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Em Busca de uma Outra Hist6ria: Imaginando o Ima- ginario RESUMO O texto uborda a temdtica do imagindrio como uma das tendéncias contempordneas de andlise da chamada Nova Histéria Cultural, tendéncia esta que se insere na propalada crise dos paradigmas normativos da realidade que caracterizam as ciéncias humanas nesta nossa fin de sigcle, Entendendo 0 imagi- ndrio como um sistema de idéias € imagens de representagdo coletiva, 0 texto busca resgatar as posturas teéricas que, a partir de um novo patamar epis- temolégico, recuperaram novas cate~ gorias de andlise que tém enriquecido 0 estudo da Historia. Sandra Jatahy Pesavento* ABSTRACT The text deals with the thematic of the imaginary as one of the contempo- rary tendencies for the analysis of the so- called New Cultural History. Such ten- dency finds its place in the outspread cri- sis of normative paradigms of reality which characterize the human sciences during our fin de sidcle. Understanding the imaginary as a system of ideas and images of collective representation, the text aims at bringing to light the theoreti- cal lines whick, from a new epystemologic standard, recuperated categories of analysis that have enriched the study of History. O tema do imagin4rio est4 na ordem do dia, como uma das mais instigantes tendéncias de andlise da nossa fin de siécle. Apresenta-se no bojo de uma série de constatagGes relativamente consensuais que caracte- rizam a nossa contemporaneidade no apagar das luzes do século XX: a crise dos paradigmas de andlise da realidade, o fim da crenga nas verdades absolutas legitimadoras da ordem social e a interdisciplinaridade, Refere Baczko que a interrogagao atual das ciéncias humanas deri- va da perda da certeza das normas fundamentadoras de um discurso cien- tifico unitério sobre o homem e a sociedade.' Na medida em que deixa de ter sentido uma teoria geral de interpretagao dos fendmenos sociais, apoia- da em idéias-imagens legitimadoras do presente e antecipadoras do futuro (0 progresso, o homem, a civilizagao), ocorre uma segmentacio das cién- cias humanas e um movimento paralelo de associagao multidisciplinar em busca de safdas. Novos objetos, problemas e sentidos se ensaiam, marca- *Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rey, Bras, de Hist. dos por um ecletismo teGrico e um grande apelo em termos de fascinio tematico. Conclui Baczko que os imagindrios sociais, enquanto objeto de hist6ria, sao safdos deste esvaziamento e desta sedugao.? No plano das condigGes concretas da existéncia, a faléncia dos re- gimes socialistas, por um lado, abalou a convicgao de que era possivel a construgo de uma sociedade alternativa ao capitalismo, dada a forma his- t6rica de realizago totalitéria em que tais regimes haviam descambado, Por outro lado, as préprias economias do Primeiro Mundo nao conseguem resolver as questes sociais internas, aumentando o némero de desempre- gados e sem lar, ao passo que a vigéncia da liberal democracia nao impede a ascensio da direita no Velho Mundo, com posigdes que podem ser asso- ciadas a uma conota¢ao nitidamente fascistizante. Em suma, afin de siécle se colocaria numa encruzilhada de incertezas. Na opinido de Baczko, a prépria concepgio dos Annales de uma “histéria global” ter-se-ia esfacelado. Para isso teria contribufdo a propalada abertura da hist6ria para todos os aspectos da realidade e em diregao as diferentes ciéncias. Tornou-se mais facil perceber a descontinuidade do que acontinuidade dentro deste contexto multifacetado e dfspare, dificul- tando a concretizagao da historia total.* A chamada “crise dos paradigmas”, implicando para as ciéncias humanas mudangas de contetido e método, assim como 0 ecletismo teéri- co, € percebida por varios autores, independente das énfases de andlises dos seus respectivos enfoques.* A mesma inflexio no dom{nio das ciéncias humanas é percebida por Chartier,‘ que, porém, vé no processo em curso um fortalecimento da geografia, Face o declinio dos esquemas tedricos explicativos sobre os quais a histéria se apoiava, processo este acompanhado do esgotamento de suas aliangas tradicionais, como a economia ¢ a sociologia, ela teria sua vitalidade conservada pelo ecletismo e pela assungao de uma postura cada vez mais relativista sobre o social.’ Novos “sécios” se apresentam, no dominio da literatura e da antropologia, que dio 0 reforgo a tendéncia de apresentar o trabalho histérico como a claboragao de relagdes conjeturais, onde se admite a incerteza, A CRISE DOS PARADIGMAS / O ESTUDO DO IMAGINARIO Deuma forma geral, os autores que se referem a crise dos paradigmas da nossa fin de siécle estabelecem uma crftica, ora velada, ora explicita, 10 aos modelos histéricos interpretativos vigentes na outrafin de siécle e que perduraram enquanto forma de interpretagao da realidade até cerca de metade do século XX: 0 historicismo de Ranke, transmudado cm intimeras variantes de laudatérias “histérias nacionais”, o positivismo de Comte, com seus pressupostos normativos cientificos, estabelecendo os critérios da verdade absoluta, ¢ 0 marxismo, mais especialmente a sua versao leninista e, posteriormente, stalinista, com seu corolario de postulados: 0 reducionismo econémico, o mecanicismo, o etapismo evolutivo. Por outro lado, através da histéria, o estudo do imaginario tem sido relegado a uma posig&o secundaria. Esta desvalorizagio deu-se face ao avango do pensamento racional ¢ cientffico no Ocidente, cujo exemplo sao as vias de interpretagdo histérica acima referidas. Houve um movimento reiterado de ruptura a partir do racionalismo cartesiano, com tudo aquilo que representava opiniées, pré-nogoes e formas de conhecimento transmi- tidas pela tradigdo ou pelos vieses ideolégicos.’ Para Descartes, a imagi- nacio era fruto do erro e da falsidade, cabendo-lhe, no maximo, 0 designativo de um estdgio inferior do conhecimento. Ora, quando se afir- mava que 0 atributo por exceléncia do homo sapiens era o pensamento racional (cogito, ergo sum), tudo aquilo que escapasse aos critérios e ri- gores da Idgica formal ¢ que se baseasse em razbes relativas* era pratica- mente desprezado. Assim, apés Descartes, 0 saber racional se separou do imaginario, numa postura que se estenderia até Comte ¢ que opunha o cientificismo, como critério de verdade, ao ilusério da fic¢ao. O racionalismo cartesiano instituiu-se como método universal de uma pedagogia do saber cientifico, podendo mesmo ser dito que os renomados estdgios evolutivos positivistas so etapas de extingao do simbélico.? O saber cientffico, tinica fonte do conhecimento, deveria se despo- jar da imaginagao deformadora. Nao € por acaso que, no senso comum, 0 imaginério aparece como algo inventado, fantasioso e, forgosamente, “no sério”, porque nao cientifico. Todavia, se 0 século XIX marcou um dpice do pensamento racio- nal, tal como vinha se desenvolvendo desde o século XVIII, esta mesma sociedade, norteada pelo cientificismo ¢ pelas imagens produzidas pelos avan¢os da técnica, voltou-se contra os seus pressupostos. Esta postura, de uma certa forma iconoclasta com relago a seus valores, foi capaz de res~ gatar a importancia das imagens na vida mental através da contribui¢ao da psicandlise e da etnologia. Na opiniao de Gilbert Durand," as duas verten- tes, apesar de romperem com largos séculos de coergdo contra 0 imagin4- 1 tio, instauraram uma hermenéutica redutiva: Freud, ao estabelecer 0 determinismo da libido sobre o psfquico, e a antropologia social, com Malinowski, Dumezil, Lévi-Strauss, ao cingir os sfmbolos a estrutura so- cial. Apesar da importancia de tais contribuigdes, elas nao tiveram, na passagem do século XIX para o século XX, a forga para abalar as certezas normativas da razao. Pelo contrario, estas se encontravam em um de seus momentos de mais ampla consagra¢fo. O que se quer chamar a atengao é que, dialeticamente, os caminhos contraditérios da razdo levaram ao res- gate de dimensées nao propriamente racionais. Mas tais investidas - psicanaliticas e antropolégicas - seriam alheias aos historiadores, ainda por longo tempo presos as correntes anteriormen- te mencionadas: o historicismo, 0 positivismo, o marxismo. Mesmo as con- cepgdes de Marx sobre os reflexos fantasmagoricos inversos do real como uma camara escura (a ideologia)!' nio mereceram maior atengio e desdo- bramentos conccituais. As proprias anélises de Bachelard, na década de 40, que represen- taram a “grande virada” epistemolégica em diregio ao imagindrio, no tiveram grande repercussao junto a Hist6ria. Coube ao autor a iniciativa de tentar reconciliar a ciéncia com o sonho, entendendo que, na propria inovagdo tecnolégica, csté presente a poténcia criadora da imaginagio."? Reabilitada, a imaginagio ocuparia o papel de base ou referéncia da atitu- de cientifica, nela repousando o élan criador. Estabelecia-se, assim, 0 en- tendimento da ciéncia ¢ da imaginagao como ordens consistentes da reali- dade. Nao haveria ruptura entre racional ¢ imaginario, embora, segundo Bachelard, seus eixos de constituigio fossem diferentes. Os historiadores iriam esperar a renovagao vinda do proprio mar- xismo, com E. P. Thompson, Christopher Hill, Raymond Williams, ou da escola francesa dos Annales para sc voltarem para uma hist6ria social, tornada cada vez mais cultural." Desencantados com a rigidez e 0 economicismo de um marxismo ortodoxo, assim como rejeitando as velhas concepgdes positivistas de uma histéria factual, politica e diplomatica, a nova tendéncia passou a afirmar a nao existéncia de verdades absolutas, marcando 0 recuo de uma posicao cientificista herdada do século passsado. Estimulando novos olhares ¢ abordagens com a realidade, em uma outra vertente, a histéria social dos anos 60 e 70 restabeleceu o “oficio do histo- riador”. Como um mestre da narrativa, este € alguém que, munido de um método, resgata da documentagio empirica as “chayes” para recompor 0 encadeamento das tramas sociais. No decorrer dos anos 80, a histéria so- cial desembocou na chamada “nova hist6ria cultural”, que passou a lidar 12 com