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SOHOCHOOOHSHOHSHSHSHOHSHSHSHHHSHHHHHHTSHHECOEOO 0 texto de Edgar Morin ton 0 inegavel mete de introduzir uma nova ¢criativa Feflexto no contexto das discusses que est@a sendo fellas sobre a educagio para Ol Mel-ic-mot|eL koi} © proprio ttle ~ Os Sete Sebores Necessérios & Eduoagao db Future — 8 inlea va postura cferente dante dos exageros da sociedade do conhecimento. Este Pequeno grande lie aborda temas tundamentais para a educagio contemporinoa, (let lela) or vezes igneraes ou deixados & margom dos debates sobre a pltica ‘educacional Estou certo de que a tetura dos Saberes da Moca condi revs ‘as prions peiagdsioas de atuldade, tendo em visa a nacessidade de sitar a Educacgao do Futuro Importineia da ecuca¢ao na totalidade dos desafios © incertezas de nosso tarp. ‘Come diz Morin, as cidncias permitiram que compreendBesemos miultas certezas No entanta, alas também ajudaram a revelar as zonas de incertezas. Dessa forma, ‘& politica pedagiigia precisa carwerierss em ium instruments que conduza © jsiudante a um dislogo criative com as divas roqagbes db noss9 Yemp2, condigdo necessdria para uma formagéo cidadi. No se pode mais ignorar @ urgéncla de univorsalizago da cidadania, que, por sua vez, requer uma nova ética ete oa ©, por conseguinte, uma escola de educaréo ¢ cldadania para todos, Célio da Cunha — Assessor da UNESCO @ Prot Acjunte da Faculdace de Educarto da Uni BC-FSA sn AMER | i lh a= iii) «= il a7 418 COOHOOHNSOHSHHSHSHOHHOHSHHHHSHHHHHSHOOOS ATRO UNIVERSITARIO. aga Sano anon | Etes UNESCO Bas BEDE Conselho Elita ‘orge Werthein Maria Dulce de Almeida Borges " ‘Célo da Cunha Comité para Jee de Edveao Maria Dulce de Ameida Borges Coda Cunha Lica Maria Gongs Resende Manes Machado Gomes Regatbece Assistente Editorial Rachel Dias Azevedo Datos internacional de Catalogagtio na Publicagio (CIP) (Cara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mein, Edgar, 1921 ‘Onsetesaberes neceseces & educaco do futuro / Edgar Morin tradugdo de Catarina Eleonora Fda Siva e Jeanne Sawaya ;revisio téenica de Edgard de Asis Carvalho, ~ 6, ed. ~ Sao Paulo: Cortez : Brastia, DF : UNESCO, 2002. Titulo original: Les sept savoir nécessaires 8 Véducation futur Bibliografia, ISBN 5-249-0741-x (Corte) 1. Educagfo - Filosofia 2. Educagio ~ Fnalidadese objetivos 3. Interdscplinaridade e conhecimento 4. Interisciplinaridade na educagio Titulo, 00-1630 €00-370.11 Indices para catélogo sistemético: 1. tducagho Finaldade eobjetivos. 370.11 Edgar Morin Os sete saberes necessarios = a educagéo do futuro Tradugéo de Catarina Eleonora F da Siva e Jeanne Sawaya Revisdo Técnica de Edgard de Assis Carvalho : 6 edigio Edgar Morin Os sete saberes necessdrios a educacao do futuro Tradugéo de (Catarina Eleonora Fda Silva e Jeanne Sawaya Revisdo Técnica de Eidgard de Assis Carvalho © edigio ) Sains “Tilo orignal: es sept savois nécessaies 3 élucation du futur COriginalmente publicado pela United Nations Education, Scientific and Cukural ‘Organization (UNESCO) Paris, France. (Capa: Edson Fogaca Preparacfo de origins: Dense de Aragéo Cosa Martins Revisio: Maria de Lourdes de Almeida, Agnaldo Alves ‘Composigdo: Dany Editora Ltda. Coordenacio edteral: Danilo A.Q. Morales ‘Os autores so responsiveis pela escolha e apresentagzo dos fatos contidos nest lv, asim como pels opnibes aqui expresas as quais nfo so necessariamente compartihadas pela UNESCO, nem sio de sua responsabilidade. ‘As denominagies empregadas € a apresentacSo do material wo decorrer desta obra no implicam a expresso de qualquer opinido que seja parte da LINESCO no que se refere 3 ‘condigio legal de qualquer pats, tert, cidade ou drea, ou de suas autovdades, ou a delimitagio de suas fronteiras ou divisas, "Nenhuma parte desta obra pode ser reprodutida ow duplicada sem autorizagio expresa dda UNESCO edi Editora, UNESCO, 1999 © UNESCO, Cortez Editora 2000, dicho brasileira Diretos para esta edigto UNESCO ‘CORTEZ EDITORA SAS ~ Quadia 5 Bloco H— Lote 6 ua Barta, 317 ~Perdizes Ed. CNPg/BICT/UNESCO ~ 9° andar 105009.000 - Sio Paulo ~ 5° 0070-914 ~ Basfa-DF - Brasil Tel: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 Tel: (55 61) 321-3525, E-mail: contez@cortezeditora.com.br Fax: (55 61) 322-4261 swwwcomtezeditora.com bt E-mail: uhbre@unesco.org Impress no Brasil ~ dezemioro de 2002 SUMARIO Agradecimentos ..... Apresentacdo da edigao brasileira 1 Prélogo 13 Capitulo I— As cegueiras do conhecimenté: 0 erro e ailuséo 19 1. O calcanhar-de-aquiles do conhecimento . 1.1 Os erros mentais.. 1.2 0s eros intelectuais. 1.3 Os ervos da razdo 1.4 As cegueiras paradigméticas 2. 0 imprinting e a normalizagso 3. A noologia: possessao .. 4. O inesperado..... 5. A incerteza do conhecimento Capitulo II — Os principios do conhecimento pertinente 35 1. Da pertinéncia no conhecimento.. 35 1.1 0 conto. 7 36 3.2 O global (as relagdes entre. 0 todo e as partes) 37 1.3.0 multidimensional... + 38 1.4 0 complex... 38 2. A inteligéncia geral .. 39 2.1 Aantinomia 40 3. Os problemas essenciais. a 3.1 Disjungdo e especializagao fechada... 4a 3.2 Redugéo e disjungo 42 3.3 A falsaracionalidade 43 Capitulo III — Ensinar a condigéo humana 47 1, Enraizamento/desenraizamento do ser humano .. 48 1.1 A condig&¢ eésmica. 48 1.2 A condigao fisica .... 49 1.3 A condigéo terrestre 50 1.4 A condigéo humana .. 50 2. O humano do humano 52 2.1 Unidualidade.... 52 2.2 O circuito eérebrofmentelcutua 52 2.3 O circuito re28o/afeto/puiséo. 53 2.4 O circuito individuotociedadelespécie. 54 3. Unitas multiplex: unidade e diversidade humana .. 55 3.1 A esfera individual... 55 3.2 Aestera social. 56 3.3 Diversidad cultural epluralidade de individuos. 56 3.4 Sapiens/demens 58 3.5 Homo complexus.... 59 Capitulo IV — Ensinar a identidade terren: 63 1. Aera planeté 65 2. O legado do século XX. 70 2.1 A heranga de marte 70 2.1.1 As armas nucleares 70 2.1.2 Os novos perigos n 822 Amore da moderidade. se svmnmnennnesnie TA th (Seve SABERES NecessAmos A EDUCAGAC 20 FUTURO 7 2.3 Aesperanga.... * 2.3.1 A contribuigéo das contracorrentes.. 2.3.2 No jogo contraditério dos posstveis. 3. A identidade e a consciéncia terrena Capitulo V — Enirentar as incertezas .. 79 1. A incerteza histérica .. 80 2. A historia criadora e destruidora 81 3. Um mundo incerto 83 4, Enfrentar as incertezas... 84 4.1 A incerteza do real 85 4.2 incerteza do conhecimenta... 86 4.3 As incertezas e a ecologia da agéo .. 86 4.3.2 O citcuito riscofprecaugso 88 4.3.2. circuito finsimeios.... 88 4.8.3 0 circuito agéo/contexto 88 5. A imprevisibilidade em longo prazo.. 89 5.1 O desafio e a estratégia .... 90 Capitulo VI — Ensinar a compreenséo . 1. As duas compreensies .. e 2. Educagéo para 0s obstéculos & compreenséo 95 2.1 O egocentismo 2.2 Etnocentrismo e sociocentrismo.. 2.3.0 espitito redutor 3. A ética da compreensio 3.1 0 “bem pensar” 3.2 A introspecg0.-..- 4. Aconscigneia da complexdade humana. 4.1 A abertura subjetiva(simpstica) em relagdo ao outto. 4.2 A interiorizagho da toleréncia.. 101 191 101 . DcAR MORN 5. Compreenséo, ética e cultura planetarias Capitulo VII — A ética do género humano 1. O circuito individuo/sociedade: ensinar a democracia.... 107 1.1 Democracia e complexidade ... 107 1.2.A dialégica democratica ‘i 1.3 O futuro da democraci . 10 2. 0 circuito individuolespécie: ensinar a cidadania terrestre 113 3. A humanidade como destino planetario .......0cuewene 113 A propésito de uma bibliografia.. 