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Capitulo V FUGAS, QUILOMBOS E REVOLTAS ESCRAVAS. AAs sociedades escravistas nas Américas foram matcadas pela rebeldia escrava. Onde quer que o trabalho escravo tenha existi- do, senhores ¢ governantes foram regularmente surpreendidos com a tesisténcia escrava. No Brasil, tal resisténcia assumiu di- versas formas. A desobediéncia sistematica, a lentidio na execu- cio das tatefas, a sabotagem da produgio e as fugas individuais ou coletivas foram algumas delas. Fugir sempre fazia parte dos planos dos escravos. Os cativos fugiam por varios motivos e para muitos des stigo, trabalho excess gregacio familiar, impossibilidade de ter a propria r0¢a ¢, € Sbvio, © simples desejo de liberdade cram as razdes mais freqiientes que 6s levavam a escapar dos senhores. Por vezes os cativos se ausen- tavam apenas por tempo suficiente para pressionar o senhor a negociar melhores condigdes de trabalho, moradia e alimentagao, para conveneé-lo a dispensar um malvado feitor, a manter na mes- ma fazenda uma familia escrava, a camprit acordos ja firmados ow até para conseguir ser vendido a outro senhor: nos ivo, pouco tempo para o lazer, desa- Bassas eram as chamadas fugas reivindicatérias, auséncias temporarias do trabalho, das quais o fugitive costumava retornar por conta prépria depois de alguns dias. Ao fugir 0 escravo com- prometia a producio ¢ colocava em xeque a autoridade do senhor. Tsso quer dizer que as fugas nfo s6 traziam prejuizos econdmicos, como expunham os limites da dominagio senhorial. Diante da Uma bn de myo Bras 117 possibilidade de nao poder contar com a forga de trabalho dos fugidos e com a autoridade ameagada, os senhozes eram, muitas vezes, levados a negociar, a ceder em alguns aspectos, embora a contragoste. Mas 0 esctavo que fugia nem sempre tetornava ao cativeito, todo lugar a liberdade cra a principal aspiragio de quem vivia a triste experiéncia de ser escravizado. Ver-se livre, isento do con- trole ¢ da subordinagio a qualquer senhor foi o principal objetivo de muitos homens e mulheres que, sozinhos ou em grupo, resol- viam escapar da escravidio. Fugie era perigoso, dificil e, geralmen. te, dependia da solidatiedade de outros escravos, libertos livres. Era preciso alguém que pudesse facilitar a fuga, fornecer abrigo, alimentagao ¢ trabalho para nao levantar suspeitas. Os escravos podiam buscar refiigio em fazendas, povoados e cidades, onde podiam misturar-se aos negros livres ¢ libestos, mas também re: cortiam aos quilombos. Quilombos Quilombos, palengues, maroons sho diferentes denominagdes para 0 mesmo fendémeno nas diversas sociedades escravistas nas Améti. cas: 08 grupos organizados de negros fugidos. No Brasil, esses agrupamentos também eram chamados de mocambos, Fugit do senhor e se juntar a outros rebeldes foi uma estratégia de luta des- de que os primeitos tumbeizos aportaram na costa brasileira até as, vésperas da aboligio. Ao se referir 2 quilombo 6 comum as pessoas imaginarem comunidades exclusivamente negras formadas por choupanas de palha escondidas no meio da floresta, no alto das montanhas, lon- ze das cidades, fora do aleance dos senhores onde se vivia ape nas da propria lavoura, da caga, da pesca ¢ do extrativismo, Mas no é bem essa a hist6ria de um grande mimero de quilombos no Brasil. Fm todo o pais foram muitos os negros rebeldes reunidos ‘em pequenos grupos nos arredores de engenhos, fazendas, vilas e idades, em lugares conhecidos por seus senhores ¢ autoridades. Como veremos mais adiante, era exatamente por se localizarem perto de niicleos de povoamento que 0s quilombos inquietavam. 