novos objetos de estudo: mentalidades, valores, crengas, mitos, repre- sentagdes coletivas traduzidas na arte, literatura, formas institucionais. Portanto, a emergéncia das questdes culturais, como a tendénciaup to date de anilise hist6rica nas ultimas décadas, insere-se na inflexdo das ci€ncias humanas da nossa fin de sidcle, balizada pelo quadro geral de declinio das posturas cientificistas e racionalizantes de compreensao do mundo. Desta forma, nao é por acaso que o realce assumido pelo imaginé- rio enquanto objeto de preocupagao temética.e investigagio tenha crescido justamente no momento em que as razGes cartesianas e as certezas do processo cientffico nao se apresentam como capazes de dar conta da comple- xidade do real. Mas 0 esgotamento do conceito de totalidade ou o fim dos dogmatismos nio podem ser entendidos como fim de um esquema de refe- réncias. Ou seja, por mais que se recorram a argumentos tais como a falén- cia das certezas cient/ficas, ou o reconhecimento da fluidez e indeterminagao das explicagées sobre o social, no h4 como nio tentar uma aproximagio tedrica do tema em pauta. Como diz Jacques Le Goff, mesmo que a definigo do imaginério seja flufda ¢ que o tema tenha sido “surpreendido pela moda”,'* ela néo deve se tornar a panacéia explicativa da histéria. Por outro lado, também nao bastam aproximagdes um tanto imprecisas, como as utilizadas por Le Goff para o termo “mentalidades”. O historiador o chama de “nogio vaga”, “ambigua”, “inquietante”.' Philipe Ariés aproxima a nogdo & de incons- ciente coletivo, espécie de estrutura mental ou visdo de mundo dos tempos passados.'* André Burguitre a chama menos de uma subdisciplina no inte- rior da pesquisa histérica que de um campo de interesse e de sensibilidade, vasto e heterogéneo."” Espécie de histéria-encruzilhada, ela deve o seu charme, tal como diria Le Goff, justamente por sua imprecisio, por sua vocacao em designar os residuos de andlise hist6rica, o “nao-sei-qué da histéria”..." Concordando com o carter um tanto vago da nogao, Michel Vovelle declara que 0 conceito ao qual se aproxima mais seria o de “visio de mundo”. Constitui-se em algo mais amplo que a ideologia por integrar “o que nao esté formulado, 0 que permanece aparentemente como ndo ‘significante’, 0 que se conserva muito encoberto ao nivel das motiva- ¢6es inconscientes”.'” O IMAGINARIO E A MENTALIDADE A aproximagao do conceito de imaginario com a nogiio de mentali- dade nfo 6 fortuita. Além de ser a grande vedette da hist6ria cultural, a hist6ria das mentalidades tem muitas vezes se confundido com a hist6ria do imaginério. Muitos historiadores, marxistas ou no, transitaram da his- t6ria social para a histéria das mentalidades, passando das estruturas so- ciais as atitudes e representagdes coletivas, resgatando as complexas me- diagdes entre a concreticidade da vida real dos homens e as representagdes que os mesmos produzem de si e do mundo.” Sobre a histéria cultural pesa, pois, uma certa indefinigdio conccitual, uma imprecisao tedrica ou metodolégica de abordagem. Diga-se de passa- gem que as criticas recaem sobretudo sobre a matriz francesa e a sua vinculagao direta com a Nova Histéria. Esta ora é denunciada como uma hist6ria leve, supérflua ¢ de obviedades, fazendo concessées & moda e a0 grande publico, ora é criticada pela sua auséncia de teoria. Na sua versio francesa, a histéria cultural se apresentaria como uma alternativa ao mar- xismo, mas dele ndo se desprenderia nem ofereceria um suporte teérico metodolégico substituti vo. Para alguns autores do inicio da década de 80, © resultado teria sido um tipo de hist6ria que era a0 mesmo tempo tema, objeto ¢ método. Manifestava uma preferéncia pelas questies periféricas em detrimento dos temas centrais (os comportamentos desviantes, os mar- ginais, as feiticeiras), optando pelo estudo do inverso do vivido (0 imagi- nario, o sonho), ao invés das condigdes concretas da existéncia...2! E inte- ressante notar que certas criticas 4 histéria cultural partiram justamente de investigadores que nela trabalham. Enquanto Frangois Furet aponta que a sua falta de definigio é compensada por um apelo 4 moda,” Darnton é ainda mais incisivo: apesar dos prolegomenos e dos discursos sobre o mé- todo, os franceses nao desenvolveram uma nogio coerente das mentalida- des como um objeto de estudo.? Em suma, as criticas sobre a histéria intelectual ¢ das mentalida- des, ponta avancada da histéria social na sua versdo dos anos 80, tende- ram a incidir sobre a imprecis&o teérica subjacente. Como se viu, contemporaneamente hd uma espécie de consenso em torno da faléncia das grandes certezas cientificas ou dos grandes esquemas explicativos glo- bais; rejeita-se a ligago mecdnica ¢ reflexa entre a infra e a superestrutu- ra, abrindo o leque de possibilidades e intermediages entre as instancias da realidade; aposta-se na transdisciplinaridade, reforgando as ligacdes com outros campos do conhecimento e dando a impressao que, de repente, 14 tudo é realmente hist6ria, nada escapando ao campo do