Você está na página 1de 1

Público • Sexta-feira 2 Julho 2010 • 35

Não é só o tempo do socrático “Estado sou eu” que está a acabar: também acabou a era de “o Estado é o país”

A vida mudou. É tempo de mudar de vida

O
MIGUEL MANSO
que se passou quarta-feira na assembleia
geral da Portugal Telecom representou
uma enorme derrota para o Governo – e
mostrou até que ponto este e, em espe-
cial, o primeiro-ministro vivem fora do
mundo real. Os patéticos afogos patrioteiros de José
Sócrates – “o Governo fez o que devia fazer para
José defender os interesses estratégicos de Portugal e
Manuel da Portugal Telecom” – não escondem o mais im-
Fernandes portante: o falhanço em convencer os accionistas
sobre o entendimento que o executivo tinha do que
Extremo eram esses “interesses estratégicos”. E a incapaci-
ocidental dade de compreender que, ao tentar inviabilizar o
negócio utilizando um instrumento – a golden share
– condenável e condenado, se está a comprometer
o próprio futuro da PT. Para além disso, este tipo
de intervenção faz diminuir, a prazo, o valor de to-
das as empresas onde o Estado tem uma palavra a
dizer, sendo que o evidente divórcio entre a PT e
a Telefónica não permite considerar “estratégica”
uma empresa, a Vivo, onde cada uma delas detém
50 por cento do capital e não se entendem. Como es-
crevia certeiramente o Financial Times, “a estupidez
colonial ainda não morreu” e, como acrescentou o
El País, tal decisão demonstra “que a unidade econó-
mica europeia é impossível enquanto se mantiverem A dura verdade é que, Economia Portuguesa, As Últimas estímulos ao consumo privado que, como tal, ge-
estes gestos de nacionalismo rançoso”. Décadas, de Luciano Amaral –, ram ainda mais endividamento não reprodutivo. O
Mas este é apenas mais um episódio do teimoso quando analisamos os nossos males não começaram ciclo é o do abismo.

S
“estado de negação” em que se encontra o actual há dez anos atrás, altura em que
Governo, incapaz de perceber não que o mundo
a evolução do país desde quase deixámos de crescer. A dura ó nos resta mudar radicalmente de vida.
mudou em Abril, mas mudou há muitos anos, e o 25 de Abril, notamos que verdade é que, quando analisamos E de forma muito mais profunda do que
que não tem o actual poder, nem tem o país, outro a evolução do país desde o 25 de imaginámos. Ou, sequer, do que associamos
remédio senão mudarem de vida. E depressa. Não só no custo período entre Abril, notamos que só no curto pe- aos anos difíceis em que o FMI tomou conta
é possível, como o Estado fez na PT, pensar que se 1986 e 1992 houve uma ríodo entre 1986 e 1992 houve uma do Ministério das Finanças.
podem encaixar milhões privatizando uma empresa real e rápida convergência entre Para os portugueses é tempo de, por assim dizer,
e, depois, continuar a mandar nela. Mas sobretudo real e rápida convergência a nossa riqueza per capita e a dos “saírem de casa dos pais”, por muito aflitivo que isso
não é possível continuar a olhar para o país, para a países mais desenvolvidos. Pior: na possa parecer. E sair de casa dos pais significa sair
Europa e para o mundo como se os governos ainda
entre a nossa riqueza última década passámos pelo mais de debaixo da protecção deste Estado falido e om-
pudessem actuar hoje como faziam no passado. per capita e a dos países longo período de divergência real nipresente. Não abdicando da protecção social, pois
Quando a actual crise estalou, não faltou quem dos últimos cem anos e, sobretu- essa não encontrariam noutro lugar, mas sacudindo
defendesse a necessidade de o Estado regressar em mais desenvolvidos do, acentuámos a divergência no esta espécie de semitutela que pesa sobre a nos-
força à economia. Quem defendesse e quem apli- que respeita aos ganhos de produ- sa vida colectiva e que começa na escola primária
casse. Só que, como era inevitável, o regresso do tividade. Se nos lembrarmos que para culminar nas assembleias gerais de empresas
Estado traduziu-se em enormes défices que geraram A seguir à crise do não temos instrumentos de política privadas. Para isso acontecer é necessário acabar
enormes dívidas. Esta espiral durou até ao momen- monetária capazes de forçarem um com o actual Estado paternalista e dirigista que é,
to em que quem empresta o dinheiro começou a
sub-prime veio a crise aumento da competitividade ex- pela sua natureza, o primeiro e principal incentivo
ter medo de não o conseguir receber de volta, e da dívida soberana. Sem terna e que a população está “cru- à inacção e ao acomodamento.
os juros dispararam. A seguir à crise do sub-prime cialmente dependente do Estado O único milagre que nos permitirá escapar à “la-
veio, assim, a crise da dívida soberana. Sem dema- demasiada surpresa: se a Providência”, concluímos que os tino-americanização” ou à cedência da nossa sobe-
siada surpresa: se a engenharia financeira não faz engenharia financeira não dilemas que se colocam a Portugal rania é o aparecimento de centenas ou milhares de
multiplicar o dinheiro, a engenharia orçamental são virtualmente inultrapassáveis. iniciativas privadas capazes de, ao mesmo tempo,
não consegue cobrar mais impostos onde já não faz multiplicar o dinheiro, Nenhuma estatística conjuntural, atraírem investimento estrangeiro, contribuírem
há suficiente riqueza. daquelas de que Sócrates gosta de para o aumento da produtividade e venderem bens
a engenharia orçamental falar, ilude uma decadência tão ir-

