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livros Joao de Pina Cabral e outros Caminhos da antropologia ibérica nos anos 80 s textos que aqui se retinem so recensées criticas de monografias, antropolégicas publicadas nos anos 80 sobre a Peninsula Tériea — a tinica ‘excepedo é a tese de doutoramento de Sally Cole, que optamos por inclu apesar de nao ter sido airda publicada, por pensarmos que seria particula ‘mente interessante para c leitor portugués, ji que existe to pouco material sobre as nossas comunidades piscat6rias. Os livros foram escolhidos larea- ‘mente a0 sabor dos interesses dos recenseadores e, por conseguinte, nao compreendem nem a totalidade do que se vai publicando no ambito disc plinar da antropologia, nem constituem sequer uma amosira estatistica- ‘mente representativa. Por exemplo, ndo se incluiram recensBes das mono- grafias etnogréficas de Brian Juan O'Neill (Proprietdrios, Lavradores e Jornaleiros, D. Quixote, Lisboa, 1984) e de Jodo de Pina Cabral (Sons of Adam, Daughters of Eve, Clarendon Press, Oxford, 1986), pela certeza de {que o leitor estaria ja familiarizado com elas. Apesar disto, pensamos que sta escolha permitira uma nog bastante aproximada dos eaminhos por {ue tem passado a antropologia peninsular nos anos 80, ‘Trés tendéncias em particular merecem ser identificadas. Por um lado, © aprofundamento do dislogo pluridisciplinar que tem vindo a qualifi 8 antropologia social desde 2 crise te6rica dos finais dos anos 60. Com a histéria, por exemplo, ele verifica-se rico em varios ambitos: na aproxima- do demogratica de Brettell, nos interesses de histéria cultural de élites de McDonough ou rural de Behar ou, ainda, no diflogo com a histéria ea sociologia politicas de Mintz. Mas também temos exemplos validos de umn forte intercémbio com # psicandlise (vide Brandes) ¢ com a sociologia urbana (vide Pujadas e Bardaji). Por outro lado, a sotrevivéncia ¢ a renovada pujanga da metodologia de trabalho de campo, ¢ em particular da observacio participante —que nao eram dados dbvios no ambiente hipercritico dos anos 70—-, so hoje actos adquiridos. Textos como os de Brandes, de Behar e de Sally Cole sio exemplos de como a observagio participante conseguiu de facto manter-se na vanguarda da inovacdo metadoldgica nas iltimas décadas. [Nao deixa de ser interessante verificar que os autores nativos —que vivem ce trabalham na proximidade imediata das populacdes estudadas— parecem ter sido os que mais dificuldades tiveram em levar a cabo trabalho de campo com observarao participante (vide Bestard ¢ Pujadas ¢ Bardaji). Que ilagdes poderdo ser retiradas desta observagdo? Um outro aspecto prende ainda a nossa atengio: o facto de se tratar de uma disciplina em plena reprodueio. Enquanto os antropdlogos soc 831 de Pina Cabral dos finais da década de $0 ¢ principios da de 60 eram pioneiros, cuja obra se referia a um mundo etnogrifico e teérico largamente originario da antropologia africanista ou americanista (Pitt-Rivers, Campbell, Friedl, Stirling, Halpern), os antroplogos europeanistas da segunda gera¢o, nos finais dos anos 60 ¢ anos 70 (p. ex., Davis, Lisén Tolosana, Cutileiro, Douglas, Loizos, Hammel), construiamn jé sobre bases deixadas pelos seus predecessores, mas ainda num universo muito rarefeito e estritamente ‘monodisciplinar —como Davis claramente indica no texto que melhor caracteriza esta geracdo, People of the Mediterranean (Routledge and Kegan Paul, Londres, 1977) 'Nos anos 80, a terceira geragdo move.se ja dentro de um universo ‘muito mais amplo. O material publicado € tao vasto que ja ndo seria posst- vel tentar sequer fazer um indice supostamente exaustivo de tudo 0 que foi cserito (como Davis pretendeu no seu livro, e quase ia conseguindo!). Ao mesmo tempo, e concomitantemente com o desenvolvimento do empenho pluridisciplinar, as fronteiras geogréficas ruiram, O «mito antropologico» do Mediterraneo esta pelas horas da morte. Abrem-se, assim, as portas a novas areas para comparacdo, nomeadamente com todo 0 universo etno- _rafico da Europa ocidental e do Norte, que os mediterranistas da segunda zeracdo simplesmente ignoraram. ‘Ainda restam alguns conservadores, liderados por David Gilmore, que continuam a insistir que os europeus do Sul esto dominados por sentimen- tos de chonra e vergonha» e sujeitos a «cultos mediterranicos de masculini- ‘dade, que os tornam mais semelhantes, para fins de comparacio socioan- tropoldgica, aos muculmanos levantinos ¢ do Norte de Africa do que aos outros europeus [cf. Honor and Shame and the Unity of the Mediterra- nnean, David Gilmore (org.), American Anthropological Association (22), Washington, 19871. Na Peninsula Ibérica, no entanto, e & parte 0 grupo de americanos interessados no estudo da Andaluzia (dos quais temos como ‘exemplo aqui a interessante obra de Stanley Brandes), esta atitude esta em franca minoria nos anos 80. Para os mais jovens, como Behar, Pujadas, Bestard, Cole ¢ Brettell, as noges de chonra ¢ vergonha» tém um valor muito Iimitado enquanto instrumentos de