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Universidade Federal do Ceará

Centro de Humanidades
Curso de Ciências Sociais
Disciplina: Semiótica
Profº.: Wellington Júnior

Thiago Mont’Alverne Ribeiro - 0267324

Semiótica e “o espírito militar”


Fortaleza-Ce
2009.2
A semiótica é uma esfera do conhecimento humano e tem como
objetivo entender as formas como os indivíduos dão significado a
tudo que os cerca. É, portanto, a ciência que estuda os signos e todas
as linguagens e acontecimentos culturais como se fossem fenômenos
produtores de significado. Segundo Santaella:

A Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação


todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo
o exame dos modos de constituição de todo e qualquer
fenômeno de produção de significação e de sentido.
(SANTAELLA, 1983:13)

Sendo assim, a semiótica, ao contrário da lingüística, não


restringe sua área de atuação a um campo específico e delimitado.
Podendo ser útil para entender qualquer sistema de signos, sejam
estes das artes visuais, música, fotografia, cinema, moda, gestos,
religião, entre outros. Neste trabalho, a semiótica será utilizada como
ferramenta para o entendimento daquilo que Celso Castro chama de
“espírito militar”, em seu livro O Espírito Militar: Um antropólogo na
caserna.
Em seu estudo, realizado na Academia Militar das Agulhas
Negras, Celso Castro buscou entender como se dá o processo de
socialização dos cadetes do Exército Brasileiro. Assim, seu objetivo
era compreender como estes apreendiam e incorporavam o “espírito
militar”. Dito de outra forma, entender como indivíduos civis
tornavam-se militares. Seu trabalho nos mostra, então, que o
chamado “espírito militar” seria a “soma” dos espíritos de cada Arma
do Exército: Infantaria, Cavalaria, Engenharia, Intendência,
Comunicações e Material Bélico1.
Inicialmente, convém explicitar que, ao chegar na Academia, os
novos alunos ainda não são considerados cadetes sendo tidos como
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Assim como Celso Castro, coloquei o nome das Armas na ordem de surgimento, de
acordo com o que o Exército Brasileiro considera.
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candidatos a cadete. Passam, então, por um “período de adaptação”
que dura de duas a quatro semanas, onde a transição do mundo civil
para o mundo militar “é brusca e intensa” (CASTRO, 2004:19). Tal
período é considerado como uma “peneira” que visa fazer com que
desistam “as pessoas que não possuem vocação ou força de vontade
suficiente para o ingresso na carreira militar” (CASTRO, 2004:19). Só
após esse período os novos alunos realizam a matrícula e, então, são
considerados cadetes. Essa iniciação brusca, para Mills:

[...] revela a tentativa de romper com os antigos valores e


sensibilidades civis, para implantar mais facilmente uma
estrutura de caráter mais nova possível. É essa tentativa de
romper a sensibilidade adquirida que determina a
“domesticação” do recruta, e a atribuição, a ele, de uma
posição muito inferior no mundo militar. Ele deve perder
grande parte de sua identidade anterior para que então se
torne consciente de sua personalidade em termos de seu
papel militar. (MILLS, 1975:232)