118 Uma bstia do naro no Brasil , ede meia idade, alguns dos quaes com diffe- rentes habilidades; achar-sehao patentes no referido ar- mazem, no dia do leilio, ao exame dos senhores pretend i i tes: tersa-feira 7 do corrente, as 11 horas da de, novo, tem o beigo de baixo grande, ripado de’ novo. Este negro he bem conhecido por ter sido carniceiro nos arrabaldes do Recife, assim como jé foi o Manguinho. Foi a todas as autoridades policiaes ¢ capities de campo a apprehensio do dito escravo, ¢ 0 levem a Albino Jose Fer- reira da Cunha, na rua do Queimado, ou neste engenho das Matas. Antonio de Paula Souza Leao. Aniincios de fuga de escravo, as autoridades ¢ causavam tantos transtornos aos proprictarios de terras escravos. Além disso, um grande niimero de quilombos reunia nao sé escravos cm fuga, mas também negros libertos, in digenas e brancos com problemas com a justica. Mas a predominancia da idéia do quilombo como agrupa- mento exclusivamente negro, auto-sustentave ¢ isolado nas ma- tas brasileiras tem uma justificativa: Palmares. Palmares foi o mais duradouro ¢ © maior quilombo da histéria do Brasil. io sem, razio, esse quilombo localizado na capitania de Pernambuco, em territério que hoje pertence ao estado de Alagoas, é © mais famo so € tem servido como uma espécie de modelo para se pensar todas as outras comunidades quilombolas. Do mesmo modo, Zum- bi foi feito simbolo de lideranga negra no Brasil em detrimento de Ganga Zumba, outro rei de Palmares que também enfrentou 0 poder colonial. Mas vejamos agora até que ponto o que idcaliza- mos sobre o grande quilombo corresponde as discusses mais Palmares Palmates foi uma comunidade quilombola que, no século XVII, ‘ocupava a Serra da Barriga. Essa regio se estendia do tio Sao Fran- cisco, em Alagoas, até as vizinhancas do cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. ‘Tratava-se de um terreno acidentado e de dificil acesso, coberto de espessa mata tropical que incluia a pindoba, um tipo de palmcira, dai o nome Palmares. S deslocamento dos cacadores de escravos fugidos, chamados capi- taes-do-mato ou capities-de-assalto, ¢ a abundancia de arvores fru- a vegetagio dificultava 0 tiferas, caca, pesca e égua potivel faclitava a sobrevivéncia dos qui- lombolas, também exigia dos moradores habilidade para enfrentar cs perigos cas dificuldades da vida na floresta, O mesmo ecossistema que os protegia também os ameagava. Derrubada a mata, o solo era fértil ¢ imido, proprio para 0 plantio de milho, mandioca, feijao, batata-doce e banana. A cana- de-agiicar também era ali cultivada para o fabrico de rapadura € aguardente. Experientes no trabalho agricola, os negros manti- nham plantacdes que thes garantiam a subsisténcia a ponto de o 120 Uma bist do mare no Brasil Imagem contemporénea de Palmares. [Uma des malores ameagas 208 qulombos no sir o pas eram as expeciges mitares conhociéas por sna ou banderas. Eas posiam se crarizaas pelo 12 ou formas por senhores empenados em re eserves tudes ou em aqui novos cabvos. ‘As bandas, eramonts,eram chefadas por serani tas, homons que canheciam bem a intror do pas © ram hdbels no reertamento de inios para as expec hes, Dante as muss expedigdes desc po no pai: {o colonial, a male famoese foram comandadas por Barisiomeu Busno do Prado, Ele chofou ataques con ‘eaquiombos no carn oie Geis © Séo Pao. Numa estas expacigses, artolameu Bueno do Prado I ‘acalhigo come trley 2900 pare sora proprio rei de Portugal, ao autorizar uma das expedigdes contra Palmares, recomendar que a data coincidisse com a época de co- Ihcita dos quilombolas, para permitir o abastecimento da tropa. A estratégia de guerrilha dos palmarinos parecia infalivel Eles se posicionavam em emboscadas e estavam sempre em mo- vimento numa 4rea que conheciam bem, ao contrario dos seus perseguidores. Mas a forma de luta dos quilombolas apenas “pa- recia” infalivel, porque a cada expedis aprendiam a se deslocar na regio, prevenir ataques de surpresa armar cercos. Foi o que se viu com a entrada do capitio Fernio 10 seus cagadores também Carrilho, um sertanista que jé havia dado cabo de dois quilombos em Setgipe. A primeira ofensiva de Cartilho contra Palmares foi previs ta para 1676, mas os senhores nao conseguiram angariar verbas para finane no ano seguinte foi possfvel teunir recursos pata que, partindo da vila