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MAQUIAVEL EA CONSTRUGAO DA POLITICA RAQUEL KRITSCH Em Maquiavel € muito claro que a politica € a reflexdo que sobre ela se faz constituem aspectos indissocidveis. O Principe é a prova mais evidente disso. Embora tenha sido uma obra lida por muitos ao longo dos séculos como um “manual” ou receitudrio para o governante que dese- jasse se tornar um principe virtuoso em qualquer tempo e lugar ~ 0 que ev dencia seu cardter de tratado tedrico -, Maquiavel nao escondeu de seus leitores que o livro tinha um sentido pritico imediato, explicitamente declarado no tiltimo capitulo. Nele 1é-se uma exortagdio em favor da “un cago da Itdlia” ¢ da expulsdo dos estrangeiros. A idéia de um projeto nacional, missfio que Maquiavel atribufa aquele que assumisse a tarefa de unificar, libertar e pacificar a Itélia, expressa-se no poema de Petrarca. E essa mensagem final, portanto, que deve incentivar a ago e permanecer gravada nelli italici cor e, de modo muito especial, no coragiio de um principe disposto a redimir a Itélia — "espoliada, lacerada, invadida" — das “crueldades e insoléncias barbaras". Essa mensagem, ponto final do escrito, é também ponto de par- tida, Constitui 0 marco inicial ndo do discurso explicito, mas do trabalho de Maquiavel. Cauteloso, este nao a revela na dedicatéria. $6 no final se abrir, por inteiro, 0 sentido da homenagem aparentemente banal. Se este presente for "diligentemente considerado ¢ lido, encontrar o meu extremo desejo de que the advenha aquela grandeza que a Fortuna e as outras suas qualidades Ihe prometem” A missio prética nao s6 motiva Maquiavel como ilumina todo o livro. Ea partir dela que se poem as questées técnicas ¢ tedricas enfrentadas no texto: as formas de acesso ao poder, os meios de agdo e sua hierarquia, as qualidades necessarias ao governante, as exigéncias préprias da agio politi ca, as consideragées sobre a natureza humana ¢ as possibilidades da agi, delimitadas pelo contraste da virri ¢ da Fortuna. Lido a partir da exortagiio final, todo o texto se encadeia de modo I6gico ¢ mais fluente. 182 LUA NOVA N* 53 — 2001 Mas O Principe, além de ter uma finalidade pritica, é uma obra que pretende ser um pequeno tratado sobre as condigdes de aquisigfo ¢ manutengiio do poder num principado. Pode-se dizer que 6 um texto de natureza tedrica, pois ao falar da agdo dos prfncipes Maquiavel trabalha com uma tipologia de governantes, que de alguma forma esti acoplada a uma tipologia de Estados. F, embora essas ligdes estejam particularmente voltadas para 0 caso dos principados, elas podem ser estendidas para ou- tras formas de governo e de Estados. Maquiavel inicia a discussio dizendo que todas as formagdes politicas podem ser divididas em duas eategorias: reptiblicas e principados. Afirma que deixari de lado as republicas, pois j4 haviam sido tratadas noutro lugar. Esta explicagdo, no entanto, € incompleta: o fato € que, para seu propésito pratico, interessa essencialmente estudar os principados. Ele quer discutir a possibilidade de redengio da Itslia, tarefa que dependeria da ago de um principe. Divide inicialmente os principados em dois grupos, de acordo com a forma de acesso ao poder: hereditifrios e novos. A partir desta cisio bésica pode-se construir um terceiro tipo, o dos principados mistos, caso dos Estados conquistados e anexados a um antigo. Os principados novos tema dominante de sua investigagao — podem ser adquiridos, segundo Magquiavel, de quatro formas: 1) pela "virti"; 2) pela Fortuna; 3) pela vio- léncia celerada; 4) com o consentimento dos cidadios. Esta classificagdo segundo a forma de conquista corresponde também a uma classificagdo das condigGes de estabilidade. Os principados totalmente novos adquiridos com armas e virtude préprias stio diffceis de conquistar e, no entanto, mais Mceis de manter (cap. 6). JA os menos estaveis sio aqueles conquistados com armas ¢ Fortuna dos outros e os que so fruto da violéncia extremada, No caso da conquista pela Fortuna a manutengiio do poder pouco depende das qualidades do principe e, por sso, € instével (cap. 7); no caso da violéncia celerada o risco de rebelidio € permanente, a