classificagio regional e a sua relevancia para a etnografia peninsular ndo parece ser maior do que para ‘outras regides europeias [vide Jodo de Pina Cabral, «The Mediterranean as ‘a Category of Regional Comparison: A Critical Views, in Current Anthro- ology, 30 (3), 1989). Finalmente, na uitima década, a antropologia social deixou de ser 0 cestudo de pequenas comunidades isoladas nas montanhas com uma apa- réncia primitiva e uma economia de auto-subsisténcia, Ja nos anos 70 esta visdo tinha sido posta em causa —que melhor exemplo poderiamos encon trar que a obra de Carmelo Lis6n Tolosana sobre uma cidadezinha arago- nesa? [Belmonte de Los Caballeros, Princeton University Press, Princeton, New Jersey, 1983 (1966)]. No entanto, as implicagdes desta alteragao para ‘a natureza da metodologia ¢ das categorias analiticas utilizadas s6 agora comecam a tornar-se visiveis. Em obras como as de MeDonough e de Puja- das e Bardaji, o préprio objecto de estudo poe em causa esta visdo ruralista dda antropologia; mas é em obras como as de Behar, Brettell, Cole e Bran- des, que descrevem contextos sociais perfeitamente ajustaveis & visdo tradi- 832 ional, que se vé como a antropologia tem mudado, adoptando uma visio Caminhos da antropotogia ibérica teoricamente mais complexa da insercdo das populagdes que estuda no contexto da sociedade que as abrange —de um ponto de vista tanto hist6- rico como politico e econémico. Lisboa, Outubro 1988 Soto de Pina Cabral Stanley Brandes, Metaphors of Masculinity. Sex and Status in Andalusian Folklore, Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 1980. As profundas assimetrias e conflitualidades que historicamente marca- ram a Andaluzia criaram um aparente paradoxo social: como é possivel reproducao de uma sociedade marcada por clivagens sociais to irreversi veis, tio irreconcilidveis? Este paradoxo (que é, afinal, o paradoxo const tutivo © dinamizador de todas as sociedades, embora com intensidades diversas) foi talvez a razio da existéncia de leituras antropol6gicas to for. temente contrastadas de realidade social andaluza. The People of the Sierra (1954), de Julian Pitt-Rivers, e The People of the Plain (1980), de David G. Gilmore, so os exemplos modelares desse contraste, Pitt-Rivers procedeu a uma pesquisa da comunidade cognitiva e moral que é forjada pelos valores sociogcogrificos do pueblo, desprezando analiticamente dindmica do conflito € da oposiea0; Gilmore fixou-se obsessivamente no antagonismo das classes sociais, desvalorizando as interdependencias entre (08 diversos grupos sociais e os seus valores possivelmente comuns. Em Metaphors of Mesculinity, Stanley Brandes? opera uma inovadora deslocagio do enfoque analitico tradicional na antropologia da Andaluzia: uma andlise particularmente influenciada pela psicologia e pela psicand lise sio privilegiados os modos de expressio dos actores sociais (sobretudo ‘masculinos), € ndo apenas os grandes critérias de estruturacdo da socie. dade, que so, de algum modo, exteriores aos prupos e, especialmente, 20s actores sociais. Brandes analisa rituais (0 cortejo dos gigantes ¢ dos cabe- gudos e a procissio em honra do Santisimo Setior del Consuelo), titulos, homes © pronomes, anedotas, partidas ¢ travessuras, adivinhas, juegos (peeas de teatro popular), as metéforas masculinas no discurso popular, 0 espago eo discurso na eclheita da azeitona e as atitudes religiosas. Todos estes modos de expressfo baseados no folclore transportam sentidos sociais ou individuais: sAo metaforas, expressBes e projecgdes concretas dos aspec- tos criticos da sociedade, da cultura, da pessoa em Monteros (0 pseud6- nimo da agro-vila da parte oriental da Andaluzia que foi estudada por Brandes em 1975-76 e 1977), ee tly rnd um ancoploga amercano, profesor na Untriade da Clin erkely),« 0 autor, alm dotvro agulapreentado, dos suites ito: Migraion Kis, 4hip and Communi. Tradition ina Spanish Vilage (1976) Gobre una dea covehana), Forty. The age and the symbol 983) e Power ond Persuasion. Fstas and Social contol Rural Mexico (988) For tamtem 0 eo-erganindor com M: Le C- Faster de Smbol ot ‘Sense. New approaches fo the enayss of meaning (1380), 833 Paulo Valverde Brandes mostra, assim, como algumas vivéncias aparentemente insigni- ficantes podem ser eruciais no modo como os actores e os grupos sociais se inscrevem na sociedade: 0 folelore enquanto performance na sua (re)encenacdo quotidiana € fulcral nesse acto de inscriedo. [Note-se toda a distancia que separa esta abordagem de uma aproximaedo estruturalista do folelore enquanto texto, onde os (re)produtores ¢ 0s actos de (re)encena¢ao slo irrelevantes.] Os géneros folclorisicos so, assim, fundamentais para ‘0s homens de Monteros construirem a sua identidade, para dotarem de sentido um mundo perante 0 qual frequentemente se pensam ¢ descobrem impotentes, para se olharem em espelhos simbélicos, sempre sem a neces- sidade de articularem directamente os seus propdsitos mais ou menos conscientes; isto & podem expressar-se metaforicamente sem 0s riscos psicolégicos