de Porto Calvo, Carrilho atacasse um dos mocambos de Palmares, o Aqualtune. Surpreendidos, os qui- lombolas se retiraram para um novo agrupamento, em Subupira, colocando em acio a titica guerrilheira, Cartilho nao desistiu e, habilmente, evitou lancar suas tropas em conjunto, preferindo pequenos ataques enquanto esperava por reforgos. Depois de al- gum tempo a cle se juntaram mais 185 homens brancos e indios, que sitiaram © grande mocambo do Amaro. Existiam ali aproxi- madamente mil casas € entre os moradores estava 0 rei Ganga- Zumba, Ao fim da campanha, Carrilho aprisionou dois filhos do rei, Zambi € Acaiene, chefes de mocambos e dezenas de outros negros, que foram distribuidos entre os cabos da tropa, Fintretan. to, © quilombo ainda nfo estava vencido, pois o rei havia escapa- do a0 cerco, -2.o8 senhores da A vitéria de Carrilho trouxe esperanca pa regio, mas os onerou demasiadamente, Acabar com Palmares cexigia, além de perseveranca, muito dinheiro. Era caro € perigoso organizar uma entrada, Exigia armas, muni¢io, mantimentos, es- cravos para carregar a bagagem e remuneracio para os combaten. tes. Desanimados com vitérias sempre parciais e com o custo das expedigdes, as autoridades coloniais resolveram propor uma tré- gua 208 quilombolas de Palmares. 122 Ua bss do mae ne Brasil O momento eta propicio para a suspensio dos conflitos, julgavam os senhores. Os quilombolas estavam enfraquecidos de- pois da ofensiva do capitio Cartilho. Ao receber a proposta de suspensio da guerra, o rei Ganga Zumba fez sua propria andlise da situacio. O chefe quilombola deve ter contabilizado as perdas jf sofridas, tes, ¢ por isso decidiu tentar um acordo com o adversitio. Para 's quais iriam se somar outras tantas em novos comba- viabilizar a negociagao, Ganga Zumba enviou uma embaixada a Recife, acompanhada de um alferes que tinha sido mandado pelas autoridades coloniais para propor a paz. A chegada dos quilombolas a Recife, em 18 de junho de 1678, causou espanto e tumulto: afinal, os enviados do rei de Pal- mares estavam ali para uma audiéncia com o governador de Pernambuco, Aires de Sou: ¢ Castro. A proposta do governo previa a concessio de uma area para que os palmarinos pudessem viver em liberdade, plantando e negociando com os brancos, Em troca tinham que se desfazer de suas armas, armadilhas ¢ deixar de acolher futuros escravos fugidos. Se houve branco que nao viu esse acordo com bons olhos, nfo faltou quilombola para repudié- Jo. Zumbi foi um deles. Ele preferiu ignorar a trégua ¢ continuar a receber cativos dispostos a viver longe dos seus senhores, Assim que ficou ciente da rebeldia de Zumbi, 0 governo organizou a expedi¢ao de Gongalo Moreira para destruir Palma- res, O clima de tensio foi reanimado. Ganga Zumba foi morto por envenenamento e Zumbi assumiu a lideranga dos palmarinos. novo sei conseguiu escapar do ataque de Goncalo Moreira, se escondendo no interior da mata, de onde planejava comandar no- vas ofensivas, Os fazendeiros agora propunham a rendicio in. condicional dos rebeldes. Rendigio e nio mais acordo, Palmares ainda resistiria por algum tempo, mas a sonhada liberdade estava cada vex mais dificil. Dessa vez, para comandar as tropas foi contratado o paulista Domingos Jorge Velho, bandeirante experiente no combate aos indios no interior do pais. Sua missio era destruir o grande quilombo. Em dezembro de 1692 a expedigio de Jorge Velho che- gou a Palmares. No inicio pareceu-lhe facil destruir os mocambos ¢ aptisionar os rebeldes. Grave engano. Os quilombolas respon- Uma bist de mayo wo Bras 123, (0s scordos de paz entre poder colonial ¢autricades ‘qulombolas no foram sxcepcionais nas Américas. Na Golem, Cubs, Eausdr Jamaica, México e Surname foram funds Watados nos quas, de modo gera, © poder colonia conceda a posse da tra a qulombe- as om roca da garanta de que novos oscravs ‘dos nto seriam acetes nessas comunidades. No ‘Surname, ex colniahlandesa, ainda hoje exist ua, las, 08 saramakas, que colebraram