116 (0 SETE SABERES NECESSARIOS A BEUCAGAO DO FUTURO . AGRADECIMENTOS Agradego a compreenséo e o apoio da UNESCO e, em par- ticular, a Gustavo Lépez Ospina, diretor do projeto transdisciplinar “Educar para um futuro vidvel”, que me estimulou a expressar minhas proposig6es do modo mais completo possivel. Este texto foi submetido a personalidades universitrias, bem como a funcionétrios internacionais de paises do Leste e do Oeste, do Norte e do Sul, entre os quais Andras Biro (Hungria — perito em desenvolvimento da ONU), Mauro Ceruti (Italia — Universi dade de Milgo), Emilio Roger Ciurana (Espanha — Universida- de de Valladolid), Eduardo Dominguez (Colémbia — Universi- dade Pontificia Bolivariana), Maria da Conceigéo de Almeida (Bra- sil— Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Nadir Aziza (Marrocos — Cétedra de Estudos Euromediterraneos), Edgard de A. Carvalho (Brasil — Pontificia Universidade Catdlica de S40 Paulo), Carlos Garza Falla (México — UNAM), Rigoberto Lanz (Venezuela — Universidade Central), Carlos Mato Fernandez (Unuguai — Universidade da Repiiblica), Raul Motta (Argentina — Instituto Internacional para o Pensamento Complexo, Univer- sidade do Salvador), Dario Munera Velez (Col6mbia — ex Reitor da UPB), Sean M. Kelly (Canadé — Universidade de Ottawa), Alfonso Montuori (USA — Instituto Californiano de Estudos Inte- grais), Helena Knyazeva (Riissia — Instituto de Filosofia, Acade- mia de Ciéncias), Chobei Nemoto (Japao — Fundago para 0 10 oan Mona Apoio as Artes), lonna Kuguradi (Turquia— Universidade Beytepe Ankara), Shengli Ma (China — Instituto de Estudos da Europa de Oeste, Academia Chinesa das Ciénci ‘Mukungu-Kakangu (Zaire — Universidade de Kinshasa) e Peter Westbroek (Holanda — Universidade de Leiden). Nelson Vallejo-Goméz foi incumbido pela UNESCO de se- lecionar e integrar os comentarios e as proposig6es fornecidas e de formular as préprias contribuigbes. O texto assim remanejado foi aprovado por mim. . Dirijo a cada uma dessas pessoas meus mais sinceros agra- decimentos. (0 SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCAGHO DO FUTURO n APRESENTACAO DA EDICAO BRASILEIRA Em 1998, as Edigdes Unesco Brasil editou Educagao: Um ‘Tesouro a Descobrir. Relatério da Comissio Internacional sobre a Educagao para o Século XXI, coordenado por Jacques Delors. As teses desse importante documento néo somente foram aco- Ihidas com entusiasmo pela comunidade educacional brasileira, ‘como também passaram a integrar os eixos norteadores da poi tica educacional. ‘Sem dtivida, o Relatério Delors foi muito feliz ao estabelecer ‘0s quatro pilares da educaco contemporanea. Aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conheter constituem aprendizagens in- dispenséveis que devem ser perseguidas de forma permanente pela politica educacional de todos os paises. Como diz Basarab Nicolescu, Presidente do Centro Internacional de Estudos e Pes- quisas Transdisciplinares (CIRET), ha uma transrelacdo que liga 0s quatro pilares do novo sistema de educagéo e que tem sua ‘origem em nossa propria constituicée como seres humanos. Uma educacdo s6 pode ser viével se for uma educagéo integral do ser humano. Uma educagéo que se dirige & totalidade aberta do ser humano e nao apenas a um de seus componentes. Foi com o objetivo, entre outros, de aprofundar a visto transdisciplinar da educagio, que a Unesco solicitou a Edgar Morin que expusesse suas idéias sobre a educacao do amanha. Edgar Morin aceitou o desafio ¢ nos brindou com um texto da mais profunda reflexao, que sabiamente intitulou de Os Sete Saberes Necessdrios @ Educagéo do Futuro. Os Sete Saberes indispenséveis enunciados por Morin — As cegueiras do conhecimento: 0 erro ¢ a ilusao, Os principios do conhecimento pertinente; Ensinar a condigao hurnana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas; Ensinar a compre- ensao; e A ética do genero humano — constituem eixos e, a0 mesmo tempo, caminhos que se abrem a todos os que pensam ¢ fazem educacéo, e que esto preocupados com o futuro das eri- angas e adolescentes. . Os Sete Saberes abrem uma perspectiva sern precedentes. Estou seguro de que a Unesco, ao editar este livro, cumpre, mais uma vez, sua missdo ética e seu compromisso cam uma educa- so integral e de qualidade Jorge Werthein Representante da UNESCO no Brasil Coordenador do Programa UNESCO/Mercostl (0S SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCAGAO 00 FUTURO Ey PROLOGO Este texto antecede qualquer guia ou compéndio de ensino. Nao é um tratado sobre 0 conjunto das disciplinas que so ou deveriam ser ensinadas: pretende, tinica e essencialmente, expor problemas centrais ou fundamentais que permanecem tofalmen- te ignorados ou esquecidos e que so necessérios para se ensinar no préximo século. Ha sete saberes “fundamentais” que a educagao do futuro deveria tratar em toda sociedade e em toda cultura, sem exclusi- vidade nem rejeicéo, segundo modelos e regras préprias a cada sociedade e a cada cultura. Acrescentemos que o saber cientifico sobre o qual este texto se apéia para situar a condigdo humana néo s6 é provis6rio, mas também desemboca em profundos mistérios referentes ao Uni- verso, & Vida, a0 nascimento do ser humano. Aqui se abre um indecidivel, no qual intervém op¢ées filoséficas e crencas religio- sas através de culturas e civilizagées. Os setes saberes necessarios Capitulo I: As cegueiras do conhecimento: 0 erro e a ilusdo > Eimpressionante que a educagéo que visa a transmitir conhe- cimentos seja cega quanto ao que é 0 conhecimento huma- caR MoRDN no, seus dispositivos, enfermidades, dificuldades, tendéncias agerto ea ilusio, e ndo se preocupe em fazer conhecer o que € conhecer. > De fato, © conhecimento néo pode ser considerado uma fer- ramenta ready made, que pode ser utilizada sem que sua na- tureza seja examinada. Da mesma forma, 0 conhecimento do conhecimento deve aparecer como necessidade primeira, que serviria de preparagéo para enfrentar os riscos perma- nentes de erro e de iluséo, que nao cessam de parasitar a mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo & lucidez. > E necessario introduzir e desenvolver na educagao o estudo das caracteristicas cetebrais, mentais, culturais dos conheci- mentos humanos, de seus processos e modalidades, das dis- posigées tanto psiquicas quanto culturais que o conduzem a0 erro ou a ilusdo. Capitulo II: Os principios do conhecimento pertinente > Existe um problema capital, sempre ignorado, que é 0 da necessidade de promover o conhecimento capaz de apreen- der problemas slobais e fundamentais para neles inserir os conhecimentos parciais ¢ locais. > ‘Asupremacia do conhecimento fragmentado de acordo com as disciplinas impede frequentemente de operar o vinculo entre as partes e a totalidade, e deve ser substituida por um modo de conhecimento capaz de apreender os objetos em seu con- texto, sua complexidade, seu conjunto. > Enecessério desenvolver a aptidao natural do espirito huma- no para situar todas essas informagies em um contexto e um conjunto. E preciso ensinar os métodos que permitam es- tabelecer as relagdes mituas e as influéncias reciprocas entre as partes e 0 todo em um mundo complexo. (0 SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCACAO DO FUTURO 1s Capitulo Ill: Ensinar a condigéo humana > O ser humano ¢ a um s6 tempo fisico, biolégico, psiquico, cultural, social, histérico. Esta