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A UTOPIA DO MERCADO1
A idéia que existe uma vida coletiva, uma vida da nação, que condiciona
sua própria existência e que, por sua vez, depende da participação que eles querem
ter, parece para nossos contemporâneos totalmente estranha. A política, pouco a
pouco, nos deixou. Ela pareceu impotente frente ao aumento das desigualdades, da
precariedade e da pobreza, inclusive nos países ricos. Ela nos entregou a uma
competição cada vez mais áspera entre as nações assim como entre os indivíduos,
dizendo que era para nosso bem e que não tínhamos escolha. Qualquer que fosse a
cor ideológica do governo, fomos submetidos à lei da livre concorrência e obrigados
a assumir a prioridade da competitividade. Tivemos alternâncias sem alternativa
política.
A política se tornou desprezível por causa da multiplicação dos casos de
corrupção. Pode se temer que para as gerações que não conheceram o heroísmo
ou a utilidade social dos responsáveis políticos, a imoralidade, o egoísmo e o
desprezo do bem público constatados nas altas esferas de poder dêem mais
exemplo do que nojo.
1
HALIMI, Serge, Le grand bond en arrière, comment l’ordre libéral s’est imposé au monde, Paris,
Fayard, 2004
2
para evitar que uma nova crise mundial tenha efeitos catastróficos sobre a
economia: foi um sucesso.
O grande paradoxo da nossa época foi de ver ressurgir os mesmos
flagelos sociais e o mesmo medo do que nos anos 30, sem a depressão econômica
que os causaram. É que, se tudo foi feito para preservar a economia de um colapso
brutal e destruidor, nada foi pensado ou feito para evitar uma partilha cada vez mais
desigual desse sucesso, para impedir que os choques derrubem a sociedade
provocando a secessão entre os ganhadores e os perdedores da competição.
Compreenderemos que neoliberalismo consiste em explorar a ameaça da crise
econômica para impor e justificar uma sociedade mais desigual. Tivemos a crise
social sem a crise econômica, e aqui está o primeiro fermento da crise política.
Somos confrontados ao paradoxo de uma riqueza exuberante e crescente que,
todavia, deixa as nações poderosas na incapacidade de evitar a miséria.
2
Transfiro para o português o neologismo criado pelo autor ibid. p. 28 e o usarei todas as vezes que
o autor o usa no seu texto.
6
3
Ibid. capítulo 2
4
POLANYI, Karl, A grande transformação, as origens da nossa época, Rio de Janeiro, Editora
Campus, 2000 (ed original 1944)
7
5
Ibid. p.43 ss
9
6
GÉNÉREUX, Jacques, La dissociété, Paris, Éditions du Seuil, 2006, capítulo 3
16
depende dos contratos privados e dos mercados; trata-se de uma restrição drástica
do campo aberto para a deliberação democrática e as escolhas políticas. A
finalidade dos neoliberais não é enfraquecer o Estado, mas de dispor de Estados
suficientemente poderosos para impor, dentro como fora, uma ordem conforme a
seus interesses e a sua visão de mundo. Num primeiro momento, portanto, não se
assiste a uma redução das despesas publicas mas a sua reestruturação. Por isso,
taxa-se mais os menos ricos e menos os mais ricos!
O MITO DA GOVERNANÇA
No momento do recuo efetivo das despesas publicas e dos impostos, o
discurso dominante promete uma nova governança necessária para evitar os
excessos de uma competição selvagem. Essa palavra governança responde à
necessidade de ser governado mas sem governo, ter leis mas não de um
parlamento, de obter a ordem mas sem autoridade publica, a cenoura sem o bastão.
A predileção dos neoliberais para o tema da governança reflete o sonho de uma
privatização bem sucedida do Estado. O que se entende por governança é um
conjunto de agencias descentralizadas e especializadas de regulação dos
mercados, a lei dos mercados definida pelos atores dos mercados, a ética dos
negócios destinada a homens de negócios, em breve, a auto-regulação do business
pelo business e nada de democracia que se tornou sem utilidade. A governança é
uma espécie de governo privado, ou uma miríade de governos privados e
concorrentes para satisfazer clientes e acionistas. O que se espera de um Estado ou
de um governo nesse ambiente? Que ele faça a policia e a guerra. A engrenagem
perversa da privatização do Estado-providencia prepara e nutre o circulo vicioso da
violência social e de sua repressão por um “Estado-penitencia”. Menos a nação
investe em educação, habitação e estabilidade do emprego, mais se banalizam as
18
7
Ibid. p. 102 ss
19
8
Ibid. capítulo 4
20
mesmo e com os outros, para si e para os outros, como existir neles sem se
dissolver neles. Frente a essas duas beiras da vida, estamos em tensão perman,
iente, buscamos o equilíbrio e o compromisso necessário, necessário porque não
somos nada sem os outros, mas não existimos se os outros são tudo para nós.