valads de paz com ‘9 hoards em 1762, Palmares cerca de onze mil pessoas. Amalo sutaida: i era rl, Ganga Zumba, © depois Zum. que go vernavaauiiado por choos dstibuidos m dferontos ‘mocambos. Os homens, que errs a maior, se act vam da agicutur, J a exganizacto e supersso (os tabalnos cabam de mulares, © excacente da produ ora ontogue pels familias aos cretes dos ‘mocambos para qu fosse armazenado para época de deram prontamente aos ataques. O bandcirante sequer conseguiu transpor uma primeira cerca construida a alguns quilémetros do mocambo do Macaco, a capital palmarina, Cansados ¢ famintos, 08 paulistas e alagoanos comandados por Jorge Velho tiveram que recuar. Em Porto Calvo ficaram por longos dez meses a espera de municio para que pudessem voltar & carga contra Palmares. Aquela altura a tropa contava com pouco mais de seiscentos indios e quarenta ¢ cinco brancos. Eram neces: janciso de 164, juntaram-se ao grupo Zendbio Accioly de Vas- concelos, Sebastido Dias ¢ Bernardo Vieira de Melo com pegas de jos reforgos. Em artilharia e cerca de trés mil homens recrutados em toda Pernambuco vilas alagoanas. Ainda assim foi preciso um cerco de mais de vinte dias 20 quilombo, que estava guarnecido por uma cerca triplice de 5.434 metros de comprimento, Pouca serventia teve a artilharia dos as saltantes, sequer uma brecha se fazia notar com os titos, Mas do- minat os tebeldes acuados foi uma questio de tempo. Zumbi, a quem, em 1675, o Capitio Gongalo Moreira chamou de “general das-armas” do quilombo, resistiu junto a seus comandados at de fevereiro de 1694, Naquela noi 5 c, ao perceber que estava sendo derrotado, ele ¢ outros quilombolas tentaram sait sem serem per- cebidos da fortaleza de Macaco, Tarefa impossivel para um grupo ‘to grande. Descobertos 4 beira de um penhasco, mais de quatro- centos homens € mulheres foram mortos ou aprisionados logo nas primeiras horas da madrugada, Outros tantos que permanece- ram no mocambo também foram assassinatos, mas 0 rei no esta- va entre cles. Haviam passado mais de 65 anos de combates, porém 0 mais importante quilombo brasileiro e o maior das Américas fora vencido, Zumbi permaneceu escondido na mata que tio bem co nhecia. Mas no dia 20 de novembto de 1695 ele foi capturado a0 lado de apenas vinte homens, que em pouco tempo foram truci Gados. Para o rei quilombola foi reservada a decapitaglo. Sua ca- beca foi espetada em um poste da praca principal do Recife, como exemplo para outros rebeldes. O fim de Palmares foi comemorado com missas e festas pelos proptietitios de escravos em Recife, Salvador € Rio de Ja 124 Uma biti do mare ne Brasil nciro, Os senhores passaram a usar Palmares como argumento para a necessidade de politicas mais rigidas de controle sobre os negros. Os episédios na Serra da Barriga tiveram como conseqi éncia a criagio do cargo de capitio-do-mato, ou de assalto, para comandar os ataques aos quilombos ¢ perseguir escravos fugidos. Palmare: nizado, Até entio, contra as fugas individuais os senhores toma- vam as suas préprias providéncias, Era cada qual cuidando de sie mudou a forma como 0 combate & fuga era orga dos seus. Mas depois de Palmares todos estavam mais atentos, mais vigilantes. Se os fugitivos se juntassem pondo em perigo a ordem local, aliciando outros escravos, além dos capitaes-do-mato, recorria-se de pronto As milicias e tropas da administracio coloni- al. Pela mesma razio, tornaram-se mais freqiiente as expedicdes bélicas para explorar os sertdes em busca de quilombolas 4 custa da camara ¢ dos moradores locais, A repressao ficou mais refina- da, mas nem por isso, como logo veremos, muitos outros quilombos deixaram de existir onde quer que existissem escravos. E 0 quilombismo continuou Assim que 0 ouro foi descoberto em Minas Gerais, no final do século XVII, um grande ntimero de escravos passou a compor a populagao local. Durante a maior parte do século XVIII a popula- clo escrava jamais foi inferior a trinta por cento do conjunto dos