historiador. Have- ria, de um lado, uma espécie de esvaziamento, ou mesmo esfacelamento, de pressupostos de natureza tedrica, mas, por outro, registrar-se-ia uma enorme sedugao pelos novos objetos e campos de andlise, suscitando olha- res até entdo inusitados sobre a realidade. E neste contexto que emergem os estudos sobre 0 imagindrio. Dom{nio extremamente controvertido, sem diivida, mas onde se pretende resgatar um melhor contorno de entendimen- to © aproximagao tedrica do que as mentalidades. De saida, cabe deixar claro que a busca de uma abordagem néo infletira pelo tipo de definigao do “ndo-ser” (0 imagindrio nao € isso ou no € aquilo), salvo quando a negativa conduz a uma afirmagao. Como refere Héléne Védrine,* 0 imagindrio nao pode ser o impensado ou o nao expresso, Neste sentido, ele necessariamente trabalha sobre a linguagem, € sempre representa¢o e nao existe sem interpretacao, Cabe, pois, esbogar uma tentativa para melhor delimitar 0 nosso campo de anilise, a fimi de permitir a sua abordagem desde o ponto de vista da histéria, Rebatendo a idéia de que imagindrio seria uma palavra mais vazia ainda que mentalidades, Le Goff aponta que os historiadores se empenham em dar um contetido mais preciso a esta historia do imagina- tio. A estratégia da abordagem conceitual poderia comegar com a no- go de representagao. Representagio, diz Le Goff, & tradugdo mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstragio.%* O imagin4rio faz parte de um campo de representagZo e, como expressio do pensamento, se manifesta por imagens ¢ discursos que pretendem dar uma definigao da realidade. Mas imagens e discursos sobre 0 real nao sao exatamente o real ou, em outras palavras, nao sio expressées literais da realidade, como um fiel espelho. Hé uma décalage entre a concretude das condigdes objetivas ca representagao que dela se faz. Como afirma Bourdieu,” as representagdes mentais envolvem atos de apreciagdo, conhecimento e reconhecimento e constituem um campo onde os agentes sociais investem seus interesses ¢ sua bagagem cultural. As representagdes objetais, expressas em coisas ou atos, siio produto de estratégias de interesse e manipulagao. Ou seja, no dominio da representagao, as coisas ditas, pensadas e expressas tm um outro sentido além daquele manifesto. Enquanto repre- sentagao do real, 0 imagindrio é sempre referéncia a um “outro” ausente. O imaginério enuncia, se reporta e evoca outra coisa nfo explicita e nao presente. 15 Este processo, portanto, envolve a relagao que se estabelece entre significantes (imagens, palavras) com os seus significados (representa- gées, significagdes),™ processo este que envolve uma dimensio simbélica. Nesta articulacao feita, a sociedade constréi a sua ordem simbdli- ca, que, se por um lado no é 0 que se convenciona chamar de real (mas sim uma sua representagao), por outro lado € também uma outra forma de existéncia da realidade hist6rica... Embora seja de natureza distinta da- quilo que por hébito chamamos de real, é por seu turno um sistema de idéias-imagens que dé significado a realidade, participando, assim, da sua existéncia. Logo, o real é, a0 mesmo tempo, concretude ¢ representagao. Nesta medida, a sociedade é institufda imaginariamente, uma vez que ela se expressa simbolicamente por um sistema de idéias-imagens que consti- tuem a representago do real.” Portanto, o imagindrio, enquanto representagao, revela um sentido ou envolve uma significagao para além do aparente. E, pois, epifania, apa- Tigo de um mistério, de algo ausente e que se evoca pela imagem e discur- sot A igor, todas as sociedades, ao longo de sua histéria, produziram suas proprias representagdes globais: trata-se da elaboragao de um siste- ma de idéias-imagens de representagdo coletiva mediante 0 qual elas se atribuem uma identidade, estabelecem suas divisées, Iegitimam seu poder © concebem modelos para a conduta de seus membros.” Seriam, pois, re- presentagées coletivas da realidade, e nao reflexos da mesma. Hé, assim, uma temporalidade da histéria nas representagies. Refere Evelyne Patlagean: “O dominio do imagindrio é constituido pelo conjunto das representagdes que exorbitam do limite colocado pelas constatagées da experiéncia e pelos encadeamentos deduti- vos que estas autorizam (...). Em outras palavras, o limite entre 0 real e 0 imagindrio revela-se varidvel, enquanto que 0 territério atravessado por este limite permanece, ao con- trdrio, sempre e por toda parte idéntico, jd que nada mais é Sendo 0 campo inteiro da experiéncia humana, do mais co- letivamente social ao mais intimamente pessoal’. Logo, niio existe na elaboragio das idéias-imagens de representa- go coletiva uma necesséria correspondéncia com o que se chamaria “a verdade social”. Ao descartar a concepgio de que tais imagens espelham a 16 tealidade, nao se est4 incorrendo numa postura oposta, de que a realidade ou 0 real € o concreto ¢ 0 pensado, ¢ o “nao-real” é 0 “ndo-verdadeiro”. Nao se est diante de um “didlogo platénico”, mas de uma forma de enten- dimento que encara a realidade