menos que o tirano saiba usar bem a crueldade, aplicando-a com rapidez, ¢ deixando-a extinguir-se com o tempo (cap. 8). O exemplo escolhido por Maquiavel para ilustrar este dltimo tipo de formagio € o de Agatocles. Este, no entanto, nio teria sido um go- vernante virtuoso, explica. Pois a sua ago nao se seguiu a gloria. Ea virti inclui a gléria como uma espécie de “categoria conceitual”: ndo hd virtir num principe incapaz de conquistar honra e gléria para si e seguranga para seu Estado, como dird mais adiante, no capitulo 25. O problema, esclarece, no foi quantidade de violéncia usada por Agdtocles. Ha uma dilerenga MAQUIAVEL EA CONSTRUGAO DA POLITICA 183 entre a violéncia que se extingue e aquela que se perpetua. A violéncia que se perpetua é mA, insiste Maquiavel. Por esta razdo € que Agatocles nao pode ser considerado virtuoso. Pois teria derramado mais sangue do que 0 necessério. Faltou-lhe, em termos modernos, uma certa “economia do poder”: nao soube calcular a relagio custo/beneficio na politica, Pode-se dizer que hd um grau de moralidade no julgamento que Maquiavel faz da ago de Agatocles. Pois 0 poder, em seu raciocinio, nao é todo 0 objeto da ago politica, mas somente uma sua parte, Essa moralidade aqui presente ~ que, vale Jembrar, nao é substantiva — tem de servir ao fim da agio politica, que nao se limita ao poder em si mesmo mas inclui a sua manutengao e estabilidade, fatores que no dependem somente da forga. A durabilidade de um principado requer algum grau de legitimagao pelos stidi- tos, que nfo se rebelardio nem depordo o soberano enquanto acreditarem existir alguma razao para Ihe obedecerem (relacio esta que aparece com mais clareza na obra que Maquiavel dedica & repiblica, os Discorsi). Os principados também podem ser clasificados de acordo com a forma de governo. Alguns so governados por um principe ajudado por seus ministros, "servos" (ministeres) que participam da administragao "por graga e concessio do senhor". Noutros, 0 principe divide a autoridade com os bardes, que possuem "lominio e stiditos préprios", De modo geral, o grande tema dessa primeira parte ~ na qual Maquiavel privilegia 0 campo da agiio politica — € a implantagdo do poder a partir da conquista e sua manutengio, que se dé pela eliminagao dos focos de resisténcia e pela sujeigdo dos alia- dos, sempre perigosos quando conservam alguma parcela de forca. segundo grande passo € a discussdo dos meios materiais de ago do principe, tema que se estende dos capitulos 12. 14, ¢ consiste no exame do uso da forga (parte “técnica” do livro). A pergunta a qual Maquiavel procura responder aqui é: quais so, genericamente, os instru- mentos de comando que asseguram a estabilidade do.poder e, portanto, a estabilidade do Estado? Hé4 duas bases que sustentam o poder do principe em qualquer principado, explica ele: as boas leis e as boas armas. E as boas armas antecedem as boas leis. Como niio pode haver boas leis onde nao ha boas armas, Maquiavel concentra sua atengio inicialmente no estudo da forca. A decisio de discutir apenas as boas armas deve-se ao fato de que Maquiavel raciocina aqui pela condigio limite: as armas so a condigao primeira de qualquer lei, pois Ihe garantem a eficécia. Agora ja nao se trata de discutir uma classificagao das formagées politicas, ¢ sim a condigiio de manutengdo do poder. E a condigao de dura- bilidade do Estado sao as armas, que podem ser préprias ou de terceiros. As 184 LUA NOVA N® 53 — 2001 armas de terceiros sio intiteis c perigosas. Pois, do ponto de vista do in- teresse do Estado, a atividade militar nao pode ser adequadamente consti- tufda se nao estiver dirctamente subordinada ao comando do principe. O tipo de comando que os prfncipes devem impor as tropas 6 assumir © posto de capitdo, seja num principado ou numa reptiblica. Na repdblica, hd uma ressalva importante: se 0 capitdo vier a se tornar um homem muito importante, 0 governo deve controlé-lo por meio de um aparato legal que restrinja criteriosamente suas fungdes. Maquiavel dis- lingue, portanto, entre duas formas de comando: |) uma forma de coman- do pessoal do principe, tipica dos principados; ¢ 2) uma forma de coman- do