habitantes. E., embora ja em 1750 a atividade mincradora estivesse em franca decadéncia, a mio-de-obra escrava era largamente utili- zada na agricultura, assim como na produgio de acicar, aguarden te ¢ sapadura. A regio montanhosa de dificil acesso, o grande auimero de escravos € a liberdade de movimento que a atividade do garimpo Ihes proporcionava favoreceram o grande ntimero de quilombos em toda a érea mineradora: Minas Gerais, Mato Gros- so e Goias Ao longo de todo 0 século XVII, 0s proprietirios ¢ se- nhores se queixavam de roubos, raptos ¢ assassinatos promovidos por quilombolas em toda a regitio. Sabe-se que um quilombo cm particular preocupava as autoridades coloniais, 0 quilombo do Ambrésio, Ele se estabeleceu na regiao do Alto Sao Francisco, Uma bist de mayo Brasil 125, uma zona de cerrado em Minas Gerais. Ali viviam mais de scis- centos cativos que se diziam obedientes apenas a seus proprios rei c sainha. Em 1746 foram enviados para combaté-lo quatrocentos homens comandados por Ant6nio Jodo de Oliveira. A batalha durou sete horas, 0 quilombo foi arrasado ¢ scus moradotes cap- turados. A mesma capacidade de recuperacio vista em Palmares tam- bém aconteceu no Ambrésio, Casas, fossos € torres de vigil foram reconstruidos pelos rebeldes que conseguiram escapar da tropa de Antonio Oliveira. Anos depois, em 1759, nova tropa com. cia posta por outros quatrocentos homens, em sua maioria indios borords, foi organizada para a mesma missto, Desta vez os quilom- bolas amargaram a derrota. Depois que o quilombo foi finalmente destrufdo, o chefe da expedi¢io, Bartolomeu Bueno do Prado, foi premiado com grande quantidade de terras. A concessiio de tesras cera uma das maiores recompensas pela destruicio de quilombos. © quilombo do Ambrésio nao era um esconderijo comple- tamente isolado dos néicleos urbanos. Como nao eram comumente as comunidades quilombolas de menor porte. Foram muito mais comuns, no Brasil colonial ¢ imperial, os peq} enos grupos de ne 210s fugidos instalados em areas préximas de onde viviam os seus senhores. A prépria definicao de quilombo vigente na coldnia traz tal evidéncia: qualquer habitagio com cinco ou mais negros fugi- dos assentados em local despovoado, 0 que inclufa os arredores Gas fazendas, vilas cidades. Outra definigio €i reuniio de mais de quatro escravos que, vindos das matas, promo- vessem roubos ¢ homicidios, e¢ quilombo era a ssim como escravos que vivessem fortificados. Vila Rica, atual Ouro Preto, capital da capitania de Minas Gerais, era cercada por esses pequenos quilombos, que traziam pre ‘ocupacio para os proprietitios de escravos ocupados na mine- ra¢io, Entre 1710 e1798, pelo menos 160 quilombos foram identi ficados em Minas Gerais. A geografia ¢ as caracteristicas da ativida- de mineradora contribufam para tanto. A regiio montanhosa, in greme, ainda pouco explorada e rica propiciava a reuniio de grupos de quilombolas especialistas na cata de ouro, que podia render 0 suficiente para a compra da alforria, Por isso era possivel que 0 126 Uma bstia do ngro no Brasil Capitao-do-mato conduzindo um escravo fugido. escravo permanecesse fugido apenas enquanto acumulava a soma necessiria para a compra de sua propria alforsia e de seus parentes. Depeis, cle mesmo ou um intermedifrio propunha ao senhor um bom negécio pela sua liberdade, Nesse sentido, nem sempre o negro que fugia tinha em vis- ta negar a escravidio, Os mocambos também podiam ser lugares onde visitar velhos conhecidos ou parentes, se divertir, descansar, cantar, dangar € retornar 4 senzala na manhi seguinte ou depois de alguns dias, Nesse caso 0 quilombo também podia ser um lugar de passagem, abrigo temporatio no qual a escravidao nem sempre cera negada, embora fosse sempre desafiada. O fato de reunir gente em trinsito nfo diminufa os riscos que os quilombos representavam para a ordem escravista. Nas ‘reas mineradoras, eles traziam instabilidade para uma regiio onde agrande circulacio de riquezas exigia muita