nao s6 como “o que aconteceu”, mas tam- bém como “o que foi pensado” ou mesmo “o que se desejou que aconte- cesse”. Segundo Gilbert Durand, o imagindrio é um conjunto de imagens de relagdes de imagens que constituem o capital pensante do homo sapiens. ‘Se o imaginirio € 0 cerne da propriedade realmente humana - a capacidade de representar a si propria, a sua vida e ao mundo -, ele é, por exceléncia, © campo privilegiado da hist6ria. A questao, da forma como foi colocada, remete a indagagao: como se articulam as representagdes do mundo social com o proprio mundo so- cial, uma vez que nao sao o seu reflexo? Ou, em outras palavras, qual a articulagao que se estabelece entre texto ¢ contexto? Desde jé, cabe colocar uma certa dificuldade para entender, como 0 faz Alain Pessin, que o “lugar” da formago do imaginério e do mito pode se constituir como um lugar auténomo.s Uma coisa é entender, como reco- nhece o autor, que existem complexos imagindrios que subvertem as con- digdes ditas estruturais da vida coletiva; outra é retomar uma discussao, a nosso ver, in6cua e ultrapassada, sobre a primazia dos nfveis ou instdncias da realidade. Posigao oposta teriam os neomarxistas ingleses, como Thompson,* quando estabelecem que o sentido de um discurso s6 pode ser dado por um extradiscurso, Ou seja, a explicac&o do social seria sempre priméria, esta- belecendo-se a necessdria correlagao entre o contexto (econdmico, social € politico) e o discurso sobre aquele contexto, operando a linguagem como o meio de representacao. Relativizemos as afitmagdes, abandonando posigées polares de determinancia. Recorrendo a Barthes,” encontramos a consideragao de que a historia é modo de representacdo baseado no que se chama “ilusio referencial”. Todo fato histérico - e, como tal, fato passado - tem uma existéncia lingiifstica, embora o seu referente (0 real) seja exterior ao dis- curso. Entretanto, o passado jd nos chega enquanto discurso, uma vez que nao € possivel restaurar o real jd vivido em sua integridade, Neste sentido, tentar reconstituir o real é reimaginar o imaginado,* e caberia indagar se os historiadores, no seu resgate do passado, podem chegar a algo que nfio seja uma representagio... Partimos da premissa de que s6 6 possivel decifrar a representagio 17 através da articulagao texto/contexto. Esta € a postura de Ginzburg® quando. estabelece que nfo se pode abandonar a idéia da totalidade para estabele- cer acompreensdo de um texto. Sea realidade por vezes nos parece opaca ¢ incompreensivel, € preciso buscar indicios, estabelecer relagées e procu- rar significados em dados aparentemente irrelevantes, mas que adquirem sentido dentro de um contexto mais amplo, que é a necesséria referéncia para a interpretagao, Igualmente Darnton“ estabelece a impossibilidade de pensar o real sem relacioné-lo com um conjunto de categorias, postu- lando a articulag&o texto/contexto como essencial para resgatar a historicidade de um evento dado. Para Roger Chartier, nao € possivel en- tender uma hist6ria cultural desconectada de uma histéria social, posto que as representagdes sao produzidas a partir de papéis sociais, Assim como Darnton, Chartier entende que nao hd real oposigao - ou oposi¢ao antitética - entre mundo real e mundo imaginério. O discurso e a imagem, mais do que meros reflexos estaticos da realidade social, podem vir a ser instrumentos de constituigao de poder ¢ transformagao da realidade. Con- cluindo, a representacao do real, ou o imagindrio, 6, em si, elemento de transformacio do real e de atribuigao de sentido ao mundo.*! Para Bourdieu, a instancia das representagées €, em si, um campo de manifestagao de lutas sociais ¢ de um jogo de poder. Ainda para este autor, € preciso ultrapassar a alternativa economicista/culturalista, que ou vé 0 objeto simbélico como reflexo mec4nico do real ou o vé como uma finalidade em si, Segundo 0 autor, nada de menos inocente que a questo, que divide o mundo intelectual, de saber se devem entrar no sistema de critérios nao s6 as propriedades “objetivas”, mas também as “‘subjetivas”, quer dizer, as representacies que os agentes sociais se fazem da realidade € que contribuem para a realidade das divisdes.* Para Bourdieu, o mundo social é também representagio e vontade, ¢ todo discurso contém, em si, estratégias de interesses determinados. A autoridade de um discurso e a sua eficdcia em termos de dominagao simbélica vém de fora: a palavra concentra 0 capital simbélico acumulado pelo grupo que o enuncia e pre- tende agir sobre o real, agindo sobre a representagao deste real.*> Para Julia Kristeva, o que justamente nos atrai no estudo do imagi- nario é esta ambivaléncia e esta mélange entre subjetivo e objetivo, este quiasma entre a forga do ser e a espiritualidade da idéia. E proprio do imagindrio passar do simbélico ao fisico ¢ ser as duas coisas a0 mesmo tempo, proceso este que, indo da sensagio & idéia, é a forga de sua sedu- ¢ao.