unidade complexa da natureza humana é totalmente desintegraga na educagéo por meio das disciplinas, tendo-se tomado impossivel aprender o que significa sex humano. E preciso restauré-la, de modo que cada tum, onde quer que se encontre, tome conhecimento e cons- ciéncia, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua identidade comum a todos 08 outros humanos. > Desse modo, a condicéo humana deveria ser 0 objeto essen cial de todo o ensino. > Este capitulo mostra como é possivel, com base nas discipl- nas atuais, reconhecer a unidade e a complexidade huma- nas, reunindo e organizando conhecimentos dispersos nas ciéncias da natureza, nas ciéncias humanas, na literatura ¢ na filosofia, e pée em evidéncia o elo indissolivel entre a unida- de ea diversidade de tudo que é humano. Capitulo IV: Ensinar a identidade terrena > O destino planetério do género humano ¢ outra realidade- chave até agora ignorada pela educagao. O conhecimento dos desenvolvimentos da era planetéria, que tendem a cres- cer no século XX, e o reconhecimento da identidade terrena, que se tornaré cada vez mais indispensével a cada um e a todos, devem converter-se em um dos principais objetos da educagéo. > Convém ensinar a histéria da era planetéria, que se inicia com o estabelecimento da comunicacao entre todos os conti- nentes no século XVI, e mostrar como todas as partes do mundo se tomaram solidérias, sem, contudo, ocultar as opres- s6es e a dominagéo que devastaram a humanidade e-que ainda nao desapaceceram. 6 EDGAR MOREY > Seré preciso indicar o complexo de crise planetéria que mar- ca oséculo KX, mostrando que todos os seres humanos, con- frontados de agora em diante aos mesmos problemas de vida e de morte, partilharn um destino comum, Capitulo V: Enfrentar as incertezas > As ciéncias permitiam que adquirissemos muitas certezas, mas igualmente revelaram, ao longo do século XX, intimeras zonas de incerteza. A educacéo deveria incluir 0 ensino-das incertezas que surgiram nas ciéncias fisicas (microfisicas, termodinamica, cosmologia)), nas ciéncias da evolugdo biolé- gica e nas ciéncias hist6ricas. , > Seria preciso ensinar principios de estratégia que permiti- tiam enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza, e modificar seu desenvolvimento, em virtude das informa- gdes adquiridas ao longo do tempo. E preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipé- lagos de certeza. > A formula do poeta grego Euripedes, que data de vinte e cinco séculos, nunca foi t&o atual: “O esperado ndo se cum- pre, e ao inesperado um deus abre o caminho”. O abandono das concepgées deterministas da histéria humana que acre- ditavam poder predizer nosso futuro, 0 estudo dos grandes acontecimentos e desastres de nosso século,-todos inespera- dos, o carater doravante desconhecido da aventura humana devem-nos incitar a preparat as mentes para esperar o ines- perado, para enfrenté-lo. E necessério que todos os que se ‘ocupam da educacao constituam a vanguarda ante a incerte- za de nossos tempos. Capitulo VI: Ensinar a compreensio > Acompreenséo € a um s6 tempo meio e fim da comunicagao humana. Entretanto, a educagéo para a compreenséo esté ausente do ensino, O planeta necessita, em todos os sentidos, (5 SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCAGAO DORTURO ” de compreensdo miitua. Considerando a importéncia da edu- cago para a compreensao, em todos os niveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensio pede a reforma das mentalidades. Esta deve ser a obra para a edu- cagao do futuro. > A compreensao miitua entre os seres humanos, quer proxi- ‘mos, quer estranhos, é daqui para a frente vital para que as relagdes humanas saiam de seu estado barbaro de incom- preensao. > Daf decorre a necessidade de estudar a incompreenséo a partir de suas raizes, suas modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais necessario porque enfocaria nao os sintomas, mas 1s casas do racismo, da xenofobia, do desprezo. Constitui- ria, 40 mesmo tempo, uma das bases mais seguras da educa- do para a paz, & qual estarnos ligados por esséncia e vocagao. Capitulo VII: A ética do género humano > A educagéo deve conduzir 8 “antropo-ética”, levando em conta 0 cardter ternério da condi¢éo humana, que é ser ao ‘mesmo tempo individuo/sociedade/espécie, Nesse sentido, a ética individuo/espécie necessita do controle mutuo da sociedade pelo individuo e do individuo pela sociedade, ou seja, a democracia; a ética individuo/espécie convoca, ao sé- culo XXI, a cidadania terrestre. > A ética nao poderia ser ensinada por meio de ligSes de mo- ral. Deve formar-se nas mentes com base na consciéncia de que o humano é, a0 mesmo tempo, individuo, parte da socieda de, parte da espécie. Caregamos em nés esta tripla reali- dade. Desse modo, todo desenvolvimento verdadeiramente humano deve compreender o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participagées comunitarias e da consciéncia de pertencer & espécie humana. > Partindo disso, esbogam-se duas grandes finalidades ético- politicas do novo milépio: estabelecer uma relagéo de con- 1" EDGAR Mona trole miituo entre a sociedade e os individuos pela democrecia conceber a Humanidade como comunidade planetatia. A educagéo deve contribuir ndo somente para a tomada de ‘consciéncia de nossa Terra-Pétria, mas também permitir que esta consciéncia se traduza em vontade de realizar a cidada- nia terrena. (0 Seve SABERES NEcESSAROS A EDUCAGAO DO FUTURO » Carita! ‘AS CEGUEIRAS DO CONHECIMENTO: OERROE AILUSAO Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusao. A educagéo do futuro deve enfrentar o problema de dupla face do erro ¢ da iluséo. O maior erro seria subestimar 0 problema do erro; a maior iluséo seria subestimar 0 problema da iluséo. O reconhecimento do erro e da itusdo é ainda mais dificil, porque o erro e a iluso néo se reconhecem, em absaluto, como tais. Erro e iluséo parasitam a mente humana desde 0 aparec mento do Homo sapiens, Quando consideramos 0 passado, in- dusive o recente, sentimos que foi dominado por indmeros erros e ilusées. Marx e Engels enunciaram justamente em A ideologia alemé que os homens sempre elaboraram falsas concepedes de si prOprios, do que fazem, do que devern fazer, do mundo onde vive. Mas nem Marx nem Engels escaparam destes ervos. 1. © CALCANHARDE-AQUILES DO CONHECIMENTO A educagéo deve mostrar que néo hé conhecimento que nao esteja, em algum gray, ameacado pelo erro e pela ilusao. 