Você está na página 1de 5
ZAC (ORG.) nico 00 DRAMA MODERNG £ COPMTEMPORANED ate \3 te ‘mesmo tempo, uma atitude reflexiva da parte do espectador. Ele se realiza entio, seja pelo viés das partes corais* (prélogos, epilogos, songs) que desenvolvem 0 comentirio* da fébula, seja no seio mesmo do dislogo pelo viés do discurso dos personagens. A partir dos anos 1950, 0 emprego do enderegamento ao pli- blico estende-se a outras estratégias estéticas e/ou dramatirgicas, ‘Trata-se em ‘geral de uma forma de dentincia da fcgao, que remete ironicamente o teatro asi ‘mesmo, como em Beckett, Adamov ou lonesco. Levada ao extremo, uma forma desse tipo pode vir a ser um puro agente de provocagio (Peter Handle: Insulto 40 piiblico) ou mesmo de imprecagao (Thomas Bernhard). Nas dramaturgias imediatamente contempordneas, a questio do ende- regamento é ainda mais importante na medida em que seu uso acha-se em vias de expansio, sobretudo em ligagdo com o desenvolvimento das formas monologadas. No seio do monélogo, o enderegamento interno e 0 externo contaminam-se efetivamente, recolocando na berlinda as fronteiras da ficgao. Paralelamente, na medida em que 0 enderegamento intervém no ambito de sistemas draméticos cada vez mais heterogéneos e desconstruidos, estilha- sados e abertos, a delimitacéo do enderegamento torna-se frequentemente dificil de ser estabelecida e constitu’ um problema relevante na passagem do texto a0 palco. Enfim, para além da rigorosa consideraao da referéncia dramatiirgica a0 puilico, éa questo do enderegamento lato sensu que se coloca. Para Denis ‘Guénoun, €0 teatro inteiro que deve ser “enderecado’,e que se define como “o jogo desse existir que langa ao olhar o jato de um poems’ FRANGOISE HEULOT E CATHERINE NAUGRETTE Diderot, 1996; Guénoun, 1997; Jakobson, 963; Pavis, verbete “Adresse au publique’ 1996; Uberseld 1977 Epico/ Epicizagao Diferentemente de um género litera jo, um modo como 0 épico constitui ‘uma tendéncia mais que um modelo, um ingrediente mais que uma forma 76 estabelecida, Epiciz: romance, nem torn’ 0s no mesmo grat alemio Episierimg) ples narrativizacao Na epopeia, com mitica ou tipica, me ‘9 coro e 0 arauto fa dos herdis e aos cor neo ~ de Piscator ¢ | conflitos* entre inte ‘08 sofrimentos e as: ‘sejam operirios, ma eles sio confrontad as, sociais ¢ politic: Se ha alguma co eu da narrativa; ess que Petsch denomii Teoria do drama m seio da narrativa; in na qual 0 ponto de surgimento desse s turalista. Jean-Pierr julga mais bem aday a morte do teatro d como as de Heiner hoje mais(¢omo hib O sujeito épico lidades podem ser forma mais simples 08 casos, osujeito é definiu Aristételes ¢ estabelecida, Epicizar o teatro, portanto, nao € transformé-lo em epopeia ou romance, nem torné-lo puramente épico, mas incorporar-Ihe elementos épi- cos no mesmo grau que Ihe incorporamos tradicionalmente elementos dra miticos ou liricos |Logo, a epicizacao (ou epizacao, segundo 0 modelo do alemo Episieramg) implica o desenvolvimento da narrativa sem ser uma sim- ples narrativizagao do drama. ‘Na epopeia, com efeito, o que se narra seletivo, exemplar, de uma ordem ‘mitica ou tipica, memoravel. Enquanto a epopeia e a tragédia antiga ~ em que © coro € 0 arauto fazem 0 relato ou 0 comentério* ~ associavam-se as ages dos herdis e aos contflitos dos deuses, 0 teatro épico moderno ¢ contempora- neo - de Piscator ¢ Brecht até Heiner Miiller ou Edward Bond -, testemunha conflitos* entre interesses, classes, nazées, ideologias, e lembra ao espectador (08 sofrimentos e as ages dos individuos medianos, poe em cena seus gestus Aticos ou prostitutas, les so confrontados com a histéria ¢ inseridos em problemiticas econdmi- sejam operdrios, maes de familia, soldados, autores dran as, sociais e politicas. Se hé alguma coisa a contar e a guardar da historia, faz-se necessério um «eu da narrativa; esse “sujeito da forma épica’, segundo a férmula de Lukécs, {que Petsch denominava “eu épico’ Peter Szondi colocou-o em pauta em seu ‘Teoria do drama moderno: 0 “sujeito épico” remete 4 presenga do autor no seio da narrativa; indica um déslocamento da ago em beret 7 na qual o ponto de vista do autor comprova-se central. Szondi considera 0 surgimento desse sujeito épico um sintoma da crise do drama na época na- turalista, Jean-Pierre Sarrazac prefere falar de autor-rapsodo*, expresso que julga mais bem adaptada as escritas contemporaineas: enquanto Szondi previa a morte do teatro dramitico em prol de um teatro épico brechtiano, escritas como as de Heiner Miller, Bernard-Marie Koltés ou Edward Bon aparecem hhoje mais(gomo hibridizagoes do épico, do dramatico e do litico, O sujeito épico pe em jogo, em cena, uma forma narrativa cujas moda- lidades podem ser encontradas tanto no uso da narrativa ~ no caso de sua forma mais simples ~ quanto no da montagem* ou do fragmento": em todos 05 casos, 0 sujito épico introduz uma ruptura da agao* dramatica tal como a definiu Aristételes em seu principio de unidade, continuidade ou causalidade. 