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Público • Sexta-feira 13 Agosto 2010 • 31

O “milagre” dos últimos anos era enganador: bastou um Verão quente para regressarem os incêndios catastróficos

Aconteceu o que tinha de acontecer: o país a arder

D
MANUEL ROBERTO
epois de vários anos de estios relativa-
mente amenos, com temperaturas bai-
xas e chuva em Agosto, eis que voltámos
à normalidade e ao drama dos incêndios
de Verão. Depois de décadas a dizer e a
escrever que o problema dos incêndios só se podia
mitigar encarando de outra forma os espaços rurais
José e as florestas que temos, eis que regressámos à roti-
Manuel na das declarações diárias do ministro das polícias,
Fernandes enquanto o ministro da Agricultura quase não apa-
rece. Parece que nunca aprendemos nada, ou pelo
Extremo menos nunca aprendemos o suficiente.
ocidental É cedo para fazer qualquer balanço, mas a dimen-
são de fogos como os que lavraram na zona de São
Pedro do Sul, na serra Amarela (Gerês) ou em Lamas
de Olo (Alvão) mostra-nos como a abordagem dos
últimos anos, ainda muito centrada no combate aos
fogos depois de estes se desencadearem, é limitada.
Pior: é dramaticamente insuficiente. E é errada.
A primeira razão por que ocorrem fogos de gran-
des dimensões e consequências catastróficas é a
existência de uma excessiva concentração de bio-
massa em manchas contínuas. Se não houver su-
ficiente madeira acumulada e matos ressequidos, lidade persistente –, como assumir há, contudo, forma de tomar estas difíceis decisões
não há fogos. Quando, em contrapartida, existem
Ao colocar o MAI no que existem reais possibilidades de sem o envolvimento e a co-responsabilização das
manchas florestais contínuas de espécies altamente centro do combate aos explorar a fileira florestal, se, para autarquias locais.

