Você está na página 1de 4
7 . ee fee Vilém Flusser, 4 i tecrica warto_argi 0s objetos técnicos, (aparelhos ¢ cfiquinas, gadgets e instrumentos), representam varte considerfvel do nosso axbiente cotidiano, de modo que tomamos consciéneia da sua presénga cuando deixam de funcionar convenie: tenente. was basta esforgo relativanente pequeno para levantar a capa a do habitual que os ercobre e baneliza, vara verificarmos o quanto € mil: groso o mundo que habitamos. Apertanos um botdo, © a lus se acende, ¢ es outro, e a maquina para moer café se poe em funcionanento. 0 "milagre de técnica" & 0 pao quotidiano nosso, sem o qual pereceriamos. Bum milagre cue tém varios aszectos curiosoe. Técnicos o adniram nais que leigos, cientistas mais que tecnicos, filsofos mais que cien tistas. Quem passa por ponte de autostrada nem pensa em dever admirar- se de algo. © construtor que a calculou soltou suspiro de alivio quan- ao verificou que se comporta conforme calculado. £.0 filosofo que con- templa tal verificagao ¢ incapaz de digerir o milagre que os algariemos postos pelo construtor sébre papel sao traduziveis em cimento armado ¢ 1A se-comportam como se nunca tivessem eido algarisnos. © leigo a@mira aspectos nao admirados pelo téonico, (vor exerplo a rapidez do telégrafo), e 0 técnico espectos nao admirados pelo lei- go, (por exemplo a erescente eficiéncia de motores de explesao). 0 fi ibsofo admira aspectos nao admirados pelo tecnico, (por exemplo e@ sil lagao de decisces em coxputadores), e o tecnico asvectos nao adnirados polo filésofo, (por exenplo a possibilidede de cortos materies vara fine determinados), 0 milagre da técnica n&o € um: sao varios, e 0 sao en ct _ fung&o de quem of adnira, e un milagre pode elininar outro. Uns se ad- rdiram perante a m&guyna de café, outros na perante a falta de admiragao dos primeiros. Mas ndo s&0 estes os aspectos do milagre aqui pretendidos. Nas a curiosa deslocagao da admiragao ocorrida recentenerte. originalmente o admirfvel era a ciéneia: era tida método Ge aleangar conhecinento ver dadeiro quanto anatureza. A técnica ndo passava de aplicagao de tal corhecinento, e prova da sua veracidade- Era milagroba em segundo grau. Atwalmente o adniravel € precisanente a técnica: funciona embora 08 enun ciados da cigncia que lhe serven de base nao possan ser tidos por ‘verda) deiros" no sentido originalnente pretendido, 4 técnica se tornou mdlagr de primeiro grau, porque ao funcionar a4 significado aos enunciados olen 0, @ maie outros se admiran +ificos que “aplica". E com isto esta se tornando "magica" no sentido ex ato do termo: originalmente a téonica era a prova da verdade dos enuncial dos cientificos, e atualmente os enunciados cientificos tendem a ser for malas que explican, (2provan"), 0 funcionanento dos gadgets. A inversdo da relagao "ciéncia/técnica" que esta en jégo nao & sempre conscientizada, porque a dialéctica igaber/poder" € de dificil penetracao. originalnonte a ciéneia era disciplina que visava o saber, ¢ nisto se distinguia da magia, (astrologia, aiguimia etc), as quais visavan o poder. 0s astronomos renascentistes n&o vieavam, como of astrélogos, in fluir no destino dos homens, mas "descrever corretamente" os fenbmenos ce- lestes. Que tais descripgdes tenhan resultado em viagens maritimas e espa ciais muito mais modificadoras dos destinos que nao importa que astrologia era conseauéncia nao pretendida da “verdade" dos enunciados da astronoria. Pretender que os mec&nfbes do barroco visavam construir macuinas para a bur guoeie nascente seria falsfificar os fatos+ visavan "deserever corretanen- te" Zenémenos do tipo "queda livre", e que istoy reeultou em m&quinas