0 DAR MoRDY A teoria da informagao mostra que existe 0 risco do erro sob 0 efeito de perturbacdes aleat6rias ou de ruidos (noise), em qual- quer transmisséo de informacao, em qualquer comunicago de mensagem. O conhecimento nao é um espelho das coisas ou do mundo externo. Todas as percepcées 80, a0 mesmo tempo, traducbes & reconstrugGes cerebrais com"base em estimulos ou sinais capta- dos e codificados pelos sentidos. Daf resultam, sabemos bem, 05 inimeros erros de percepgao que nos vém de nosso sentido mais confidvel, o da visio. Ao erro de percepco acrescenta-se o erro intelectual. © conhecimento, sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é 0 fruto de uma tradugéo/reconstrucéo pot meio da lin- guagem edo pensamento e, por conseguinte, esta sujeito 20 erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo tradugo e Teconstrugao, comporta a interpretagéo, © que introduz o risco do erro na sub- jetividade do conhecedor, de sua visio do mundo e de seus prin- ‘fpios de conhecimento, Daf os numerosos erros de concepgao e de idéias que sobrevém a despeito de nossos controles racionais. A projegdo de nossos desejos ou de nossos medos e as perturba- bes mentais trazidas por nossas emogées multiplicam os riscos de erro, Poder-se-ia crer na possibilidade de eliminar o risco de erro, tecalcando toda afetividade. De fato, o sentimento, a raiva, 0 amor e a amizade podem-nos cegar. Mas é preciso dizer que ja no mundo mamffero e, sobretudo, no mundo humano, o desen- volvimento da inteligéncia ¢ inseparével do mundo da afetividade, isto é, da curiosidade, da paixao, que, por sua vez, S40 a mola da pesquisa filos6fica ou cientifica. A afetividade pode asfixiar 0 conhecimento, mas pode também fortalecé-lo. Hé estreita rela- do entre inteligéncia e afetividade: a faculdade de raciocinar pode ser diminuida, ou mesmo destruida, pelo déficit de emo- ‘G40; 0 enfraquecimento da capacidade de reagit emocionalmen- te pode mesmo estar na raiz de comportamentos irracionais. Portanto, nao ha um estagio superior da razio dominante da emogao, mas um eixo intelecto + afeto e, de certa maneira, a (0S SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCAGAO DO FUTURO ” capacidade de emogées ¢ indispensével ao estabelecimento de comportamentos racionais. O desenvolvimento do conhecimento cientifico é poderoso meio de deteccdo dos erros e de huta contra as ilusdes. Entretan- to, os paradigmas que controlam a ciéncia podem desenvolver ilusdes, e nenhuma teoria cientifica est4 imune para sempre con- tra 0 erro. Além disso, o conhecimento cientifico nao pode tratar sozinho dos problemas epistemolégicos, filoséficos e éticos. A educagao deve-se dedicar, por conseguinte, & identifica ‘so da origem de erros, ilusées e cegueiras. 1.1 Os erros mentais Nenhum dispositive cerebral permite distinguir a alucinagso da percepgao, o sonho da vigilia, o imaginario do real, o subjeti- vo do objetivo. A importancia da fantasia e do imaginario no set humano é inimagindvel; dado que as vias de entrada e de saida do sistema neurocerebral, que colocam 0 organismo em conexéo com o mundo exterior, representam apenas 2% do conjunte, enquanto 98% se referem ao funcionamento interno, constituiu-se um mundo psfquico relativamente independente, em que fermen- tam necessidades, sonhos, desejos, idéias, imagens, fantasias, e este mundo infiltra-se em nossa viséo ou concepgao do mundo exterior. Cada mente é dotada também de potencial de mentira para si pt6prio (self-deception), que é fonte permanente de erros e de ilusdes. O egocentrismo, a necessidade de autojustificativa, a ten- déncia a projetar sobre 0 outro a causa do mal fazem com que cada um minta para si préprio, sem detectar esta mentira da qual, contudo, é 0 autor. A propria meméria é também fonte de erros inémeros. A meméria, ndo-regenerada pela rememoracdo, tende a degradar- eocaR Mone’ se, mas cada rememorago pode embelezé-la ou desfiguré-la. Nossa mente, inconscientemente, tende a selecionar as lembran- {2s que nos convém e a recalcar, ou mesmo apagar, aquelas des- favoréveis,e cada qual pode atribuir-se um papel vantajoso, Tende a deformar as recordagées por projegdes ou confusdes inconsci- entes, Existem, &s vezes, falsas lembrangas que julgamos ter vivi- do, assim como recordagées recalcadas a tal ponto que acredita- ‘mos jamais as ter vivido. Assim, a meméria, fonte insubstituivel de verdade, pode ela prépria estar sujeita aos erros e as ilusées. 1.2 Os erros intelectuais Nossos sistemas de idéias (teorias, doutrinas, ideologias) esto no apenas sujeitos ao erro, mas também protegem os erros ¢ ilusdes neles inscritos. Esta na Iégica organizadora de qual- quer sistema de idéias resistir & informagao que nao lhe convém ou que nao pode assimilar. As teorias resistem & agresséo das teorias inimigas ou dos argumentos contrarios. Ainda que as te- rias cientificas sejam as tinicas a aceitar a possibilidade de serem refutadas, tender a manifestar esta resistencia. Quanto as dou- frinas, que so teorias fechadas sobre elas mesmas e absoluta- mente convencidas de sua verdade, séo invulneréveis a qual- quer critica que denuncie seus erros. 1.3 Os erros da razio O que permite a distincao entre vigflia e sonho, imaginério e teal, subjetivo e objetivo é a atividade racional da mente, que apela para o controle do ambiente (resistencia fisica do meio ao desejo e ao imaginério), para o controle da prética (atividade verificadora), para o controle da cultura (referéncia ao saber co- mum), para 0 controle do préximo (sera que vocé vé o mesmo que eu?), para o controle cortical (meméria, operacdes légicas). Dito de outra maneira, é a racionalidade que é corretiva. (0 see saBeRes NecEssAmOS A EDUCAGAO DO FUTURO 2 Aracionalidade é a melhor protegéo contra o erro e a iluséo. Porum lado, existe a racionalidade construtiva que elabora teorias coerentes, verificando o cardter légico da organizagao tedrica, a compatibilidade entre as idéias que compéem a teoria, a concor- dncia entre suas asserges e os dads empfticos aos quais se apli- a: tal racionalidade deve permanecer aberta ao que a contesta para evitar que se feche em doutrina e se converta em racionaliza- 40; por outro lado, ha a racionalidade critica exercida particular- mente sobre 0s erros e ilusdes das crengas, doutrinas e teorias. Mas a racionalidade traz também em seu seio uma possibilidade de erro e de ilusdo quando se perverte, como acabamos de indi- car, em racionalizacéo. A racionalizacao se cré racional porque constitui um sistema légico perfeito, fundamentado na dedugéo ‘una indugéo, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se & conlestagéo de argumentos e & verificagéo empirica. A racionalizaco é fechads,, a racionalidade é aberta. A racionaliza- Gao nutre-se nas mesmas fontes que a racionalidade, mas consti uma das fontes mais poderosas de erros e ilusées. Dessa maneira, uma doutrina que obedece a um modelo mecanicista e determinista para considerar 0 mundo néo é racional, mas racionalizadora. A verdadeira racionalidade, aberta por natureza, dialoga com real que lhe resiste. Opera o ire vir incessante entre a instancia ogica e a instancia empirica; é 0 fruto do debate argumentado das idéies, e nao a propriedade de um sistema de idéias. O racionalismo que ignora os seres, a subjetividade, a afetividade e a vida é irracional. A racionalidade deve reconhecer a parte de afeto, de amor e de arependimento. A verdadeira racionalidade conhece os limites da légica, do determinismo e do mecanicismo, sabe que a mente humana no poderia ser onisciente, que a realidade comporta mistério. Negocia com a irracionalidade, 0 obscuro, o irracionalizével. E ndo sé critica, mas autocritica. Re- conhece-se a verdadeira racionalidade pela capacidade de iden- tificar suas insuficiéncias. A racionalidade no é uma qualidade da qual séo dotadas as mentes dos cientistas e técnicos e de que s80 desprovidos os | Pa oan WORN demais. Os s4bios atomistas, racionais em sua érea de compe- téncia e sob a coacéo do laboratério, podem ser completamente imacionais em politica ou na vida privada, Da mesma forma, a racionalidade nao é uma qualidade da qual a civiizagéo ocidental teria o monopélio, O ocidente europeu acreditou, durante muito tempo, ser proprietdrio da racionalidade, vendo apenas erros, ilusées e alvasos nas