A
inflamáveis e nunca se limpam as matas, qualquer além das celuloses, outras indús-
pequeno acidente ou descuido é suficiente para fogos florestais, quando trias forem capazes de valorizar s mortes de vários bombeiros (mesmo as
que, havendo uma ignição, o fogo progrida de forma os problemas começam a produção e, assim, justificar o que resultaram de acidentes aparente-
galopante e incontrolável. Basta estar mais calor e investimento na preservação da mente não relacionados com o combate
algum vento. no mundo rural e na área floresta. E, também, se activida- aos incêndios) e o recurso sistemático a
Ora o que sabemos é que, neste domínio, pouco des complementares, como uma meios aéreos vindos de Itália (em Julho),
se fez, e o que se fez não chega para produzir fru-
de responsabilidade do pastorícia dirigida para a redução de França e de Espanha (esta semana) mostram os
tos. Primeiro porque, fora das áreas das florestas Ministério da Agricultura, da biomassa em zonas florestais, limites do dispositivo existente, apesar de este im-
de produção geridas pelas empresas de celuloses, o tiverem possibilidades de se de- plicar um investimento muito superior (vários vezes
ordenamento florestal é quase inexistente. Depois, privilegia-se a espuma em senvolver. superior) ao de há alguns anos. Mostra também co-
porque as associações de produtores florestais – vez das medidas de fundo Há também um mundo de tare- mo, em muitas zonas do interior e do Norte do país,
única forma de ultrapassar os problemas colocados fas miúdas, invisíveis, que deviam as forças locais de bombeiros estão exauridas e sem
por um mundo rural dominado pelo minifúndio – ser feitas, que têm de ser feitas antes de se começar a meios humanos (até porque vive cada vez menos
arrancaram de forma deficiente e, por atrasos no pensar naquilo que habitualmente mais se discute: o gente nesses concelhos). A enorme quantidade de
Proder, estão estranguladas financeiramente. Por combate aos fogos e os meios disponíveis. Sobretudo meios humanos e materiais que tem sido transferi-
fim porque o Estado, que devia dar o exemplo, pra- se pensarmos que aquilo que por regra discutimos da diariamente do sul para o norte do país não tem
ticamente não trata nem limpa as matas públicas, é a espuma da espuma, isto é, a existência ou não impedido que, por exemplo, ao consultar a página
com excepção do centenário Pinhal de Leiria. de meios aéreos. da protecção civil, se encontrem fogos que lavram
Mas mesmo que tudo tivesse sido feito para or- Primeiro, era importante existir no terreno uma há muitas horas e estão a ser combatidos por meia
denar o mundo rural, nunca se ultrapassaria um força articulada de guardas e sapadores florestais dúzia de homens (ontem de manhã havia um fogo
problema estrutural: a floresta portuguesa deixou que, logicamente, deviam estar enquadrados no na zona de Ponte de Lima que lavrava há mais dez
de ser de uso múltiplo e, por isso, é quase inevitável Ministério da Agricultura e não depender do mi- horas e tinha sete homens a combatê-lo…).
a acumulação de enormes quantidades de biomassa. nistério das polícias, como infelizmente acontece. É também claro que é possível evoluir muito nas
Este problema é ainda mais estrutural e mais insolú- Sem presença no terreno ao longo de todo o ano e técnicas de combate aos fogos – utilizando mais os
vel do que o da desertificação do mundo rural, pois coordenação com quem trabalha na floresta, não é contra-fogos e, sobretudo, usando mais vezes as
mesmo nas regiões onde se mantém uma razoável imaginável que essas forças possam ser realmente motosserras, as enxadas e as máquinas de rasto,
presença humana já ninguém vai às matas apanhar eficientes. em vez da água e dos borrifos dos helicópteros –,
lenha para a lareira e o fogão. Pior: há regiões do Depois, era necessário estudar a nossa floresta só que isso exige estruturas de comando capazes de
país onde parar à beira da estrada para apanhar durante o período em que ela não está a arder para lerem melhor o fogo no local e de compreenderem
umas pinhas ou umas ramadas é bem capaz de ser saber como mitigar o risco de fogo e como actuar em o que a meteorologia lhes diz sobre, por exemplo,
suficiente para uma “autoridade” bem apessoada caso de incêndio. É possível – já vi com os meus olhos a evolução do sentido do vento.
passar uma valente multa. – desenvolver modelos informáticos que prevêem a É fácil perceber que é muito mais o que falta fazer
Ao contrário do que se decreta em Lisboa, a uti- evolução de um fogo de acordo com a orografia do do que o que foi feito. É também claro que, ao colo-
lização natural da floresta, habitual ainda há uma terreno e o sentido do vento, ficando-se a saber onde car o MAI no centro do combate aos fogos florestais,
geração atrás, não é substituível por ordens admi- este evoluirá de forma imparável e onde perderá quando os problemas começam no mundo rural e
nistrativas para “limpar as matas”. Quando muito, força, devendo nestas zonas ser abertas clareiras e, na área de responsabilidade do Ministério da Agri-
essas ordens podem ter efeito no perímetro restrito mais tarde, ser posicionadas as forças de combate. cultura, se privilegia a espuma em vez das medidas
das habitações, pois quem quer que já tenha pro- Mas esta é apenas uma das várias metodologias que de fundo. Pelo que está a acontecer o que muitos
cedido à limpeza de uma mata sabe quanto é que permitem prevenir a propagação incontrolada do especialistas previam: voltámos a ter um Verão re-
isso custa e como não há indústria de biomassa que fogo e passar a atacá-lo com economia de meios e almente quente e, com ele, voltaram os incêndios.
pague o suficiente para compensar o investimento. recursos, mas muito mais eficiência. Muita gente lançou foguetes antes de tempo. E fora
Ou até indústria de biomassa que consiga ser sus- Por fim, era essencial passar a olhar para o fogo de tempo. Jornalista, www.twitter.com/jmf1957
tentável no médio e longo prazo. de outra forma. Compreender, por exemplo, que,

P
dentro de limites aceitáveis, o fogo é um dos factores P.S.: Declaração de interesses: faço parte da direc-
ara alterar este estado de coisas será ne- que faz funcionar os ecossistemas. Compreender ção de uma associação humanitária que gere uma
cessário não só inverter o ciclo da deser- que, face à forma caótica como se espalharam ca- corporação de bombeiros voluntários.
tificação – algo que certamente não se sas e casinhas por esse país fora, há circunstâncias P.S.2: Ferreira Fernandes escreveu ontem, no Diário
consegue tornando mais difícil viver em em que se devia ter o sangue-frio de deixar arder de Notícias, uma crónica sobre Josefa, a bombeira
zonas isoladas, sem escolas e sem outros aquilo que, para ser salvo, implica sacrificar um da Lourosa, que é um murro no estômago da nossa
serviços públicos, para mais sujeitas a uma crimina- combate mais eficaz a um grande incêndio. Não vacuidade contemporânea. Obrigatório ler.

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