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Jornal “O Público” 04-06-14

Sousa Franco, o passado e o futuro

“Só espero que o autor não tenha a ilusão de que esta obra vai receber mais do que o
silêncio, que em Portugal acolhe os estudos sérios, e por isso não desespere. Eu diria
que, por este presente, não vale a pena trabalhar. Mas há sempre, remoto, um futuro:
esse não é, não há-de ser, não pode ser indiferente ao trabalho sério. Por ele, continuar é
um dever.”
Este parágrafo, com que António Sousa Franco termina o prefácio ao livro de Eduardo
Paz Ferreira, diz muito sobre a sua personalidade, e poder-se-ia aplicar a todas as obras
sérias.
Sousa Franco foi um académico com consciência da sua missão cívica e da necessidade
da prática política, tentando conciliar o que é tão difícil: a teoria com a prática.
Professores universitários há muitos, mas académicos são cada vez menos, sobretudo
em áreas como o direito ou a economia, em que o tempo, a dedicação, o esforço para a
publicação científica, são significativos. E isto porque o mercado valoriza muitíssimo
mais um parecer jurídico, um estudo económico, um projecto de prestação de serviços,
mesmo sem qualidade científica, para não dizer medíocre, do que uma obra académica
séria. Com a exiguidade do mercado nacional e a falta de verdadeiro ambiente crítico,
corre o risco de ser votada ao silêncio.
Em áreas como a economia, em que um artigo científico numa revista com “referee”
representa muitíssimo mais do que um livro, haverá cada vez menos livros escritos em
português, a menos que se construa o espaço lusófono do livro, algo que parece bastante
distante. Este poderá, contudo, ser criado, haja vontade política do Governo (através da
CPLP, do IICT e outras instituições). A procura existe, nos novos países de expressão
portuguesa, falta quebrar a segmentação de mercados.
Sousa Franco foi professor de direito financeiro e ministro das Finanças do Governo PS
e seria inevitável que fosse, como foi, chamado à colação do debate político nesta
campanha, a questão do défice. Digo a “questão” e não o “problema”, pois o verdadeiro
problema é o da sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas e não o do défice.
Sem querer entrar em detalhes, vale a pena combater uma visão maniqueísta e
reducionista da política que pretende encontrar bodes expiatórios políticos. O problema
das finanças públicas é, antes de mais, um problema estrutural, em parte determinado
por factores exógenos, em parte por decisões políticas passadas. Vivemos, desde há
mais de uma década, numa transição demográfica associada ao envelhecimento da
população e com ele a pressão para o aumento das despesas de segurança social e de
saúde. A isto adicione-se o facto de, ao integrarmos hoje uma união monetária, não
dispormos dos instrumentos de política monetária e de termos uma união política, agora
alargada a 25, sem um orçamento comunitário relevante.
O problema da sustentabilidade deveria pois ter sido atacado durante toda a década de
90 — como o fizeram a maioria dos países da UE-15 — mas não o foi, por algumas
boas e por outras más razões.
Tivemos, durante os governos de Cavaco Silva, um aumento substancial (220 mil) do
número de funcionários públicos que engrossaram o peso do Estado, e ao mesmo tempo
o início de uma revolução silenciosa na administração central. Com o objectivo de
acelerar a execução de fundos comunitários, e incapaz de reformar a administração
directa do Estado, começam paulatinamente a ser criados institutos públicos onde o
controlo financeiro é mais lasso, e cresce o peso dos serviços e fundos autónomos no
seio da administração. Por um misto de razões de interesse público (aplicação de fundos
comunitários), eleitoralistas (ciclo político) e pela pressão sempre presente de interesses
privados instalados, começa assim, no segundo Governo de Cavaco Silva, o aumento
substancial da despesa corrente e pública no PIB. A “consolidação orçamental” fez-se
sobretudo com o recurso às receitas das privatizações. Não houve reformas estruturais.
Este é o processo que está em marcha quando o PS assume o poder, e Sousa Franco a
pasta das Finanças. A adicionar a isto, a despesa no sector da saúde vai crescendo e
continua a crescer, bem acima do crescimento do PIB e da maioria dos nossos
congéneres europeus. Sem o controlo da despesa da saúde, da segurança social e das
finanças regionais e locais não há, nem haverá, melhoria sustentável das finanças. Na
saúde, a política do medicamento, dá apenas pequenos passos (a introdução de
genéricos ainda hoje se faz com dificuldade), não havendo poupança de recursos
públicos necessária para financiar as promessas eleitorais de políticas sociais
(rendimento mínimo, educação). Deste modo, o saldo primário deteriora-se e o saldo
global só melhora (até 1999) devido à descida acentuada da taxa de juro.
Três ilações me parecem necessárias tirar daqui. A primeira, a de que já estamos todos
cansados de ouvir falar no défice, cuja responsabilidade é aliás partilhada, e que aquilo
que verdadeiramente interessa é saber o que o Governo PSD/PP pensa acerca da revisão
do Pacto de Estabilidade. Vamos continuar com políticas pró-cíclicas? Uma segunda
ilação é a de que se o PS quer constituir-se como alternativa credível de governo, deverá
desde já preparar uma sólida estratégia que permita conciliar a melhoria das condições
sociais, com o crescimento e o emprego, esclarecendo os ganhos de eficiência no sector
público necessários para financiar tais desideratos. Finalmente, a memória de Sousa
Franco deve estimular a que os académicos não desesperem, e que saiam, nem que seja
ocasionalmente, das muralhas da Universidade e dêem o seu contributo cívico, o melhor
que puderem fazer.
Porque, pelo futuro, “continuar é um dever”.

Paulo Trigo Pereira

Professor do ISEG

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