximizar seu consume devem despender suas energias e
seus recursos na competição de uns contra os outros? Não deveriam eles
concentrar seus esforços unicamente na produção, limitando a competição e
desenvolvendo a cooperação solidária em vista do bem comum? Aí viria uma nova
hipótese sobre a natureza humana: a cooperação solidária é problemática e
necessariamente limitada porque os indivíduos são egoístas e naturalmente
inclinados para a competição para obter mais do que os outros. A competição
mercante é um mal menor em relação à “lei da selva” e o mercado ajuda a viver
juntos canalizando a violência potencial de toda relação humana.
Daí viria a seguinte proposta: se os neoliberais crêem na superioridade do
mercado de livre concorrência, é porque eles supõem que cada individuo é motivado
unicamente pelo seu interesse próprio. É a motivação egoísta que torna o
trabalhador e o empreendedor particularmente produtivos, num sistema em que
cada um pode apropriar-se uma vantagem ligada a sua performance. Se os
indivíduos fossem mais interessados pelo resultado coletivo ou pelo bem estar dos
outros do que por eles mesmos, a livre concorrência seria inútil e nociva. Inútil
porque se obteria a produtividade ótima dos indivíduos sem colocá-los em
competição máxima: um sistema de cooperação coletiva bem organizada seria
eficaz. Nociva porque a competição tem um custo (despesas de publicidade, tempo,
estresse, investimentos múltiplos e redundantes dos competidores para conquistar
as mesmas fatias do mercado); consequentemente a concorrência reduz inutilmente
o bem estar coletivo desde o momento em que a performance produtiva equivalente
ou superior é acessível pela adoção de um sistema cooperativo que limita a
concorrência. Admite-se portanto que a superioridade da livre concorrência está
ligado ao postulado do egoísmo e desvanece se esse postulado não se mantiver
mais.
30

Ora não se pode negar a existência evidente de comportamentos


altruístas, nem que seja olhando para nossa experiência cotidiana. Se os indivíduos
forem capazes de altruísmo e se souberem que a cooperação dos altruístas é
frequentemente mais eficaz do que a rivalidade dos egoístas, deveriam decidir ser
altruístas e fundar um sistema social combinando competição moderada e
cooperação organizada. Admitir o altruísmo conduz logicamente a recomendar a
abandono ou, pelo menos, um recuo substancial do principio liberal de livre
concorrência.
Os neoliberais preferem uma outra linha de defesa, que consiste em
negar a existência de um altruísmo autentico. Segundo eles, o que denominamos
“altruísmo” é na realidade o efeito da racionalidade dos indivíduos egoístas: nosso
interesse bem entendido incita nos à cooperação solidária mais do que à rivalidade
solitária, cada vez que a primeira nos oferece uma vantagem superior ao que seria
proporcionado pela segunda. O “altruísta interessado” é um egoísta: só pode cuidar
do bem dos outros enquanto instrumento do seu próprio bem, nunca enquanto
objetivo. Opta pela solidariedade coletiva unicamente nas situações onde é fácil
concluir um acordo de cooperação mutuamente vantajoso e controlar sua aplicação
pelos outros. Isso restringe o campo de cooperação para as relações sociais de
pequeno numero onde cada um pode vigiar o outro. Fora desse campo, os
comportamentos são dominados pela rivalidade natural e é, então, racional para
cada um comportar-se como um competidor implacável. Os neoliberais só podem
sustentar seu modelo de competição generalizada negando a existência de
comportamentos realmente altruístas.
Essa tese do “altruísmo interessado” (ou do egoísmo disfarçado) levanta
notadamente duas dificuldades lógicas (sem falar do debate ético e filosófico):
1. postular um egoísmo irredutível não basta para justificar a extensão
máxima da livre concorrência. De fato, se os indivíduos são
racionais, sabem que a cooperação solidária é frequentemente
mais eficaz do que a competição solitária. Seu interesse bem
entendido os incita a estender as possibilidades de recurso à
cooperação em detrimento da competição. Quando a cooperação
não pode ser garantida pela pressão social de um pequeno grupo
onde cada um vigia o vizinho, ela não pode sê-lo pelas instituições
e a lei. Para salvar o modelo neoliberal, hipóteses suplementares
31

são necessárias: é preciso, por exemplo, pressupor que a


cooperação é quase nunca virtuosa porque os indivíduos têm uma
aversão natural para a associação pacifica com os outros
indivíduos. Ou deve se postular que a cooperação instaurada pela
lei não é sustentável: os indivíduos só respeitam as leis sob o jugo
de um Estado tão repressivo e assustador que é preciso pagar as
virtudes da cooperação ao preço da desaparição das liberdades.
Tudo isso supõe uma concepção do ser humano sombria: todo
individuo não somente é estritamente egoísta, mas também
violento e predador, pronto a tudo para aumentar seu prazer as
custas dos outros.
2. outrossim, se a tese do altruísmo interessado for aceita, admite-se
que os indivíduos decidem ser solidários e rivais em função do
contexto social. Mas daí não se escapa de uma outra pergunta: o
mercado livre impõe se como o melhor sistema porque os
indivíduos são egoístas, ou é porque eles são mergulhados num
contexto de livre competição que os indivíduos racionais devem
comportar-se em seres egoístas? Onde está a causa? Onde está o
efeito?
Se o contexto social (livre competição ou cooperação coletiva) determina
a opção do individuo para a rivalidade ou a solidariedade, uma sociedade que
estende deliberadamente os contextos de cooperação no detrimento dos contextos
de livre competição conduz os indivíduos a comportar-se cada vez mais como
altruístas interessados. Essa mutação dos comportamentos torna a cooperação
solidária cada vez mais eficaz e cada vez mais desejada e sustentada politicamente
por cidadãos racionais. Portanto, a preferência por competição generalizada não é
concebível a menos que se coloque uma hipótese suplementar: o comportamento
dos indivíduos não é em nada determinado pelo contexto social no qual eles vivem;
os indivíduos são egoístas por natureza, e nem a educação nem a transformação da
sociedade podem afetar essa natureza. Essa hipótese precisa de um postulado
prévio, já necessário para estabelecer a responsabilidade individual: a personalidade
definitiva de cada individuo lhe é dada desde sua concepção biológica (pela
natureza ou por Deus) e é isenta de toda determinação exterior; permanece
32

imutável, alojada num lugar que a preserva da historia singular do corpo que, por
sua vez, sofre a mudança biológica e evolui num espaço de relações sociais.
Contrariamente ao que pretendem seus gurus, o neoliberalismo não é a
operacionalização do que “funciona”, sem preconceitos ideológicos; é a
operacionalização de uma teoria muito peculiar de homem e de sua relação com os
outros. Se não se compartilhe essa concepção do homem, ou se ela for falsa, deve
se rejeitar o sistema social que lhe é ligado. Se admitirmos, por exemplo, que nos
cuidamos realmente dos outros, nossa personalidade é afetada pelo contexto de
nossa existência, aceitamos de bom grado as leis que nos permitem viver melhor
juntos, então o modelo da livre concorrência desaba e deve se reconhecer a
necessidade de moderar a competição e de estender a lógica da cooperação
solidária o mais possível.
Falta agora só perceber que na gênese das idéias modernas, o
neoliberalismo partilha com o marxismo 90% de seu patrimônio genético; é um erro
antropológico comum a essas duas ideologias que conduz a primeira em direção da
dissociedade individualista e a segunda em direção da hipersociedade coletivista.