N
ou serviços fora do país. E a única forma de essas
o passado era possível acreditar que a não consegue cobrar mais remediável que o problema já nem empresas aparecerem e crescerem é fora do rega-
economia se podia reavivar através de sequer é o de saber se o tipo de ço adiposo do Estado, longe do comando central
estímulos orçamentais, mas a Europa de impostos onde já não há vida que temos levado é susten- dos governos, antes fazendo-se ao mundo sem se
hoje não é igual à de há 30 anos, nem suficiente riqueza tável, pois só os cegos não vêem sentirem atrofiadas pelo peso crescente das con-
sequer é igual aos Estados Unidos. De que é insustentável: o problema tribuições, dos regulamentos, dos pareceres e dos
resto, como correctamente lembrou o ministro das começa a ser o de saber se o país burocratas que querem controlar tudo.
Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, no Financial é sustentável sem se transformar num protectorado Tal só será possível reduzindo o tamanho do Es-
Times, a dinâmica demográfica da Alemanha não económico da União Europeia ou do FMI. tado, que deve delegar cada vez mais em vez de
é a mesma dos Estados Unidos, o seu país está a Face a esta situação, os que pensam que os Esta- querer ser ele a ocupar-se de todas as tarefas. Ao
envelhecer – a Europa está a envelhecer –, pelo que dos ainda têm instrumentos e margem de manobra devolver poderes e tarefas à sociedade civil e às
será mais difícil às gerações futuras manter algum para, por via de golden shares, de renacionaliza- empresas, o Estado não só gastará menos como
potencial de crescimento e, ao mesmo tempo, paga- ções ou de mais impostos sobre a banca, relançar permitirá que os recursos antes consumidos pela
rem o serviço da dívida. Neste quadro, a vitória de o crescimento do país não estão apenas enganados, sua burocracia sejam aproveitados de forma mais
Merkel sobre Obama na reunião do G20 do passado conduzem-nos para uma pobreza cada vez mais eficiente no tecido produtivo.
fim-de-semana foi não só uma vitória do realismo, soviética. Pela simples razão de que gastarão cada Não estão apenas a acabar estes tempos socráticos
como uma vitória dos políticos responsáveis que se vez mais, cobrarão cada vez mais taxas e impostos do “Estado sou eu” – está sobretudo a acabar o tem-
recusam a atirar para cima das gerações futuras as e mesmo assim deixarão dívidas cada vez maiores, po para que, mudando de vida, olhando de outra
consequências dos desmandos de hoje. destruindo pelo caminho não apenas as grandes forma para as funções nobres do Estado, se inverta
No caso de Portugal tudo é mais grave, e não empresas nacionais como milhares de pequenos a espiral dos défices e das dívidas e se permita que
apenas por a nossa dinâmica demográfica ser ainda negócios prometedores. Até porque os “estímulos” o país reencontre energias para funcionar. É que o
pior do que a da Alemanha. É mais grave porque, à economia num país com a nossa dimensão e as Estado também não se confunde com o país, como
como se nota num livro recentemente editado – nossas características acabam por ser sobretudo por vezes se julga. Jornalista (www.twitter/jmf1957)

Você também pode gostar