que acabaran produzindo muito mais ouro que nado importa que alquimia era con- sequéncia ndo pretendida: da "verdade" dos enunciados da mecknica, (embora consequéncia desejada e financiade pela burguesia). Originalmente, pois, a ciéncia se pretendia "Jura". las confusamente. Muitos doe astronomos renascéntistas eran tanbem astrélogos, e muitos mechnttos barrocos eran tambem feiticeiros. Wao obstante: para saber, fazia-se ciéncia, e para fazer, feitigo. Atualmente 0 oposto tende a ser o caso: hao se espera mais que a ciéncia leva ao "saber" no sentido originalmente visado. alifs, cono su pér que os enunciados da ciéneia, estruturados matenaticamente e l6gica- mente, (portanto en cbdigos altanente “artificiais"), possan articular al go cue nao seja proveniente dessa prépria estrutura, ("a priori" kantiano)? Como esperar que a ciéncia possa “descobrir" no fundo da natureaa algo gue nao tenha sido posto 14 préviamente pela ciéncia ela propria? Em comper- | sagio espera-se da ciéncia que leve ao "poder", isto € a tecnica que de- termina o destino da humanidade. Bm suma: embora nao se possa mais crér | que os algaribnos do construtor "signifiquem a coisa", espera-se que a Pon te se sustente. Simulténeamente, (e curiosamente), h& os que commgan a suspeitar que h& um “saber” escondido na magia, na alguimia, na kebbala, um "saber" a ser desenterrado, embora ninguem mais espere que tais disci- Em suma: atualnente, pare fazer, faz-se ciéncia, e plinas "funcionen" para saber, cogita-se inclusive da anglise da nagis. Isto poderia levar a crér que a f¢ ne ciéneia pura se perdeu no ica se fortalesceu. De curso dos stculos, mas que a fé no milagre da teen modo que 08 atualmente engajados en ciéncia deven recorrer 4 técnica como ao argumento méximo em pr6él da sua continua validade, (um argumento "Prag m&tico" num significado m&gico do termo). Kas isto nao seria descrigao correta da situagao na qual estamos. A perda da f¢ em ciéncia pura por parte de una elite filosofante, (fenomenblogos, eetruturalietas, analis- tas logicos etc.), e por parte de certos cientistas, (principalmente fi- sicos nucleares e linguistas), ¢ compensada pela f@ no cientifismo que caracteriza as massas, e pola continua f@ na ciéncia pelos narxistas or- ace todoxos. (a0 importa que o cientifismo seja anti-cientifico, nem que o termo “ciéncia" nao signifique para marxistes o que significa pare fi isofos e cientistas do final do século 20). Por outro lado, quanto 2 f@ no milagre da técnbba, ¢ verdade que tédos crém que os limites do possivel téonicamente ainda se encontran vo alén ao horizonte, (se 6 que tais limites sAo admitidos). Mas tal cron ca nas possibilidades praticanente ilimitedas da téonica @ mitigade pela a dGvida cue se espalha quanto a capacidade da técnica de resolver problemas, inclusive os problemas por ela prépria criados. E ha os que acreditam cue tao futuro progress da técnica a vai tornando sempre menos interessante, (anlei des vantagens decrescentes" - law of diminishing returns), © que 0 ponto maximo da evolugdo técnica foi superado h& alguns decénios sem que humanidade se tivesse dado conta disto. © paradoxo da nossa situagao @ pois este: vivemos em anbiente dominado por produtos técnicos, morrerianos se deixassem de funcionar, nao acreditenos que isto seja.um "bem", cetanos acostunados ao funcionanento ¢ portanto nao o,admiranos, mas quando meditamos a respeito ficamos espanta aos, porque ndo podenos mais erér que © Zuncionamento se deve A "sabedoria” aa ciéncia pura. Pois tal descrigéo da nossa situacdo pode ser reformula— ga da seguinte maneira: vivemos er: mundo 6ré: demente produzido por um ti- po especifico de