PENSANDO NUMA ARQUEOLOGIA DO DISCURSO POLÍTICO


Podemos descobrir hipóteses e discursos escondidos e postos por outros
durante a historia do pensamento moderno, historia na qual o neoliberalismo
encontra suas fontes, mesmo se ele nem sempre confessa isso ou se ele ignora
essas fontes.
O neoliberalismo é, principalmente, uma variante contemporânea do ultra
liberalismo, um das correntes que brotou do liberalismo clássico do século XVIII que,
por sua vez, encontra suas raízes no século XVII, quando emerge um pensamento
“moderno”, fundado na razão e emancipado da “crença”. O neoliberalismo tem
raízes intelectuais comuns com o marxismo, o socialismo e o anarquismo que, no
século XIX, opõem se, certo, à corrente liberal, mas encontram sua fonte primeira na
filosofia liberal clássica do século XVIII e, através ela, numa nova concepção da
natureza humana que se afirma no século XVII, notadamente com Descartes,
Hobbes ou Locke. Ora essa nova concepção prefigura os alicerces antropológicos
característicos da modernidade: o individuo racional, livre e autônomo no “estado de
natureza”, que teria depois constituído sociedades utilitárias e aceito leis comuns
para conter a rivalidade e a violência inerentes ao reino da liberdade natural.
33

É nesse século XVII que se impõe a idéia de que o direito e a política


devem ser fundadas não sobre a ordem inscrita por Deus no universo, mas sobre
uma reconstituição racional do que é o “estado natural” dos humanos antes do
advento de uma sociedade política e das razões que os conduzem a constituir tal
sociedade. Fazendo isso, a filosofia do século XVII coloca as primeiras bases
antropológicas do pensamento político moderno. Mas é uma “pré-antropologia”:
antes da emergência de uma verdadeira ciência do humano, três séculos antes da
descoberta dos primeiros australopitecos, a paleo-antropologia, a genética, a
psicologia, a neurobiologia, a sociologia etc.. não existiam. É portanto uma
antropologia especulativa - suposta dedutível só pelo raciocínio - o que não é nada
surpreendente numa época em que Descartes acredita demonstrar a existência de
Deus pela lógica. A maioria dos autores que escreve sobre o “estado de natureza”
não dissimulam que se trata de uma construção mental, de um modelo teórico, e não
de uma descrição histórica do que foi a vida real dos primeiros humanos. Assim de
Hobbes (1640) até Rousseau (1761)11, uma sucessão de filósofos vai fundar nossa
concepção moderna da natureza humana sobre crenças racionais, levando em
consideração que o que eles poderiam saber sobre isso é quase nada. O que
significa que no momento em que as ciências humanas e sociais começam a se
desenvolver, a partir de meados do século XIX, existe uma concepção puramente
especulativa do ser humano que constitui a cultura inconsciente e não discutida pela
maioria, inclusive dos primeiros pesquisadores da novas ciências. Esses últimos,
preocupados em “fazer ciência” e de se desmarcar de toda filosofia como de toda
metafísica, reproduzem a caminhada dos seus ilustres predecessores filósofos:
aplicar ao estudo das ações e das sociedades humanas o quadro de raciocínio e os
métodos prevalecendo nas únicas ciências dignas desse nome: a física e a
matemática.
Assim, a nova “ciência” econômica e a sociologia nascendo no fim do
século XIX renunciaram a interrogar-se sobre a natureza do seu material animal (o
ser humano) e sobre as diferenças entre esse último e o material inanimado da
física. No lugar disso, eles postularam sem hesitar que a sociedade devia ser
estudada como um conjunto de “átomos” independentes (os indivíduos) regidos por
“forças” mecânicas, chocando ou associando-se para produzir um estado de

11
As referencias são “O cidadão” de Hobbes e “Do contrato social” de Rousseau
34

“equilíbrio”, ou não, segundo leis estáveis que as ciências sociais teriam por objeto
de descobrir. Esta é a concepção transmitida por Hobbes dois séculos antes.
As novas ciências sociais não só reproduziram os postulados
antropológicos do século XVII; elas os transmitiram para o século XX e os
imunizaram contra a critica colocando um termo ao debate do modo mais radical:
raciocinando como se o problema antropológico não existisse mais. Assim,
aceitando sem debate uma certa concepção do ser humano, a metodologia
dominante nas ciências sociais enfiou essa concepção num inconsciente coletivo.
Contrariamente a tudo que caracterizava todos os tratados políticos e filosóficos dos
séculos XVII, a discussão sobre a “natureza humana” desaparece quase da literatura
sobre as sociedades humanas! O problema já está resolvido!
É portanto o modo pelo qual a questão foi tratada na ignorância há três
séculos que modelou inconscientemente o modo de pensar do ser humano e as
sociedades até o fim do século XX, numa época onde o acúmulo das descobertas
cientificas começava a desvendar a verdadeira historia da nossa espécie, do nosso
cérebro, do nosso nascimento, dos nossos ancestrais etc. A especialização e a
profissionalização das ciências contribuíram para essa negligencia. As separações
entre as várias disciplinas limitou a capacidade dos economistas para integrar os
desenvolvimentos da antropologia, como a dos sociólogos a levar em conta os
progressos da neurobiologia. A competição entre os pesquisadores de uma mesma
disciplina os incitou a uma hiper-especialização, fonte de excelência num campo de
conhecimento, em vez de pensar numa cultura geral. A competição entre as ciências
humanas e sociais favoreceu a pretensão estéril de cada uma tentar impor-se como
a ciência da homem fundamental, em vez de cooperar numa dimensão
interdisciplinar suscetível de constituir uma ciência do homem, integrando vários
saberes. Assim, muitos pesquisadores desenvolvem com muito refinamento modelos
que repousam implicitamente sobre uma concepção não cientifica da natureza
humana, concepção que se acha a fortiori compartilhada pelo senso comum, porque
quase ninguém a debate.