A capacidade de cada um de achar o caminho de uma sinergia positiva
entre suas duas aspirações a vínculos e à liberdade é afetada pela historia singular
de suas relações pessoais. Mas essa historia singular não acontece num laboratório
isolado do resto do mundo. Ela acontece no contexto de uma sociedade com suas
instituições, suas regras, suas políticas publicas, sua cultura e esse contexto social e
cultural afeta diretamente ou indiretamente a elaboração do compromisso pessoal
entre ser si mesmo e ser com os outros. A sociedade pode ajudar cada um a viver
em ser plenamente humano, quer dizer inteiro como um “eu social”, livre e vinculado,
crescendo e andando sobre suas duas pernas que autorizam o bom funcionamento
do ser. Pode também contrariar esse crescimento equilibrado e levar os indivíduos a
cambalear numa perna só: tudo social privado de si mesmo, tudo a si mesmo
privado dos outros. Tratamento desumano que nos coloca no encalço do que
constitui ou não uma sociedade verdadeiramente humana.
O QUE É A DISSOCIEDADE?
Primeira proposição: a ideologia e as políticas neoliberais tendem a
dissociar as duas aspirações ontogenéticas e a inflar a primeira (ser si mesmo e
para si) ao ponto que ela sufoca a segunda (ser com e para os outros). É um
processo de dissociação pessoal.
Segunda proposição: ao mesmo tempo causa e conseqüência,
instrumento e finalidade da dissociação pessoal, a dissociedade é o processo de
9
Neologismo do próprio autor.
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atores compatível com o papel determinante do contexto social de sua ação. Trata-
se de um processo de co-determinação dos atores e do sistema. A imagem de
espiral é melhor do que a de círculo.
Os indivíduos mudam a sociedade tanto quanto a sociedade os muda e
reciprocamente. Não só os dois agem um sobre o outro ao mesmo tempo, mas os
dois são indissociáveis. O individuo não existe fora de uma interação com os outros.
O ser humano é sociável na sua própria constituição. A interação entre indivíduos
produz instituições, regras, modos de vida, de produção, de pensamento e de
expressão, uma cultura; numa palavra, ela constitui um “sistema social” que pode,
depôs ser estudado e considerado como uma entidade que não se confunde com o
individuo. Mas o que entendemos por “sociedade” não é esse sistema. O sistema
social é o resultado visível, o conjunto de manifestações que nos permitem
caracterizar a sociedade. Por “sociedade”, todavia, o senso comum designa um
conjunto de seres humanos que vivem juntos no quadro de um mesmo sistema
social. O termo “sociedade” não designa, portanto, uma entidade que estaria ao lado
ou separada dos indivíduos; ele designa o processo mesmo de vida comum pelo
qual os indivíduos geram o sistema e são condicionados por ele.
O que chamamos “sociedade” é o processo vivo de interação entre os
indivíduos e o sistema que eles constituem juntos. Portanto, a questão de saber que
tem o papel determinante, a sociedade ou o individuo, não tem sentido. A única
reflexão pertinente consiste em identificar as circunstancias que geram uma
reorientação decisiva da sinergia complexa indivíduos/sociedade no sentido de uma
sociedade desumana ou no de uma sociedade de progresso humano. Todavia,
embora os atores e o sistema social agem ao mesmo tempo um sobre o outro,
precisamos falar de um após o outro, de descrever o que a sociedade faz para o
individuo e o que o individuo faz para a sociedade até o momento em que esse vai e
vem mostra que esses dois tempos do discurso são uma coisa só na vida real.
10
Ibid. capítulo 5
27
imutável, alojada num lugar que a preserva da historia singular do corpo que, por
sua vez, sofre a mudança biológica e evolui num espaço de relações sociais.