e sociais que uma expressao directa poderia envolver, ‘A forte influéncia da psicologia © da psicandlise no esquema analitico de Brandes pode suscitar inquietagées e cepticismos no antropélogo fre- quentemente socializado numa tradigao durkheimiana de Fobia do psicol6- ico. Mas, a meu ver, a aproximagdo de Brandes & exemplar na gestio transdisciplinar das relagdes entre psicologia, psicanalise e antropologia social e cultural. Sem nunca ceder as derivas fantasistas que, por vezes, tentam os psicanalistas, Brandes desenvolve um esforco inteligente para superar o fosso entre o individual ¢ o social/cultural. Ha, porém, um problema particular ligado a este tipo de transdiscipli- naridade: a sua forte énfase na tentativa de apreender o inconsciente indi- Vidual e colectivo. Os estudos que adoptam esta perspectiva fazem-nos sus- peitar, algumas vezes, que o inconsciente dos individuos dos grupos estudados ¢ sobretudo fruto da imaginagéo (ou, se se quiser, de uma hiper- consciéncia vagamente demitirgica) do analista. E, como Devereux notou (1967; ef. Crick, 1984, p. 24), uma grande parte da metodologia das cién- criam no observador. Num caso extremo, os métodos s4o mais elucidativos sobre 0 estado de espirito do investigador do que propriamente sobre 0 abjecto de investigacio. Brandes considera, de facto, que 0 sentido do folclore que estuda ¢ lar- gamente inconsciente (1980, p. 12), mas ndo exclui a possibilidade de os actores sociais possuirem uma maior ou menor consciéncia desse sentido. Algumas interpretagdes de Brandes podem oscilar entre o intrigante © 0 itritante (por exemplo, sobre os significados metafricos dos gigantes e dos cabegudos cf. Fernandez, 1983, p. 163). Parece-me, no entanto, que a extrema preocupasdo em estudar o folciore na sua dindmica contextual (nunca invocando universalismos falazes) ¢ em deserever os processos de Socializacdo e transmissdo cultural constitui uma eficiente protecedo meto- dolégica e analitica contra qualquer reducionismo psicoldgico. A sua sensi- bilidade 20 psicolégico permite, em contrapartida, entre outros aspectos, ‘mostrar como as emogdes (mediadas por metdforas e, deverto, retrabalha- das culturalmente) so importantes para a cognisao € a prépria transfor- ‘mago do social. Monteros é uma tipica agro-vila andaluza, economicamente baseada na olivicultura e mareada por uma forte confltualidade social, sexual e gera- 834 _cional (1980, pp. 25-27). Brandes considera 0 folelore um dispositive que Caminhos da antropotogia ibérica ‘8 habitantes de Monteros utilizam mais ou menos conscientemente para cnfrentarem, e reflectiren sobre, esta conflitualidade e para resolverem os seus conflites de identidade, Ha dois problemas ce identidade que parecem constituir as preocupa- g0es fulerais dos homens de Monteros (id, p. 6): 0 seu lugar na hierarquia Social e as suas relagdes com as mulheres. O primeiro problema remete para o dominio mais geral do status social (um conceito que Brandes ut liza latamente para cobrir todas as formas de categorizagio, excepto a sexual). O segundo problema tem a ver com a delimitagdo das similarida- des e sobretudo das diferengas (que os homens consideram serem funda ‘mentalmente biolégicas) em relacdo as mulheres. So. precisamente os zéneros folcloristicos que auxiliam os homens a reflectirem sobre a sua condigao de seres sexuais e sociais (id., p. 7). © problema do status social é particularmente interessante, sendo sgerado em parte pela coexistEncia de diversas critérios para a sua defini- gio, Em termos de classes, os habitantes locais distinguem dois grupos socioeconémicos principals: uma pequena élite educada ¢ a massa dos tra~ balhadores analfabetos e semianalfabetos que vivern dos seus salérios. Mas 1nd outros sistemas de catzgorizagio baseados em outros critérios: 0 critério da educagdo e da sofisticardo, que & privilegiado pela élite fundiéria e que origina a dicotomia gente culta/gente humilde; 0 critério do dinheiro, que € privilegiado pela maioria da classe trabathadora, produzindo uma dicoto- mia entre, por um lado, fos ricas, [os grandes, los capitalist, los gordos , por outro lado, Jos pobres; e, finalmente, o eritério da independéncia ‘ocupacional, que origina a triade ricos/medianos/obreros. A existéncia estes modos de classificagao entrecruzados, combinados com sistemas de valores concorrentes, explica a auséncia de um sentido seguro de identi- dade social. Mostra, além disso, aue o problema da dominagiio ¢ da sish- ‘isso intervém sighificativamente na «construgao social e individual do uotidiano» e na percepgio e definicao da identidade (sempre instavel, fé- mera, ameasada) dos individuos ¢ dos grupos sociais, Estes problemas da identidade masculina relacionam-se estreitamente ‘com a visio masculina sobre as mulheres. O temor do perigo potencial que € encarnado pelas mulheres move os homens a tentativas de dominacao cexclusdo social das mulheres (id., pp. 75-76). Elas sao potencialmente des- trutivas, sobretudo através da sua atraceao sexual [«pueden mds dos tetas