OS FUNDAMENTOS DE CULTURA NEOLIBERAL E DA DISSOCIEDADE: A


NATUREZA HUMANA
O grande movimento de emancipação dos espíritos que caracteriza o
nascimento do pensamento ocidental moderno no século XVII gerou uma nova
35

concepção do ser humano: o “indivíduo autônomo”. Essa idéia nova é um dos


alicerces de todas as promessas da modernidade, da democracia ao progresso,
passando pelos direitos humanos. É também a fonte fundadora de onde se
alimentou a concepção neoliberal e mesquinha do ser humano: um autômato
egoísta e predador em competição permanente com os outros para consumir e
acumular os objetos do seu desejo. O erro dos modernos foi conceber a autonomia
como se a liberdade do individuo se construía fora de qualquer vinculo, ou contra
seus vínculos contra os outros. Se o modo de pensar de nossa sociedade persistir
nesse erro apesar dos conhecimentos novos que temos, isso prova que nossa
concepção do mundo repousa sobre algumas crença antigas e tão fortemente
sedimentadas e comumente admitidas que não existe a preocupação de confrontá-
las a um estado novo dos conhecimentos porque foram pura e simplesmente
esquecidas. É, portanto, importante entender como elas foram formadas e impostas.
É interessante ter uma reconstituição lógica das suas fundações teóricas.

PRIMEIRO PILAR: O SER HUMANO É UM “INDIVÍDUO” QUE EXISTE ANTES E


FORA DE QUALQUER RELAÇÃO COM O OUTRO

UMA CONCEPÇÃO METAFÍSICA DO SER

É uma concepção metafísica do ser que validamos quando dizemos de


recém nascido que ele “vem ao mundo”. Isso quer dizer que ele não vem do mundo!
Se “eu” venho ao mundo, é que esse “eu” existe antes e fora do mundo: ele pode
assim entrar. É igualmente a concepção que se esconde atrás da principal
denominação do ser humano no discurso moderno: “indivíduo”. No sentido mais
elementar e etimológico, esse termo designa o “indiviso”, o que não pode ser
dividido, o que significa a menor unidade independente concebível num dado
conjunto. O indiviso é a unidade elementar que constitui um todo em si mesma,
perfeitamente isolável das outras unidades e que desaparece se ela for atingida na
sua integridade. O indivíduo humano é considerado como devendo constituir essa
unidade elementar que “entra em relação” com os outros indivíduos na família, na
escola, na sociedade. Se pretendemos “entrar em relação”, é preciso que
preexistamos a qualquer vinculo social, ser já nos mesmos antes e fora de qualquer
relação: partículas elementares e indivisas que se encontram num espaço externo a
elas mesmas, denominado “relação”.
36

Essa concepção levanta uma dificuldade trivial: biologicamente, o


indivíduo no sentido estrito – a menor unidade humana concebível – não é um ser
humano mas três. Ninguém existe sem um pai e uma mãe para concebê-lo, e,
mesmo depois dos seus pais, cada ser continua em si a vida proveniente de células
oriundas deles e, através deles, de uma historia que chega até o nascimento do
universo, passando pela emergência das primeiras células vivas. Suprimindo o
primeiro elo, nessa historia necessária para a vida, ninguém existe. Pode se então
conceber um outro ser indiviso a não ser o universo inteiro? Colocado nesses
termos, o indivíduo é somente o menor componente físico observável de uma
comunidade humana.
Um corpo não vem ao mundo: vem necessariamente do mundo que existe
antes dele. Um corpo vem de outros corpos que lhe transmitem características
especificas. O corpo é influenciado por instintos, sensações, emoções que não
resultam de uma deliberação consciente do “indivíduo”.
O corpo sempre foi um problema para uma concepção do ser humano
que busca isolar uma vontade independente, autodeterminada. Daí a necessidade
de conceber um “eu” metafísico (a alma) distinto do corpo físico. Somente o corpo
vem do mundo e seria submetido a determinações às quais estão submetidos todos
os seres indissociáveis de uma ambiente material e social. Em compensação, o “eu”
vem ao mundo como um “sujeito” que possui um corpo, um objeto primeiro que ele
tem vocação de utilizar e controlar. Esse “sujeito”, contrariamente ao corpo que é
filho de seus pais, filho do mundo, é necessariamente filho de um Deus, quer dizer
de alguém que tem o poder de ser antes e fora do mundo, e pode acrescentar a
cada corpo que vem do mundo uma alma que vem ao mundo. Para ser si mesmo, é
preciso sair do eu material para colocar o eu espiritual em harmonia com a ordem
cósmica. O humano não é ainda o “indivíduo” que inventarão os modernos. Ele
precisa abstrair-se do que constitui sua individualidade (o corpo) para encontrar seu
verdadeiro lugar pela comunhão com a ordem cósmica.

O NASCIMENTO DO INDIVÍDUO “MODERNO”


Nos primeiros séculos de nossa era, a concepção do homem se impõe
aos poucos ao Ocidente. Ela se situa em grande parte na linha da visão platônica e
ancora a concepção metafísica de um homem que veio de fora: Adão é criado por
Deus, e o milagre da criação se repete com cada recém nascido que, embora
37

nascido da relação entre um homem e uma mulher, tem seu ser verdadeiro e imortal
diretamente de Deus. Com Santo Agostinho, a teologia cristã avança para a
concepção moderna do indivíduo porque ele o aconselha a olhar para si mesmo
porque a busca da verdade passa por uma busca interior.
Com Descartes, acontece a ruptura essencial que leva para a concepção
moderna do indivíduo: enquanto para Platão e Agostinho, o reinado da razão
consiste em reconhecer e aderir à ordem inscrita no cosmos, para ele essa ordem
não existe; é a razão do indivíduo que a constrói. Com essa negação de toda
verdade fora do “eu” pensante, perde se o lugar concreto da vida, o seu território, o
seu habitat: o mundo no qual vivemos com e graças aos outros. Assim, tem-se um
processo de exteriorização total: o indivíduo torna-se exterior ao mundo e ao próprio
corpo que ele pode considerar como simples objetos, simples instrumentos cujo
sentido e uso ele determina. O indivíduo é dissociado do seu corpo, dissociado do
mundo, seu ser fora do mundo não deve nada aos outros. Somente os corpos
humanos são ligados uns aos outros, mas os corpos são objetos instrumentalizados
por espíritos perfeitamente desligados ou “a-ligados”. Assim, nasce o indivíduo no
sentido estrito, quer dizer o átomo humano. Essa concepção atomística do ser
domina as premissas do pensamento moderno, seja ele metafísico ou materialista.
Ela nega qualquer papel ao vinculo social na constituição do ser.