7 “1A ficgio transforma-se entdo em reflex, A visio do autor é refletida através de uma forma narrativa, mediagio do sujeito épico. Ora, essa voz do autor re- corre a um corpo estranho para se fazer ouvir: corpo estranho & ago dramé- tica, ele o & também diante dos protagonistas do drama, uma vez que é pura fala, pura voz". Quando o sujeito épico exprime-se sob 0 modo da enuncia- 40, ele é obrigado a inventar seu emissério, seu porta-voz, seu mediador, seu ‘narrador épico”, Nao podendo encarnar-se sob a forma de um personagem*, ele descobre a solugao para isso na figura, a mais emblemitica delas sendo a do forasteird, como mostrou Jean-Pierre Sarrazac por Hauptmann, Ibsen ou ainda Strindberg. Mas é na teoria ¢ dramaturgia brechtianas que aquilo que ‘emerge no drama naturalista do fim do século x1x, a partir da consolidagio do sujeito épico e da epicizacao, encontra sua expresso mais radical. Em Estudos sobre teatro, Brecht opde teatro dramitico aristotélico e tea- tro épico: um baseia-se na aco; 0 outro, na narragio. O primeiro sustenta Por sua propria forma o status quo (e, por conseguinte, a classe que detém © poder), pois, falando apenas as emogdes, arrastando 0 piiblico no encadea- mento das ages rumo a um fim, sacrificando o realismot a continuidade, 0 rigor da anélise ao equilibrio formal da obra, ele nao estimula o senso critic _o espectador (Num teatro epicizado, mais narrativo, so introduzidas des- continuidade, distancia, mensagens, reflexividade: perante a fibula* que Ihe contam, o espectador deve recorrer a razio] Deve decifrar o sentido dessa fabula, dessa parébola*, Todavia, a agdo nao é expulsa do teatro brechtiano, A narragao joga contra e com ela. Acontecimentos e pontos de vista sobre os acontecimentos dialogam. Na pardbola A boa alma de Setsuan, Brecht faz a demonstracao de uma construgao alternada épico-dramatica. Uma adoles- cente, Chen~Te, levada a se disfarcar de homem sem escrapulos, Chui-Ta, a fim de sobreviver, é 0 “sujeito dramético da pega’. Outro personagem, o agua- deiro, tem como fungao contar os acontecimentos aos deuses durante inter- ‘médios. Comentador privilegiado da agao, “narrador épico’ ele é 0 vestigio, maliciosamente ingénuo, do “sujeito épico”. A dimensio épica acha-se parti- cularmente presente no prélogo e no epilogo, e nos intermédios que se inter- calam entre 0s quadros numerados de 1a x, bem. como nas ongs-inmeros Pontos de interrupgao da acio e de comentiriofAqui, 0 teatro é epicizado, 78 tiano, O teatro épic ‘mas 0 drama nao ¢ -humana no preser filtrados por uma r tome o que se faz ao da verdade. Te titulos dos quadros 60s, as rubricas nai nto apenas ur ‘observador diante no qual a voz do ai € fendmeno, result dramatico tradicio tos memordveis, in e sugere ag. A epicizagao br de narrativo em to fico e politico desa meméria ¢ exigem de histéria comple de captar. Brecht, 1972-1979 € Fébula (crise da) Primeira das parte: bula (mythos) é obj verdadeiro trabalh« dramética, jé em vi cruzilhada naturali ‘mas 0 drama nao desapareceu} A ago, 0 confit, a contradicio, a troca inter- -humana no presente subsistem mais pontuais, mediatizados, regularmente filtrados por uma narrativa no passado, que os coloca & distancia: que nao se tome o que se faz ou diz no paleo como verdad, mas como ui interpreta do da verdade. Tem-se na mente que o ator representa, interpreta, cita. Os titulos dos quadros, préximos dos titulos dos capitulos dos romances picares cos, as rubricas narrativas ou descritivas contribuem para isso... Q épico se- ria entio apenas uma interpretagao do dramatico, da necessiria mediagao do. ‘observador diante da coisa que ele observa — para um teatro nao ilusionista, no qual a voz do autor, o “sujeito épico", mantém-se abertamente. Tudo nele € fendmeno, resultado de uma percep¢ao por um sujeito, impuro. O teatro dramitico tradicional pretendia dar conta da coisa em si - do nimeno kan- 200.0 wato fico propse um ede dO real ¢ da Bsns, seesone 0s f+ ‘tos memoraveis, interpreta comportamentos, procura leis de funcionamento “A epicizagao brechtiana nao seria endo uma intensificaco do que ha de narrativo em todo teatro, a fim de permitir a um teatro dialético, filos6; fico e politico desabrochar e dar conta, por meio das fabulas que fustigam a| meméria e exigem a interpretacdo do espectador, de um mundo moderno| de histéria complexa, que a forma dramitica tradicional nao é mais capaz de captar. Brecht, 972-1979 19762; Sarrazac,1999h; Szondi 983. Pabula (crise da) Primeira das partes constitutivas do poema dramstico em Aristoteles, a fi- bula (mythos) & objeto, nas dramaturgias modernas e contemporaneas, de um, verdadeiro trabalho de erosdo, A desconstrucio, a decomposicéo da forma dramatica, j4 em vigor no Tluminismo, acelera-se a partir dos anos 1880 (“en- cruzilhada naturalista-simbolista"), e poderiamos dizer que em inimeras pe- 79

Você também pode gostar