que cien carretasy (id., p. 77}, a que os homens nao podem ou nao sabem resistir. Note-se que 0 locus do poder e da vontade esta supostamente situado nos Srgios genitais masculinos (id., p. 92). A mulher priva 0 hhomem do seu sémen (um bem vital limitado) ¢ incorpora-o no seu corpo. Assim, as mutheres podem privar os homens da sua masculinidade, feminizando-os simbolicamente (por exemplo, provocando a morte prema tura do marido ou comeendo adultério) Esta concepgdo mascalina sobre a mulher 6 validada moralmente: ha uma moralidade dicotémica entre os sexos. Os homens consideram-se {ntrinsecamente mais virtuosos que as mulheres: «© homem é 0 bem, a mulher 0 mal» (id., p. 77). Uma oposigao moral que, segundo o autor, se articula com duas’cadeias metaforicas opostas e distintas: Deus ho- ‘mens : ovelhas :: Diabo : mulheres: cabras. A alegada superioridade moral dos homens possui, assim, também uma legitimagao religiosa e econémica, 835 836 Paulo Valverde E aqui que se inscreve 0 jogo de agressividade e defesa que parece caracterizar a sociedade masculina de Monteros. Os homens locais preci sam de se proteger contra a permanente ameaca fisica e moral, que & encar nada pelas mulheres. E, enquanto detentores de uma posieao social especi fica, precisam de se resguardar a si prdprios e as suas familias contra as permanentes injustigas e intrigas da sociedade. A estratégia fundamental para preservar a posicao de um individuo no mundo e para consolidar a sua prépria identidade masculina & precisamente uma postura de agressivi- dade, Esta combinatéria de agressividade e defesa caracteristica da mentali- dade masculina encontra, na opinido de Brandes, um eseape adequado nas anedotas, partidas e adivinhas e outras formas do folclore, que operam, assim, como vélvulas de seguranca culturalmente sancionadas. Elas permi- tem, além disso, 0 comportamento diplice ¢ simulado que & a resposta necesséria a um mundo que, segundo uma concep¢do peculiarmente espa- hola, & composto de aparénciasilusérias: o mundo é imprevisivel, as apa- réncias desmentem a realidade (id., p. 175). As referidas formas do fol- clore socializam as pessoas num estado de espitito fortemente céptico que as prepara para enfrentarem as situagdes mais criticas do quotidiano, ‘© medo comum a todos os segmentos da sociedade de Monteros é, na verdade, o medo da vitimizagdo: 0 ser colocado & mercé e sob o capricho dos outros, de perder a autonomia pessoal (id., p. 159). Qualquer Pessoal torna um individuo em vitima. A piedade, a troca, 0 riso dos ‘outros, so formas de dominacao que devem ser evitadas a todo 0 custo. © mecanismo de autoproteceio fundamental 6, pois, a necessidade de hhunca se revelarem segredos importantes a ninguém. Reencontramos aqi velhas questées simmelianas: o conhecimento € poder ¢ € reproduzido (também) pelo segredo. ‘A pessoa é concebida, assim, em Monteros como um centro de expe- rigncias e pensamentos de importancia critica (id., p. 160) que ndo devem ser desvendados. E isto que explica a relutancia dos homens de Monteros fem relagdo confissdo: ela envolve © grave risco de ser revelado um tesouro pessoal de pensamentos e experincias que séo a esséncia singulari- zante de cada individuo Gd., p. 187). AAs abordagens do ritual, do espaco e do humor constituem, de par com a andlise da concepeao da pessoa, os momentos exemplares do texto: 40 fascinantes (na minha leitura comprometida e pessoal) ¢ guiam-nos na desocultacdo da textura da sociedade e da cultura locais. A aproximacao do ritual nao é, decerto, original (Iembremos toda a tradi¢ao antropolégica de estudo do ritual nas sociedades no europeias, ‘onde pontifica Victor Turner), mas nao deixa de ser significativo surpreen- tas de Moreno Navarro, da Universidade de Seva. "'Vejase a reensto 20 livro feta por Susan Tax Freeman no American Evhrologist, ‘pp. 800-80. ‘Ves, por exemplo a colecineaedtada por Aceves « Douglass The Changing Faces 848 of Rural Span, Schenkman, Cambridge, Massachusts, 1976 Me Caminhos da antropologia ibériea © TERRITORIO A leitura da paisagem & a primeira aproximagdo a particularidade de Santa Maria del Monte: as dimensdes da aldeia, a ocupagdo dos campos, a relagdo entre mato e cultivo e entre diferentes cultivos, bem como a frag: ‘mentagdo das parcelas, sio algumas das expressGes fisicas da histdria e das relagoes que estruturam e sustentam aquela sociedade. Estas englobam as sgrandes arroteias, a Reconquista ¢ a fixagdo de colonos locals, o sistema de produgio em campo aberto, com afolhamento bienal, a combinagio de agricultura e pastoricia, a administracdo colectiva, a repartigio igualitétia dos bens de cada familia pelos seus herdeiros. ‘A aproximagéo fisica ao terreno culmina no estudo da casa camponesa, que revela a forma como as geracdes se relacionam e expressam essas rela- ges em termos de patrinénio. A casa nio & em Santa Maria, a0 contrério do que se passa nalguns contextos ibéricos conhecidos, um organismo todo poderoso de que depends a identidade dos individuos e das familias*, No 86 nio o ¢ classificatoriamente, na visdo da autora, mas também nao é um organismo fisicamente rigido. E antes um agregado flexivel que se pode ‘ransformar com o fiir das geracdes, que se pode repartire acrescentar de acordo com divisoes estabelecidas pelas unidades familiares. Esta questao levanta toda uma discussio relacionada com a familia, que merece set vista ‘em detalhe. CASA E FAMILIA Talvez seja este o capitulo em que teria havido mais vantagem se 0 ‘material es tivesse organizado de acordo com as discusses da antropologia cm relagdo a casa, familia, grupo doméstico. A opeto empirista da autora Jeva aqui a um tratamento relativamente superficial da estrutura familiar: ‘contrasta a familia leonesa com os tipos extensos descritos para a Catal- nha € a Galiza e descreve-a segundo o ideal de Santa Maria —nuclear, de residéncia neolocal e segundo as regras de partilha igualitaria da heranga. Assummir simplesmente este modelo ¢ um pouco ingénuo, Na verdade, ‘entre 0s préprios materiais fornecidos por Ruth Behar se discerne a com: plexidade que toma a constituicdo das novas unidades domésticas: um pro- ‘ce550 que se estende por vérios anos pde em jogo diferentes estruturas ideais. Neste processo se percebe que os diversos elementos que definem a independéncia de uma nova unidade doméstica se vio afirmando em ‘momentos separados de tempo, por vezes intercalados de Varios anos. De inicio, os recém-casados residem com os pais de um deles, geral- mente da muiher, ¢ cada um dos cénjugues trabatha e come com a respec- tiva casa de origem. A sua independéncia definir-se-4 depois eomo unidade de consumo, estabelecendo uma nova residéncia—geralmente para dar lugar, na casa paterna, 20 seguinte irmdo ou irma a contrair matriménio, 6 mais tarde se afirmando como unidade de produgdo. Inicialmente, 6 casal cultiva algumas parcelas pertencentes.aos pais, a troco de prestagdes Vejamse as etnografias da faixa norte da Peninsula Ibérica, da Catalunha 20 Pais Basco, i Gala, a Tri-oeMantes © 20 Minho. 849 materiais que so idealizadas como dadivas. S6 depois da morte dos pais da legalizaedo das partilhas 0 «novo» casal (entdo jé adiantado no ciclo doméstico) se considera titular das parcelas que cultiva. A partilha € tam- bbém um processo complexo, que idealmente deve prover cada nova casa de uum conjunto diversificado de terra ardvel, de pasto e de terreno irrigado para hortas. Neste processo ha tensbes, confftos e resolugies que a autora no reduz a um modelo, dando antes amplo material substantivo de casos reconstruidos através de entrevistas e documentos familiares. Seria interes- sante ter explorado a confrontaco deste material com materiais e modelos relativos as mesmas questdes noutros contextos, ¢ a antropologia europeia- nista estd plena de casos que poderiam servir para 0 efeito. A ORDEM COMUNITARIA Os capitulos dedicados ao estudo do concejo tem o maior interesse para o leitor familiar com a literatura relativa 20 comunitarismo ibérico de montanha. A administrarao dos interesses colectivos em Santa Marla ofe- rece notaveis convergncias ¢ variagSes em relaglo a0 que é conhecido de ‘outras partes da Peninsula. Deve notar-se que a autora usa 0 termo con- cejo para duas realidades diferentes, que em portugues se distinguem como ‘«concelhoy e «conselhon. Uma s6 vez usa a ortografia consejo, citando fontes espanholas. Convém, pois, termos presente que a designagao ea dis- ccussio se referem a ambos os fenémenos: a unidade administrativa © 0 Srgio de decisao local. De acordo com a historiogratia ibérica, as comunidades como Santa Maria tém origem na colonizagao que seguiu a reconquista cristae as arro- {cias que desbravaram a mata primitiva. Essas comunidades teriam gozado de relativa autarcia, com formas de governo local que nalguns casos teriam subsistido até ao presente, como no caso de Santa Maria, e, na etnogratia portuguesa, de Riodonor. O retrato que nos ¢ dado do conselho local de Santa Maria é todavia o de um drgao mais aberto e flexivel que o conselho de Riodonor descrito por Jorge Dias*: ao contririo deste, onde um rimero fixo e limitado de casas tem assento, aquele esta aberto a novas ‘entradas, bastando para isso a consttui¢ao de uma nova casa, ‘Tanto os camponeses, como os eruditos espanh6is que no século xix esereveram sobre 0 assunto, concebem o comunitarismo aldedo como a forma ideal de enfrentar um meio to hostil como de Leao, Ruth Behar adopta esta visio, complementando-a com reflexdes acerca da solidarie- dade aldea, radicando o argumento nos clissicos da sociologia e da cincia politica, O’ conselho ¢ analisado como a expresso de uma pertenga colec- tiva e 0 érgao donde emanam as regras que gerem a vida comum; € 0 pponto de encontro dos diversos interesses privados e do interesse piblico. Na assembleia se regulam os conflitos que os podem opor, se instituem for malmente a8 regras, que se registam, para a posteridade, nas actas, Foi precisamente no acervo de actas de concejo que a autora encontrou uma das principais fontes de motivagao para estruturar 0 trabalho como uma sondagem a relagdo entre o passado e 0 presente. 