SEGUNDO PILAR: A AÇÃO E O PENSAMENTO DO INDIVÍDUO SÃO


AUTODETERMINADOS
O pressuposto de um indivíduo definido fora do mundo e dos outros
permite considerar sua autodeterminação (ou independência) de dois modos. Uma
concepção metafísica do ser humano conduz a postular um indivíduo autônomo (que
escolhe as próprias regras); uma concepção materialista leva para a hipótese de um
individuo automotor (que decide as próprias ações).
A autonomia designa uma única liberdade: fixar para si mesmo a própria
nomia ou “regra” de conduta, de pensamento e de vida. A autonomia não concerne a
ação mas sim às normas que guiam o pensamento e a ação. Ela coloca um
problema de identificação porque nenhuma de suas manifestações visíveis autoriza
a inferi-la. O fato que alguém expressa ou cumpre o que ele quer sem sofrer o
mínimo constrangimento exterior não basta para estabelecer que ele age em nome
de uma norma interior independente de normas fixadas por qualquer tipo de
38

sociedade. Inversamente, alguém que é fisicamente impedido de exercitar sua


liberdade pode ser perfeitamente autônomo. O indivíduo autônomo, no sentido
estrito, constitui um centro de pensamento independente de tudo que não é ele, que
não segue nenhuma outra norma a não ser a que ele determina para si.

LIVRE ARBÍTRIO OU LIBERDADE DO CORPO


Essa concepção está muito ligada à metafísica cartesiana.
Contrariamente à razão platônica ou agostiniana que ordenava ao ser humano de
somente reconhecer a ordem preexistente no universo, a razão cartesiana convida o
ser humano a criar a própria verdade. Embora a razão permaneça um dom de Deus,
ela oferece ao individuo a capacidade de reconhecer Deus, não a obrigação. O dom
de Deus é em primeiro lugar o dom do livre arbítrio e da dignidade que implicam a
liberdade de negar a Deus. Não são simplesmente o corpo e o mundo que o “eu”
pensante pode utilizar a vontade como materiais exteriores a ele: são também as
idéias. As Luzes, seguindo John Locke, acabarão de construir a figura do eu
autônomo que não somente é “em si” mas também “por si”, quer dizer capaz de
decidir quem ele quer ser e de agir sobre si mesmo, sobre seus pensamentos, sobre
suas aspirações, breve, de criar a si mesmo. Essa concepção está muito ligada a
uma metafísica.
Todavia, os materialistas também alimentaram o culto moderno da
autonomia individual, mas por uma concepção especifica da liberdade que não pode
ser confundida com a autonomia no sentido estrito. Hobbes inspirou uma teoria
materialista da autodeterminação. Para ele, o ser humano é simplesmente um corpo
e, por conseqüência, a palavra “liberdade” não pode ser aplicada a outra coisa, a
não ser ao corpo. Contrariamente ao que implica a idéia de autonomia, não se pode
conceber nenhuma liberdade da vontade, do desejo ou da inclinação. No que pode,
então, consistir a única liberdade concebível, a do corpo? Enquanto corpo, o ser
humano é governado por uma lei de natureza segundo a qual cada um tem a
proibição de fazer o que destrói a própria vida ou que o priva dos meios de
conservá-la. Hobbes descreve um indivíduo comandado pelo instinto de
sobrevivência e pelo medo de ser morto pelos outros. Nesse contexto determinista, a
liberdade consiste simplesmente no fato de que o individuo não é materialmente
impedido o que a razão o manda fazer. Todas as ações humanas são de fato
necessárias, mas liberdade e necessidade são compatíveis. A liberdade do homem
39

é uma liberdade de circulação sem entraves, análoga à liberdade da água que corre
pelo canal, uma liberdade de movimento. No estado de natureza (na ausência de
lei), o indivíduo não é auto-nomo mas simplesmente auto-motor: é ele mesmo que
coloca seu corpo em movimento para a ação.
Todavia, embora diferentes, essas duas concepções da liberdade situam
o desencadeador de toda ação numa deliberação individual, solitária e
independente. É o ponto essencial para identificar os pilares lógicos do edifício
neoliberal.

O EQUILÍBRIO AUTOMÁTICO DOS MERCADOS SUPÕE INDIVÍDUOS INDIFERENTES UNS AOS

OUTROS

Se a demanda por um bem só depende de variáveis objetivas, pode-se


enunciar “leis” do comportamento do tipo: a demanda por carros é função
decrescente do seu preço, todas as outras variáveis permanecendo iguais. Como as
variáveis em questão são mensuráveis, pode se fazer testes estatísticos para
verificar “cientificamente” se a predição teórica do comportamento é verificada ou
não pelos fatos.
Reconsideremos agora a questão, no caso onde as escolhas e as
preferências dos indivíduos não são independentes uns dos outros, por exemplo a
compra do carro por status e comparação com os outros. No momento que intervêm
interações subjetivas que não se sabe medir nem introduzir nas equações de
demanda, somos incapazes de isolar seu efeito próprio. Então, não se sabe se o
efeito atribuído ao preço na equação de demanda é um efeito real ou se ele resulta
de todas as variáveis subjetivas ausentes da equação. É, por outro lado, difícil ou
impossível de atingir um equilíbrio de mercado pela livre discussão de um preço ou
pela livre troca de bens quando as preferências dos indivíduos são interdependentes
e que cada um se preocupa com o bem estar do outro. Querendo que um mercado
funcione bem, é melhor reunir indivíduos indiferentes uns aos outros.
A preocupação em desenvolver uma ciência dos mercados, matemática e
experimental como a física, levou os teóricos neoclássicos a eliminar do raciocínio
tudo que não podia entrar facilmente nas suas equações, começando pela
interdependência subjetiva das escolhas individuais. Esse modelo neoclássico
desenvolve-se no ultimo terço do século XIX e ele precisa do postulado da estrita
autodeterminação do comportamento individual através das seguintes hipóteses:
40

1. as “preferências” dos indivíduos são dados exógenos


2. as preferências são constantes porque nada, a não ser o próprio
indivíduo pode alterar as próprias preferências
3. as preferências de um indivíduo são independentes das dos outros.
A vinculação entre essa concepção neoclássica dos comportamentos e o
neoliberalismo contemporâneo é imediata. O modelo neoclássico pretende
demonstrar cientificamente a eficácia superior de mercados perfeitamente
concorrentes. Constitui, portanto, o fundamento cientifico da principal prescrição
política do neoliberalismo.