seguranga. Organiza- Gos ¢ refugiados nas montanhas, os quilombolas exploravam mi- nas, cultivavam alimentos, mas também podiam ameacat viajan- tes, controlar a entrada saida de pessoas ¢ mercadorias nas vilas, € roubar comboios transportando ouro, Nas muitas vilas e cida- des da regiio era possivel se misturar 4 populagio negra escrava liberta, constituindo aliangas, fazendo negécios ou convencendo ‘outros escravos a se aquilombarem. Eta © que se observava no lugar conhecido por Chapada dos Negros, em Gois. L4 0 rei quilombola se chamava Bateciro, nome que deriva de batéia, a gamela de madeira usada na lavagem. as arcias auriferas ou do cascalho diamantifero. Sua lideranca sobre cerca de seiscentos escravos fugidos estava de alguma maneira li- gada & habilidade na extragio e comércio de minérios. Com igual habilidade, os alimentos excedentes produzidos na Chapada dos Negros cram comercializados com os lavradores ¢ os mascates que circulavam pelas vilas e cidades das redondezas levando mer cadorias noticias. Essa importante rede de relaces garantia a sobrevivéncia do quilombo. Em varias ocasides os quilombolas conseguiram se posicionar para 0 conflito, ou mesmo abandonar a regio, porque contaram com informagdes precisas sobre o des- locamento de tropas. Para que um quilombo sobrevivesse era ne- cessitia a habilidade de seus habitantes em negociar o forneci- 128 Uma bstia do nao no Brasil autaiod antic 3 oo ant 9 comes \ ose ‘achorira, . Caetano ea. Hc th foam iS Stans * fom a rerigetamee wae Borda do Campo ‘So José do Rio das Mostes Os nomes indice a loclidades as edges das qua s gutlombos Qin foram lacaladesedesraides Principals quilombos mineiros no século XVIII mento de alguns produtos e servigos especificos, inclusive infor- mages sobre as aces dos perseguidores. Sé era possivel aos quilombolas comercializar o que extra- fam do garimpo nas montanhas se estabelecessem vineulos com gente escrava, liberta ¢, principalmente, livre. Em Gols além de servir para a compra de cartas de alforria, o ouro era trocado com comerciantes por armas, municao, cachaga e tecidos. Se havia en- tre os livres quem tivesse interesse ¢ empenho em combater os quilombos, também existia quem se favorecesse com a agao deles. Taberneiros, mascates ¢ negros de ganho tinham boas relacdes com calhambolas — como também eram chamados os negros fugidos —, contanto que lhes oferecessem boas oportunidades de negécio. Era tal artificio que garantia aos quilombolas vender na cidade do Rio de Janeiro, em meados do século XIX, a madeira por cles extrafda nas florestas da regio de Iguagu, Nos mocambos se refugiavam nfo s6 escravos, mas tam- bém indios em conflito com brancos ou com outros indios, bran- cos pobres, entre os quais quem queria escapar do recrutamento militar, como aconteceu na época das lutas pela independéncia na Bahia (1822-23), da revolucio Farroupilha (1835-41) e da guerra contra o Paraguai (1864-70). Por conta desse “conluio”, como se dizia na época, entre aquilombados ¢ homens livres ou libertos previam-se duras penas para quem no denunciasse ou quem des- se guatida a escravos fugidos. O governo proibiu, em 1764, que na regio mineradora as negras de tabuleiro forras e escravas pudes- sem negociar em reas onde fosse facil o extravio de ouro. Vé-se, portanto, que as comunidades quilombolas no estavam isoladas da sociedade, 20 contratio, interagiam com ela, ‘A existéncia de quilombolas livres, embora parega estranha, nio foi incomum. No sul da Bahia, em Barra do Rio de Contas, atual Itacaré, foi descoberto, no comeco do séeulo XIX, 0 quilombo do Oitizeiro, onde conviviam escravos ¢ gente livre. ‘Tratava-se de um quilombo agricola, protegido por grande manguezal, cuja principal atividade era a produgio de farinha de mandioca. Tendo como esconderijo os sitios de uma pequena vila de lavradores, os quilombolas trabalhavam nas rogas de mandioca lado a lado com pessoas livres e libertas, seus coiteiros. Coiteiro 130 Uma bist do mare no