* Segundo esta linha de articulacao texto/contexto, para desvelar a 18 relagao de representagao, os novos “aliados” da hist6ria cultural refor¢am @ argumentagao. Clifford Geertz,’ ao definir a cultura como um sistema simbélico, indica que a sua decifragao implica uma busca de significados. E preciso resgatar nos comportamentos humanos, constituidos como agdes simbélicas, 0 seu significado socialmente reconhecido. Isto s6 pode ser obtido através de uma descrigAo densa € 0 estabele- cimento de conexécs entre os varios elementos. Retorna-se, pois, ao con- texto, como fonte de significancia que da sentido & representacdo. Nos caminhos da nova histéria cultural, a busca de revelago de um sentido pode ser dada pela recuperago detalhada de um evento isolado, que per- mite entender 0 conjunto no qual se insere.** J4 Darton, historiador com nitida influéncia da antropologia, defi- niu a sua tarefa como uma busca de significados, mergulhando na dimen- so social dos textos e fazendo novas perguntas ao material antigo. Em obra bastante conhecida,"” Darton se movimenta com desenvoltura do texto ao contexto e deste novamente ao texto. Da mesma forma, a alianga estabelecida pela hist6ria com a litera- tura nos leva 4 mesma busca de significados. Se atentarmos, como diz Backthine,** para o fato de que o passado j4 nos chega como texto ¢ como leitura jé feita, a decifragao deste discurso se dard pelo esforgo de ler um texto sob um outro texto. Ora, seo concreto real ¢ 0 concreto pensado so eles préprios cons- tituintes da realidade, se a historicizagao de um texto nos € dada pela refe- réncia ao seu contetido ¢ se o pensado e o representado nao sao 0 reflexo mecanico do concreto e/ou do acontecido, o desvelar de significados da telagdo de representagdo nos parece um pouco mais claro. Nesta linha de raciocfnio, Chartier indica o caminho para decifrar a constru¢o de um sentido num processo determinado: o cruzamento en- tre praticas sociais e historicamente diferenciadas com as representagdes feitas. Como bem acentua o autor, as clivagens culturais nao se organizam 86 através do recorte social, ocorrendo também configurag6es derivadas dos fatores sexo, idade, religiao, tradicdo, educagio, etc. As representa- i 0 a0 mesmo tempo matriz e efeito das praticas construto- ial. Deixa de ter sentido, como jd se acentuou, a discus- so sobre a primazia desta ou daquela instancia da realidade, por entendé- Ja miltipla, dindmica, ndo-determinada, relativa. O imaginério, enquanto sistema de idéias-imagens de representa- Ges coletivas, é “o outro lado” do real. A tigor, com relagao a este processo de “apreensiio” do real, sem- 19 pre ocorreu uma tensio entre a imagem-mimese e a imagem-ficcio. Numa primeira postura, terfamos a imaginagao como reprodutora do real.*° Im- plica a assimilagaio do imaginério com a meméria numa articulag&o que envolve um dinamismo associativo. Neste caso, a imagem nao existe fora de um processo de evocacao.”' Esta imaginagao reprodutora ou mimética estabelece um simulacro, uma via ilusGria de representagdo da realidade, funcionando como um auxiliar do sentido.” No extremo oposto, terfamos uma tendéncia herdeira do racionalismo cartesiano de negar a realidade da imaginagao, $6 reconhecendo a légicae a razo, esta postura rejeita a fantasia criadora do sonho.* Sendo a imagi- nagio “mestra do erro e da falsidade”, s6 produziria nao-verdades, ima- gens fantasticas e irreais. Segundo Gilbert Durand, a postura de Bergson, encarando a imagi- nagiio como residuo minimésico e associado & evocagio pela meméria, ou de Sartre, considerando a imagem como um vulgar doublé sensorial, apro- xima-se das duas concepg6es referidas. Sartre, por exemplo, entende as imagens como “miniaturas mentais” das coisas exteriores; logo, a imagi- nagiio, ao se apresentar como uma “quase-observaciio”, coloca-se numa posigio desvalorizada diante do conceito, este sim atividade de abstragdo que implica concepgao ¢ conhecimento “verdadeiro”.*5 Ainda segundo Durand, ambas as posturas minimizam o imaginério, restando uma tercei- ra via, inaugurada por Gaston Bachelard. A imaginacZo € percebida como um dinamismo organizador, dinamismo este que se converte em fator de homogeneizagio da representacao.* Dar & imaginagéio uma fungao criadora implica atribuir-lhe uma capacidade inventiva para criar a realidade.*’ A nogao jé fora surpreendi- da por Baudelaire, no Salao de 1859: “Por imaginagao, eu ndo quero exprimir somente a idéia comum implicita nesta palavra da qual se faz té0 grande abuso, a qual é simplesmente fantasia, mas também a ima- ginagao criadora, que é uma funcao muito mais elevada e que tanto quanio o homem é feito 4 imagem e semelhanca de Deus, guarda esta relagdo distante com este poder subli- ime pelo qual o criador concebe, cria e mantém seu univer- so." Portanto, Baudelaire concebera a imaginag4o como que portadora de um caréter magico, divino, transcendental, capaz de romper com as 20 condi¢ées da cotidiancidade ¢ antecipar o amanha. Como diz Gaston Bachelard, “na fungdo do real, instruido pelo passado, é preciso juntar ura fungao do irreal também positive. Como prever sem imaginar?”