institucional, caracterfstica das reptblicas. O exercicio do poder € sempre conflituoso e se constitui em oposicio a outros poderes. Um principe, escreve Maquiavel, "nao deve ter outro objetivo nem outro pensamento, nem ter qualquer outra coisa como pratica a nao ser a guerra, o seu regulamento ¢ sua disciplina, porque essa é a Gnica arte que se espera de quem comanda” (cap. 12). Essa idéia ganharia no século seguinte uma formulagao que faria fama. Como escreve Hobbes, na auséncia de qualquer outra instituiggo um poder torna soberano aquele que 0 possui: 0 comando da milicia, Por isso. seja quem for o general de um exército, "quem possui o poder soberano é sempre o generalissimo" A arte da guerra deve ser assim uma preocupagdo constante do principe. Mas em que sentido se pode dizer que esta é a tnica arte que se espera dele? Num sentido especial, que pode ser afirmado sem contradizer os capitulos seguintes: quando a politica € entendida como a continuagiio da guerra por outros meios. O que significa dizer que a possibilidade do uso da violéncia esta ligada & possibilidade do governo. No capitulo 17, quando trata do binémio crueldade/piedade, Maquiavel insiste no fato de que a piedade nao consiste na rendncia violéncia ou a crueidade pelo principe. Para o homem politico a piedade consiste no uso da violéncia que seja mais conveniente aos stiditos. Pois a violéncia bem ulilizada — ¢ isto importa reter — gera ordem e seguranca. O oposto da ordem, raciocina Maquiavel, é a violéncia indiscriminada, Decisiva, portanto, na argumentagiio de Maquiavel é a idéia de que a ordem egiiivale & violéncia administrada. fi por isso que se pode dizer ser a violéncia a condigdo limite para a vida politica. Por essa raz também, as boas armas antecedem as boas leis. Embora haja espago para a astiicia e para a persuasio, a violéncia € sempre o ponto limite necessiio. Principe capitio ¢ tropas préprias, ndio mercendrias, eis por- tanto duas condigées basicas de seguranga do Estado. E se as armas pu- MAQUIAVEL E A CONSTRUCAO DA POLITICA 185 derem ficar em poder do povo, contiivel para o principe, melhor ainda: mais perfeita serd a sua seguranga, porque se confundira com a segu- ranga do povo e do Estado. Sc as armas so a condigo limite da seguranga, seu controle ¢ scu bom uso nao esgotam, porém, a agio do principe. A complexidade da politica reflete, para Maquiavel, a complexidade da natureza humana, E indtil discutir a politica sem levar em conta por que ¢ como de fato agem 0s homens, ¢ também como combatem. Pois 0 combate € condigio basi definidora da politica. Os seres humanos, diz cle, agem e combatem segundo a sua dupia natureza: ora como animais, ora como homens, segundo aquilo que é proprio da natureza humana, A forma de combate exclusiva do homem & alei. Jaa forma de combate que o homem reparte com os demais animais €a forga. Essa outra forma de combater envolve tanto a forga bruta, propria dos ledes, quanto a asticia, qualidade das raposas. © principe deve saber tanto aterrorizar e golpear quanto simular ¢ dissimular, Precisa ser “raposa para conhecer os lagos ¢ leo para aterrorizar os lobos”. Os ideais da cor- reco propria do homem, as leis, devem ser complementados com as artes indispensaveis da forga e da sagacidade. Cabe uo principe saber usar bem uma ou outra natureza, segundo o exigem as circunstincias. Porque uma sem.a outra 6 causa de instabilidade, Ha uma grande distincia entre como se vive e como se deveria viver, continua ele, de modo que aquele que abandon o que faz pelo que deveria fazer estar a caminho da ruina, e no a caminho da preservagio. Por isso, recomenda Maquiavel, é mais convenience procurar a verte efferuale delle cose. “Se os homens fossem todos bons, este preceito seria mau”, Como, no entanto, muitos so maus, "o homem que quiser fazer protissao de bondade é natural que se arruine” (cap.15). Arruinar-se € niio s6 perder 0 poder mas também a possibilidade de realizar qualquer bem. Maquiavel trata neste ponto de um outro elemento relevante para a discussao politica: da bon- dade e da maldade humanas, no sentido comum, isto 6, como nogées que designam as agdes individuais. O que aparece aqui com clareza, portanto, ¢ a possibilidade de um confliro entre a ética tradicional do individuo, espe- cialmente a ética crista, ¢ as exigéncias da agdo politica. Maquiavel sustenta que a vida politica tem exigéneias préprias, particulares, que nao se podem subordinar aos imperativos, pretensamente universais, tanto da moralidade cristé quanto do humanismo estéico (Cicero e Séneca). E importante frisar que Maquiavel nao recusa de forma radical os valores cristios. Ele somente se opée a um tipo de ética que ly 186 LUA NOVA N* $3 — 2001 exige tratar as das agdes segundo valores absolutos em qualquer tempo e lugar, sem levar em consideragiio como e para que a agio est sendo exe- cutada. Ele ndo rejeita uma visio ética, mas poe em primeiro plano a questiio da eficdcia, sem a qual a politica, para ele, nao tem sentido. Tal como os classicos; Maquiavel admite que tanto a politi- ca quanto a moral se estendem por um mesmo campo: aquele da acao humana. Mas polftica e moral distinguem-se por terem princfpios ou critérios diferentes de avaliagio e de justificagao das agées. O critério de julgamento da agio moral € 0 respeito a uma norma absoluta e indiscutivel por parte do individuo (“nao matards”). Para 0 homem moral o relevante € a pureza de intengdes e a coeréncia da agi. O critério de julgamento da agao politica, por sua ver, € 0 resultado dessa ago praticada em nome do grupo (eliminar os inimigos da patria). Para 0 homem politico, portanto, o importante é alcangar os resultados almejados, desde que niio se ultrapasse os limites da mora- lidade corrente, isto , os limites do que a sociedade esta disposta a aceitar como Ifcito. Politica e moral, portanto, pertencem a sistemas éticos dife- rentes. Uma ética individual pode produzir santos. Mas niio produz. a politica. Pois a ago social € aquela que se retere aos outros, € nao aquela tomada em si mesma segundo a consciéncia de cada um. Toda ago social, na gual se insere a aco politica, € uma relagdo social. Entender a relagio entre agentes politicos, portanto, exige algo mais do que a mera concepgao do individuo. Como em Aristételes e Cicero, a nogao politica de virtude ndo eqilivale & nogao individual de virtude (“o bem do individuo nao se confunde com o bem da cidade”, escrevera o fil6sofo grego muito antes). A acio politica tem objetivos e condigdes de eficiicia que niio se confun- dem com as condigdes da ago individual o se trata, portanto, de fazer uma distingdo entre a ética crista ¢ a ética politica, e sim de abrir uma nova perspectiva de pensar a ética. B necessirio levar em conta os resultados pensando também na agiio dos ou- tros homens (¢ nao apenas na prépria ago). As condigdes de eficdcia da agao sao condigdes da ago politica com sentido social. Assim como a ética do cristao, para Maquiavel, ndo se confunde com a ética do politico, o bem-estar do Estado tem exigéncias diferentes das exigéncias do individual. Quando a necessidade impoe, 0 principe pode recorrer ao que se convencionou chamar razdo de Estado. Isto 6, aquela razio pela qual 0 governante, em virtude da exigéncia de seguranga do Estado, pode ser levado a infringir tanto a moral corrente quanto as normas MAQUIAVEL E A CONSTRUCAO DA POLITICA 187 legais em nome da manutengiio da ordem interna ¢ da seguranga externa, |j4 que o principe deve ser 0 detentor exclusivo do uso da forga. Também neste ponto nao hi conflito moral para Maquiavel. Os fins do Estado sio supremos. Nao requerem terror perpétuo, mas podem impor o uso da forca e da astiicia, Esta concepgao de Razio de Estado esta fundamentada na convicgdio de que é impossfvel garantir a ordem publica e evitar a anarquia no corpo polftico sem uma autoridade estatal forte capaz de impor aos siiditos seus comandos de forma it sistivel. Por isso a conduta violenta dos “fundadores de estado”, reivin- dicada por Maquiavel. se justitica objetivamente: a criago de uma au- toridade estatal forte € condigao indispensdvel para que o Estado possa exercer sua fungio ordenadora e civilizadora. Essa condigo in- dispensavel ao Estado, a forga, seria substitufda na sociedade moderna pelo direito. tratamento moral dado por Maquiavel & politica passa por- tanto por trés nfveis: 