TERCEIRO PILAR: A RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DO INDIVÍDUO E A


DESIGUALDADE NATURAL
Um indivíduo autodeterminado é seguramente o único responsável do
que ele faz e do que ele é. Resulta de fato de sua independência que todo ato de um
indivíduo expressa unicamente sua vontade: ninguém a não ser ele mesmo pode ser
louvado ou incriminado em razão desse ato. O corolário indissociável dessa
responsabilidade exclusiva é a naturalização de toda desigualdade. Admitindo o
principio reconhecido por toda a filosofia de que todo indivíduo tem um valor igual, e,
portanto, um direito igual a exercer sua vontade, podemos definir a desigualdade
como uma diferença não querida pelo indivíduo, uma diferença imposta seja por uma
potência externa, seja pela natureza. Uma sociedade liberal, que exclui uma
restrição desigual da volição individual, só pode conhecer “desigualdades naturais”:
desigualdades de capacidades físicas e psíquicas no nascimento. A “desigualdade
social” não existe, a não ser como simples comodidade de linguagem para indicar
simples “diferenças” de renda, de poder, de acesso ao emprego, de condições de
trabalho, de moradia etc. Em resumo, se todo ato resulte necessariamente da livre
decisão de um indivíduo (que podia fazer diferente do que ele fez), as
conseqüências desse ato só podem ser imputadas ao indivíduo.
É uma concepção quase tautológica da liberdade que faz dessa palavra
um simples sinônimo de “ação”. Uma ação qualquer é livre por definição, porque sua
simples existência manifesta que ela não foi impedida. Segue disso uma concepção
absoluta da responsabilidade individual e da irresponsabilidade da sociedade em
relação ao indivíduo.
41

Para os neoclássicos, por definição, as pessoas fazem o que fazem


porque querem; senão, fariam outra coisa! Se, por exemplo, quisermos reduzir o
desemprego, é preciso pensar como afetar a incitação dos desempregados a
permanecer desempregados, como levar eles a decidir outra coisa. Essa concepção
particular da liberdade fundamenta a prescrições neoliberais em matéria de política
de emprego: se alguém for desempregado, é porque ele quer; a luta contra o
desemprego consiste a incitar os desempregados a buscar trabalho e aceitar os
empregos disponíveis, e, depois, a incitar os empregados a fazer de tudo para
conservar o emprego, quer dizer a aceitar todas as exigências dos empregadores,
sem o que eles seriam responsáveis pelo próprio desemprego. A idéia que os
desempregados seriam desempregados apesar deles mesmos não faz o mínimo
sentido para um economista neoliberal.
Esses três primeiros pilares ajudam a responder à pergunta “O que é um
ser humano?” na concepção neoliberal. A resposta é: o ser humano é um “indivíduo”
que existe antes de qualquer relação com o outro; é, portanto, perfeitamente
autodeterminado, independente dos outros, único dono dos próprios atos; é também,
por conseqüência, o único responsável pelos seus atos e da situação que disso
resulta.

QUARTO PILAR: O INDIVÍDUO É ESTRITAMENTE EGOÍSTA E RACIONAL


O indivíduo é estritamente egoísta: age sempre e unicamente em vista do
próprio bem estar, inclusive quando isso tem como efeito (mas não como finalidade)
de proporcionar algum bem ao outro. Outrossim, é um egoísta “racional”, quer dizer
que ele usa a razão para explorar do melhor modo possível todos os meios para
melhorar seu bem estar.
O postulado de autodeterminação (ou de independência) individual
implica que o bem estar de um indivíduo não é afetado pelo bem estar ou pelo mal
estar dos outros indivíduos. Isso implica notadamente a ausência de qualquer
interdependência da preferências associadas a sentimentos como o ciúme, a inveja,
a empatia, a compaixão, o amor, o ódio etc. Uma pessoa que vivencia todos esses
sentimentos não pode ser considerada como um centro de decisão separado e
independente dos outros. O que ela pensa e deseja depende de sua relação com os
outros, do que decidem os outros e do modo pelo qual eles reagirão às suas
decisões: ela seria somente parte interessada de um complexo processo de
42

interação, de co-decisão, de co-determinação (como os participantes de uma


ciranda), onde suas preferências são ao mesmo tempo determinadas por e
determinadas para as dos outros.
A racionalidade só não implica o egoísmo. O altruísta pode agir
racionalmente, quer dizer buscar os meios os mais eficazes para atingir seus
objetivos: o bem estar do outro. É unicamente a associação da racionalidade e da
independência que implica o egoísmo. Um indivíduo estritamente independente em
nada é afetado pelo outro; se for racional, ele só age por ele mesmo e para ele
mesmo: é egoísta. Se não tiver um comportamento egoísta, é ou porque ele perdeu
a razão, ou porque seu comportamento tem unicamente a aparência do altruísmo e
reflete em verdade seu “interesse bem entendido”.

A NEGAÇÃO DO ALTRUÍSMO AUTÊNTICO


A idéia de que o interesse pessoal é o motor exclusivo da ação humana é
tão velha como a filosofia (assim como sua contestação). Ela progride mais
especialmente a partir do século XVI, por causa do mercantilismo e da emergência
de um pensamento econômico independente da teologia e da moral; ela é
encontrada também no pensamento de Maquiavel. Hobbes a afirma com mais força:
“Não buscamos companheiros por algum instinto dado pela natureza; é por
causa da honra e da utilidade que eles nos trazem.(...) Se for para o comércio, o
interesse próprio é o fundamento dessa sociedade; e não é pelo prazer da
companhia que as pessoas se reúnem, mas sim para o progresso dos seus
negócios particulares.”12
Tal concepção, ontem como hoje, choca o senso comum que reconhece
como uma evidência a existência de motivações altruístas, por exemplo nas relações
amorosa e amigáveis. Muitos moralistas (por exemplo, La Rochefoucauld, Bernard
Mandeville) tentaram recusar essa objeção dizendo que podemos ser extremamente
benevolentes mas para tirar alguma vantagem. Mas por que toda cultura humana
desenvolve uma moral que reprova os comportamentos estritamente egoístas e
louva o altruísmo. Mandeville responde a isso na Fábua das abelhas em 1714.
Segundo ele, o interesse bem entendido que nos leva para comportamentos
aparentemente altruístas inclui o prazer que sentimos em admirar a nos mesmos e
ser admirados pelos outros. O orgulho sendo para Mandeville uma das

12
HOBBES, O cidadão, citado por GÉNÉREUX, Ibid p. 218, de quem reproduzo as passagens
sublinhadas
43

manifestações mais vivas de nosso amor próprio, ele pode justificar um dom de si
sem contrapartida material, mas que nos dá uma recompensa ainda maior: a
contemplação narcisista de si mesmo no olhar dos outros. Fazemos de conta que
somos bons para ser admiráveis e admirados. A moral é uma invenção genial e
cínica dos legisladores para obter barato a docilidade dos indivíduos ordinários: em
troca de seus esforços para temperar seus apetites e de preocupar-se do bem
comum, esses recebem somente a bajulação social, o reconhecimento puramente
convencional que eles são “pessoas de bem”. Os moralistas pouco ligavam para o
bem publico. Era no seu interesse, sempre segundo Mandeville, de “encorajar o
devotamento ao bem publico que lhes permitia de se beneficiar do fruto do trabalho
e da abnegação dos outros e, ao mesmo tempo, ser mais tranqüilos para entregar-
se ao seus apetites.”
O que impressiona, na teoria do egoísmo, é seu caráter absoluto. Não
pode existir no indivíduo outro sentimento a não ser o amor próprio e nenhuma outra
finalidade a não ser o interesse próprio.