Contrariamente ao que pretendem seus gurus, o neoliberalismo não é a
operacionalização do que “funciona”, sem preconceitos ideológicos; é a
operacionalização de uma teoria muito peculiar de homem e de sua relação com os
outros. Se não se compartilhe essa concepção do homem, ou se ela for falsa, deve
se rejeitar o sistema social que lhe é ligado. Se admitirmos, por exemplo, que nos
cuidamos realmente dos outros, nossa personalidade é afetada pelo contexto de
nossa existência, aceitamos de bom grado as leis que nos permitem viver melhor
juntos, então o modelo da livre concorrência desaba e deve se reconhecer a
necessidade de moderar a competição e de estender a lógica da cooperação
solidária o mais possível.
Falta agora só perceber que na gênese das idéias modernas, o
neoliberalismo partilha com o marxismo 90% de seu patrimônio genético; é um erro
antropológico comum a essas duas ideologias que conduz a primeira em direção da
dissociedade individualista e a segunda em direção da hipersociedade coletivista.
11
As referencias são “O cidadão” de Hobbes e “Do contrato social” de Rousseau
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“equilíbrio”, ou não, segundo leis estáveis que as ciências sociais teriam por objeto
de descobrir. Esta é a concepção transmitida por Hobbes dois séculos antes.
As novas ciências sociais não só reproduziram os postulados
antropológicos do século XVII; elas os transmitiram para o século XX e os
imunizaram contra a critica colocando um termo ao debate do modo mais radical:
raciocinando como se o problema antropológico não existisse mais. Assim,
aceitando sem debate uma certa concepção do ser humano, a metodologia
dominante nas ciências sociais enfiou essa concepção num inconsciente coletivo.
Contrariamente a tudo que caracterizava todos os tratados políticos e filosóficos dos
séculos XVII, a discussão sobre a “natureza humana” desaparece quase da literatura
sobre as sociedades humanas! O problema já está resolvido!
É portanto o modo pelo qual a questão foi tratada na ignorância há três
séculos que modelou inconscientemente o modo de pensar do ser humano e as
sociedades até o fim do século XX, numa época onde o acúmulo das descobertas
cientificas começava a desvendar a verdadeira historia da nossa espécie, do nosso
cérebro, do nosso nascimento, dos nossos ancestrais etc. A especialização e a
profissionalização das ciências contribuíram para essa negligencia. As separações
entre as várias disciplinas limitou a capacidade dos economistas para integrar os
desenvolvimentos da antropologia, como a dos sociólogos a levar em conta os
progressos da neurobiologia. A competição entre os pesquisadores de uma mesma
disciplina os incitou a uma hiper-especialização, fonte de excelência num campo de
conhecimento, em vez de pensar numa cultura geral. A competição entre as ciências
humanas e sociais favoreceu a pretensão estéril de cada uma tentar impor-se como
a ciência da homem fundamental, em vez de cooperar numa dimensão
interdisciplinar suscetível de constituir uma ciência do homem, integrando vários
saberes. Assim, muitos pesquisadores desenvolvem com muito refinamento modelos
que repousam implicitamente sobre uma concepção não cientifica da natureza
humana, concepção que se acha a fortiori compartilhada pelo senso comum, porque
quase ninguém a debate.
nascido da relação entre um homem e uma mulher, tem seu ser verdadeiro e imortal
diretamente de Deus. Com Santo Agostinho, a teologia cristã avança para a
concepção moderna do indivíduo porque ele o aconselha a olhar para si mesmo
porque a busca da verdade passa por uma busca interior.
Com Descartes, acontece a ruptura essencial que leva para a concepção
moderna do indivíduo: enquanto para Platão e Agostinho, o reinado da razão
consiste em reconhecer e aderir à ordem inscrita no cosmos, para ele essa ordem
não existe; é a razão do indivíduo que a constrói. Com essa negação de toda
verdade fora do “eu” pensante, perde se o lugar concreto da vida, o seu território, o
seu habitat: o mundo no qual vivemos com e graças aos outros. Assim, tem-se um
processo de exteriorização total: o indivíduo torna-se exterior ao mundo e ao próprio
corpo que ele pode considerar como simples objetos, simples instrumentos cujo
sentido e uso ele determina. O indivíduo é dissociado do seu corpo, dissociado do
mundo, seu ser fora do mundo não deve nada aos outros. Somente os corpos
humanos são ligados uns aos outros, mas os corpos são objetos instrumentalizados
por espíritos perfeitamente desligados ou “a-ligados”. Assim, nasce o indivíduo no
sentido estrito, quer dizer o átomo humano. Essa concepção atomística do ser
domina as premissas do pensamento moderno, seja ele metafísico ou materialista.
Ela nega qualquer papel ao vinculo social na constituição do ser.