outras culturas, ¢} qualquer cultura sob a medida do seu desempenho tecnolégico. Entretanto, devemos saber que em qualquer sociedade, mesmo arcaica, hd racionalidade na elehoracéo de ferramentas, na estra- tégia da caca, no bonhecimento das plantas, dos animais, do solo, ao mesmo tempo em que hé mitos, magia e religiéo. Em nossas sociedades ocidentais estao também presentes mitos, magia, reli 40, inclusive o mito da raz providencial e uma religido do pro- «gresso. Comegamos a nos tomar verdadeiramente racionais quan- do reconhecemos a racionalizagdo até em nossa racionalidade e reconhecemos 0s préprios mitos, entre os quais o mito de nossa azo toda-poderosa e do progresso garantido, Dai decorre a necessidade de reconhecer na edueagio do futu- 10 um principio de incerteza racional: a racionalidade corre risco constante, caso no mantenha vigilante autocritica quanto a cair na {lusdo racionalizadora. lsso significa que a verdadeira racionalidade no é apenas te6rica, apenas crtica, mas também autocritica, 1.4 As cegueiras paradigméticas Nao se joga 0 jogo da verdade e do erro somente na verifi- cacao empiica e na coeréncia légica das teorias. Joga-se tam- bém, profundamente, na zona invisivel dos paradigmas. A edu- cago deve levar isso em consideragio. Um paradigma pode ser definido por: ‘+ Promogiolselegdo dos conceitos-mestres da inteligibilidade. Assim, a Ordem, nas concepgbes deterministas, a Matéria, (0S SETE SARERES NECESSARIOSA EDUCAGAO DO FUTURO as nas concepgbes materialistas, o Espirito, nas concep¢bes espiritualistas, a Estrutura, nas concepgées estruturalistas, s40 08 conceitos-mestres selecionados/selecionadores, que ‘excluem ou subordinam os conceitos que lhes sao antinémicos {a desordem, 0 espirito, a matéria, o acontecimento). Desse modo, o nivel paradigmatico € o do principio de selecdo das idéias que estdo integradas no discurso ou na teoria, ou pos- tas de lado e rejeitadas. * Determinagdo das operagées légicas-mestras. O paradigma esté oculto sob a logica e seleciona as operagSes légicas que se tornam ao mesmo tempo preponderantes, pertinentes e evidentes sob seu dominio, (exclusdo-inclusdo, disjungao- conjungao, implicagéo-negagao). E ele quem privilegia determinadas operagées légicas em detrimento de outras, como a disjungéo em detrimento da conjungéo; é o que atri- ‘bui validade e universalidade & logica que elegeu. Por isso mesmo, dé aos discursos e as teotias que controla as caracte- risticas da necessidade e da verdade. Pot sua prescricao e proscrigéo, 0 paradigma funda o axioma e se expressa em axioma (“todo fenémeno natural obedece ao determinismo”, “Yodo fendmeno propriamente humano se define por oposi- G0 & natureza...”), Portanto, o paradigma efetua a selecdo e a determinagao da conceptualizagao e das operagées l6gicas. Designa as categorias fundamentais da inteligibilidade e opera o controle de seu em- tego. Assim, os individuos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscrtos culturalmente neles. Tomemos um exemplo; ha dois paradigmas opostos acerca da relagdo homem/natureza. O primeiro inclui o humano na na- tureza, e qualquer discurso que obede¢a a esse paradigma faz do homem um ser natural e reconhece a “natureza humana”. O segundo paradigma prescreve a disjungdo entre estes dois ter- mos e determina o que hé de especifico no homem por exclu- sto da idéia de natureza. Estes dois paradigmas opostos tém em % aan ora comum a obediéncia de ambos a um paradigma mais profundo ainda, que é o paradigma de simplificagéo, que, diante de qual- quer complexidade conceptual, prescreve seja a reducéo (neste caso, do humano ae natural), seja a disjuncdo (neste caso, entre ‘© humano eo natural). Um e outro paradigmas impedem que se conceba a unidualidade (natural +> cultural, cerebral «> psfquica) da realidade humana e impedem, igualmente, que se conceba a relagdo ao mesmo tempo de implicagéo e de separagéo entre o homem e a natureza. Somente o paradigma complexo de irupli- cagao/distingZo/conjungao permitié tal concepedo, mas este ainda no esté inscrito na cultura cientifica, O paradigma desempenha um papel ao mesmo tempo sub- terréneo e soberano em qualgier teoria, dowtrina ou ideologia. O paradigma é inconsciente, mas irriga © pensamento conscien- te, controla-o e, neste sentido, é também supraconsciente. Em resumo, o paradigma instaura relacées primordiais que constituem axiomas, determina conceitos, comanda discursos e/ou teorias. Organiza a organizacao deles e gera a getagéo ou a regeneracao. Deve-se evocar aqui o “grande paradigma do Ocidente”, formulado por Descartes e imposto pelo desdobramento da his- toria européia a partir do século XVII. O paradigma cartesiano separa 0 sujeito e 0 objeto, cada qual na esfera propria: a filoso- fia e.a pesquisa reflexiva, de um lado, a ciéncia e a pesquisa objetiva, de outro, Esta dissociagdo atravessa o universo de um extremo ao outro: Sujeito/Objeto ‘Alma/Corpo Espfrito/Matéria Qualidade/Quantidade « _ Finalidade/Causalidade Sentimento/Razéo Liberdade/Determinismo Existéncia/Esséncia (08 SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCAGAO DO FUTURO 2 Trata-se certamente de um paradigma: determina os con- ceitos soberanos e prescreve a relagao légica: a disjungéo. Ando- obediéncia a esta disjungéo somente pade ser clandestina, mar- ginal, desviante. Este paradigma determina dupla viséo do mun- do— de fato, o desdobramento do mesmo mundo: de um lado, ‘mundo de objetos submetidos a observagées, experimentagoes, manipulagées; de outro lado, o mundo de sujeitos que se ques- tionam sobre problemas de existéncia, de comunicagao, de cons- ciéncia, de destino. Assim, um paradigma pode ao mesmo tem- po chctiarecegar,revelare ocular E no'seu seo que se escon- de o problema-chave do jogo da verdade e do erro. 2. O IMPRINTING E A NORMALIZACAO ‘Ao determinismo de paradigmas e modelos explicativos as- socia-se 0 determinismo de conviegées e crencas, que, quando reinam em uma sociedade, impéem a todos e a cada um a forca imperativa do sagrado, a forca normalizadora do dogma, a forca proibitiva do tabu. As doutrinas e ideologias dominantes dispéem, igualmente, da forga imperativa que traz a evidéncia aos conven- Cidos e da forga coercitiva que suscita o medo inibidor nos outros. poder imperativo e proibitivo conjunto dos paradigmas, das crengas oficiais, das doutrinas reinantes e das verdades estabelecidas determina os esterestipos cognitivos, as id6ias re- cebidas sem exame, as crengas estiipidas nao-contestadas, os absurdos triunfantes, a rejeicdo de evidéncias em nome da evi- déncia, e faz reinar em toda parte os conformismos cognitivos e intelectuais. Todas as determinagées propriamente sociais, econémicas e politicas (poder, hierarauia, divisdo de classes, especializacao @, em nossos tempos modemos, tecnoburocratizacéo do traba- Iho) e todas as determinagoes propriamente culturais convergem e sinergizam para encarcerar 0 conhecimento no multidetegni- nismo de imperativos, normas, proibigées, rigidezes e bloqueios. GAR MOREY Ha assim, sob 0 conformismo cognitivo, muito mais que conformismo. Hé 0 imprinting cultural, marca matriclal que ins- ereve 0 conformismo a fundo, e a normalizagéo que elimina 0 que poderia contesta-lo, O imprinting é um termo proposto por Konrad Lorenz para dar conta da marca indelével imposta pelas eitas experiéncias do animal recém-nascido {como ocorre como filhote de passarinho que, ao sair do ovo, segue o primei- 10 ser vivo que passe por ele, como se fosse sua mae), o que Andersen j4 nos havia contado & sua maneira na histéria d’ O Patinho feio. O imprinting cultural marca os humanos desde o nascimento, primeiro com o selo da cultura familiar, da escolar em seguida, depois prossegue na universidade ou na vida profis- sional Assim, a selegdo sociolégica e cultural das idéias raramente obedece a sua verdade; pode, ao contrario, sex implacdvel na ‘busca da verdade. 