TEORIA MINORITÁRIA DURANTE MUITO TEMPO


O liberalismo comporta duas grandes correntes a partir da segunda
metade do século XVIII: o utilitarismo (Hume, Smith, Bentham. Mill) e uma corrente
dos direitos humanos oriunda da filosofia do direito natural (Kant, Turgot, Paine,
Condorcet). A primeira dessas correntes vê na felicidade o bem supremo e
recomenda ao indivíduo assim como ao Estado de agir em vista da maior felicidade
para o maior número de pessoas; a segunda corrente situa o bem supremo na
justiça, quer dizer na conformidade aos direitos e deveres naturais que o homem
descobre por diversos meios segundo os autores. A maior parte dos autores liberais
rejeitou explicitamente a idéia de que o egoísmo constitui uma boa explicação ou
uma explicação suficiente do comportamento individual. Toda a corrente liberal
admite a idéia de que o homem é capaz de benevolência autentica em relação aos
outros.
Adam Smith na sua “Teoria sobre os sentimentos morais”, identifica dois
traços fundamentais da relação com os outros, que não têm nada a ver com o
egoísmo: a simpatia e o desejo de aprovação. O ser humano é modelado pela
necessidade de amar e de ser amado. É uma teoria que exclui nem o egoísmo nem
o altruísmo; admite a pluralidade das motivações humanas e proíbe pensar o
44

individuo fora de uma interação social. Essa mesma concepção plural da natureza
humana será encontrada em todos os precursores e fundadores do socialismo não
marxista.
A teoria do ser humano motivado unicamente pelo amor de si mesmo
achou apoio na difusão da nova teoria da evolução de Darwin. A idéia nova que o
humano resulta de uma longa evolução das espécies reforçava intuitivamente a
convicção que, no “estado de natureza”, o homem se comporta como um animal e
não conhece outra lei a não ser a satisfação egoísta de suas pulsões. “Cada um
para si” parecia a lei eterna da natureza. Os ultra liberais promoveram essa leitura
incompleta de Darwin.
Mais ainda do que a teoria da evolução, é a vontade nova de desenvolver
uma ciência matemática da economia que traz de volta com força o postulado do
egoísmo racional. Depois do retrabalho das hipóteses para construir equações da
oferta e da demanda independentes e desembocando num equilíbrio geral dos
mercados, sobra do individuo sutil dos liberais só um átomo movido por uma pulsão
mecânica de gozo, totalmente indiferente ao gozo e ao sofrimento dos outros
átomos. A simpatia, a empatia, a necessidade de reconhecimento, todas as
interações sociais são abandonadas. O agente econômico, ou homo oeconomicus, é
uma maquina de gozar insaciável, em movimento permanente para agarrar qualquer
oportunidade de gozar sempre mais. Formalmente, isto implica uma mudança de
hipótese de racionalidade. O termo designa daqui para frente
1. a capacidade do indivíduo em identificar e filtrar todas as
possibilidades segundo sua ordem de preferência pessoal.
2. a capacidade em empregar todos os meios disponíveis para
escolher no universo dos possíveis a solução que maximize a
“utilidade” (satisfação) do indivíduo (hipótese de “racionalidade
forte”).

QUINTO PILAR: O INDIVIDUO PREDADOR E A LEI DO MAIS FORTE NO


“ESTADO DE NATUREZA”
Se o indivíduo for estritamente egoísta e indiferente ao bem ou ao
sofrimento do outro, é por natureza agressivo e predador. De fato, quando vários
indivíduos autônomos e egoístas partilham um mesmo ambiente, entram
inelutavelmente em competição para o uso dos recursos; enquanto um indivíduo não
45

alcance o estado de saciedade, ele prefere privar o outro de um recurso do que ser
ele mesmo privado. A cooperação e a solidariedade não podem constituir a reação
espontânea e privilegiada de indivíduos confrontados a um problema de partilha de
recursos. Corolário desse postulado: uma sociedade primitiva (sem Estado e sem
leis) é necessariamente o lugar de uma competição feroz que cessa unicamente e
temporariamente pela vitória do mais forte. O egoísmo integral dos indivíduos implica
a predação e a lei do mais forte. O individuo não pode contentar-se de ser egoísta.
Quando tem uma competição para os bens, ele é obrigado de ser “maldoso”, nem
que seja para evitar de ser a vitima do apetite dos outros.
Para Hobbes, o medo que inspiram uns aos outros os humanos no
“estado de natureza” é tal que a única sociedade imaginável é uma hipersociedade
estadista que dissolve a autonomia individual num Estado Soberano que impõe pelo
“temor” o respeito de uma lei comum. Solução inelutável quando se considera que
não existe nada no ser humano que se pareça com a aspiração de “ser com”. Pode
parecer paradoxal de considerar como um pilar do neoliberalismo uma concepção do
ser humano que leva a um Estado onipotente. É um falso paradoxo. Em primeiro
lugar, o neoliberalismo não tem nada contra um Estado poderoso, enquanto este
serve para punir ou retirar da sociedade os marginais que não respeitam a
propriedade e a ordem moral necessárias para uma sociedade de livre competição.
Em segundo lugar, fora desse poder de policia e de justiça, os neoliberais
consideram que a regulação política da sociedade é perfeitamente inútil. Portanto, o
fato de que os seres humanos são naturalmente “maldosos” não implica
automaticamente a dominação geral do Leviatã de Hobbes. Engaja em vez a achar
um meio de satisfazer o apetite insaciável dos “lobos humanos”, de sorte que não
tenham mais motiva para entre-devorar-se. Esse meio é a instituição dos mercados
de livre concorrência em todas as atividades humanas. A maldade natural dos
humanos não cria obstáculos ao programa neoliberal. É uma hipótese indispensável
para desqualificar todo sistema baseado em dom, cooperação e solidariedade.

O HOMEM SIMPÁTICO DE SMITH


A “Teoria dos sentimentos morais” de Adam Smith faz da simpatia um
mecanismo mais geral do que o “senso moral” de Hutcheson. Para ele, o mecanismo
simpático coloca no coração do homem um desejo obsessivo de aprovação, de
reconhecimento social, que o leva a fazer cada vez mais esforços para obter a
46