Brasil cra como se dk ominava quem induzia escravos a fuga, os abriga- va € fazia negécios com eles ou os tinha em seu servico. Ali no Oitizeiro, um grande nimero de moradores tinha quilombolas como meciros ou empregados em suas plantagées. Mas, pode-se perguntar qual a vantagem para um esctavo fugit do seu acordo: os escravos fugidos trabalhavam e eram recompensados com protecio, comida, alguma remunera¢io ou o acesso a um. pedago de terra, na qual podiam plantar a sua prdpria roga. Desse modo, aquilombar-se no sitio de um homem livre podia ser a opor- enhor para ficar a servigo de outro? Provavelmente, havia um tunidade para ganhar algum dinheiro com a venda da farinha de mandioca, Em Palmares também se observou esse tipo de arran- jo. Para Domingos Jorge Velho, certo desembargador Cristovio de Burgos devia ser indiciado pela Coroa portuguesa porque, sen- do proprietirio de terra nos arredores do quilombo, era “colono dos negros”, ou seja, se utilizava da mao-de-obra dos palmarinos. As telagdes entre quilombolas e grupos indigenas oscila- vam entre 0 conflito ¢ a cooperagio. beneficios para uns ¢ outros que davam o tom desse relaciona- mento, Em Goids, por exemplo, os caiapés muitas ve iram as circunstincias © os es caprura: ‘vam os quilombolas ¢ os entregavam nas vilas em troca de ferra- mentas, tecidos ¢ comida. Era, inclusive, muito comum que os {ndios fizessem parte das expedigdes de caga a negros fugidos. Os xavantes € caiapés de Gols destruiram mais quilombos do que as expedigdes dos bandeirantes. Houve mesmo um tempo, no infcio do século XVII, em que os xavantes consideravam todos os ne- gros livres ou escravos como inimigos. Cabe lembrar que foi uma forca majoritariamente formada por indios que destruiu Palmares em 1694, Alguns grupos, como os Caritis, formavam batalhdes regulares, com comandante, fardamento e armas, destinados a capturar quilombolas. Tal alian- ca com os brancos se explica pelo pagamento de recompensas, retribuicio de favores e pela rivalidade que muitas vezes se estabe- lecia entr indios ¢ quilombolas que disputavam Areas de caca ¢ mineragio, além de mulheres, Essa disputa por mulheres decorria do pequeno ntimero delas nos quilombos, o que muitas vezes le- ‘ava 0s quilombolas a rapti-las nas aldeias indigenas. Uma bs de mayo m Bras! 139 im Mato Grosso, o quilombo do tio Manso, por volta de 1865, contava com duzentos e sessenta homens maiores de 16 anos ¢ ape- nas vinte mulheres ¢ treze criancas. Fissa desproporgiio entre homens ce mulheres também se observava nas senzalas, mas era ainda maior 10s quilombos. F, se na regio predominasse a atividade mineradora, a dispatidade se fazia ainda mais aguda. Exa 0 caso do Mato Grosso no século XVIII. E:mesmo no quilombo de Iguacu, no Rio de Jane. 10, regiio de cultivo de cana-de-agticar e outras atividades agricolas, que também empregava a mio-de-obra feminina, foram encontrados ‘onze homens e apenas uma mulher, a mulata Rosa, que wsava roupas masculinas e patticipava dos ataques aos sitios das redondezas. Essa desigualdade numérica explica o rapto, pelos quilombolas, de mulhe res em geral escravas, mas também indigenas, Nem sempre os indios estiveram ao lado dos perseguidores dos quilombolas, muitas vezes estavam entre os moradoses dos mocambos, Mesmo em Palmares havia tanto indio quilombola quan- to entre as forcas di Grosso, no século XVIII, as aliancas entre quilombolas e comuni- dades indigenas preocupavam as autoridades locais. Com a troca de salto, No quilombo do Quariteré no Mato conhecimentos sobre a vida nas matas, o uso de plantas venenosas, priticas curativas, estratégias de guerra e formas de cultivo, garantia- se a sobrevivéncia em regides inéspitas e condigdes adversas, O quilombo do Quariteré teve cerca de trés décadas de exis- t@ncia, até por volta de 1795, quando concentrava mais de cem pessoas, entre negros e indios, que cultivavam grandes plantacé de milho, feija0, mandioca, amendoim, batata, cara, frutas, fumo cisco