3. ANOOLOGIA: POSSESSAO Marx dizia justamente: “Os produtos do oétebro humano tem a aspecto de seres independentes, dotados de compos parti- culares em comunicagéo com os hurnanos e entre si”. Acrescentemos: as crencas ¢ as idéias nao sao somente pro- dutos de mente, séo também seres mentais que tém vida e po- der. Dessa maneira, podem possuir-nos. Devemos estar bem conscientes de que, desde o alvorecer da humanidade, encontra-se a nogéo de noosfera — a esfera das coisas do espirito —, com o surgimento dos mitos, dos deu- ses, € 0 extraordindrio levante dos seres espirituais impulsionau e arrastou 0 Homp sapiens a delirios, massacres, crueldades, ado- rages, éxtases e sublimidades desconhecidas no mundo animal. Desde entdo, vivemos em uma selva de mitos que entiquecem as culturas. (0S SETE SABERES NECESSANIOS A EDUCACAO DO FUTURO » Produto de nossa alma e mente, a noosfera esté em nés e 1nés estamos na noosfera. Os mitos tomaram forma, consisténcia tealidade com base nas fantasias formadas por nossos sonhos @ nossa imaginago. As idéias tomaram forma, consisténcia e realidade com base nos simbolos e nos pensamentos de nossa inteligéncia. Mitos e Idéias voltaram-se sobre nés, invadiram-nos, deram-nos emogo, amor, raiva, éxtase, firia. Os humanos pos- sufdos s8o capazes de morrer ou de matar por um deus, por uma idéia. No alvorecer do terceiro milénio, como 0s daimons dos gregos e, por vezes, como 0s deménios do Evangelho, nossos deménios “idealizados” arrastam-nos, submergem nossa consci- éncia, tornam-nos inconscientes, ao mesmo tempo em que nos dio a ilusdo de ser hiperconscientes. ‘As sociedades domesticam os individuos por meio de mitos ¢ idéias, que, por sua vez, dor duos, mas os individuos poderiam, reciprocamente, domesticar as idéias, ao mesmo tempo em que poderiam controlar a socie- dade que os controls. No jogo tao complexo (complementar-anta- génico-incerto) de escravidao-exploracéo-parasitismos mituos entre as trés instancias (individuo/sociedade/noosfera), talvez possa haver lugar pata uma pesquisa simbidtica. Nao se trata, de forma alguma, de ter como ideal a redugdo das idéias a meros instrumentos e torné-las coisas. As idéias existem pelo homem e para ele, mas 0 homem existe também pelas idéias e para elas, Somente podemos utilizé-las apropriadamente se soubermos tam- bém servi-las. Nao seria necessério tomar consciéncia de nossas possessées para poder dialogar com nossas idéias, controlé-las tanto quanto nos controlam e aj r-lhes testes de verdade e de erro? Uma idéia ou teoria nao deveria ser simplesmente instrumentalizada, nem impor seu veredicto de modo autorité- rio, deveria ser relativizada e domesticada. Uma teoria deve aju- dar e orientar estratégias cognitivas que so dirigidas por sujgjtos humanos. sah pcan Mone E muito dificil, para nés, distinguir 0 momento de separagéo e de oposigéo entre o que é oriundo da mesma fonte: a Idealidade, modo de existéncia necessario a Idéia para traduzir o real, eo Idealismo, possesséo do real pela idéia; a racionalidade, disposi- tivo de didlogo entre a idéia com o real, e a racionalizagao que impede este mesmo diélogo. Da mesma forma, existe grande dificuldade em reconhecer © mito oculto sob a etiqueta da cién- cia ou da azo. Uma vez mais, vemos que o principal! ohstéculo intelectual ‘pata o conhecimento se encontra em nosso meio intelectual de conhecimento. Lenine disse que os fatos eram inflexiveis, NAo havia percebido que a idéia-fixa.e a idéia-forga, ou seja, as suas, eram ainda mais inflexiveis. O mito e a ideologia destroem e devoram os fatos. Entretanto, sao as idéias que nos permitem conceber as caréncias e os perigos da idéia. Daf resulta este paradoxo incontorndvel: devemos manter uma luta crucial contra as ‘mas somente podemos fazé-lo com a ajuda de 5. Nao nos devemos esquecer jamais de manter nossas idéias em seu papel mediador e impedir que se identifiquem com 0 real. Devemos reconhecer como dignas de fé apenas as idéias que comporiem a idéia de que o real resiste & idéia. Esta é uma tarefa indispensével na luta contra a iluséo. O WNESPERADO... O inesperado surpreende-nos. £ que nos instalamos de ma- neira segura em nossas teorias e idéias, e estas nao tém estrutura para acolher 0 novo, Entretanto, o novo brota sem parar. Nao podemos jamais prever coma se apresentaré, mas deve-se esperar sua chegada, ou seja, esperar o inesperade (cf. Capitulo V-—En- frentar as incertezas). E.quando o inesperado se manifesta, é pre- ciso ser capaz de rever nossas teorias e idéias, em vez de deixar o fato novo entrar & forca na tearia incapaz de recebé-lo. 0 SETE SARERES NECESSAWOS A EDLCAGAO DO FUTURO ” 5. A INCERTEZA DO CONHECIMENTO Quantas fontes, quantas causas de erros e de ilusdo milti- plas e renovadas constantemente em todos os conhecimentos! Dai decorre a necessidade de destacar, em qualquer educa- 40, as grandes interrogagées sobre nossas possibilidades de conhecer. Pér em prética essas interrogagées constitui o oxigénio de qualquer proposta de conhecimento. Assim como 0 oxigénio matava os seres vivos primitivos até que a vida utilizasse esse corruptor como desintoxicante, da mesma forma a incerteza, que mata o conhecimento simplista, é © desintoxicante do conheci- mento complexo. De qualquer forma, o conhecimento permane- ce como uma aventura para a qual a educagéo deve fornecer 0 apoio indispensével. O conhecimento do conhecimento, que comporta a integra- 0 do conhecedor em seu conhecimento, deve ser, para a edu- cago, um principio e uma necessidade permanentes. Devemos compreender que existem condigées bioantropo- légicas (as aptidées do cérebro/mente humana), condigbes socioculturais (a cultura eberta, que permite didlogos e troca de idéias) e condigées noolégicas (as teorias abertas) que permitem “verdadeiras” interrogagées, isto é, interrogacées fundamentais sobre o mundo, sobre o homem e sobre o préprio conhecimento. Devemos compreender que, na busca da verdade, as ativi- dades auto-observadoras devem ser insepardveis das atividades observadoras, as autocriticas, inseparéveis das criticas, os pro- cess08 reflexivos, inseparéveis dos processos de objetivacéo. Portanto, devemos aprender que a procura da verdade pede a busca e a elaboragio de metapontos de vista, que permitern a reflexividade e comportam especialmente a integragéo observa- dor-conceptualizador na observagao-concepgao e a “ecolo- ‘trabalhar para a humanizacao da humanidade; > efetuar a dupla pilotagem do planeta: obedecer a vida, guiar a vida; > alcancar a unidade planetéria na diversidade; > respeitar no outro, a0 mesmo tempo, a diferenga e a identi- dade quanto a si mesmo; > desenvolver a ética da solidariedade; desenvolver a ética da compreensao; y > ensinar a ética do género humano. A antropo-ética compreende, assim, a esperanga na completude da humanidade, como consciéncia e cidadania pla- netarla. Compreende, por conseguinte, como toda ética, aspira- do e vontade, mas também aposta ne incerto. Ela é consciéncia individual além da individualidade 05 SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCACHO DO FUTURO 107 1. 