simpatia daqueles que não são tão próximos. Para obter a simpatia dos outros
membros da sociedade, o indivíduo deve consentir mais esforços para afinar seu
comportamento de modo a suscitar uma sempre maior aprovação. Smith pensa
assim ter descoberto um mecanismo que garante uma sociabilidade geral, e não
somente uma de proximidade.
E a busca de reconhecimento social não garante somente a harmonia de
uma sociedade humana, ela explica também seu desenvolvimento. É ela que
conduz os homens, contrariamente aos outros animais, a não se contentar de suas
necessidades vitais. Quando esses são satisfeitos, o ser humano se preocupa com o
olhar e a estima dos outros. Daí o crescimento das artes e das técnicas e a
acumulação de bens fúteis, inúteis para a sobrevivência mas desejados para o
reconhecimento social que eles proporcionam. O homem de Smith é um vaidoso
cuja maior energia é consagrada a produzir e consumir bens fúteis. É vitima de uma
ilusão que o leva a acreditar que seu desejo insaciável de bens inúteis é uma
autentica necessidade.
Isso não implica que o ser humano nasça naturalmente bom e altruísta,
desde o alvorecer da humanidade. Smith pensa que os selvagens dos primeiros
tempos viviam num estado de total despojamento e de vulnerabilidade e que toda
sua energia estava voltada para a sobrevivência. A preocupação pelo outro
pressupõe um mínimo de segurança em relação à própria vida. Se a simpatia for
uma disposição natural, é enquanto potencialidade inscrita na natureza do homem,
mas cujo desabrochar verdadeira depende da evolução das condições materiais de
existência. Assim o pensamento de Smith não está simplesmente fundamentado
numa filosofia da natureza humana, mas também numa antropologia. Esta,
apoiando-se nos trabalhos etnológicos suscitados pela colonização do Novo Mundo,
esforça se de descrever os estágios de desenvolvimento sucessivo pelos quais a
humanidade deve passar para passar a ponte que separa os primeiros “selvagens”
da civilização mercante.
Segundo Smith, a humanidade passa necessariamente por quatro
estágios de desenvolvimento: caça, criação, agricultura e comércio. A cada um
desses estágios, a falta de recursos para enfrentar as necessidades de uma
população crescente obriga o homem a inventar um novo modo de produção para
aumentar momentaneamente a subsistência. Mas, autorizando um novo crescimento
da população, o progresso relativo a um modo de produção restabelece a carência
47

de recursos que força a passagem para o estagio seguinte e assim sucessivamente


até a idade da “sociedade comercial” que chamamos atualmente de “economia de
mercado”. Enquanto a humanidade é condenada a uma falta crônica de recursos, a
precariedade da condição humana é tal que ela deixa pouco espaço para o cuidado
com o outro. Assim, no que diz respeito aos estágios anteriores da economia de
mercado, Smith valida a visão pessimista de Hobbes sobre o estado de natureza:
um estado governado pelo medo de morrer, onde não se pode contar muito com a
simpatia dos outros.
Assim, bem antes de Marx, Smith desenvolve uma teoria materialista da
evolução social, na qual os modos de pensamento e os valores são determinados
pelas condições materiais de existência. Ao mesmo tempo, ele alcança o idealismo
de Hegel, reconhecendo na caminhada cega dos homens em direção de um
progresso material constante a mão invisível de uma Providencia divina que os
conduz em direção ao estagio da economia de mercado onde a propensão à
simpatia poderá acontecer plenamente. Uma vez atingido o estágio em que os
recursos cresçam mais rápido do que a população, a falta de subsistência
desaparece e a maior preocupação do homem é atrair a simpatia e o
reconhecimento do outro. Uma outra forma de carência aparece para manter os
homens sempre em direção do progresso. O ser humano deixa a idade da
necessidade para ingressar na idade do desejo, na verdade mais insaciável ainda do
que a necessidade. A harmonia social acaba não sendo objeto de uma ação política
mas sim de uma lei da natureza que se cumpre necessariamente. Isso seduz os
neoliberais. Os crentes escolherão que o laissez faire é fruto de Providência e os
ateus que ela é conduzida pela lei da natureza. Cada um pode escolher livremente a
própria alienação.

O BOM SELVAGEM DE ROUSSEAU


Rousseau enuncia um principio que Hobbes não percebeu, que foi dado
ao ser humano para amansar a ferocidade do seu amor próprio: ele tempera o ardor
que ele tem na busca do próprio bem estar por uma repugnância inata em ver seu
semelhante sofrer. Da força dessa “piedade natural”, decorreriam, segundo
48

Rousseau, “todas as virtudes sociais”13. Em Hobbes, trata-se de uma situação de


guerra permanente porque os homens são rivais num mesmo território; em
Rousseau, trata-se de um estado onde os homens não se encontram. O homem
selvagem de Rousseau está sozinho e não é maldoso enquanto permanecer assim.
Ele se torna maldoso quando ele começa a viver em sociedade. No estado de
natureza, na realidade, o homem não é bom: ele é tranqüilo! Quando a Historia põe
um ponto final nesse estado de natureza, quando ela entrega o homem à companhia
dos outros e à necessidade de refletir para viver, o homem não é mais amável do
que o “lobo” imaginado por Hobbes.
Podemos perceber aqui a diferença de análise com Adam Smith. Para
esse último, o estado de natureza de Rousseau não existe. Desde o primeiro estagio
(caçador), os homens vivem em sociedade porque são assim constituídos que eles
não podem sobreviver a não ser em grupo. Por isso, desde o inicio, o ser humano é
feito para e constituído por vínculos sociais. Pelo contrario, para Rousseau, é
precisamente quando o ser humano entra em sociedade que ele se torna maldoso e
anti-social. Nisso, Rousseau alcança Hobbes numa conclusão essencial: a entrada
em relação dos seres humanos é sempre problemática, dominada pela rivalidade e a
lei do mais forte,enquanto não são postos os fundamentos de uma sociedade onde o
poder soberano pode exercitar-se com o consentimento de todos. A convergência
desses autores, que politicamente tudo opõe, reflete sua premissa comum: um
indivíduo autônomo que preexiste a toda comunidade humana, sendo em nada
constituído pelos vínculos com os outros.

O HOMEM INCOERENTE DE MARX


Para Marx também, a natureza do homem parece boa e pronta para
realizar-se pacificamente no trabalho livre. Mas, como em Rousseau, as forças
naturais da Historia, que vão além do indivíduo, impuseram a divisão do trabalho, a
propriedade, o poder e o estado de conflito permanente. Para ele, o homem sempre
viveu em sociedade e desde sempre é a guerra, das classes oprimidas contra as
classes dominantes. A cada etapa da Historia, uma classe dominante substitui a
precedente e uma forma de opressão e alienação substitui uma outra.