é uma liberdade de circulação sem entraves, análoga à liberdade da água que corre
pelo canal, uma liberdade de movimento. No estado de natureza (na ausência de
lei), o indivíduo não é auto-nomo mas simplesmente auto-motor: é ele mesmo que
coloca seu corpo em movimento para a ação.
Todavia, embora diferentes, essas duas concepções da liberdade situam
o desencadeador de toda ação numa deliberação individual, solitária e
independente. É o ponto essencial para identificar os pilares lógicos do edifício
neoliberal.
OUTROS
12
HOBBES, O cidadão, citado por GÉNÉREUX, Ibid p. 218, de quem reproduzo as passagens
sublinhadas
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manifestações mais vivas de nosso amor próprio, ele pode justificar um dom de si
sem contrapartida material, mas que nos dá uma recompensa ainda maior: a
contemplação narcisista de si mesmo no olhar dos outros. Fazemos de conta que
somos bons para ser admiráveis e admirados. A moral é uma invenção genial e
cínica dos legisladores para obter barato a docilidade dos indivíduos ordinários: em
troca de seus esforços para temperar seus apetites e de preocupar-se do bem
comum, esses recebem somente a bajulação social, o reconhecimento puramente
convencional que eles são “pessoas de bem”. Os moralistas pouco ligavam para o
bem publico. Era no seu interesse, sempre segundo Mandeville, de “encorajar o
devotamento ao bem publico que lhes permitia de se beneficiar do fruto do trabalho
e da abnegação dos outros e, ao mesmo tempo, ser mais tranqüilos para entregar-
se ao seus apetites.”
O que impressiona, na teoria do egoísmo, é seu caráter absoluto. Não
pode existir no indivíduo outro sentimento a não ser o amor próprio e nenhuma outra
finalidade a não ser o interesse próprio.
individuo fora de uma interação social. Essa mesma concepção plural da natureza
humana será encontrada em todos os precursores e fundadores do socialismo não
marxista.
A teoria do ser humano motivado unicamente pelo amor de si mesmo
achou apoio na difusão da nova teoria da evolução de Darwin. A idéia nova que o
humano resulta de uma longa evolução das espécies reforçava intuitivamente a
convicção que, no “estado de natureza”, o homem se comporta como um animal e
não conhece outra lei a não ser a satisfação egoísta de suas pulsões. “Cada um
para si” parecia a lei eterna da natureza. Os ultra liberais promoveram essa leitura
incompleta de Darwin.
Mais ainda do que a teoria da evolução, é a vontade nova de desenvolver
uma ciência matemática da economia que traz de volta com força o postulado do
egoísmo racional. Depois do retrabalho das hipóteses para construir equações da
oferta e da demanda independentes e desembocando num equilíbrio geral dos
mercados, sobra do individuo sutil dos liberais só um átomo movido por uma pulsão
mecânica de gozo, totalmente indiferente ao gozo e ao sofrimento dos outros
átomos. A simpatia, a empatia, a necessidade de reconhecimento, todas as
interações sociais são abandonadas. O agente econômico, ou homo oeconomicus, é
uma maquina de gozar insaciável, em movimento permanente para agarrar qualquer
oportunidade de gozar sempre mais. Formalmente, isto implica uma mudança de
hipótese de racionalidade. O termo designa daqui para frente
1. a capacidade do indivíduo em identificar e filtrar todas as
possibilidades segundo sua ordem de preferência pessoal.
2. a capacidade em empregar todos os meios disponíveis para
escolher no universo dos possíveis a solução que maximize a
“utilidade” (satisfação) do indivíduo (hipótese de “racionalidade
forte”).
alcance o estado de saciedade, ele prefere privar o outro de um recurso do que ser
ele mesmo privado. A cooperação e a solidariedade não podem constituir a reação
espontânea e privilegiada de indivíduos confrontados a um problema de partilha de
recursos. Corolário desse postulado: uma sociedade primitiva (sem Estado e sem
leis) é necessariamente o lugar de uma competição feroz que cessa unicamente e
temporariamente pela vitória do mais forte. O egoísmo integral dos indivíduos implica
a predação e a lei do mais forte. O individuo não pode contentar-se de ser egoísta.
Quando tem uma competição para os bens, ele é obrigado de ser “maldoso”, nem
que seja para evitar de ser a vitima do apetite dos outros.