850 "Jorge Dias, Rio de Onor, Comunitariomo Agro-Pastori, Post, 195, Caminhos da antropologia ibérica Nessas actas se apercebe a forma como os conflitos so resolvidos, os interesses so orientados para conversir e quais sd0 as medidas concretas ‘que mantém a solidariedade disciplinada. H4 dois fenémenos que a autora analisa como os casos mais expressivos da vivéncia comunitaria: as hacer deras, ou trabalhos colectivos de interesse comunitério, e 0s funerai © conselho zela pela execucdo das primeiras, instituindo multas para os infractores; a participagio ¢ feita por unidade familiar —sem que, depois do quadro anterior sobre a familia e a casa, fique muito claro 0 criterio definidor dessas unidades. Parece-me que a autora adopta a divisdo de ui dades, tal como € evidente para os camponeses, sem que isso obrigue a um desenvolvimento analitico. A mesma unidade define a participacao nos funerais: cada casa/familia deve enviar um representante as exéquias de qualquer membro da comunidade falecido. O evitar da reprovac&o colec- tiva € visto como motivagdo suficiente para cumprir esta regra, indepen- dentemente de as motivagdes pessoais convidarem a participagdo nas exé- uias ou nao, A PROPRIEDADE E A TEIA DE DIREITOS CONSUETUDINARIOS. A parte dedicada & relacdo entre a propriedade camponesa e 0 con- Junto de direitos e deveres definidos pelo costume é porventura a que mais interessara os antropdlogos e soard familiar aos conhecedores de etnogra- fia transmontana e barrasd. Aqui se analisa a forma como, através do uso, se institu toda uma teia de direitos que se entretece, e sobrepde, aos dir 10s individuais sobre a terra legalmente definidos. Tal é o caso do sistema de campo aberto com dupla folha, em que os proprietdrios das parcelas devem respeitar a determinacdo de cultivo ou pousio para essa zona em sada ano’. Nu tempo de pousio, os campos podem ser Usados para pasto- rear 0 gado dos rebanhos colectivos. Para além disso, o mato dos tetrenos podia ser apanhado por qualquer pessoa entre Fevereito e Junho. (0 rebanho colectivo é uma das instituicdes comunitdrias que subsisti- ram até ao presente. O seu nome, vezeira (vecera), vem do facto de set pas- toreado «a vez» por um elemento de cada familia que ld tem gado, 0 que fem Santa Maria tem ume razdo de um dia de trabalho para cada dois ani ‘mais. A mais importante é a vezeira das vacas, que hoje é confiada a um profissional e j nio ¢ de participasdo obrigatdria; mas também existem Vezeiras de outros animais. Complementarmente, existe ainda a instituigao do touro comunitario. Santa Maria ofereve-nos um caso particularmente interessante para a discussao geral sobre a privatizagio dos terrenos baldios no século XIX. Os terrenos que até entéo cram de uso pilblico, sujeitos a «sortes» individuais tempordrias, passaram a ser sujeitos a «sortes» individuais definitivas, on scja, tornaram-se proprisdade privada. Em vastas regides ibéricas, esta apropriagio teve 0 efeito de extremar a estratificagzo nos campos: alguns tornaram-se proprietérios exclusivos, outros assalariados para sempre. 7 Ruth Behar refer que osistema de campo aberto —ourar tdo come prk-itric, hoje acrditado medieval ss fix plenamente em Leo © Cassia nor silos XVR¥I, 851 Cristiana Bastos = [Nao se pode, todavia, generalizar esta relagdo: cada caso merece ser esti- dado na sua particularidade e alguns deles podem demonstrar uma relago diferente entre a privatizagdo © a estratificaedo. A autora levanta varias uestdes, formulando a hipétese de que, em Sania Maria, a privatizagio pode antes ser vista como uma medida evitando o extremar da estratifica- eho. A aquisicdo de «sortes» definitivas seria uma forma de evitar riseo de a maioria dos aldedos se tornarem jornal © PRESENTE E 0 PASSADO. Os dois sltimos eapitulos do livro so de uma excelente qualidade de cescrita e reflexto. Se, a0 longo do livro, o estilo pessoal pode ter feito per- der a nitidez de alguns dados ¢ argumentos, aqui atinge a plenitude. ‘A autora guia-nos perante as suas reflexdes sabre a forma como 0 passado € vivido no presente, demonstrando uma intimidade sensivel com o terreno em que viveu. Narra-nos as histdrias, também elas familiares em forma ¢ temética para aqueles que privem com as terrenos portugueses, sobre as lorigens, os conventos de freiras e de frades, as ruinas, os tesouros, os desa- parecimentos, ¢ também sobre os Mouros, os antepassados e a mistura de tempos que a meméria produz na consciéncia. Nao se limitando as categorias reducionistas de tradigao oral tradigao eserita, a autora prolonga a reflexdo & natureza e funcio escrita na s dade camponesa. O uso local da escrita, instituido no século xV1, pode ser interpretado a trés niveis, segundo as trés tipos de documentos locais criados: Os documentos familiares ou ade cozinha» (kitchen documents) que cstabelecem a ligapdo entre algumas geragdes, definindo as determi nnag6es particulares relativas & partilha dos bens nessa familia. Estes documentos sio