1) pela recusa de qualquer ética individual absolu- ta, ¢ especialmente da ética cristd, como orientadora da ago politica, que tem exigéncias prdprias; 2) pela instrumentalizacéio da moral corrente: 0 principe deve ser capaz de fingir ou ostentar certos atributos morais, isto 6, deve ser capaz de simular ¢ dissimular; 3) pela reintegragio dos fins morais na agio politica, mediante a reconciliagiio entre os valores cor- rentes (bem comum, generosidade, grandeza da patria, liberdade, inde- pendéncia nacional, etc.) ¢ as condigdes de eficacia da agio politica. “Todos véem aquilo que pareces, mas poucos sentem o que és: e estes poucos nao ousam opor-se 2 opinidio da maioria, que tem, para defendé- Ja, a majestade do estado. Como nao ha tribunal onde reclamar das agdes de todos os homens, e principalmente [das ages] dos principes, 0 que conta por fim é o resultado. Cuide pois o principe de vencer ¢ manter 0 estado: os meios sero sempre julgados honrosos louvados por todos, porque 0 vulgo esta sempre voltado para as aparéncias e para o resultado das coisas, € no ha no mundo senao 0 vulgo; a minoria nao tem vez. quando a maioria tem onde se apoiar” (cap. 18) H4, portanto, dois sentidos no compromisso de realismo, isto é,com a verité effetuale delle cose. Um deles é epistemolégico, e corre- sponde 4 determinagio do espago préprio da politica enquanto objeto de reflexdo te6rica ou cientifica. Este espago ndo se conlunde com 0 espago do dever ser ¢ muito menos com o espago da reflexdo sobre a indivi= dualidade. © segundo sentido é prético: refere-se as condigdes de eficé- cia da aco e € iluminado pelo primeiro. A ciéncia nao pode indicar os 188, LUA NOVA N® 53 — 2001 fins, mas serve para informar os meios. E 0 meio espectfico da agio politica, aquele que norteia a vida do Estado, é a forga. Ou como formu- laria Weber alguns séculos mais tarde: 0 que diferencia o Estado das demais associagGes é 0 fato de ser ele o detentor exclusive do monopélio legitimo da violéncia sobre um determinado territdrio. Resta a Maquiavel entio discutir as possibilidades da agio do principe. Estas possibilidades, de fato, estiio pressupostas desde o inicio, ou todo o discurso seria inttil. Maquiavel concede que a liberdade do homem estd longe de ser absoluta. Por isso, diz ele, pode-se afirmar que “a Fortuna seja Arbitro de metade de nossas ages, mas que também deixa ao nosso governo a outra metade, ou quase” (cap. 25). A Fortuna € 0 conjunto das circunstincias que possam cercar nossas ages e, de alguma forma, determind-las, impondo no minimo 0 esforgo de uma resposta eficaz. Ela demonstra sua forga onde nao encon- tra uma virtit ordenada, pronta para resistir-lhe. Um principe que se apéia exclusivamente na Fortuna ird arruinar-se quando os ventos mudarem. Por isso, deve o principe acomodar seu modo de agir i natureza dos tempos. A qualidade capaz de dominar a Fortuna € a virtit. Esta 6 a capacidade de agir em face da Fortuna, aproveitar uma circunstincia favorivel, resistir aos fatos e, se posstvel, antecipar-se a eles, conquistan- do honra e gidria para si e seguranga para o Estado, Em tiltima instancia, virtt 6 a capacidade de produzir histéria. Esta € a tarefa que cabe ao principe. Daf a importancia de toda a instrugdo proposta por Maquiavel. Algo, no entanto, independe de tudo que ele possa aprender pelo exereicio ¢ pelo estudo de como agiram os principes virtuosos: é a sua disposigio de agir com fmpeto quando necessdrio para dominar a Fortuna. Quanto mais desafiadora a Fortuna, maior a gldria do principe que a dominar. A exortagao para que um principe novo liberte a Itdlia dos barbaros € a reivindicaglio que dé sentido imediato 20 trabalho de Maquiavel. A maior honra a ser reconhecida ao principe novo ser’ sua disposigiio de fundar na Itélia novas leis e um novo regime. E para a tarefa de redimir a patria, insiste ele, 6 preciso prover-se de exércitos préprios e comandé-los com virti: para resistir aos estrangeiros. Esta é a sedugio que Maquiavel poe diante do principe, no final da sua obra: "Se, conforme disse anteriormente, foi necessdirio que os fi- Ihos de Israel se tornassem escravos no Egito para que Moisés demonstrasse sua