O que podemos observar é um processo onde o significado de


diversos atributos bem como a valorização dos mesmos é
incessantemente ensinado a esses alunos. Iniciando-se o longo
processo no qual inúmeros valores inerentes à vida militar serão
ensinados aos cadetes. Além de fazer com que a percepção, ou
melhor, o significado de outros sejam modificados. Tendo em vista
que para ser militar não basta o domínio das técnicas necessárias
para desempenhar a profissão, mas também é essencial a crença em
determinados preceitos da vida militar, assim como uma visão de
mundo diferenciada, em grande parte, da de um civil. Isso por que,
não basta que o indivíduo saiba mirar, atirar, traçar estratégias etc.;
é preciso que o militar tenha um “algo a mais” que o motive a, se for
preciso, dar a vida em prol da missão.
Começando pela identidade dos militares, é possível afirmar
que um de seus fundamentos é justamente a oposição à identidade
civil, que são chamados de “paisanos” pelos militares. Durante os
quatro anos em que o cadete permanece na Academia, ele é
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“bombardeado” com está oposição, o que faz com sua percepção
daqueles que não são militares seja modificada. “Aqui são forjados os
líderes do futuro”, diz a frase lema do Curso Básico, correspondente
ao primeiro ano do Curso de Formação da AMAN. Frase de impacto e
que revela a intenção de fazer com que os futuros militares tenham
orgulho de si e que se considerem sempre componentes da “elite” do
país. Além de, implicitamente, estabelecer uma relação hierarquizada
entre os militares e os “paisanos”, estando os militares em posição de
superioridade. Sendo aqueles que defenderão a nação de possíveis
inimigos. Com base nesse discurso, grande parte da conduta dos
militares será regulamentada. Ou seja, a postura desses militares
deve condizer com a conduta dos futuros líderes, com a conduta de
uma elite da sociedade.
A partir do inicio do segundo ano na Academia, os cadetes
devem escolher um das Armas da qual fará parte por toda sua vida
militar. Nela, o militar encontrará seus “irmãos de Arma”, sendo
dessa forma a organização dos pares entre os oficiais do exército,
diferentemente da polícia militar, na qual os pares são identificados
pelas turmas (cf. SÁ, 2002).
Cada uma dessas Armas possui uma história e uma função
específica dentro do Exército, o que lhe confere determinados
atributos que passam a ser valorizados por aqueles que pertencem à
determinada Arma. Como exemplo, podemos citar a Infantaria, que
dentro de um cenário de combate, é aquela que tem o maior contato
com o inimigo. É a que vai “na frente” do Exército. Sendo assim,
teoricamente é a Arma a qual pertencem os mais valentes. É também
aquela onde os militares passarão por maiores dificuldade como
fome, frio etc. e também a considerada menos “técnica” das armas,
pois não lida com tecnologias avançadas como, por exemplo, os
carros de combate da Cavalaria ou os conhecimentos da Engenharia.
Assim, a Infantaria é conhecida entre os cadetes como a “Arma dos
burros” e, o mais interessante, é que seus componentes acabam que
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valorizando isso. Algo que tem uma conotação negativa para a
maioria das pessoas, principalmente civis, passa a ser aceito e
apreciado, de certa maneira. Os cadetes pertencentes à Infantaria
normalmente tem o discurso de esta é a “Arma sem frescuras”, “onde
o que vale é a coragem”, “a Rainha das Armas” etc.
Outros pontos a serem observados dizem respeito à vida de
todos os militares. Os símbolos nacionais, por exemplo, adquirem
outros sentidos para aqueles que pertencem à vida na caserna, tendo
significados semelhantes à de divindades. Principalmente a bandeira
nacional que é tratada com extremo respeito, pois significa algo pelo
qual vale a pena dar a vida para salvá-la: a nação. Tal respeito pode
ser observado pelo fato de ser hasteada todos os dias e sendo
obrigação de todos os militares que estejam a sua vista pararem e
prestarem continência durante todo o ritual. A partir da observação
das canções militares também é possível identificar como
determinados significados são alterados2. A canção da Artilharia, por
exemplo, fala em morte como resultado da bravura e motivo de
orgulho, ao contrário do “normal” dos Seres Humanos, que buscam
sempre a sobrevivência.
Além disso, em uma sociedade democrática por direito e onde
valores como igualdade são tão valorizados, para que um indivíduo se
submeta a um regime extremamente hierarquizado, onde a
mobilidade é rigidamente regulada também se faz necessárias
modificações em sua interpretação do mundo que o cerca.
Segundo Bourdieu, o campo é uma pequena parcela do mundo
social ao qual o sujeito pertence: trata-se de um universo de
conivências que funciona a partir de leis específicas. Para ele a
sociedade é constituída de vários micro-campos, esferas
relativamente autônomas, cada uma com valores particulares, regras
internas e princípios de funcionamento.

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Alterado, aqui, no sentido de diferente do senso comum. Não é minha intenção
fazer, assim, juízo de valor.
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Para pertencer a um determinado "grupo de afinidade" (político,
artístico, intelectual, militar...) é preciso dominar seus códigos e suas
regras internas, ou seja, possuir o habitus do campo social do qual se
faz parte. O habitus é definido por Bourdieu como o produto de uma
aprendizagem inconsciente, uma aparente aptidão natural que
possibilita ao sujeito circular livremente em um determinado meio
social. A existência dos habitus torna-se consciente no momento em
que o indivíduo é introduzido em um meio estranho ao seu cujas
regras do “jogo” ele desconhece.
Sendo assim, aqueles que ingressam no campo militar ainda
não dominam o habitus específico deste campo. Ao passo que em um
processo lento e gradual estes recém-chegados passam a conhecer e
dominar os códigos, regras, costumes, enfim, o habitus específico
deste campo.
O processo pelo qual esses cadetes passam é justamente o que
possibilitará o domínio por parte destes do habitus dos militares. Esse
habitus contem uma série de componentes possuidores de
significados, o que faz com que seja imprescindível levar-se em
consideração o que seus códigos, rituais, tradições etc.
significam/representam para aqueles que fazem parte da vida da
caserna para que possamos tentar entender como os militares vivem
e por quê vivem desse modo.
O modo como os indivíduos interpretam o mundo a sua volta é
de extrema importância pelo fato de ser a partir de sua “visão de
mundo” que os indivíduos orientam suas atitudes, desejos,
esperanças etc. Assim, fica claro como a semiótica é uma esfera do
conhecimento extremamente importante para entendermos nós
mesmos e a sociedade em que vivemos.

REFERÊNCIAS:

6
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz,
10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

CASTRO, C. O Espírito Militar: Um antropólogo na caserna. 2.ed.


Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

MILLS, Charles Wright. A elite do poder. Rio de Janeiro, Zahar,


1975.

SÁ, Leonardo Damasceno de. Os filhos do Estado: auto-imagem e


disciplina na formação dos oficiais da Polícia Militar do Ceará.
Rio de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política/
UFRJ, 2002.

SANTAELLA, L.. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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