relativamente efémeros, geralmente no duram uitas geragdes e so durante esse tempo conservados na casa que é referida como 0 tronco da familia, ou seja, aguela que foi her- dada através das geracdes. Aqui, a escrita é a vor de um passado recente cuja extenso ndo vai muito além da meméria. As actas do conselho, que representam a materializacdo de uma von- tade comunitaria, ¢ um conjunto de regras instituidas através do tempo para regular conflitos locals. As regras so definidas caso a ‘caso e servem de modelo para futuras situagdes andlogas. Estes documentos so cuidadosamente guardados através das geragdes de consellos. Aqui, a escrita & 0 suporte material do corpo comunitd- rio. Enquanto a casa familiar no é vista como uma corporagao rigida, mas antes como uma estrutura fluida, 0 concejo €0, © as actas stio a meméria desse facto’. Refer @ autora que, durante o regime fanquista, as acts eram regularmente super sionadas pelo cade passaram a tort a forma de atio de melhris locals. Fst acto ‘cabo por tomar a ata um documento do tere tipo, que liga duasinstnclas de poder 852 erarqizadas. _ Caminhos da antropologia ibérica ‘As ordenangas, que serviam de ligagdo entre as esferas local e estatal, que nos mostram como a autarcia tem de ser vista em termos rela” tivos, pois © pocer local existia dentro de certos limites e o poder estatal era determinante a varios niveis. Aqui, a escrita é instru mento de dominagdo, representando a forma como a coroa se impunha as comunidades, No epilogo, Ruth Behar faz-nos uma sintese das transformagbes recen- tes que se deram em Sania Maria del Monte, alids del Condado, apés o seu trabalho de campo (1980). A transformacao de maior impacte terd sido a consolidagio das parceles, que mudou significativamente o earécter hiper- disperso da propriedade rural. Gracas a um plano governamental imple- ‘mentado pelos engenheicos agrénomos, substitui-se uma situagdo em que cada familia possuia dezenas de parcelas dispersas por toda a parte por luma outra em que cada familia tem menos parcelas, mas maiores ¢ mais concentradas. Tecnicamente, a nova situagdo permite um uso mais rendivel do terreno, uma vez que permite a utlizacdo de maquinaria agricola e evita 1 perda de tempo em desiocagdes, bem como as perdas originadas pelo des- conhecimento dos direites sobre parcelas demasiado distantes, Estas vanta- gens tém todavia de ser confrontadas com outros aspecios que niio si0 veis na apreciagdo econémica promovida pelos engenheiros, mas que s40 bem evidentes para os camponeses: cada localizacao de terreno tem as suas nas 854 citncias sociais tem trazido, cada vez mais, para um plano central. A titulo Caminhos da antropologia ibérica de exemplo, poderemos referir 0 capitulo 3 («Family and Household: Nup- tiality in Lanheses»), em que a etnografia sugere uma nova interpretagao dos padrées de residéncia que podem ser reconstruidos a partir de series de ris da desot 2 a utilizagdo exclusiva desta ultima fonte dificil- mente permitiria (ver, em particular, pp. 162-164). Esta tensdo entre a informacao construida a partir do documento escrito e a construida a par- tir da etnografia percorre todo o trabalho, mesmo quando 0 recurso etnografia nao é explicto. A andlise assenta, basicamente, em dois tipos de documentos: os regis- tos paroquiais e os ris da desobriga. Uns ¢ outros sto utilizados recor- endo a procedimentos bem conhecidos dos especialistas de demogratia hist6rica e de histéria da familia, e que se apoiam no eruzamento nomina tivo dos registos. E interessante referir 0 modo como a autora utiliza casos seleccionados do corpus documental que construiu de modo a «pdr alguma carne» a volta do «esqueleton que emerge da aplicagdo eldssica da técnica de reconstituigao de familias, interpretando-os em relago com 0 registo etnogréfico. Este procedimento aproxima-se do que é hoje comum entre alguns praticantes da chamada «micro-histéria» (C. Ginzburg, Natalie Z. Davis, G. Levi, H. Medick ou D. Sabean, entre outros) e mereceria uma aplicagao mais generalizada, particularmente em estudos de histéria con- tempordinea. 'No que respeita ao tratamento do tema da emigragio, C. Brettell pro- curou discuti-lo em articulagdo com dois outros problemas: 0 da chamada stransigao demografica» e 0 dos papéis femininos. Neste campo, a contri- bbuigdo mais inovadora da autora parece-me situar-se na tentativa de tratar ‘de maneira integrada o problema da reproducdo social, dedicando atengao explicita a0 regime demografico e ao seu funcionamento em condicdes de forte desequilibrio dos efectivos por sexo, atribuivel ao cardcter predor dnantenvente masculino da emigragao. Esta situagao niio deixou de influen- ciar fortemente a posigdo social das mulheres na comunidade estudada ¢ de afectar os padrdes de nupcialidade e de fecundidade, legitima e ilegitima. A autora discute em pormenor a inter-relagio entre a emigracao, a intensi- dade do celibato o casamento tardio, a fecundidade legitima clevada e a tardia queda da fecundade, ¢ a ilegitimidade moderadamente