0 CIRCUITO INDIVIDUOISOCIEDADE: ENSINAR A DEMOCRACIA Individuo e Sociedade existem mutuamente. A democracia favorece a relagdo rica e complexa individuolsociedade, em que 0s individuos e a sociedade podem ajudar-se, desenvolver-se, regular-se e controlar-se mutuamente. ‘A democracia fundamenta-se no controle da maquina do poder pelos controlados e, desse modo, reduz a servidao (que determina o poder que nao softe a retroacao daqueles que sub- mete); nesse sentido, a democracia é mais do que um regime politico; é a regeneracéo continua de uma cadeia complexa ¢ retroativa: os cidadaos produzem a democracia que produz cida- dios. Diferentemente das sociedade democraticas que funcionam gracas as liberdades individuais e 8 responsabilizacdo dos indi duos, as sociedades autoritarias ou totalitarias colonizam os indi- vviduos, que no séo mais do que sujeitos; na democracia, o indi- viduo é cidadao, pessoa juridica e responsdvel; por um lado, ex- prime seus desejos e interesses, por outro, 6 responsavel e solidé- tio com sua cidade. 1.1 Democracia e complexidade A democracia nao pode ser definida de modo simples. A soberania do povo cidadao comporta ao mesmo tempo a autolimitagéo desta soberania pela obediéncia as leis e a transfe- réncia da soberania aos eleitos. A democracia comporta ao mes- mo tempo a autolimitagao do poder do Estado pela separacao dos poderes, a garantia dos direitos individuais e a protecéo da vida privada. A democracia, evidentemente, necesita do consenso da maioria dos cidadéos e do respeito as regras democraticas. 108 EDGAR MORN Necessita de que a maioria dos cidadaos acredite na democra- cia. Mas, do mesmo modo que 0 consenso, a democracia neces- sita de diversidade e antagonismos. A experiéncia do totalitarismo enfatizou o caréter-chave da democracia: seu elo vital com a diversidade. A democracia supée e nutre a diversidade dos interesses, assim como a diversidade de idéias. O respeito & diversidade significa que a democracia nao pode ser identificada com a dita- dura da maioria sobre as minorias; deve comportar o direito das minorias ¢ dos contestadores a existéncia e & expressio, e deve permitir a exprésséo das idéias heréticas e desviantes, Do mes- mo modo que € preciso proteger a diversidade das espécies para salvaguardar a biosfera, é preciso proteger a diversidade de idéias e opinides, bem como a diversidade de fontes de infor- magéo e de meios de inforrnacao (impressa, midia), para salva- guardar a vida democratica A demoéracia necessita ao mesmo tempo de conflitos de idéias e de opinides, que lhe conferem sua vitalidade e produtivi dade. Mas a vitalidade e a produtividade dos conflitos sé podem se expandir em obediéncia as regras democréticas que requlam (8 antagonismos, substituindo as lutas fisicas pelas lutas de idéias, e que determinam, por meio de debates e das eleigGes, 0 vence- dor provisério das idéias em conflito, aquele que tem, em troca, & responsabilidade de prestar contas da aplicagao de suas idéias. Desse modo, exigindo ao mesmo tempo consenso, diversi- dade e conflituosidade, a democracia é um sistema complexo de organizagao e de civilizagéo politicas que nutre e se nutre da au- tonomia de espirito dos individuos, da sua liberdade de opiniao e de expresso, do seu civismo, que nutre e se nutre do ideal Liberdade/Igualdade/Fraternidade, 0 qual comporta uma conflituosidade criadora entre estes trés termos insepardveis. A democracia constitui, pottanto, um sistema politico com- plexo, no sentido de que vive de pluralidades, concorréncias € antagonismos, permanecendo como comunidade. (0S SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCAGAO DO FUTURO 109 Assim, @ democracia constitui a uniao entre a unigo ea de- ‘suniao; tolera e nutre-se endemicamente, ds vezes explosivamente, de conflitos que the conferem vitalidade. Vive da pluralidade, até mesmo na cipula do Estado (diviséo dos poderes executivo, legislativo, judiciério), e deve conservar a pluralidade para con- servar-se a si prépr O desenvolvimento das complexidades politicas, econdmi- ‘cas e sociais nutre os avancos da individualidade. Esta se afirma em seus direitos (do homem e do cidadao) e adquire liberdades existenciais (escolha autonoma do cénjuge, da residéncia, do faz 1.2 A dialégica democs Assim, todas as caracteristicas importantes da democracia tém um caréter dialégico que une de modo complementar ter- mos antagénicos: consenso/conflito, liberdade/igualdade/ fraternidade, comunidade nacional/antagonismos sociais e ideo- Iégicos. Enfim, a democracia depende das condigdes que depen- dem de seu exercicio (espirito civico, aceitagéo da regra do jogo democratico). ‘As democracias so frégeis, vivem conflitos, e estes podem fazé-la submergir. A democracia ainda ndo esté generalizada em todo 0 planeta, que tanto comporta ditaduras e residuos de tota- litarismo do século XX, quanto germes de novos totalitarismos. Continuaré ameagada no século XXI. Além disso, as demo- cracias existentes nao estio concluidas, mas incompletas ou inacabadas. A democratizagao das sociedades ocidentais foi um longo proceso que continuou de maneira muito irregular em certas reas, como 0 acesso das mulheres & igualdade com os homens no casal, no trabalho, na carreira publica. O socialismo ocidental nao conseguiu democratizar a organizagao econémica/social de 0 pcan Mona nossas sociedades. As empresas permanecem sistemas autorité- ros hierérquicos, parcialmente democratizados, na base, pot conselhos ou sindicatos. E certo que ha limites 4 democratizagéo em organizagées cuja eficdcia é fundada na obediéncia, como no Exército. Mas podemo-nos questionar se, como algumas em- presas o descobrem, é possivel adquirir outra eficécia por melo do apelo para a iniciativa e para a responsabilidade dos indivi- duos ou dos grupos. De tado modo, nossas democracias com- portam caréncia e lacunas. Assim, os cidadaos envolvidos néo 880 consultados sobre as alternativas em matéria de transportes, por exemplo (TGV, avides cargueiros, auto-estradas etc.). Nao existem apenas democracias inacabadas. Existem pro- cessos de regresssa democratica que tendem a posicionar os in- dividuos & margem das grandes decisdes pokiticas (com o pretex- to de que estas sao muito “complicadas” de serem tomadas e devem ser decididas por “expertos” tecnocratas), a atrofiar com- peténcias, a ameacar a divetsidade e a degradar o civismo, Estes pricessos de regressdo esta ligados a crescente com- plexidade dos problemas e @ maneira mutiladora de traté-los. A politica fragmenta-se em diversos campos a possibilidade de concebé-los juntos diminui ou desaparece. Do mesmo modp, ocorre a despolitizagao da politica, que se autodissolve na administragéo, na técnica (especializagao}, na economia, no pensamento quantificante (sondagens, estatisticas). A politica fragmentada perde a compreenséo da vida, dos sofr- mentos, dos desamparos, das solidoes, das necessidades ndo- quantificaveis. Tudo isso contribui para a gigantesca regressao democratica, com os cidados apartados dos problemas funda- mentais da cidade. 