virtl, que os persas fossem oprimidos pelos medas para que se abrisse um lugar & grandeza de espirito de Ciro; que os atenienses se dispersassem, para que se tornasse evidente a exceléncia de Teseu; assim também, em nossos dias, foi necessario que a Itdlia se reduzisse & sua condigao atual ~ mais escraviza- MAQUIAVEL © A CONSTRUGAO DA POLITICA 139 da que os hebreus, mais dispersa que os atenienses; sem uma cabega, sem ordem, batida, espoliada, ditacerada, invadida, ¢ sujeita a toda sorte de rufnas = para que se possa conhecer a virtii de um espirito italiano” Nao hi para o politico, diria Maquiavel, « possibilidade de agiio fora da vida terrena: ele nao pode praticar o bem porque nilo est na cidade de Deus. Essa humanizagiio das agdes ¢ dos seus significados se di pela naturalizagao do politico. Nao hi recurso possivel ao sobrenatural. Nao hi transcendéncia que resolva os problemas da politica. A duplicidade reside agora na natureza humana: cla est na condigzio mesma da ago politica — lei e forga, homem e animal, O fim minimo da politica, para Maquiavel, pode ser reduzido 2 dois aspectos: a manutengiio da ordem publica nas relagdes internas; ea detesa da integridade da patria nas relagdes externas. O objetivo de um prineipe deve ser, uma vez controlada a Fortuna, manter 0 Estado, dese- jando conquistar aqueles bens oferecidos por cla: honra, gléria, fama e riqueza, Nesse sentido, Maquiavel ndo tem uma teoria do principe, ¢ sim uma teoria do jogo do qual o principe deve participar se quiser ser principe e manter-se como tal. © que amarra todo discurso de Maquiavel so basicamente dois pressupostos: 1) a idéia de uma constineia da natureza humana, uma certa tendéncia humana 4 maldade ¢ a0 egofsmo; 2) 0 poder do interesse proprio na determinagao dos comportamentos: o conflito esta dado imediatamente na vida social e é parte dela Constituir 0 Estado envolve ordenar a vida do povo e das pes- soas ou grupos, organizando interesses potencialmente conflitantes. Isto pode dar-se tanto pelo abafamento dos conflitos quanto por sua canaliza- go ou regulamentagiio, Fazé-lo requer um poder baseado na forga, capaz de gerar instituigdes (exército, leis, normas fundamentais, religiiio). Na fundagio do poder consolida-se, num primeiro momento, 0 comando; num segundo momento, da-se forma (principado ou repiblica) ao governo, pen- sado como instituigdio que regulamenta a forgat ¢ atende a demanda: A partir do momento em que os interesses privados estiio subor- dinados a uma certa ordem € de algum modo regulamentados, emerge & nogiio do public ou do bem comum, A liberdade nao apareee como um componente direto ou qualidade definidora do Estado, como em Hobbes ou Locke, € sim como uma magnitude. Isto é, ela seri maior ou menor de acordo com o “desenho institucional” estabelecido a partir das relagées entre as instituigdes e os interesses em jogo (ou entre as leis ¢ as paixdes, como dissera Aristételes). Virtti c Fortuna vio conterir qualidade ¢ dura 190 LUA NOVA N —2001 bilidade as relagées politico-institucionais. Liberdade, virtt e Fortuna so portanto predicados da ordenagaio politica, Entre calculo e desencanto, ga- nhava corpo uma teoria que faria escola no pensamento politico do Ocidenie: a tradigiio do realismo politico. RAQUEL KRITSCH é doutora em Ciéncia Politica pela USP e professora na Universidade Estadual de Londrina. 206 LUA NOVA N® $3 — 2001 MAQUIAVEL E A CONSTRUGAO DA POLITICA RAQUEL KRITSCH Lida a partir da missiio prética que Maquiavel reserva ao Principe, de libertar ¢ unificar a Italia, sua obra revela sua coeréncia, tam- bém no que se refere aos seus fundamentos tericos. A concepgto subja- cente @ construgéio maquiaveliana da politica é que a ordem egiiivale Av Jéncia administrada. RESUMOSIABSTRACTS 207 MACHIAVELLI AND THE CONSTRUCTION OF POLITICS Read from the standpoint of the practical mission reserved to the Prince, of freeing and unifving tals, Machiavelli’ work reveals its coherence, also in what regards its theoretical foundations. The conception underlying the machiavellicn construction of patties is that order is equal dlo administered violence

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