magia, chanado "técnica", © estanos em vias de perder a $6 on tal magia, tanto com respeito a mito especifico que a sustenta, cho~ mado woiéneia pura", quanto com respeito, ao ritual especifico ao qual re- corre, chanado umenipulagae tecnolgica do mundo". fal formulagdo da nossa situdgéo nao leva, por certo, @ ume aguperagao @a nossa crise". Continua sberta 8 questao tebrica, "como po de funcionar a técnica, embora a ciéncia nao possa captar a coisa?", & contimia aberta a questao prética, “que fazer senao mais técnica para re solver os problemas que a técnica colocou em nossa frente?". Kes embora a formulagao nao resolva tais perguntas, ajuda a coloctdas em contexto mais amplo. A saber no contexto da "fé perdida". B poseivel dizer-se que o mundo técnboo que nos cerca € Pro” duto de naga eepecifica, conparavel A magia produtora dos mundos que cer cam o indie kra e ov o Wanbuti. Que se trata de trés 69 comparaveis ave custentam trés mundoe conparfveis. 0 que caracterisaria a nossa f@ em com paragéo com as duas outras seria & sta "linearidade": erémos que o mundo find do passado runo ao futuro, portanto que "ser" 6 nyir-a-ser", e que viver 6 progredir rumo a morte, Tal estrutura linear da nossa fe assumiv varios contendos: judaismo, cristianisno, huncnismo, marxteno etc. Nas o derradeiro conteudo de tal estrutura @ o discureo da ciéneia pura, por- que nele a estrutura se articula inteiranente enquanto chlewlo claro e dig into. 0 universo aue 0 discurso cientifico projeta ten a estrutura da nossa f@: & meter&ticanente e logicamente estruturade. & em tal univer- 80, (¢ em nenhun outro), que @ técnica funciona. Be £6 que projetou tal universo se esgota nesse seu projeto, porque se "recolhe sobre si mesma" "se retoma om si", ("sich zuruecknimnt"), sob forma de funcionanento. Pois a Gificuldade de tal "visdo em contexto" & precisamente que obriga a comparagoes: se'digo que a ciéncia pura 6 una espécie de mito con par&vel aos nitos Kra ou Wembuti, ou que a tecnica ocidental & uma espéoie de rito conpar&vel aos ritos da chuva ou da fertilidade, nao estou "acina” das,entidades conparadas, suspenso no ar, "transcenderte". Pelo contrério# estou operando com categorise ocidentais, e Dortanto ‘ancxando "inperialis- ticamente" Kra e Wambuto ao ociderte,do qual sou incavaz de escapar, en- ora tenha perdido a £8 nele. 0 Ocidente nos prerde,a todos os seus par- ticipantes, como gaiola, e a f¢ nos engloba mesmo depois de esvaziada. 0 que nao passa de reformulag&o da "descoberta" wittgensteiriana, No entanto: 0 exercicio da conparagdo néo resulta fatil. Porque pernite relativisar 0 até agora tido por absoluto. Hao mais: "a ciéncia 6 produtora do saber", mas: "zrodutore de um saber mais v&lido que o dos & manipulagao adequada ao ites Kra o Wambuti". Endo mais: "2 técni mundo", mas: "mais adequada ao mundo que ¢ o rito da chuva", @al relata, 2, ser& vesso importante em diregao da su imigo do bon, e se a ciénca f6r vacao, se efetivanente alcangs peragdo da crise. Porque o melhor @ o i: adnitida a melhor des nagias, e a técnica o melhor dos ritos, teremos a- verto horizontes no além da fé presentemente esvaziada. A tecnica deixa r& de ser o argumento reacion4rio om pr6l da manuter¢do das estruturas vi gentes que @ atualnmente, e vistas névas se abriréo, por certo terriveis e ‘terroristas", (porque nao mais enquadrfveis), mas nao obstantelibertado- ras. Em suma: o milagre da técnica obstroi atualmente a visao do "névo", porque 6 utilizado como argumento, aparentemente progressista, mas efeti vanente reacion&rio, em pr6l da continuagao do progresso na diregao da realizagao de um projeto esvaziado.

Você também pode gostar