elevada, seguindo a evolugdo destas varidiveis de inicios do séeulo XVII a cerca de 1970. Um tema que merece igualmente uma atengao especial por parte da autora € 0 daquilo que designa por «matri-centralizy da sociedade ‘minhota, ¢ em particular a sua telacdo com os padrdes de emigragdo ¢ as estruturas familiares. Seria interessante, neste ponto, uma leitura compa~ ada do trabalho de Joao de Pina Cabral ( Fithas de Adio, Fithas de Eva, D. Quixote, Lisboa, 1989), que incide sobre o concelho vizinho de Ponte da Barca. Se algo hd a aponter ao trabalho, parece-me ser, em primeiro lugar, © facto de, apés o apette do letor ter sido agusado com referéncias 20 que se adivinha ser um riquissimo registo etnografico, este ocupar, no corpo da ‘obra, um lugar secundério em relacdo apresentacao e discussao do mate- rial claborado a partir dos registos paroquiais © rdis da desobriga; em segundo lugar, e dado que o trabalho foi elaborado durante periodos de residéncia da autora em Lanheses apés 0 25 de Abril, teria sido interes- Sante incluir uma discussio de dois fenémenos de particular interesse ocor- 855 855 Joao Arriscada Nunes/ Jorge Mesquita ridos durante esse perfodo: 0 répido e intenso declinio da fecundidade nos anos 70 ¢ as repercuss6es locais das transformagSes posteriores 20 25 de Abril — tema este que, als, foi abordado pela autora num curto trabalho ppublicado em 1979 («Emigration and its Implications for the Revolution in Northern Portugal», in L.S. Graham e H.M. Makler (eds.), Contemporary Portugal — The Revolution and its Antecedents, Austin, University of Texas Press, 1979, pp. 281-298). Estas duas limitagoes nada retiram, con- tudo, a excepcional qualidade do livro. elas perspectivas abertas no plano metodolégico, como pela sua con- tribuigdo decisiva para os estudos sobre a emigragao, a demogratia histo rica, a historia e sociologia da familia e a situacdo da mulher, Men Who Migrate, Women Who Wait €leitura indispensavel para todos 0s cientistas sociais interessados em Portugal e na andlise comparativa dos temas que na obra sio abordados. Esperemos que uma rapida tradugio deste livro 0 orne brevemente acessivel ao piiblico de lingua portugues Jodo Arriscado Nunes Joan Bestard Camps, Casa y Familia: Parentesco y Reproduccién en Formentera, Palma de Mallorca, Institut d’Estudis Balearics, 1986, 185 pp. ‘A oposicdo entre filiagao e residéncia tem mareado muitos dos estudos sobre parentesco desenvolvidos nas tiltimas décidas no contexto europeu. Casa y Familia em 0 mérito de reapreciar a ligacto entre estes dois concei- tos e de relativizar o papel do parentesco na organizacao das sociedades camponesas. ‘Aparentemente, Camps apresenta uma abordagem cautelosamente des- provide de originalidade: 0 seu propésito inicial ¢ a andlise do papel do parentesco no que ele designa por sociedades complexas, através do estudo de genealogias, das formas de transmissio de terra e das préticas matrimo- niais observaveis na pequena itha de Formentera. Eo proprio Camps a advertir que a escolha de Formentera poderia prgpiciar um ordenamento dos dados propiciatérios a uma disposigdo harménica dos processos de continuidade ¢ descontinuidade das relagdes de parentesco, fundando a caracterizagdo da organizacao social em aspectos infra-estruturais, como a ecologia, a economia e demografia, aspectos que seriam entendidos como suficientes para explicar o sistema de parentesco, o tipo de familia e a orga- nizagdo da vida doméstica Contudo, nem Formentera € entendida como um isolat sociol6gico, nem tio-pouco é impresso um cardcter harménico e homogéneo &s préticas observadas ao nivel do parentesco; a coexisténcia deste com outras formas de associagdo, como a vicinalidade e a amizade, remeteria a compreensao das relagdes de parentesco para os niveis em que se constréi a identidade individual, domestica e territorial O conceito de casa revela-se importante para a formasao da identidade, que deriva nao s6 de uma identificagao patrimonial, como também de um conjunto de lagos desenvolvidos por individuos que partilham um espago vital. Assim se compreende que, ainda que 0 parentesco nfo domine a estrutura social, se possa falar de um uso simbdlico do parentesco ao nivel da ilha, «ndo tanto com base nas relacdes sociais, mas como simbolos rela- cionados com os modelos locais de hierarquia, estatuto e identidade» {p. 91). E neste sentido que Camps entende que as ideias de consaguini- dade tém a ver com os modelos de hierarquias entre casas, com as formas de relagdo entre familias com 0 mesmo estatuto (conceito que nao aparece suficientemente explicitaio), assim como com o contraste entre a diferen- ciagdo local e a homogencidade global ao nivel da ilha. (0 cruzamento dos dados relativos aos matriménios com os relativos as dlispensas matrimoniais que sobre eles incidiram permite a Camps concluir, sem muita sagacidade, que as praticas de alianga entre casas seguem 0 prin cipio de casar «nem muito préximo, nem muito distante». Este tipo de

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