1.3 © futuro da democracia ‘As democracias do século XXI seréo cada vez mais confron- tadas a0 gigantesco problema decorrente do desenvolvimento (0S SETE SABERES NECESSARIOS A EDUCACAO DO FUTURO mm da enorme maquina em que ciéncia, técnica e burocracia estéo intimamente associadas. Esta enorme maquina nao produz ape- nas conhecimente e eluucidacao, mas produz também ignorancia e cequeira. Os avangos disciplinares das ciéncias ndo touxeram apenas as vantagens da divisdo do trabalho, trouxeramn também 05 inconvenientes da hiperespecializagéo, do parcelamento e da fragmentagéo do saber. Esté tomou-se mais e mais esotérico (aces- sivel apenas aos especialistas) e anénimo (concentrado nes ban- cosde dados e utilizado por instancias andnimas, a comecar pelo Estado). Da mesma forma, 0 conhecimento técnico esta reserva- do aos especialistas, cuja competéncia em uma area fechada é acompanhado de incompeténcia quando esta area é parasitada por influéncias externas ou modificada por algum acontecimen- to novo, Nessas condigées, 0 cidadao perde o direito ao conheci- mento, Tem o diteito de adquirir saber especializado ao fazer estudos ad hoc, mas é despojado na qualidade cidadao, de qual- quer ponto de vista global e pertinente. A arma atémica, por exemplo, retirou por completo do cidadéa a possibilidade de pensé-la ou controlé-la. Sua utiizagéo é deiyada geralmente & deciséo pessoal e tinica do chefe de Estado, sem consulta a ne- nhuma instancia democrética regular. Quanto mais a politica se toma técnica, mais a competéncia democratica regride, problema no se apresenta somente para a crise ou a querra. E problema da vida cotidiana: 0 desenvolvimento da tecnobiurocracia instaura o reinado dos peritos em areas que, até enido, dependiam de discusses e decis6es politica; ele suplan- ta 0s cidadaos nos dominios abertos as manipulagées biolégicas da paternidade, da materidade, do nascimento, da morte. Es- tes problemas, com raras excegées, nac entraram na consciéncia politica nem no debate democratico do século XX. De maneira mais profunda, o fosso que cresce entre a tecnociéncia esotérica, hiperespecializada, e os cidadaos cria a dualidade entre os que conhecem — cujo conhecimento € de resto parcelado, incapaz de textualizar e globalizar — e 0s igno- rantes, isto é, o conjunto dos cidadaos. Desse modo, cria-se nova na EDGAR MORI fratura social entre uma “nova classe” e os cidadéos, O mesmo Processo esté em andamento no acesso as novas tecnologias de comunicagao entre os paises ricos e os paises pobres. Os cidados so expulsos do campo politico, que € cada vez mais dominado pelos “expertos", e o dominio da “nova classe” impede de fato a democratizagéo do conhecimento, Nessas condig6es, a redugéo do politico ao técnico e ao eco- némico, a teducao do econdmico ao crescimento, a perda dos referenciais e dos horizontes, tudo isso conduz ao enfraqueci- mento do civismo, a fuga e ao refigio na vida privada, a alterndncia entre apatia e revolta violenta e, assim, a despeito da permanéncia das instituigbes demoeraticas, a vida democrética se enfraquece. Nessas condigdes, impée-se as sociedades reputadas como democraticas a necessidade de regenerar a democracia, enquan- to, em grande parte do mundo, se apresenta o problema de gerar democracia, ao mesmo tempo em que as necessidades planeté- rias nos reclame gerar nova possibilidade democratica nesta escala. A regeneracao democratica supée @ regeneracéo do civis- mo, a regeneracdo do civismo supée a regeneracdo da solidarie- dade e da responsabilidade, ou seja, o desenvolvimento da antropo-ética.'$ 15. Poderse-a nos pergunta, finalmente,# 2 escola nfo podria se pte ¢concet rent um laboratéria de Va democratic. Obvameni, tale de democracia itd, no Sent 8 que um profesor no sera eeto por ses alunos, de que a netessrn auiodicipina coletiva no podera elimina adsciplina poste igulmene no senido de que xiqualdade de Principio enteos que saber eos que aprendem nso poderia ser abla “Todavin (ede qualquer mania autonamia adults o pede, pela faa ei ds adoles- czntes), a alordade no podera ser incandlcona, e podriam ser Instauradas vers de ‘questionamento das decisbes consideradas arbres, especialmente com a insiuigho de um consaho de dasse elo peas alunos, ou mesmo por insti de asbragem exeras. Aref ‘ma rancesa dos ious, realzada em 1999, insaura ese po de mectisme. Mas, ct, a sla de aula deve se um local de aprendzagem do détateargumentedo, dasregas nests Ascusss, da tomada console das neescades eds procedmentos (0 SETE SARERES NECESSARIOS A EDUCAGAO DO FUTURO a 2. © CIRCUITO INDIVIDUO/ESPECIE: ENSINAR A CIDADANIA TERRESTRE A ligagdo ética do individuo a espécie humana foi afirmada desde as civilizagées da Antiguidade. Foi o autor latino Teréncio que, no século Il antes da era crista, dizia, por intermédio de um dos personagens do O homem que a si mesmo castiga: Homo ‘sum, humani nihil a me alienum puto” (“Sou homem, nada do que é humano me é estranho.”). Esta antropo-ética foi recoberta, obscurecida, minimizada pelas éticas culturais diversas e fechadas, mas nao deixou de ser mantida nas grandes religides universalistas e de ressurgir nas éticas universalistas, no humanismo, nos direitos do homem, no imperativo kantiano. Kant ja dizia que a finitude geogrdfica de nossa terra impde a seus habitantes principio de hospitalidade universal, que re- conhece ao outro 0 direito de nao ser tratado com: 0. A partir do século XX, a comunidade de destino terrestre impoe de modo vital a solidariedade. 3, A HUMANIDADE COMO DESTINO PLANETARIO Acomunidade de destino planetério permite assumir e cum- prir esta parte de antropo-ética, que se refere & relagao entre in- dividuo singular e espécie humana como todo. Ela deve empenhar-se para que a espécie humana, sem deixar de ser a instancia biolégico-reprodutora do humano, se desenvolva e dé, finalmente, com a participacdo dos individuos e das sociedades, nascimento concreto & Humanidade como 1o-compreenso do pensmento do outro, daescula ¢ do resptio 8s votes minortirias rpara raliadss. Por ssa, 8 aprendzagem da compreenso deve desempenhar um papel capital no apendiado democtica, ae epaan MORN consciéncia comum e solidariedade planetéria do género hu- mano, AHumanidade deixou de constituir uma nogSo apenas bio- I6gica e deve ser, ao mesmo tempo, plenamente reconhecida em sua incluso indissocidvel na biosfera; ja Humanidade deixou de constituir uma nogéo sem raizes: esta enraizada em uma “Pé- tia”, a Terra, e a Terra é uma Pétria em perigo. A Humanidade deixou de constituir uma nogo abstrata: é realidade vital, pois estd, doravante, pela primeira vez, ameagada de morte; a Hu- manidade deixou de constituir uma noo somente ideal, tor- nou-se uma comunidade de destino, e somente a consciéncia desta comunidade pode conduzi-la a uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo, uma nogao ética: 6 0 que deve ser realizado port todos e em cada um. Enquanto a espécie humana continua sua aventura sob a ameaga de autodestruicéo, o imperativo tormou-se salvar a Hu- manidade, realizando- Na verdade, a dominagao, a opressio, a barbarie humanas permanecem no planeta ¢ agravam-se. Trata-se de um problema antropo-histérico fundamental, para o qual nao ha solugao a priori, apenas melhoras possiveis, e que somente poderia tratar do processo multidimensional que tenderia a civilizar cada um de nés, nossas sociedades, a Terra. Sés e em conjunto com a politica do homem, a politica de

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