Para Hobbes, o medo que inspiram uns aos outros os humanos no
“estado de natureza” é tal que a única sociedade imaginável é uma hipersociedade
estadista que dissolve a autonomia individual num Estado Soberano que impõe pelo
“temor” o respeito de uma lei comum. Solução inelutável quando se considera que
não existe nada no ser humano que se pareça com a aspiração de “ser com”. Pode
parecer paradoxal de considerar como um pilar do neoliberalismo uma concepção do
ser humano que leva a um Estado onipotente. É um falso paradoxo. Em primeiro
lugar, o neoliberalismo não tem nada contra um Estado poderoso, enquanto este
serve para punir ou retirar da sociedade os marginais que não respeitam a
propriedade e a ordem moral necessárias para uma sociedade de livre competição.
Em segundo lugar, fora desse poder de policia e de justiça, os neoliberais
consideram que a regulação política da sociedade é perfeitamente inútil. Portanto, o
fato de que os seres humanos são naturalmente “maldosos” não implica
automaticamente a dominação geral do Leviatã de Hobbes. Engaja em vez a achar
um meio de satisfazer o apetite insaciável dos “lobos humanos”, de sorte que não
tenham mais motiva para entre-devorar-se. Esse meio é a instituição dos mercados
de livre concorrência em todas as atividades humanas. A maldade natural dos
humanos não cria obstáculos ao programa neoliberal. É uma hipótese indispensável
para desqualificar todo sistema baseado em dom, cooperação e solidariedade.
simpatia daqueles que não são tão próximos. Para obter a simpatia dos outros
membros da sociedade, o indivíduo deve consentir mais esforços para afinar seu
comportamento de modo a suscitar uma sempre maior aprovação. Smith pensa
assim ter descoberto um mecanismo que garante uma sociabilidade geral, e não
somente uma de proximidade.
E a busca de reconhecimento social não garante somente a harmonia de
uma sociedade humana, ela explica também seu desenvolvimento. É ela que
conduz os homens, contrariamente aos outros animais, a não se contentar de suas
necessidades vitais. Quando esses são satisfeitos, o ser humano se preocupa com o
olhar e a estima dos outros. Daí o crescimento das artes e das técnicas e a
acumulação de bens fúteis, inúteis para a sobrevivência mas desejados para o
reconhecimento social que eles proporcionam. O homem de Smith é um vaidoso
cuja maior energia é consagrada a produzir e consumir bens fúteis. É vitima de uma
ilusão que o leva a acreditar que seu desejo insaciável de bens inúteis é uma
autentica necessidade.
Isso não implica que o ser humano nasça naturalmente bom e altruísta,
desde o alvorecer da humanidade. Smith pensa que os selvagens dos primeiros
tempos viviam num estado de total despojamento e de vulnerabilidade e que toda
sua energia estava voltada para a sobrevivência. A preocupação pelo outro
pressupõe um mínimo de segurança em relação à própria vida. Se a simpatia for
uma disposição natural, é enquanto potencialidade inscrita na natureza do homem,
mas cujo desabrochar verdadeira depende da evolução das condições materiais de
existência. Assim o pensamento de Smith não está simplesmente fundamentado
numa filosofia da natureza humana, mas também numa antropologia. Esta,
apoiando-se nos trabalhos etnológicos suscitados pela colonização do Novo Mundo,
esforça se de descrever os estágios de desenvolvimento sucessivo pelos quais a
humanidade deve passar para passar a ponte que separa os primeiros “selvagens”
da civilização mercante.
Segundo Smith, a humanidade passa necessariamente por quatro
estágios de desenvolvimento: caça, criação, agricultura e comércio. A cada um
desses estágios, a falta de recursos para enfrentar as necessidades de uma
população crescente obriga o homem a inventar um novo modo de produção para
aumentar momentaneamente a subsistência. Mas, autorizando um novo crescimento
da população, o progresso relativo a um modo de produção restabelece a carência
47
13
ROUSSEAU, Jean Jacques, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les homes
(1755), citado por Généreux Ibid p.233
49
14
GÉNÉREUX, ibid. p. 345ss
50
negligencia o fato de que ninguém pode pensar unicamente por si. Ninguém nasce
com um cérebro e uma capacidade de raciocínio de adulto: essa capacidade é
adquirida e modelada pela interação sensorial, afetiva, objetiva e subjetiva com os
outros. A historia da constituição de cada individuo e, a fortiori, de cada comunidade
de indivíduos, é assim especifica, única, datada, situada e não reprodutível.