? Ora, a dimensao criadora do imagindrio nos remete a dialética do racional/irracional. O imagindrio nao é um ensaio do real, mas evocagao que dé sentido as coisas.” A imaginagio nao € conhecimento, logo nao hé um saber imagindrio que se oponha ao saber racional, mas na origem do saber cientifico est4 a imaginagao criadora. Neste sentido, € possivel concordar com Yves Durand quando diz que: “O imagindrio cobre a totalidade do campo antropolégico da imagem que se estende indistintamente do inconsciente ao consciente, do sonho e da fantasia ao construido e ao pensamento, enfim, do racional ao irracional, E do espirito que dependem os miiltiplos dominios do imagindrio.”*' A fungao criadora do imagindrio € também resgatada por Baczko, quando se refere ao processo de formago de idéias-imagens de represen- tagao coletiva: “(...) inventadas ¢ elaboradas com materiais tirados de fun- do simbélico, elas tém uma realidade especifica que reside na sua existéncia mesma, no seu impacto varidvel sobre as mentalidades e os comportamentos coletivos nas fungées miltiplas que elas exercem na vida social.”* Na verdade, a concepgo do imagingrio como fungio criadora se constr6i pela via simbélica, que expressa a vontade de reconstruir 0 real num universo paralelo de sinais.* Para Castoriadis, a hist6ria é imposs{- vel/inconcebivel fora da imaginago produtiva ou criadora a que ele cha- ma de imagindrio radical,“ Anocio de simbolo é, pois, central e se encontra ligada a de repre- sentagio: “Os simbolos podem ser considerados derivados dos sig- nos, quer dizer, do conjunto de elementos conheciveis e repertoridveis, mas que, ao mesmo tempo, se propdem como fantasmas do significado que retém uma parte do objeto que designam”.* 21 O simbolo se expressa por uma imagem, que € seu componente es- pacial, e por um sentido, que se reporta a um significado para além da representacdo explicita ou sensivel. Em suma, através da imaginagao simbélica, diz-se ou se mostra uma coisa ou uma idéia através de outra. Citando Ricoeur, Wunemburger estabelece que o simbolo corresponderia a uma estrutura de significagao onde um sentido primério, literal, designa um sentido indireto, secundario, figurado, que nao pode ser apreendido senao pelo primeiro.” Ora, a questo da natureza simbdlica das imagens remete & nogio de alegoria: a imagem é, pois, a revelacao de uma outra coisa que nao ela prépria. Pensar alegoricamente implica referir-se a uma coisa mas apontar para uma outra, para um sentido mais além. Mais do que isso, implica realizar a representacao concreta de uma idéia abstrata. Subjacente ao que sé vé, se Ié ou se imagina, a alegoria comporta um outro contetido. Assumimos, pois, 0 pressuposto das representagdes simbdlicas € alegoricas do imaginario coletivo, Todavia, a sociedade constitui o seu simbolismo, mas nao dentro de uma liberdade absoluta, pois ela se apoia no que jd existe.” Tais representagéeé teriam, na sua concepgfo, um fundo de apoio na concreticidade das condigdes reais de existéncia. Ou seja, as idéias- imagens precisam ter um minimo de verossimilhanga com o mundo vivido para que tenham aceitacdo social, para que sejam criveis, Entende-se que mesmo o fantastico ¢ 0 extraordindrio manejam com dados reais, transformados e adaptados em combinagées varias. A prépria poténcia criadora do imaginario nao é concebida num vazio de idéias, coi- sas ou sensagdes. q Por outro lado, além do seu fio-terra que o liga 2 realidade, o imagi- ndrio comporta um elemento ut6pico. O imaginario social nao se resume as idéias-imagens ut6picas, mas elas Ihe dao um suporte poderoso, como forma especifica de ordenabao de sonhos e desejos coletivos. A utopia é a projecio, no dominio do imaginario, “de uma socieda- de radicalmente outra, de um mundo em tudo melhor que o mundo real”.” Neste sentido, refere Baczko: “Sonhar uma sociedade perfeitamente transparente na qual os principios fundadores se reencontrariam em todos os de- talhes da vida cotidiana de seus membros, uma sociedade na qual a representacdo seria a imagem fiel, sendo 0 sim- ples reflexo de sua realidade, é um tema constante das uto- pias ao longo dos séculos. A permanéncia deste sonho é uma prova emcontrdrio de que nenhuma sociedade, nenhum gru- po social, nenhum poder sao precisamente transparentes para si proprios.”" Mas existe ainda um outro lado nao abordado: aquele que diz res- peito ao gerenciamento e manipulacao do imagindrio. Nao h4 como negar que: “O controle do imagindrio, de sua reprodugao, de sua difw: sdo e de seu gerenciamento assegura, em degraus varidveis, um impacto sobre as condutas e atividades individuais e co- letivas, permite canalizar energias, influenciar as escothas coletivas nas situagdées surgidas tanto incertas quanto imprevisiveis.”” Estar-se-ia, pois, diante de um novo ingrediente: o da manipulagao, que jogaria com os sonhos coletivos ¢ com as forgas da tradigdo herdadas de um cotidiano imemorial, forjando mitos, crengas e simbolos. Nao se quer reduzir, em hipstese alguma, o imaginario social a ideologia, nem opor a