Pedro de Melo, algodio. Ao ser atacado pela bandeira de Fra a maioria dos moradores era de fills de negros ¢ indios nascidos ali, A longevidade desses quilombos mistos de indios € negros possibilitou a um grupo de quilombolas capturado em Curua, no baixo Amazonas, alegar que nunca havia tido senhor por terem “nascido nas matas”. Ao contritio de seus pais, eles nunca haviam conhecido os dissabores da escravidio, 4 0 quilombo do Catucd, em Pernambuco, nasceu no con texto da independéncia nacional, foi duramente perseguido em 1827, mas se reestruturou na década de 1830, época de muitas revoltas e disputas politicas entre brancos e mestigos livres. F 132 Uma biti do mare ne Brasil Quilombo Buraco do Tatu, Bahia, 1763 ‘inte aros, uando el deste por ura expo m "ar, comandada por portuguese, on 2 de setombro {de 1769. Ao tlio da vopa gon 0 ataque ea des ‘rugdo do quiombo fot acreside uma plant - ‘crave a organizario fica do Buraco do Tatu eevata afguns qulomboas. conflitos facilitavam o surgimento ¢ 0 crescimento dos quilombos, porque o controle sobre os escravos ficava mais relaxado. Cientes disso, assim que as disputas politicas se acomodavam os senhores reforcavam a carga reptessiva, na tentativa de reverter os avangos da rebeldia negra. Foi o que acontecen com os quilombos de Iguacu, no Rio de Janeiro, Em Iguagu, a maioria dos cativos estava empregada na produ- io de alimentos, extragio de lenha ¢ fabtico de tijolos. A regiio é de extensa planicie, com riachos ¢ pantanos que favoreciam a for- macio de mocambos. Em 1812, havia quilombolas que viviam ali desde o final do século XVIII. Bles eram acusados cle atacar e piratear embarcacdes que navegavam nos tios Sarapuf e Iguacu, o que fazia com que alguns mestres de embarcagio pagassem pedagio em car ne ¢ farinha para navegar. A conivéncia de mercadores, escravos remadores ¢ lavradores, além do dificil acesso as regides onde os quilombolas se escondiam, dificultavam a acio da policia ‘As autoridades riograndenses estavam igualmente preocupa- das com negros fugidos. Temiam as revoltas, principalmente em Pelotas, onde havia uma grande concentragdo de escravos nas charqueadas, as fazendas de produgio de charque. O quilombola Manoel Padeiro, com 0 titulo de general, chefiou, em abril de 18: cerca de doze a quinze fugitivos afficanos e crioulos em varios as- saltos a chacaras na serra dos Tapes. Na ocasiio pareceu ainda mais grave o fato dele ter seqiiestrado quatro mulheres, inclusive uma livre, Senhorinha Alves, filha de um pardo livre. Depois de uma cexaustiva perseguigio, Manoel Padeiro foi capturado € morto. Enfim, os quilombos foram a forma mais tipica de resisténcia escrava coletiva. Em varias regiées do Brasil ainda podem set loca- lizadas comunidades remanescentes de quilombos. $6 a partir de 1995, quando ocorreu o primeito encontro dessas comunidades, 0 governo brasileiro passou a identificé-las e iniciar a legalizagio da posse das terras ocupadas pelos descendentes dos quilombolas. Embora menos freqiientes, as revoltas eseravas também comprometcram seriamente a paz ¢ a propricdade dos senhores © poder das autoridades. Os cativos rebeldes puseram em perigo a ‘ordem escravista, principalmente na Bahia, durante as trés primei ras décadas do século XIX. 134 ma biti do mae ne Brasil Revoltas escravas Durante a primeira metade do século XIX, os escravos da Bahia ficaram conhecidos em todo pais pelas rebelides que promoviam. Bles deixavam claro que nfo iriam se sujeitar sem luta. Naquele mesmo periodo a vitéria negea em 10 Domingos, atual Haiti, deixou os senhores em desassossego. Nao podia ser diferente, pois, naquela ilha do Catibe uma revolugio escrava, iniciada em 1791, marcou o fim da escravidio a criacio de um pais independente. ‘Temia-se que 0 desfecho haitiano enchesse de animo os escravos daqui. no Brasil escravos ¢ libertos sabiam sobre as agdes dos rebeldes em So Domingos ¢ os tinham como exemplo,

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