O erro moderno consiste em negar essa interdependência contingente
entre os seres, adotando uma concepção atomística do homem e o individualismo
metodológico: o indivíduo perfeitamente autônomo que deve nada aos outros. Era
uma condição sine qua non para colocar os comportamentos humanos em equações
e torná-los previsíveis. O erro dos modernos acha-se reforçado pelo principio oposto
ao individualismo: o holismo. Esse de fato nega também a interação dos indivíduos:
o indivíduo totalmente determinado pelo seu ambiente social não retroage sobre os
outros; ele é agido por um sistema cuja lei de evolução é independente dos seres
singulares que o constituem. Assim, o holismo integral do marxismo afina-se com o
individualismo absoluto dos neoliberais; esses dois métodos de raciocínio têm o
efeito comum que eles buscam: a previsibilidade perfeita dos comportamentos
individuais e da sua resultante coletiva.
De fato, se um átomo social é estritamente dissociado e independente de
todos os outros em particular, ele é totalmente dependente do sistema constituído
pelo conjunto dos átomos. A interdependência subjetiva entre os indivíduos criam
vínculos, alguns subsistemas interativos, que dão a cada um e a todos uma margem
de manobra para orientar sua historia. A liberdade criadora dos indivíduos vem
assim do fato de que eles dependem uns dos outros; pelo contrario, uma estrita
independência do seres tira de cada um toda liberdade real frente à lei do sistema
que, apesar deles mesmos, eles constituem todos juntos. É por isso que a
abordagem individualista é idêntica à abordagem holística num ponto essencial: o
sistema social é governado por leis mecanicistas e previsíveis totalmente
independentes da vontade particular dos indivíduos. No oposto, se reconhecermos
que o indivíduo depende de outros indivíduos particulares para pensar, sentir, agir,
decidir e que, por sua vez, ele participa da determinação de outros indivíduos, então
tudo pode acontecer mas nada é certo: a Historia torna-se perfeitamente
contingente.
Os modernos “esqueceram” a interação social constitutiva dos seres
humanos, porque ela torna a historia dos homens contingente e imprevisível. De
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fato, eles queriam construir uma física social que explica e prediz os
comportamentos dos corpos humanos com a mesma precisão mecânica do que a
física dos corpos celestes de Galileu.
O pensamento moderno não parte do estado do mundo real. Ela parte de
um novo mundo imaginário, ela procede como se sua invenção teórica – o indivíduo
perfeitamente autônomo – fosse já uma realidade universal; como o sonho de um
adolescente que apaga a lei imposta pelos pais, o sonho do pensamento moderno
apaga a sociedade; opera um big bang social imaginário e fundador: a realidade
social explodiu e a humanidade dispersou-se numa infinidade de átomos isolados.
Postulando uma humanidade atomizada, a filosofia política indaga como a
humanidade pode percorrer o caminho inverso: como religar átomos desligados e
estritamente independentes uns dos outros? Questão insolúvel a não ser pelo
retorno ao ponto de partida: não se pode religar o que está por essência desligado,
não se associa átomos movidos por forças independentes e contrarias; só é possível
fusioná-los.
É um dilema que o pensamento fabricou para si mesmo, raciocinando a
partir de um mundo virtual de indivíduos atomizados. Esse dilema nunca existiu na
realidade. O verdadeiro dilema do progresso humano geral, como o do crescimento
do indivíduo singular, foi sempre exatamente o inverso: como desligar-se dos outros
sem desvincular-se e derivar para um espaço vazio? Cada ser nasce numa fusão
perfeita com a própria mãe; o desafio vital de todo ser é constituir o cordão social
que substituirá o cordão umbilical, de modo que ele se alimente dos outros sem ser
fusionado com o corpo do outro. A historia de uma vida humana é esse longo
desapego que nos conduz para o desapego último. O nosso desafio existencial não
é o da vinculação, porque nascemos vinculados e somos constituídos por nossos
vínculos, o nosso desafio é inventar uma relativa desvinculação que nos mantenha
em vida, quer dizer vinculados aos outros! Inventando o indivíduo autônomo, os
modernos não inventam a liberdade do ser humano, mas sua solidão; eles o
emancipam do Outro, mas não de uma lei sem a qual sua vida não seria mais do
que um vagar sem sentido. A urgência não é mais emancipar os indivíduos contra
um superego social (moral ou religioso) alienante. O indivíduo é as vezes tão
emancipado, assim como o mostra Alain Ehrenberg, de todo significado imposto de
fora que ele sofre do não sentido, da necessidade de ser tudo sozinho, do “cansaço
de ser si mesmo” que o mergulha na depressão. A urgência é crescer: deixar a
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