este jogo de intengdes e socializacdo de idéias deliberadas o poten- cial libertador € subversivo da utopia, Nao cabem posigdes maniquefstas que, inclusive, reduzem a complexidade do contexto social e a riqueza das representagdes possiveis que ele comporta. Mas, sem diivida alguma, é importante que se tenha em vista que intervém no processo de formagao do imaginario coletivo manifestagdes interesses precisos. Nao se pode esquecer que,o imagindrio social é uma das forgas reguladoras da vida coletiva, normatizando condutas e pautan- do perfis adequados ao sistema. Como diria Rolf Peter Janz, ao abordar 9 conceito benjaminiano da fantasmagoria equivalente & representagao socjal: ela possui, sem diivida, uma faceta de transformagao ¢ engodo, mas é também portadora do sonho da coletividade, na sua dimensio utépica.”* ‘Tal como foi cxposto, registrar-se-iam trés instincias de realizago do imaginério: a do suporte na concretude do seal, a da utopia e a ideolé- gica. a Louis Vincent Thomas, por seu lado, distingue trés tipos de imagi- nério, que poderiam, de uma corta forma, sc associar a estes enfoques abordados: o imagindrio do mundo das imagens; o racional ou ideal, que 23 corresponderia a uma ordem cientifica; e o pulsional ou imaginal, correspondendo a um subjetivismo irracional.” Realidade, intengao deli- berada ou ilusdo do espfrito e utopia ou dimensao fantdstica. Preferimos, contudo, nao divisar tipos ou classificagdes de modalidades do imagin4- rio, mas sim entender que a complexidade a que se dé o nome de imagin rio social comporta, ao mesmo tempo, aquelas trés dimensées. Ou seja, 0 imagindrio comporta dimensdes e nfo se enquadra em tipos que envolvem modelos redutores. O imagindrio social se expressa por simbolos, ritos, crengas, dis- cursos € representac6es alegéricas figurativas. Tome-se o exemplo da idéia-mestra do progresso, tipica do século XIX, que transcorreu embalado por este principio ufanista. O progtesso, em si, € uma abstragio conceitual da realidade empitica: © século XIX viveu a consolidagao do sistema de fabrica, a vitéria do capitalismo, a difusdio das méquinas, o florescimento da sociedade bur- guesa. Nao hd também como negar a natureza ideolégica das idéias de Progresso: 0 discurso da burguesia triunfante contava com esta idéia que consubstanciava as exceléncias do sistema ¢ a sua capacidade de construir um mundo cada vez melhor. Por outro lado, a conquista antecipada do futuro ¢ a meta da sociedade do bem-estar foram também uma utopia que acalentou os sonhos do século XIX. O progresso constituiu-se assim no grande mito ¢ na maior crenca do século XIX, embalado pelos princfpios filoséficos da evolugao, pelo cientificismo, pela tecnologia, pelo esplendor da transformagao burguesa das cidades. Expressou-se por ritos ¢ discursos especificos que foram des- de as exposigdes universais 20s congressos cientificos, passando pelas obras de Jules Verne, para chegar As remodelagSes urbanas de um Haussmann, na Europa, ou de um Pereira Passos, no Rio de Janeiro. O progresso, poder-se-ia dizer, esteve no centro do imaginério so- cial do século XIX até o inicio da Primeira Guerra Mundial. O imaginario é, pois, representag4o, evocagdo, simulagao, sentido e significado, jogo de espelhos onde o “verdadeiro” eo aparente se mes- clam, estranha composigao onde a metade visfvel evoca qualquer coisa de ausente € dificil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desven- dar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representagao do ser e parecer. Nao sera este o verdadciro caminho da Histéria? Desvendar um enredo, desmontar uma intriga, revelar 0 oculto, buscar a intengao? Fugindo a modelos, desprezando leis, opondo-se a ortodoxias 24 metodolégicas, o imagindrio se abre como um novo campo de estudo, mui- to bem explorado pela mfdia, que aposta nas suas facetas de seducdo, fan- tAstico, irracional... ou de uma histéria mais leve, distante das tabelas es- tatisticas, dos modelos politicos, das regras sociolgicas, das cronologias. O que, porém, poderia ser mais objeto da histéria do que esta busca de sentido, este renovar incessante das tentativas de explicar aliangas, en- redos, desejos, intengdes, do que este tecer ¢ retecer da tessitura social? Estariam talvez corretas as aspiragdes explicitas no segundo mani- festo surrealista, em 1930, quando dizia procurar aquele justo “(.u.) ponto do esptrito, onde a vida e a morte, o real e 0 imagindrio, 0 passado ¢ 0 futuro, 0 comunicavel e 0 incomu- nicdvel, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contradi- toriamente.”"5 NOTAS " BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Paris, Payot, p.27, 1984. * Thidem. p.28. * Ibidem. p. 29. * CE. STONE, Lawrence. The revival of narrative: reflections on anew old history, The past and the present. Boston, Routledge and Kegan Paul, 1981; HUNT, Lynn. History, culture and text e PATRICIA, O'Brien, Michel Foucault's. History of culture. In: HUNT, Lynn, ed. The new cultural history. 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