13
ROUSSEAU, Jean Jacques, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les homes
(1755), citado por Généreux Ibid p.233
49

Como com Rousseau, temos um paradoxo. Se o homem é naturalmente


apto a realizar-se na vida social, se ele não for fundamentalmente maldoso, por que
ele instaurou “modos de produção” que autorizam “a exploração do homem pelo
homem”? A solução de Marx significa dizer que não foi ele que fez isso, é a Historia,
porque, retomando as teses de Hegel, ele vê na Historia o lugar de um
enfrentamento dialético de forças (teses/antíteses) às quais o indivíduo não pode se
opor. Desse enfrentamento surge uma sucessão de sínteses, na forma de modos de
produção, de instituições políticas e de convenções morais que caracterizam uma
sociedade. Graças ao materialismo histórico, ele sustenta que não é o progresso das
idéias e das consciências que determina a Historia, mas unicamente a evolução das
condições materiais de existência e de produção.
Surge um novo paradoxo. Se a consciência do homem e sua vontade não
fazem a Historia, por que a classe operaria e o Partido Comunista teriam a idéia e a
capacidade de colocar um fim no ciclo infernal da luta de classes, como se, de
repente, a consciência dos homens podia reassumir o controle da Historia? Entende-
se, portanto, por que Marx precisa pressupor uma forma de sociabilidade natural: na
fase de ditadura do proletariado, é preciso que os indivíduos aceitem de assumir
uma mobilização forçada de suas energias para atingir um dia, talvez não no seu
tempo de vida, o estado de abundancia material. E quando a abundancia finalmente
chegou, é preciso pressupor a ausência de toda maldade porque, mesmo
refestelados, os maldosos permanecem invejosos e desolados com a felicidade dos
outros.
Contudo, apesar da bondade natural, enquanto a paraíso materialista não
foi atingido, é preciso a onipotência do Estado para manter os homens juntos e
evitar o ressurgimento de classes rivais. O dilema está no fato de que não se poder
reconhecer o papel da bondade na Historia sem dever considerar o da maldade.

O ERRO ANTROPOLÓGICO DOS MODERNOS14


O erro antropológico fundador do pensamento moderno consiste em
esquecer o fato de que o indivíduo constrói se nem antes nem sem os outros, e se
acha constituído por uma interação social complexa cujo resultado é imprevisível. A
idéia cartesiana de uma verdade acessível unicamente por uma razão individual

14
GÉNÉREUX, ibid. p. 345ss
50

negligencia o fato de que ninguém pode pensar unicamente por si. Ninguém nasce
com um cérebro e uma capacidade de raciocínio de adulto: essa capacidade é
adquirida e modelada pela interação sensorial, afetiva, objetiva e subjetiva com os
outros. A historia da constituição de cada individuo e, a fortiori, de cada comunidade
de indivíduos, é assim especifica, única, datada, situada e não reprodutível.
O erro moderno consiste em negar essa interdependência contingente
entre os seres, adotando uma concepção atomística do homem e o individualismo
metodológico: o indivíduo perfeitamente autônomo que deve nada aos outros. Era
uma condição sine qua non para colocar os comportamentos humanos em equações
e torná-los previsíveis. O erro dos modernos acha-se reforçado pelo principio oposto
ao individualismo: o holismo. Esse de fato nega também a interação dos indivíduos:
o indivíduo totalmente determinado pelo seu ambiente social não retroage sobre os
outros; ele é agido por um sistema cuja lei de evolução é independente dos seres
singulares que o constituem. Assim, o holismo integral do marxismo afina-se com o
individualismo absoluto dos neoliberais; esses dois métodos de raciocínio têm o
efeito comum que eles buscam: a previsibilidade perfeita dos comportamentos
individuais e da sua resultante coletiva.
De fato, se um átomo social é estritamente dissociado e independente de
todos os outros em particular, ele é totalmente dependente do sistema constituído
pelo conjunto dos átomos. A interdependência subjetiva entre os indivíduos criam
vínculos, alguns subsistemas interativos, que dão a cada um e a todos uma margem
de manobra para orientar sua historia. A liberdade criadora dos indivíduos vem
assim do fato de que eles dependem uns dos outros; pelo contrario, uma estrita
independência do seres tira de cada um toda liberdade real frente à lei do sistema
que, apesar deles mesmos, eles constituem todos juntos. É por isso que a
abordagem individualista é idêntica à abordagem holística num ponto essencial: o
sistema social é governado por leis mecanicistas e previsíveis totalmente
independentes da vontade particular dos indivíduos. No oposto, se reconhecermos
que o indivíduo depende de outros indivíduos particulares para pensar, sentir, agir,
decidir e que, por sua vez, ele participa da determinação de outros indivíduos, então
tudo pode acontecer mas nada é certo: a Historia torna-se perfeitamente
contingente.
Os modernos “esqueceram” a interação social constitutiva dos seres
humanos, porque ela torna a historia dos homens contingente e imprevisível. De
51

fato, eles queriam construir uma física social que explica e prediz os
comportamentos dos corpos humanos com a mesma precisão mecânica do que a
física dos corpos celestes de Galileu.
O pensamento moderno não parte do estado do mundo real. Ela parte de
um novo mundo imaginário, ela procede como se sua invenção teórica – o indivíduo
perfeitamente autônomo – fosse já uma realidade universal; como o sonho de um
adolescente que apaga a lei imposta pelos pais, o sonho do pensamento moderno
apaga a sociedade; opera um big bang social imaginário e fundador: a realidade
social explodiu e a humanidade dispersou-se numa infinidade de átomos isolados.
Postulando uma humanidade atomizada, a filosofia política indaga como a
humanidade pode percorrer o caminho inverso: como religar átomos desligados e
estritamente independentes uns dos outros? Questão insolúvel a não ser pelo
retorno ao ponto de partida: não se pode religar o que está por essência desligado,
não se associa átomos movidos por forças independentes e contrarias; só é possível
fusioná-los.
É um dilema que o pensamento fabricou para si mesmo, raciocinando a
partir de um mundo virtual de indivíduos atomizados. Esse dilema nunca existiu na
realidade. O verdadeiro dilema do progresso humano geral, como o do crescimento
do indivíduo singular, foi sempre exatamente o inverso: como desligar-se dos outros
sem desvincular-se e derivar para um espaço vazio? Cada ser nasce numa fusão
perfeita com a própria mãe; o desafio vital de todo ser é constituir o cordão social
que substituirá o cordão umbilical, de modo que ele se alimente dos outros sem ser
fusionado com o corpo do outro. A historia de uma vida humana é esse longo
desapego que nos conduz para o desapego último. O nosso desafio existencial não
é o da vinculação, porque nascemos vinculados e somos constituídos por nossos
vínculos, o nosso desafio é inventar uma relativa desvinculação que nos mantenha
em vida, quer dizer vinculados aos outros! Inventando o indivíduo autônomo, os
modernos não inventam a liberdade do ser humano, mas sua solidão; eles o
emancipam do Outro, mas não de uma lei sem a qual sua vida não seria mais do
que um vagar sem sentido. A urgência não é mais emancipar os indivíduos contra
um superego social (moral ou religioso) alienante. O indivíduo é as vezes tão
emancipado, assim como o mostra Alain Ehrenberg, de todo significado imposto de
fora que ele sofre do não sentido, da necessidade de ser tudo sozinho, do “cansaço
de ser si mesmo” que o mergulha na depressão. A urgência é crescer: deixar a
52

infância do pensamento moderno para aceder a um pensamento adulto e


consciente; cessar de recalcar e maquiar todos os fatos que desenham uma
humanidade mais complexa.

Você também pode gostar